Os mateiros e Mercúrio


Um mateiro, homem de bem,
Junto de um rio lenhava,
E do cabo lhe saltava
O machado, e cair vem
No rio, onde se afundava.

Desconsolado carpia
O triste o seu ganha-pão;
Porém nessa ocasião
Mercúrio os ares fendia
De Jove a uma missão.

Examinou seu semblante,
Compadecendo-se, e diz:
«Vejamos se esse infeliz
É honrado, ou se é tratante,
Que de seu rosto desdiz.

Homem, por que assim pranteias?
– Por ter filhos e mulher,
Sem ter mais para os manter
Que a bipene que às areias
Desse rio ora foi ter.

– Comprar outra. – E o dinheiro?
Isso é que chorar me fez!»
Vistes vós alguma vez
Dar a rã salto ligeiro
Dentro à água paludez?

Assim Hermes salta ao rio,
Mergulha; após breve instante,
De ouro machado brilhante
Traz polido e luzidio,
E ao mateiro o pôs diante.

«Aqui tens o que perdeste.»
Ele o olha, e diz: «Senhor,
Um machado cortador
Eu perdi, mas não é este,
Bem que tenha mais valor.»

Mergulha outra vez o nume,
C’um de prata saiu fora,
E diz: «Será este agora
A segure de bom gume
Que a tua mágoa deplora?

– Também não. – E coisa rara!
– Juro-te que não é minha.»
Desce o nume ao rio azinha,
E traz, qual se então a achara,
A que ele perdido tinha.

«É esse – exclama contente;
Esse é ele, o bom machado
Com que tenho granjeado
Pão que os meus e a mim sustente;
Eternamente obrigado.»

Então o nume tomando
A forma celestial,
Lhe diz: «Pois és tão leal,
Que as riquezas desprezando,
Queres o teu, e não aí?

Em prémio da probidade
De que prova clara dás,
Com todos três ficarás;
E de Mercúrio a deidade
Sempre propícia terás.»

O caso se divulgou,
E logo um outro mateiro,
Avarento e traiçoeiro,
N’água o machado deitou,
E pôs-se a fazer berreiro.

Mercúrio de novo desce,
E para assim o sondar,
Vai-lhe o machado buscar;
Com o de ouro lhe aparece,
E eis o mateiro a gritar:

«É esse! é esse! – Vê bem!...
Olha se estás enganado!...
– Qual história! O meu machado
Eu bem conheço! – E eu também,
Que és mentiroso e malvado!

E pois és tão atrevido,
Que ousas um nume enganar,

Sem machado hás-de ficar,
E depois de bem zurzido,
Outro à feira hás-de ir comprar!»

Pelo cabelo o agarrou,
E logo c’o caduceu
Tanta paulada lhe deu,
Que quase morto deixou
Sobre a relva o mau sandeu.

Neste apólogo ensinar
Quis Esopo que a verdade
Sempre agrada à Divindade,
Que usa sendos prémios dar
Ao delito e à probidade.

Costa e Silva
Os tavões e as abelhas


Na produção se reconhece o artífice.

Alguns favos de mel não tinham dono:
Logo a si os chamaram os tavões;
As abelhas, opondo-se, levaram
O pleito a certa vespa. Era difícil
De tirar deste caso as conclusões.
Depondo, as testemunhas declararam
Que alados animais, um tanto longos,
Zumbindo, escuros, tais como as abelhas,
Rondando os favos por ali andaram.
Mas, ah! que nos tavões estes sinais
São os mesmos – tais-quais.

Não sabendo que opor a estas razões,
A vespa quis mais luz e decidira
Tirar, segunda vez, inquirições.
Ouviu um formigueiro;
Mas o caso, inda assim, que era intrincado,
Ficara no tinteiro.

Uma abelha ladina exclama então:
«A que vem para aqui, fazem favor,
Todo este arrazoado?
Há seis meses que o pleito está pendente.
E nós como a princípio, exactamente.
Com a tardança o mal ganha bolor.
Decida-se o juiz;
Já nos levou a pel’ como bem quis.
Nós agora sem réplicas nem tréplicas,
Sem contraditas mais, nem mais farragem,
Mãos à obra, e munidas de coragem,
De par com os tavões a trabalhar,
Deste mimoso suco a ver quem sabe
Tão primorosas celas fabricar.»

