O burro e o cão fraldiqueiro

Um burro tinha a sua estrebaria
Junto à porta do dono, e dali via
Que vindo ele de fora, um cachorrinho
Corria a recebê-lo no caminho,
A saltar e ganir com os agrados
Dos cães para seus donos tão usados:
Corria-lhe o senhor pela cabeça
A mão; e olha se tem que lhe ofereça.
O jumento, que o via tão amigo
Do gozinho, dizia lá consigo:
«Bem se diz: quem mais faz, menos merece;
O que este companheiro não padece
Em obséquio daquele! Eu albardado,
E com cilha gemendo de apertado,
Eu com cargas tão graves e tão duras
Que me fazem no lombo mataduras!
Eu ando pelas unhas de uns criados,
Que não vi corações mais depravados:
Uma maldita gente que pretende
Que eu entenda do modo que ela entende;
E se erro, aquelas almas tão danadas
Carregam-me com fortes arrochadas.
Sempre querem que vá muito depressa,
Senão uma sovina me atravessa!
Estes são os trabalhos que padeço
Em obséquio de um amo: e que mereço?
Uma palha com mofo enxovalhada;
Alguns farelos grossos; que cevada
Só a vejo se meu senhor me empresta
A mulher, que eu carrego para a festa;
Quando ela me não prende a algum sobreiro,
Sem comer nem beber, um dia inteiro.
E que faz a meu amo aquele gozo?
Eu não vi animal mais preguiçoso;
Todo o dia a dormir; e, só se sente
Pulga, esperta e a enxota a unha e dente;
Trabalhar para casa não conhece;
Dá que varrer à moça, que o aborrece!
Tais são as suas obras; e o proveito
É ser para seu amo tão aceito,
Que lhe faz mil agrados e carinhos,
E lhe mete na boca os bocadinhos.
E porquê? Porque vindo o amo de fora,
Salta e gane; não sei se ri, se chora;
Mas gosta o senhor tanto deste agrado,
Que campa o animal por engraçado.
Ora eu hei-de ser asno toda a vida?
Trabalhar, arrochadas, má comida,
Podendo ter um trato cavalheiro,
Se fizer o que faz o lisonjeiro?
Seguro que a primeira vez que vejo
Meu amo, vou fazer-lhe algum festejo!»
De modo o praticou, que no outro dia,
Vendo o amo fronteiro à estrebaria,
Vem de lá a zurrar de rabo alçado,
E com ele se pôs tão empinado,
Que lhe deu com os ossos na calçada!
Grita o triste da queda e da patada;
Acodem os criados inimigos
Do jumento; e lhe deram tais castigos,
Que vai o miserável de anca torta
Fugindo; e mal atira com a porta!

Couto Guerreiro
A liga dos ratos

Era uma vez
Uma ratinha que andava
Com medo a um gato maltês,
Que há tempos a espreitava.
Que fazer?...
Sábia e cauta, neste apuro,
Com o vizinho foi ter,
Um arganaz já maduro,
Um mestre, um fanfarrão, que tinha conseguido
Instalar sua ratona senhoria
Em suculenta copa, em farta hospedaria.
E, presumido,
Afirmava por bravata
Constantemente
Não temer gato, nem gata,
Nem unhada, nem arranhão, nem dente.
«Em boa-fé,
Diz-lhe ele, por mais que eu faça,
Dona rata, só, bem vê,
Não posso ao gato dar caça.
Se porém
Os ratos da redondeza
Nos reunirmos todos, hem!
Oh! então com certeza
Ou o seu inimigo às nossas unhas morre,
Ou prego-lhe partida assinalada.»
Faz-lhe a rata uma vénia humilde, demorada;
E o rato corre
Breve, rápido à despensa,
Onde, amontoados,
Do dono da casa a expensa,
Muitos ratos se enchiam regalados.

O fanfarrão
Chegou açodado, tonto,
Esbaforido o pulmão,
E as pulsações sem conto.
«Que tens tu?
Perguntou-lhe um rato. Fala.
– Em duas palavras vou
Dizer-vos o que me rala,
E me traz aqui assim esbaforido destarte:
Urge acudir à rata; é de justiça.
O bichano maltês faz medonha carniça
Por toda a parte.

