Processo Artístico de La Fontaine


As fábulas de La Fontaine, lidas e admiradas universalmente sob o ponto de vista
moral, encerram uma lição bem mais profunda enquanto ao problema da criação
artística. Acreditou-se por muito tempo que o génio estético tirava todos os elementos
da sua obra da própria impressionabilidade, impondo-se à adorarão nas condições de
uma absoluta originalidade. O génio era como o Deus bíblico tirando o mundo do nada.
Ao trabalho da moderna síntese física, que levou à conclusão ex nihilo nihil,
corresponde também a descoberta da crítica literária, de que todas as grandes
manifestações estéticas realizadas pelas capacidades individuais assentam sobre uma
base tradicional, e são tanto mais belas e imperecíveis quanto esse tema transmitido pelo
passado e por outras civilizações adquiriu um carácter de universalidade. As fábulas de
La Fontaine põem em evidência este princípio fundamental achado não só para a crítica
das obras-primas das literaturas como para a disciplina e impulso para a renovação das
formas estéticas da civilização moderna.
Os assuntos ou temas poéticos das fábulas de La Fontaine não lhe pertencem; uns
acham-se nas colecções orientais, como a do Pantchatantra, desconhecida no seu
tempo; outros vieram até nós transmitidos nas colecções greco-romanas de Esopo,
Fedro, Aviano, Babrias, Baldus; outros acham-se nas colecções árabes, como a de
Calila e Dimna, transmitidos a todo o Ocidente pelos jograis franceses nos seus fabliaux
e pelos moralistas católicos nos seus exemplários. E contudo, quanto mais conhecido é
o tema tradicional, tanto mais bela foi a forma literária individual que La Fontaine deu à
Fábula. Max-Muller, num estudo comparativo da fábula da Bilha de leite, estabeleceu
com a mais segura e completa erudição, pela aproximação dos elementos novelísticos,
todos os elos da cadeia tradicional, desde o Oriente búdico até à época da Renascença
na Europa. O que o eminente sanscritista fez em especial para esta fábula pode aplicarse a
todas as outras composições de La Fontaine do mesmo género, trabalho em parte já
tentado por Robert no Essai sur les Fabulistes qui ont précédé La Fontaine (l825). Os
estudos críticos sobre as tragédias de Shakespeare, ao passo que tiram a este génio
assombroso a originalidade dos temas dramáticos, tomados umas vezes dos novelistas
italianos, outras vezes dos Homem ilustres de Plutarco, outras vezes de esboços
informes de escritores que o precederam, simultaneamente põem em máximo relevo o
poder emocional da linguagem e das situações, e a lógica dos caracteres, que são a vida
daquelas sublimes criações. O mesmo se observa nas comédias de Molière, em grande
parte tomadas das comedias dell''''arte do teatro italiano, e das comedias famosas do
teatro espanhol; o que compete ao génio é a forma, é a síntese filosófica, é a conclusão
moral, tudo enfim que revela o cunho da poderosa individualidade, e que nos descobre o
trabalho da sua idealizarão.
A Arte, como a define Augusto Comte, é a idealizarão da realidade; se o escritor,
em vez de observar a realidade, inventa a seu arbítrio, produz monstros, aleijões,
quimeras, sem acção sobre a simpatia do público, como acontece com essas criações
dos eruditos académicos, e em geral com as mediocridades, que ignoram esta grande lei
da relação mútua entre o elemento tradicional e a elaboração literária. Todos os espíritos
que deram até hoje a sua admiração incondicional às fábulas de La Fontaine, à parte o
juizo sistemático de Lessing, nunca lhe tomaram conta da originalidade; tinham o
pressentimento da importância subalterna do tema tradicional diante da forma pitoresca,
individualista e eterna .fixada pelo poeta; anteviram os resultados da critica do nosso
século, que tende a determinar as formas generativas de todas as literaturas. De facto, a
Fábula, que é o desenvolvimento de uma comparação espontânea, aparece-nos entre os