Recusando os tavões, claro se via
Que o seu estreito engenho não podia
Tal arte exercitar.
Julgando a vespa, então, à parte contra
O mel foi dar.

Prouvera a Deus que todos os processos
Se julgassem assim. Ah! quem seguira
O método dos turcos neste ponto –

O bom senso de código servira!
Não se fora o melhor gasto nas custas:
Não fôramos sugados, arrasados,
Com delongas constantes:
Afinal o juiz faz-se co’a ostra,
E atira com a casca aos litigantes!

Bulhão Pato
O leão doente


Um leão vendo-se enfermo,
Passa aviso a seus vassalos
De que à vida vai pôr termo,

E que intenta aconselhá-los
Sobre a regência futura,
Dar-lhes beija-mão, e honrá-los.

Dos leões à fé lhes jura
Que trata bem qualquer fera
Que o visita e o procura:

Porém na furna as espera,
E quando alguma entrar ousa,
Logo a mata e dilacera.

Eis uma esperta raposa
Pára, e diz, sem que entre lá:
«Xau! que eu observo uma coisa!

Pegadas mil aqui há;
Mas para lá todas vão,
E nenhuma para cá;

Saúde, senhor Leão!
Quero-me à glória eximir
De beijar-lhe a régia mão;

Porque jurei jamais ir
A qualquer casa ou lugar,
Vendo só por onde entrar,
E não por onde sair.»

Foi reflexão mui subida
Esta que fez a raposa;
Que é loucura desmedida
Entrarmos em qualquer coisa
Sem ver se temos saída.

Curvo Semedo
Os dois dragões


Certo enviado do Sultão
Preconizava um dia a tropa de seu amo,
Dando-a até por melhor que a do Império Alemão.
Foi no paço esta cena. Acudia ao reclamo
Um fidalgo de Berlim
Dizendo assim:
«Aos pés do nosso trono avultam principados
De tal poder, tão abastados,
Que deles um qualquer só no artigo soldados
Tem como um rei.»
O turco, homem de tino e esperto,
Sorriu, curvou-se e respondeu:
«De cada principado as forças, senhor meu,
Conheço-as eu,
E muito ao certo;
E, pelas conhecer, me lembra agora acaso
O que uma vez – sem risco algum – presenciei.
Se o permitis, eu contarei.
Foi este o caso:
De um valado ao través vi despontar, a custo,
Silvando, e a colear, e de olhos como a arder,
As cem cabeças da Hidra. É natural o susto;
Tive-o; pudera não! Mas notei, com prazer,
Que a Hidra não passava; e, por mais que lutasse,
Não houve conseguir que inteira a cauda imensa,
Por mais que ali barafustasse,
Pelo valado achasse
Passe.
De terror mal cobrado, eis que na sebe densa
Ouço rumor, e vejo então
Saindo desta feita a medonha presença
E a crista colossal de um singular dragão!
Tinha uma só cabeça, e as caudas eram cem.
E ele lá vem! lá vem! lá vem!
Lá passa todo, e muito bem.

Ao recordar-me desta história,
Meus bons amigos e senhores,
Não sei porquê, vêm-me à memória
Os nossos dois imperadores.»

Júlio de Castilho
A cerva e a vide


Estava entre umas parras escondida
Uma cerva, que vinha perseguida
De uns que andavam à caça: iam passando,
Sem que a vissem; a néscia imaginando
Que estava já segura, foi comendo
Umas folhas que a estavam defendendo.
Eles viram bulir, e suspeitaram
O que era; deram volta, e a mataram.
Ela, expirando, diz: «Justo o castigo
Que ofendi quem serviu de meu abrigo!»