É o Belzebu dos gatos.
Se as ratas faltam,
Virá cevar-se nos ratos.
– É certo. Às armas! Sus!», clamam... e saltam.

Diz que correu
Dalgumas ratas o pranto.
Embora! Nada empeceu
Aquele projecto santo.
De tropel
Cada um logo se apresta;
Cada um mete no farnel
Um naco de queijo; e em festa,
Destemido, cada um, lá marcha intemerato,
Pronto a arriscar-se a tudo, aventureiro,
O espírito flamante, o coração gaiteiro.
No entanto o gato,
Mais fino do que eles todos,
Arma a cilada,
E ao chegarem, pelos modos,
Já tinha a pobre rata abocanhada.

A legião
Vai com passo resoluto
Dar à amiga a salvação.
Mas o gato, que é astuto,
Sem largar
O que destina à barriga
Rosna, e marcha a defrontar
Com a caterva inimiga.

A isto, a horda teme o fim da empresa louca.
Safam-se com prudência e boa sorte,
Sem levarem mais longe os projectos de morte.
Para a sua toca,
Debandando, cada rato
Enfia breve.
E, cuidado com o gato,
Se a sair por acaso algum se atreve!

Abel Acácio
O velho e os três mancebos

Plantava certo velho de oitenta anos.
«Plantar!» – diziam certos mancebinhos
Vizinhos e bairristas.
«Plantar! ... Edificar tinha seu passe.
Por certo caducais. Ora, vos peço
Pelos numes do Olimpo,
Que fruto ideais colher desse trabalho?
Menos que envelheçais como Matúsala.
Que val’ cargar a vida
C’o empenho dum porvir que há-de escapar-vos?
Doravante cuidai nas vossas culpas;
Deixai ‘speranças longas,
Vasto assunto que a nós convém somente.
– Tão-pouco a vós: que quanto estab’lecemos,
Vem tarde, e pouco dura.
Zomba igualmente a mão das fuscas Parcas
Dos meus, do vossos dias. Na curteza
Vão iguais nossos termos.
E qual de nós, da abóbada estelífera,
Verá último a luz? Há o momento
Que nos dê por seguro
Um segundo de vida? Os meus bisnetos
Dever-me-ão esta sombra. E bem? Ao sábio
Tolhereis vós desvelos,
Que aos outros dêem prazer? Fruto é, que eu logro
Já desde hoje e amanhã, e inda outros dias
Talvez que ainda o goze,
E que inda, sobre as vossas campas, possa
Algumas vezes vir saudar a aurora.»
Razão o velho tinha:
Que um dos três moços se afogou no porto,
Partindo para a América; o segundo,
Armando aos grandes postos,
Servindo o Estado, em marciais empregos,
Golpe imprevisto lhe cortou o estame
Dos dias seus; e o último,
Caiu do tronco em que enxertava um garfo.

Chorando, o velho lhes gravou nas campas
O que eu aqui vos conto.

Filinto Elísio
O avarento e o compadre

Juntara tantas libras um sovina,
Que não sabia já onde encaixá-las.
A avareza, que é tola e nada ensina,
Punha-o em sérias talas
Sobre quem lhas tivesse em mau depósito.
Qu’ria por força alguém; e eis a razão:
«Dinheiro em casa expõe-me à tentação,
O monte minguará; e, de propósito,
Eu próprio dos meus bens serei ladrão.»

Ladrão! Essa é que é boa! Meu amigo,
Pois é roubar a si gastar consigo
Cada um do que tem?
Pensar assim julgo eu tolice crassa.
Pois fica-me sabendo: os bens são bem,
Se os souberes gastar: se não, desgraça.
Para que guardas tu esse tesouro
Para a idade avançada,
Em que ele te não sirva para nada?
Perde o valor o ouro
Co’as fadigas enormes de ganhá-lo
E as penas de guardá-lo.