povos mais antigos como um produto impessoal, anónimo, igualmente como o
anónimo, de que ela é muitas vezes um resumo, circula sem a responsabilidade de autor,
e por isso mesmo com maior poder moral.
Entre povos os mais afastados pelo espaço, pela raça, existem temas tradicionais
comuns de Fábulas, como a da mulher que depila o amante, e a dos membros e o
estômago, que se acham na colecção chinesa dos Avadanas. A preferência das
comparações que constituem a Fábula, tomadas sempre das relações dos animais entre
si, das suas qualidades e hábitos, levam a inferir que esta criação estética teve a sua
origem em uma época fetichista da sociedade numa civilização proto-histórica negróide,
que deu todo o desenvolvimento a essa ordem de concepções religiosas, especialmente
na arte e na moral. O epíteto com que as Fábulas eram conhecidas na Grécia revela o
conhecimento de tal proveniência, e Theon distingue as Fábulas em líbicas (Lassen
aproxima o nome de Esopo de Aitiops), sibaríticas, frígias sicilianas, carianas, egípcias
e cípricas, como que acentuando o seu fundo negróide. Muitas das Fábulas de Lokman
aparecem tratadas em Esopo; e Neumann, Maracci, Hottinger e Golins unificam os dois
poetas numa mesma entidade; na colecção atribuída a Esopo, aparecem fábulas comuns
ao Pantchatantra, como a do Leão e o Mosquito, a da Águia e a Tartaruga, a do Asno
com a pele de Leão, e a Presa e a Sombra. Esta similaridade revela um fundo étnico
comum, que na índia se determina pela classe ínfima explorada pela propaganda búdica.
Na Grécia, antes de Esopo, já as fábulas eram conhecidas, e posteriormente à época
esópica outras fábulas tradicionais, e transmitidas pelo vulgo, receberam forma literária,
não só em obras dramáticas como em obras filosóficas. Em Hesíodo, acha-se a fábula
do Abutre e o Rouxinol, em Estesícoro a do Homem e o Cavalo, e em Alceu a da
Serpente e o Escaravelho. Arquíloco alude à fábula da Raposa e do Macaco, e da Águia
e o Raposo; Eurípides traz a fábula do Homem e a Morte; Platão a do Lobo e a Raposa
e do Leão doente.
As relações das fábulas conhecidas na Grécia com as cias raças semitas levam a
inferir da impersonalidade de Esopo, cuja entidade mítica é caracterizada por Vico,
Neumann, Brucker, Welcker e Camerarius. A tradição esópica é como a tradição
homérica, não escrita; a fábula chegou a ter o seu desenvolvimento homérico, como se
vê pelo ciclo de Renard na Idade Média. A transfomação da tradição oral em forma
rítmica é que fez porvenrura adoptar o nome de Esopo; Asoph em hebraico significa o
verso, a poesia. O carácter de estrangeiro, do género poético, é que se fixou na
personalidade de Esopo na qualidade de escravo. Os temas tradicionais das Fábulas
foram tratados nas escolas dos sofistas gregos como assuntos de exercícios literários de
redacção; eram os loci communes, também adaptados nas escolas de Roma, cujos
cadernos achados no fim da Idade Média vieram a constituir as Fábulas de Fedro, outra
entidade sem existência real, formada do epíteto da rocha phoedrica, da qual tinha sido,
segundo a lenda, precipitado Esopo.
As fábulas de La Fontaine, nascidas neste campo comum da tradição universal,
também tiveram o mesmo destino que as fábulas esópicas e fédricas, entraram nas
escolas e serviram de leitura e para transuntos caligráficos. A grande obra de arte, assim
vulgarizada, decaiu da sua imponente majestade, a que a crítica a restitui pondo em
evidência o lado individual, a forma pitoresca, a exclusiva idealizarão de La Fontaine. já
na época de Luís XIV, Fénelon, que compreendera a simplicidade do génio grego,
admirava La Fontaine pela despreocupação do estilo e do pedantismo humanista em
uma corte onde reinava o pseudoclassicismo. Esta espontaneidade de La Fontaine é uma
intuição poética, que o leva a encontrar nos modismos populares os efeitos pitorescos
das suas descrições e dos seus diálogos. Ninguém mais original do que La Fontaine na
expressão literária; a forma simples do vulgo condiz com os quadros primitivos da
concepção mítica do tema da fábula. É esta harmonia entre a ideia e a forma que toma
bela a sua criação, criação em que naufragaram todos os poetas eruditos de seu tempo,
como Furetière, Perrault, Lenoble, Benserabe e tantos outros Fénelon, apreciando La
Fontaine sob o aspecto da simplicidade, deu à crítica uma base segura; a simplicidade é
a verdade. E, de facto, nas situações da fábula é admirável a verdade e poder de
observação com que La Fontaine pinta os caracteres e hábitos dos animais, a ponto de se
poder estabelecer um paralelo entre os traços descritivos de Buffon na sua História
Natural e as impressões do poeta. Nas páginas do naturalista está o verdadeiro
comentário científico das descrições do fabulista. Mas La Fontaine não se limita ao lado
objectivo, descrevendo o aspecto dos animais; sob essas máscaras, representou os tipos
morais, os caracteres, as qualidades e as índoles dos diferentes indivíduos da sociedade
do seu tempo. Sob o ponto de vista subjectivo dos retratos morais ele é tanto ou mais
verdadeiro do que Labruyère nos Caracteres, que em rigor constituem o completo
comentário das personagens alegóricas de La Fontaine.
O poeta, escolhendo para a manifestação do seu génio a forma da fábula, por uma
perfeita harmonia do espírito soube conciliar o prestígio da erudição humanista do
classicismo francês com os restos da tradição medieval conservados apenas no esprit
gaulois, de que o poeta é um dos mais sinceros representantes. A Fábula acordava-lhe a
imaginação, vindo pelas colecções greco-romanas, ou pelas colecções dos troveiros
medievais; a comparação de uma fábula de Esopo ou Fedro, ou de uma fábula
metrificada por Maria de França, reelaborada por La Fontaine, revela-nos a dupla
simpatia do artista, a qual faltou a Boileau e a Racine, que professavam o mais soberano
desdém pela Idade Média. La Fontaine, nos seus Contos, dando forma culta aos
Fabliaux, acentuou mais a preferência por esta Idade fecunda donde saíram todos os
gérmenes da sociedade moderna; assim estabelecendo a solidariedade entre a civilização
greco-romana e a medieval; por isso é e será sempre o génio querido da cultura
moderna, que se afirma pelo conhecimento da continuidade histórica.