Couto Guerreiro
O mono e o leopardo


O leopardo e o mono
Mostravam-se nas feiras
Enchendo as algibeiras.
Bradava o leopardo com entono:
«É conhecida a história
Da minha imensa glória.
O próprio rei quis ver
O meu pêlo esquisito, e, ao contemplá-lo,
Ordenou que, no dia em que eu morrer,
Lhe façam um regalo
Da minha pele ondeada,
Zebrada, chamuscada,
Mosqueada, marchetada!»
A cor sempre agradou. Cada qual ia,
Olhava, e nada mais, depois saía.
E o macaco a gritar: «Vinde, senhores,
A ver o rei dos escamoteadores.
Deixai gabar-se o leopardo, que ele
Só tem a variedade à flor da pele:
É vazio no espírito! Simão,
Vosso servo, que é primo coirmão
E genro de Gaspar,
Que foi mono do papa noutras eras,
Acaba de chegar em três galeras
Só para vos falar.
Sabe falar, cantar, dança e rebola,
Salta, pula, marinha e cabriola,
Faz caretas e partes,
Fura paredes e arcos,
Tudo isto por uns parcos
Quatro vinténs: vinde animar as artes.
E, o que inda mais importa,
Se a alguém lhe não agrada
Ensina-se-lhe a porta
E não se leva nada.»
Dou razão ao macaco. Na verdade
A mim não me cativa a variedade
No exterior; chega a cansar a vista.
O espírito, não há quem lhe resista,
Renova-se e seduz.
São certos figurões como o leopardo:
Das galas do trajar fazem alardo,
Tendo os cérebros nus.

Silva Ramos
O leão e o caçador


Um caçador bazófio, que perdera
Um cão de boa raça,
Com suspeitas que um leão no papo o tenha,
Vendo um pastor, lhe disse:
«Vem mostrar-me onde mora o tal gatuno;
Contas pedir-lhe quero.
– Mora ao pé desse monte. C’um cordeiro,
Que cada mês lhe pago,
Me quita; e, a bel-prazer, corro esses campos,
Em sossego.» – Inda falavam,
Que sai o leão, e a passo mais que cheio,
Toma as de vila-diogo,
Gritando, o meu bazófio: «Ó Jove, aponta-me
Guarida que me salve!»

Filinto Elísio
O rato e o elefante


Um mínimo ratinho, ao ver um elefante
Dos de vulto maior – quadrúpede gigante –
A motejar se pôs do caminhar pausado
Do famoso animal, que no dorso elevado,
Como em terceiro andar, tranquilo conduzia
Com sultana gentil de ilustre jerarquia,
O seu gato, o seu cão, sua velha companheira,
Um papagaio e um mono, a sua casa inteira,
Que iam de romana.

O mísero ratinho
Pasmava ao ver o povo atento no caminho
A contemplar absorto aquela enorme massa:
«Como se o ocupar maior ou menor praça
Tirasse – ele dizia – ou importância desse!
Homens, que admirais vós num animal como esse?
O volume será do corpo seu robusto,
Que infantes apavora e os faz tremer de susto?
Nem um só grão, sequer, nós nos prezamos menos
Que um elefante, nós, que somos tão pequenos!»

E mais ainda o rato iria grazinando,
Se o gato, da gaiola um lesto salto dando,
Não lhe houvesse mostrado, em menos dum instante,
Que diferença vai de um rato a um elefante.

A. Lopes Cardoso
A raposa derrabada


Uma ladina raposa
Caiu em certa armadilha
– Que sempre as tece o Diabo! –
E foi grande maravilha
Ficar apenas sem rabo.
Com tal perda envergonhada,
De a coonestar busca a ideia;
E as sócias vendo uma vez
Juntas em grande assembleia,
Lhes disse muito cortês:
«Sabei que os cães destes sítios,
Que há dias tenho encontrado
Por essa campina toda,
Têm cérceo o rabo cortado,
Que me faz crer que isto é moda;
Se é moda – falo-vos sério –
Nunca vi coisa mais útil!
De que serve, dizei vós,
Trazermos um peso inútil
Pendurado atrás de nós?
Um rabalhão guedelhudo,
Que nos faz calma no Estio,
E lá pelo Inverno todo
Nos dobra, e exaspera o frio,
Ou cheio de água, ou de lodo?
Portanto eu vos aconselho
– E deixemos questões fúteis –
Que o rabo cortemos todas;
Pois quando as modas são úteis,
É útil seguir as modas.»
Uma doutora do rancho,
Mestra em astúcias antiga,
Lançando-lhe a vista em roda,
Lhe diz: «Ora aposto, amiga,
Que tu já usas da moda?
Deixa ver, dá meia volta.»
Eis que então a derrabada,
Disfarçar-se não podendo,
Ao som de grande assoada,
Dando às gâmbias foi correndo.
Quem de um delito afrontoso
Em si o ferrete imprime,
Com achar parceiros conta,
Crendo que a mancha do crime,
Sendo usual, pouco afronta.