Podia o nosso avaro encontrar gente,
A qual com segurança
Das ânsias o livrasse facilmente.
Preferiu ter na terra confiança.
Co’a ajuda de um compadre, determina
O soterrar o farto capital.
Passados alguns tempos, o sovina
Foi ver o seu dinheiro... porém, qual!
Tudo abalara: só restava a cova,
De libras... nem sinal!
Suspeitou logo, mesmo sem ter prova,
Do seu compadre e amigo.
Foi procurá-lo com fingido empenho,
E disse-lhe: «Compadre, a vir comigo
Prepare-se. Alguns cobres inda tenho,
Que ao tesouro escondido vou juntar.»
O espertalhão compadre, afadigado,
Vai pôr no seu lugar
O dinheiro roubado,
Co’a manha já fisgada de apanhar
Tudo, sem faltar nada.
Mas, desta vez, o avaro despicou-se.

Meteu em casa a chelpa, destinada
Doravante a tomar-lhe a vida doce,
E jurou nunca mais juntar dinheiro,
Nem deixá-lo enterrado.
Quanto ao ladrão matreiro,
Esse ficou banzado,
Sem encontrar dinheiro ao seu dispor.


Não é caso intrincado
Burlar um burlador.

Henrique Lopes de Mendonça
O veado e os cães

Numa fonte que corria,
Certo dia,
Um estólido veado
Retratado
No cristal puro se via.

Em segredo
Celebrava a celsa frente
Adornada lindamente
Dum ramífero arvoredo.


Mas se a frente celebrava,
Lamentava,
A magreza assaz mesquinha
Que nas longas pernas tinha,
Que podiam parecer
Quatro fusos de torcer.


Eis que nisto,
Um sabujo mui previsto
Deu com ele.
O levíssimo veado,
Assustado,
Por querer salvar a pele,
Meteu pernas tão ligeiro,
Que o rafeiro
Já mui longe lhe ficava;
E escapava,
Se entrar numa selva escura
Não quisesse o miserando;
Que a cornífera armadura
Encalhando
Entre os ramos da espessura,
O prendia,
Lugar dando ao que o seguia,
Que chegasse
E no lombo lhe ferrasse.

Os seus chifres esgalhados,
Tão louvados,
Que lhe ornavam tanto a frente,
Lhe empeceram totalmente
O proveito
Que seus pés lhe tinham feito;
Mal olhados

Por esguios e delgados.

Neste aperto se desdisse
Sem conforto
O veado semimorto,
E maldisse
Da armação, que viu na testa,
A beleza sedutora,
Que lhe fora
Tão funesta!
Muitas vezes maldizemos
O que é útil,
E o vistoso engrandecemos,
Bem que fútil.
Eis o exemplo demonstrado
No veado.

Curvo Semedo
O depositário infiel

Um que traficava em ferro,
Indo meter-se a caminho,
Deu a guardar a um vizinho
Vinte barras, salvo erro.

Voltando breve, reclama
O ferro com modos gratos;
O marau – que seu lhe chama –
Diz que o roeram os ratos.

Crer na léria mal traçada
Finge o do ferro, patrão,
Pois logo a levou fisgada
Em dar ensino ao ladrão.

«Não sofro patifarias!»,
Disse ele lá para si.
Deixou passar alguns dias,
Não sei quantos. – Vai daí,

Tendo apanhado e escondido
Do vizinho um filho coxo,
Diz-lhe que ele tinha sido
Engolido por um mocho.

«Pode lá ser!... Nisso há erro!
Não quero crer no que avanças!
– Onde ratos roem ferro,
Mochos engolem crianças!»

E o que quis ferrar o mono,
Para ter o filho à mão,
Deu logo o ferro a seu dono,
Aproveitando a lição.


J. I. de Araújo
O macaco e o golfinho

Costumam os malteses nos navios
Divertir-se com cães e com bugios:
Afundou-se um navio desta gente
Junto a Súnio, que é cabo pertencente
À terra ática: andava tudo a nado,
E um bugio também quase afogado.

Um golfinho que o viu em tanto dano,
Parecendo-lhe ser Vivente humano,
As costas lhe oferece; vem por cima
Das ondas, com o fim de que o redima.

Defronte do Pireu, que é estaleiro
De Atenas, perguntou ao companheiro
Se era desta cidade. – Respondia
Que sim, e da mais alta fidalguia.

«Conheces o Pireu?», lhe perguntava.
O macaco, cuidando que falava
De algum homem, dizia: «E um amigo
Que estreita confiança tem comigo.»