TEÓFILO BRAGA

AO DELFIM DE FRANÇA

Senhor:

Se alguma coisa há de engenhosa na república das letras, essa é, certamente, a
maneira como Esopo expôs a sua moral. Seria para desejar que outras mãos em vez das
minhas lhe acrescentassem as honras da poesia, já que o mais sensato dos antigos julgou
que elas não eram de todo inúteis. Atrevo-me, Senhor, a presentear-vos com algumas
tentativas: é um passatempo apropriado para os vossos tenros anos, visto estardes na
idade em que a distracção e os jogos são permitidos aos príncipes; mas, ao mesmo
tempo, deveis conceder alguns pensamentos vossos a reflexões mais sérias. Tudo isso
está nas fábulas que devemos a Esopo. Confesso que a aparência é pueril; todavia, tal
puerilidade serve de capa a verdades consideráveis.
Não duvido, Senhor, que heis de encaminhar favoravelmente uma empresa que
reúne ao mesmo tempo o útil e o agradável. E que podemos ambicionar mais? Foram
estes dois objectos que introduziram as ciências entre os homens. Esopo possuía a arte
singular de os pôr lado a lado: a leitura da sua obra derrama na alma, de forma
imperceptível, as sementes da virtude, ensinando-a a conhecer-se a si mesma sem que
ela o suspeite-se é que não supõe estar a fazer coisa muitíssimo diferente! Eis uma
habilidade de que teve a fortuna de se servir aquele a quem Sua Majestade escolheu
para vos ministrar conhecimentos. Daqui resulta aprenderdes sem esforço (ou, para
dizer melhor, com agrado) tudo quanto é necessário que um príncipe saiba. Confiamos
muito neste plano. Mas, em boa verdade, há factos em que pomos maior confiança
ainda: são as qualidades que o nosso invencível monarca vos transmitiu com o
nascimento; é o exemplo que todos os dias ele vos dá. Quando o vedes formar tão
grandes projectos; quando considerais que ele enfrenta sem pasmo a agitação da Europa
e as intrigas a que ela recorre para o demover dos seus cometimentos; quando ele atinge,
à primeira investido, o centro de um país eriçado de obstáculos intransponíveis ou
subjuga outro em oito dias, na época menos propícia à guerra, enquanto nas cortes dos
outros príncipes reina o repouso e o prazer; quando, não contente de vencer os homens,
ele quer triunfar dos elementos; e quando, no regresso de uma expedição em que venceu
como Alexandre, o vedes governar o povo como Augusto: confessam, Senhor, que
suspirais pela glória tanto como ele, apesar do impedimento da vossa idade, e que
esperais ansiosamente a altura em que seja possível declarar-vos seu. rival no amor
dessa: amante divina. Mas vós, Senhor, não esperais: antecipais-vos. Bastam-me como
sintomas essas nobres inquietações, essa vivência, esse ardor, essas provas de grandeza
de ânimo, de inteligência, de coragem que mostrais em cada momento. Isto constitui,
sem dúvida, grande alegria para o nosso monarca; assim também, para o mundo inteiro,
é espectáculo também agradável ver medrar assim uma planta que há-de cobrir um dia,
com a sua sombra, tantos povos e nações.
Quereria dilatar-me neste assunto; mas, como o desígnio que tenho de vos distrair
é mais proporcional às minhas forças do que o de vos louvar, apresso-me a chegar às
fábulas. E, às verdades que hei dito, só ajuntarei mais esta: que sou, Senhor, com
respeitoso zelo,

vosso humilde, obediente e fiel servidor

DE LA FONTAINE