Curvo Semedo
Os ladrões e o asno


Brigavam dois ladrões por um roubado burro:
Com ele um quer ficar, quer outro expô-lo à venda.
E enquanto a discussão entre ambos corre a murro,
Terceiro vem que empolga a causa da contenda.

Não raro uma província ao burro é semelhante,
E uns príncipes quaisquer, iguais aos salteadores:
O Turco, o Transilvano, o Húngaro – em que instante,
Em vez de dois que busco, eis três dos tais senhores!

Abunda esta fazenda – embora com frequência
Nenhum lugar consiga a terra conquistada,
Se vem quarto ladrão que rindo da pendência
Cavalga no jumento e aos três dá surriada.

Gomes de Amorim
O Sol e o Vento


Entraram em contenda o Sol e o Vento
Sobre qual tem mais força, mais alento.
Passava nesse tempo um caminhante,
Assentaram que havia ser triunfante
O que tivesse forças, que lhe bote
Dos ombros para fora o seu capote.

Fez o vento tal força, que mostrava
Que já por esses ares lho levava,
Mas o dono às mãos ambas o sustenta;
Porém foi tal a força da tormenta,
Que ele já de sustê-lo desanima,
E, enrolando-se bem, deitou-se em cima.
O Vento andou de roda, deu-lhe um jeito,
Deu-lhe outro; porém tudo sem efeito.

Entrou na empresa o Sol, mas sem violência,
Antes com mansidão e com demência:
No meio de uma tal serenidade
Os raios tinham tanta actividade
Que já os não sofria o passageiro.
Chegou-se a um sombrio castanheiro,
O capote depôs, que o martiriza
A veste, e fica em mangas de camisa:
Com assombro do Vento furioso,
Ficou por manso o Sol vitorioso.

Couto Guerreiro
Os dois touros e a rã


Dois touros brigavam, por causa de amores,
Não longe de nédia vaquinha louçã;
Do charco onde habita, notando os furores,
Assim, assustada, lhes fala uma rã:

«Que é isso?... não vedes que ao fim dessa briga
Será desterrado do campo um de vós,
O qual, suportando vergonha e fadiga,
Virá sobre os charcos pisar-nos a nós?

É justo soframos, sem ter pretendido
A posse da vaca?» – E a triste acertou!...
Fugiu para os charcos o touro vencido,
E rãs, sob as patas, às mil esmagou!

Famosa verdade! Mas, caros leitores,
Por muito sabida, não deve espantar:
As grandes toleimas dos grandes senhores
São sempre os pequenos que as têm de pagar!

José Inácio de Araújo
A ostra e os pleiteantes


Dois peregrinos
Um dia encontram
Na praia um ostra,
Que o mar lançara.
Já c’os olhos a sorvem, já c’o dedo
A apontam um ao outro.
Pôr-lhe dente? Isso é ponto contestado.
Um se debruça
A colher preia,
E o outro o arreda.
E diz: «Saibamos
A quem compete
Ter dela o gozo.
O que a avistou primeiro, a trinque; e o outro
Veja-a com o olho,
Coma-a co''a testa!
– Se o negócio – diz o outro – assim se julga,
Tenho, graças a Deus, esperto lúzio.
– Nem os meus são ruins – disse o primeiro –
Que antes que tu a vi; por vida o juro.
– Se a viste, a mim cheirou-me.»
Neste comenos,
Chega aos pés deles
Juiz da Casinha,
Nele se louvam.
Mui grave o juiz recebe a ostra e... papa-a.
E os dois a olhar... Refeição feita:
«Tomai – lhes diz, em tom de presidente –
Cada um sua casca,
Salva de custas,
E vão-se andando.»
Contai quanto hoje custa uma demanda,
E o que a muitas famílias depois fica;
E vereis que o juiz vos leva o bolo,
E vós ficais c’o saco, e c’os trebelhos.