O golfinho ficou tão iracundo
Da mentira, que o pôs logo no fundo.
_____________________
O golfinho foi muito rigoroso
Em dar ao mentiroso tão mau trato;
Porém todo o sujeito que é sensato,
Deve apartar de si o mentiroso.

O tratá-lo sempre é muito danoso;
Por isso haja cautela, haja recato;
Porque quando mo faz muito barato,
Ou me deixa enganado, ou enganoso.

Se me deixa enganado, fico tido
Por néscio; e de tal modo enganaria,
Que eu fique, além de pobre, escarnecido.
Se, pegando-me a sua epidemia,
Me deixou enganoso, estou perdido;
Que de um que mente bem ninguém se fia.

Couto Guerreiro
As mulheres que deitam cartas

Glórias, honras, prebendas, recompensas...
Trá-las frequentemente um puro acaso.
Merecê-las... que importa? A cada trecho
Será fácil achar frisante exemplo
Do popular prolóquio «Cria fama
E deita-te a dormir.» Santa Iguorância,
Santa Parlapatice e Santa Embófia,
Santa Superstição, Santa Rotina
E Santa Estupidez... eis os oragos
A que se apega em devoções o vulgo.
Encarreirada assim a opinião pública,
É que não há tirá-la desse engano!
Oh! não se emenda o mundo.
E eu conto um caso.

Morava (era em Paris) numa trapeira
Certa dona que aos tolos se inculcava
Por «mulher de virtude».
Ao consultório
Em bandos acudia a turba estulta:
Este um lenço perdeu... mimosa oferta
Da sua amada; a quem lho deparasse,
Mundos e fundos prometia. Aquele
Queixava-se da esposa: um demonico
A arder sempre em ciúmes; uma víbora;
Um fardo insuportável! Outras vezes
Era a impaciência de gentil beldade
Que em desejos febris de novas núpcias
Anelava toucar-se c’os tardonhos
Crepes da viuvez! Ou solteirinha
Que enviava ao demo a eterna vigilância
Com que a mãe rabugenta lhe tolhia
Pôr algures seus pés em ramo verde.
«Dê-nos, santinha, a males tais remédio!»,
Eis o que a chusma a suplicar-lhe vinha.
Querem saber agora em que firmava
Seus créditos a bruxa? Era em pouquíssimo:
Certa linguagem vaga; audácia muita;
De calão alguns termos; e por vezes...
Do bambúrrio o favor inesperado!
Milagrosa a julgavam! Chegou mesmo
A obter foros de santa.
E então... que admira
Lhe entrasse em casa o ouro aos montões? Breve
Lhe sorriu a opulência! E ei-la comprando

Formoso palacete – e ei-la c’o esposo
Pisando ricas salas, e atingindo
Na social jerarquia um lugar alto!

Mas que há-de suceder? Nova inquilina
Vem por seu turno residir no sótão
Onde até’li a decantada bruxa
Suas consultas dava. A concorrência
Nem por isso afrouxou: donas, donzelas,
Lacaios e fidalgos, gente em barda,
Voavam, como dantes, pressurosos
Ao lugar milagroso. A tal trapeira
Dir-se-ia um antro sibilino.
Embalde
A nova locatária, com protestos,
Desconvencer buscara os visitantes,
Chamando-lhes: «Não sou, não, sou quem julgam;
Enganados estão! Pois eu, senhores,
Que nem a regra do ABC conheço,
Poderei porventura de artes mágicas
Entender coisa alguma?»
Embora! O equívoco
Mais e mais se enraiza nos miolos
De quantos ali entram! Que remédio
Tem a pobre mulher senão prestar-se
Ao papel que lhe arbitram de sibila?
Deitando cartas, proferindo oráculos,
Forçoso lhe é (quer goste, quer não goste)
Ganhar dinheiro a rodo. O próprio sótão
Faz lembrar, pelo aspecto da mobília,
Covil de nigromantes: três cadeiras
Aleijadas dos pés, e em complemento
O indispensável cabo de vassoura,
Tudo anunciava ali de feiticeiras
Conciliábulo em regra.
E todavia...
Morasse ela em salões alcatifados,
Mesmo que o dom de adivinhar tivesse,
Ninguém seus vaticínios lhe escutara,
E... morreria à mingua!
Enquanto o sótão
Vai da voga usurpando este apanágio,
Quem há que da inquilina primitiva
Queira lembrar-se já? Perdera o crédito
Co’a nova residência.
A fama pública
Nos seus incoerentíssimos caprichos
Folga em andar às cegas, armando-se
No bordão de enganosas aparências!...
Faz tudo ao caso a tabuleta... e o embuste!