Filinto Elísio
A leoa e a ursa


Caiu-lhe o filho na cilada
Que o mendaz caçador lhe veio ao bosque armar;
E pelo bosque andava, irada,
A mãe leoa a urrar – a urrar, a urrar, a urrar...
E a noite toda e todo o dia
Soltou berros cruéis, urros descomunais;
E não só ela não dormia,
Mas nem dormir deixava os outros animais.
Tamanho e tal berreiro a fera
Fazia, que fazia os bichos mais tremer;
Até que veio a ursa (que era
Comadre dela) em prol dos mais interceder.
«Comadre – disse – os inocentes
Que, famulente e crua, estrangulando vai
A aguda serra de teus dentes,
Não têm eles também, acaso, mãe nem pai?
Têm. Entretanto, estes, pungidos,
Loucos por um desastre ao teu desastre igual,
Não vêm quebrar nossos ouvidos;
Não nos quebres tu, pois, com algazarra tal!
– Eu, sem meu filho! Ai! que velhice
Sem ele arrastarei, com este fado atroz!»
Disse a leoa. E a ursa disse:
«Do teu fado, porém, que culpa temos nós?!
– E o destino que me odeia!...»
E quem no mesmo caso o mesmo não dirá,
Se dessa frase a boca cheia
De todo o mundo (diz o La Fontaine) está?...

Raimundo Correia
As orelhas da lebre


Conta-se que em noite escura
Certo animal cornifronte
Pôde ferir à traição,
Junto da encosta de um monte,
O rei das feras, leão;

Que em despique mandou logo
Banir por ordens legais,
Para horror de tal delito,
Os bicornes animais
De todo aquele distrito:

Bois, veados, cabras, todos
Que na fronte armas traziam,
Aqueles sítios deixavam;
E os que logo o não faziam,
Dura morte suportavam!

Notando tímida lebre
Cumprirem-se leis tão cruas,
Na sombra um dia observando
As longas orelhas suas,
Disse a um grilo titubando:

«Ai! que estas minhas orelhas
Por chifres se tomarão!
E se houver um delator
Que o vá dizer ao leão,
Da lei me exponho ao rigor!

– Tu fazes de mim pateta?
Fala, tola: pois é crível,
Lhe disse o grilo em bom ar,
Que um par de orelhas flexível
Possa por chifres passar?

– Sim, disse ela; e porque não?
Tenho-os visto mais pequenos.»
Tomou-lhe o grilo: «Vaidosa!
Se os teu fumos fossem menos,
Serias mais venturosa.

Quem és conhece e descansa;
Porque sempre que supomos,
Pela vaidade que temos,

Ser aquilo que não somos,
Mil incómodos sofremos.»

Curvo Semedo
A águia e o mocho


Um dia a águia disse ao mocho em temas frases:
«O que lá vai, lá vai, é bom pormos-lhe ponto
E fazermos as pazes.
– Eu cá por mim, ‘stou pronto»,
Respondeu ele – e os dois juraram abraçados
Respeitar um do outro os filhitos amados.
«Conheceis já os meus? – disse-lhe a ave triste.
– Não, respondeu a águia; e a ave da ciência
Disse: – Tanto pior. Se nada te resiste,
Como hão-de, dize lá, contar os meus filhinhos
Com a tua demência?
Não lhes queria estar na pele, coitadinhos!
Não, não me fio em ti, porque és rainha, e os reis
Sabem agora lá para que são as leis!
Vocês fazem o mal por um capricho reles.
Filhos do meu amor! Se acaso os vês, ai deles!
– Bem. Pinta-mos então, e escusas de ter medo,
Que eu te prometo aqui não lhes tocar c’um dedo.»
O mocho respondeu: «Aqui tens os sinais:
São muito pequeninos,
Mimosos como a flor, esveltos e bonitos
Como não achas mais;
Tão bem feitos, tão belos,
Que por este retrato hás-de reconhecê-los.
Falta-me agora ver se tu és descuidada,
E me entra aí por casa a Parca amaldiçoada.
Hão-de agradar-te, sei, mas faze a vista grossa
E respeita-os por mim;
Bem sabes que sou pai e que os pais são assim.
Ai, quem meus filhos beija a minha boca adoça!»
Deus dera prole ao mocho, e em noite desabrida,
Que ele batia mato a agenciar a vida,
A águia andando a corso avista de repente
Nuns velhos casarões, todos esburacados,
Uns monstrozinhos tais, de voz tão repelente,
Tão mal feitos de corpo e tão desengraçados,
Que ela disse consigo:
«Não há que recear; não são do nosso amigo.»
E com um gesto guapo
A rainha gentil logo os meteu no papo.
Mas vem de volta o mocho, o mocho, que imagina
Ficar ali de vez,
Ao achar, pobre pai, dos filhos só os pés!
Queixa-se, chora e pede aos deuses punição
Para ela, a assassina,
Que assim lhe veio encher de luto o coração!
«E tua a culpa, alguém então lhe disse, ou antes
É da lei que nos faz achar os semelhantes
A nós, só porque o são, amáveis, lindos, belos.
Por isso os filhos nós perdemos, nós os pais;
Se fizeste dos teus uns elogios tais,
Como podia, dize, a águia reconhecê-los?»

Jaime Vítor
O lavrador e seus filhos


Um lavrador sentindo vir chegando
O fim da sua vida, e desejando
Que os filhos trabalhassem na cultura,
Chamou-os, e lhes disse: «A sepultura
Por instantes me espera: os bens, que tinha,
Enterrados estão na nossa vinha.»
Morto o pai, e tendo eles suspeitado
Que algum grande tesouro sepultado
Lhes deixava na vinha, aparelharam
Enxadas, e solícitos cavaram.
Não acharam tesouro, é bem verdade;
Mas a vinha deu tanta novidade,
Que se pode dizer que foi tesouro,
Segundo o que rendeu de prata e ouro.

Couto Guerreiro
O gato e o rato velho


Li quando era inda menino
Que um segundo Rodilardo,
Novo Alexandre felino,
Gatarrão enorme e pardo,

Era implacável e fero,
Como um Átila iracundo,
Temido, como Cerbero,
Dos ratos de todo o mundo.

Se um ratinho acaso via,
Supunha ver o Diabo;
Por isso jurou um dia
Dos pobres bichos dar cabo.

«Hei-de roer-lhes os ossos!»
Bem o disse, e melhor fez;
Pois em vista dos destroços
Que causava este maltês,

O arsénico, o mata-ratos,
A engenhosa ratoeira,
As unhas dos outros gatos
Eram pura brincadeira.

Tomado de pavor, cheio de susto e medo,
Jazia o povo rato oculto, mudo e quedo
Nos buracos. Sabendo o nosso herói que então
Não podia caçar, por ser espertalhão,
Morto se finge logo, e numa trave escura
Como um supliciado o biltre se pendura.
Não se descreve o gáudio, o inefável prazer
Dos ratos. Cada qual sua coisa a dizer
Começa. Um deles brada: «Aposto que o patife
Algum queijo comeu, algum assado ou bife,
Ou a pele mimosa à dama, que o criou
E festas lhe fazia, ingrato ele arranhou.
Seja o que for, o certo é que hoje o tal amigo
De feia e torpe acção achou duro castigo.»

Era de ver-se a mudança
Que fez logo a pobre gente.
Nos buracos da parede
Só há folguedos e dança.

O mais pacato e mais sério,
Com riso estúpido, alvar,
Quer também acompanhar
Rodilardo ao cemitério.

Dos ratos a grande seita
Chia, corre, chega, espreita,
Olha à esquerda, olha à direita,
Entra de novo na toca,
Toma a espreitar, o destino
Vê do bicharro ferino...
E Rodilardo ladino
Deixando-se estar à coca.

Porém, depois, quando a malta
Para fora alegre salta
E conversando em voz alta
Dá três passos sem receio,
– Vereis que história bonita! –
Eis que o morto ressuscita,
E a prumo se precipita
Dos desgraçados no meio.

Poucos momentos após,
O bando menos veloz
Do carrasco sente a voz
Dizer-lhes, lançando a garra:
«Comigo não mais te metas,
Raça infame, porque em petas,
Em artimanhas e tretas
Sou doutor, sou mesmo um barra.

Nem nas tocas e covis
Negros, sórdidos e vis
Ao juramento, que fiz,
Hão-de escapar-se... pois não!
E se algum por ser mais leve
Agora a fugir se atreve,
Esse tal cantará breve
Da barriga no alçapão!»

O desumano algoz, terrível inimigo,
Uma tenção secreta
Alimentando já no peito a sós consigo,
Falou como profeta;
Pois em outra esparrela os toleirões dos ratos
Caíram como uns patos.
Ninguém pensa ou adivinha
O trama, que este judeu
Armou na mente daninha:

Empoou-se com farinha,
E numa arca se escondeu!

A raça pisa-miúdo,
Com uma simpleza infantil,
Acreditou logo tudo
Quanto forjara o sanhudo
Autor do engenhoso ardil.

Só andou bem avisado
Um solerte companheiro,
Um rato – rato pelado –
O qual já tinha deixado
Na batalha o rabo inteiro.

Como o ratão mais finório
E sagaz daquele termo,
Sem flores nem palavrório,
Deste modo suasório
Invectivou o estafermo:

«Não me ilude, meu velhaco,
A arteira manobra tua!
Ainda que fosses saco,
Eu, como velho macaco,
Suspeitava falcatrua.

Por isso, amigo, descansa,
Que a mim não me engoles tu.
Podes perder a esperança
De me ouvir cantar na pança,
Mostrengo de Belzebu!»

Louvo o tino, a razão fria
Da prudente ratazana.
Era prática, e sabia
Que poucas vezes se engana
Quem de tudo desconfia.

José António de Freitas
O gato e o rato velho


Li quando era inda menino
Que um segundo Rodilardo,
Novo Alexandre felino,
Gatarrão enorme e pardo,

Era implacável e fero,
Como um Átila iracundo,
Temido, como Cerbero,
Dos ratos de todo o mundo.

Se um ratinho acaso via,
Supunha ver o Diabo;
Por isso jurou um dia
Dos pobres bichos dar cabo.

«Hei-de roer-lhes os ossos!»
Bem o disse, e melhor fez;
Pois em vista dos destroços
Que causava este maltês,

O arsénico, o mata-ratos,
A engenhosa ratoeira,
As unhas dos outros gatos
Eram pura brincadeira.

Tomado de pavor, cheio de susto e medo,
Jazia o povo rato oculto, mudo e quedo
Nos buracos. Sabendo o nosso herói que então
Não podia caçar, por ser espertalhão,
Morto se finge logo, e numa trave escura
Como um supliciado o biltre se pendura.
Não se descreve o gáudio, o inefável prazer
Dos ratos. Cada qual sua coisa a dizer
Começa. Um deles brada: «Aposto que o patife
Algum queijo comeu, algum assado ou bife,
Ou a pele mimosa à dama, que o criou
E festas lhe fazia, ingrato ele arranhou.
Seja o que for, o certo é que hoje o tal amigo
De feia e torpe acção achou duro castigo.»

Era de ver-se a mudança
Que fez logo a pobre gente.
Nos buracos da parede
Só há folguedos e dança.

O mais pacato e mais sério,
Com riso estúpido, alvar,
Quer também acompanhar
Rodilardo ao cemitério.

Dos ratos a grande seita
Chia, corre, chega, espreita,
Olha à esquerda, olha à direita,
Entra de novo na toca,
Toma a espreitar, o destino
Vê do bicharro ferino...
E Rodilardo ladino
Deixando-se estar à coca.

Porém, depois, quando a malta
Para fora alegre salta
E conversando em voz alta
Dá três passos sem receio,
– Vereis que história bonita! –
Eis que o morto ressuscita,
E a prumo se precipita
Dos desgraçados no meio.

Poucos momentos após,
O bando menos veloz
Do carrasco sente a voz
Dizer-lhes, lançando a garra:
«Comigo não mais te metas,
Raça infame, porque em petas,
Em artimanhas e tretas
Sou doutor, sou mesmo um barra.

Nem nas tocas e covis
Negros, sórdidos e vis
Ao juramento, que fiz,
Hão-de escapar-se... pois não!
E se algum por ser mais leve
Agora a fugir se atreve,
Esse tal cantará breve
Da barriga no alçapão!»

O desumano algoz, terrível inimigo,
Uma tenção secreta
Alimentando já no peito a sós consigo,
Falou como profeta;
Pois em outra esparrela os toleirões dos ratos
Caíram como uns patos.
Ninguém pensa ou adivinha
O trama, que este judeu
Armou na mente daninha:

Empoou-se com farinha,
E numa arca se escondeu!

A raça pisa-miúdo,
Com uma simpleza infantil,
Acreditou logo tudo
Quanto forjara o sanhudo
Autor do engenhoso ardil.

Só andou bem avisado
Um solerte companheiro,
Um rato – rato pelado –
O qual já tinha deixado
Na batalha o rabo inteiro.

Como o ratão mais finório
E sagaz daquele termo,
Sem flores nem palavrório,
Deste modo suasório
Invectivou o estafermo:

«Não me ilude, meu velhaco,
A arteira manobra tua!
Ainda que fosses saco,
Eu, como velho macaco,
Suspeitava falcatrua.

Por isso, amigo, descansa,
Que a mim não me engoles tu.
Podes perder a esperança
De me ouvir cantar na pança,
Mostrengo de Belzebu!»

Louvo o tino, a razão fria
Da prudente ratazana.
Era prática, e sabia
Que poucas vezes se engana
Quem de tudo desconfia.

José António de Freitas
O Sol e as rãs


Do rei dos astros protecção, socorros
Tinham do lodo as filhas.
Nem guerras, nem pobreza,
Nem mil outros desastres
Perto nem longe à tal nação chegavam;
Nação, que em mil lameiros,
Seus poderes blasona.
As rainhas dos charcos... (Das rãs falo;
Que custa às coisas dar honroso nome?)
Contra o seu benfeitor conluios tramam,
Fazem-se insuportáveis.
A imprudência, c’o orgulho, e o esquecimento
Dos benefícios – filhos da aura próspera –
Impeliram os brados
Desse bando importuno.
Ninguém dormia em paz. Se dessem crédito
Ao que elas murmuravam, já teriam
Aos grandes, aos pequenos rebelado,
C’os seus gritos, contra o olho do universo.
O Sol, ao que diziam,
Ia dar cabo de tudo.
«Importa armar-se, e presto
Levantar grosso exército.»
Mal dava um passo o Sol, já despediam
Grasnantes embaixadas.
A crê-las, todo o mundo
E a máquina redonda
Rodam sobre interesses
De quatro pífios charcos.
Dura inda hoje essa queixa temerária.
Calar-se as rãs, não murmurarem tanto,
Contudo, lhes cumpria:
Que lho fará sentir o Sol, se ele se agasta:
E mui bem poderia arrepender-se
A aquática república.

Filinto Elísio
O carvalho e a cana


«Teu ser bem pouco à natureza deve!
– Disse o carvalho à cana. –
O pássaro mais leve,
Se pousa sobre ti, logo te abana;
Um ligeiro soprar
Que a face encrespa do regato, apenas,
Faz-te logo vergar
E obriga-te a sofrer bem duras penas;
Enquanto eu ergo a fronte com vaidade,
Do Sol detenho o raio
E afronto a tempestade!
Todo o vento é-me um zéfiro de Maio,
Para ti todo o vento é vendaval!
Se da minha ramada
Nascesses abrigada,
Não sofrerias um tamanho mal.
O fado foi contigo muito injusto!...
– A tua compaixão,
Lhe respondeu o arbusto,
Abona o teu sensível coração;
Mas tanto não te mates
Chorando as minhas penas:
Melhor que tu, do vento sofro embates;
Não quebro, dobro apenas.
Tens resistido a rígidas nortadas...
Porém atrás do tempo, tempo vem!»
Tais vozes acabadas,
Bóreas em seus furores se despica;
A pobre cana dobra,
Firme o carvalho fica.
Activa Bóreas a feroz manobra,
Faz tão cruenta guerra,
Que deita enfim por terra
Quem co’a fronte nos astros topetava
E no abismo as raízes ocultava!
Não consegue o seu fim na estância térrea
Quem tudo quer levar à virga-férrea;
E é de crer que bem pouco se moleste
O que se abaixa quando a onda investe.»

José Inácio de Araújo