Porque é que um bacharel de tibi quoque
Vê rápida afluir-lhe a clientela,
Enquanto estoutro, sabedor do oficio,
Tem o escritório quase sempre às moscas?
Porque é? Porque o povinho em seu bestunto
Não sabe distinguir do ouro finíssimo
O falso, o vil, o ignóbil pechisbeque!
De um desconcerto assim... a causa é óbvia.

Xavier da Cunha
Júpiter e o fazendeiro

Jove, outrora, arrendou certas fazendas.
Deitou Mercúrio o bando: acodem gentes:
Uns dão tanto; outros põem-se ali à escuta.
Não faltou regateio.
Punha-lhe um pecha, que era de ruim lavra
A terra; outro senão lhe punha essoutro.
Enquanto assim os lanços bandeavam,
Vem um mais abelhudo,
Não de mais siso – e os lanços todos cobre;
Contanto que lhe Júpiter prometa
Dar-lhe o governo do ar, e as sazões dar-lhe
A seu sabor e alvitre.
Dar-lhe calma quando ele a desejasse,
Dar frio, dar bom tempo, dar nortias,
Chuvas, secura. – A tudo anui Jove.
Passa em forma o contrato.
Eis o biltre chapado rei dos ares,
Que venta, chove, e que se engenha um clima,
De que algum dos vizinhos mais não prova
Que os que moram na América.
Nem por isso pior se acharam: foi-lhes
Esse ano de ampla ceifa, ampla vindima,
E mui fraca a colheita do abelhudo.
Assim, no ano seguinte,
Muda o teor dos céus. Mas melhor fruto
Lhe não dá a terra; a dos vizinhos rende,
Frutifica. – Então é, que ele confessa
Quanto imprudente obrara.
Como brando senhor, se há Jove c’o ele.

Que convém que infiramos deste conto?
Que, melhor do que nós, a Providência
Sabe o que nos compete.

Filinto Elísio
A raposa, as moscas e o ouriço

Deixando pelo chão rastros do próprio sangue,
Uma astuta raposa audaz que outrora fora
Enérgica, subtil, leve, jazia agora
Sobre um montão de lama, inanimada e exangue.

Tinha-a ferido em cheio um caçador valente...
E a mosca, o parasita alado do monturo,
Vinha alegre, num voo enérgico e seguro,
Cevar-se no seu corpo ainda vivo e quente.

E o mísero animal, com as pupilas foscas,
Invectivava triste o seu terrível norte,
Por lhe ter conferido a desgraçada sorte
De, com seu próprio corpo, alimentar as moscas.

«Fazerem-me sofrer assim um tal vexame,
A mim, ao mais subtil vivente das florestas!
Quando é que uma raposa alimentou as festas,
Os banquetes cruéis de esfomeado enxame?!

De que me serve a cauda? Acaso é um fardo antigo,
Inútil? Ah! que o céu to pague, mosca bruta!
Vai cevar noutro corpo a tua fome astuta,
E deixa só ficar a minha dor comigo.»

Nesta mesma ocasião, um ouriço piedoso
(Personagem estranho e novo nos meus versos)
Quis livrá-la, com dó, dos animais perversos
Que a afligiam assim, e disse-lhe bondoso:

«Raposa amiga, espera um só instante apenas...
Com meus espinhos bons eu mato-as num momento;
Vais ver como te vou tirar o sofrimento,
Como te vou tirar essas horríveis penas.»

«Não quero, respondeu, não as enxotes, deixa...
Oh! deixa-as acabar o seu furor nefando...
Quase estão fartas já... Viria um outro bando
Que teria mais fome, e eu mais razão de queixa.»

Assim é esta vida e tudo neste mundo,
Desde a negra miséria aos grandes resplendores;
Ministros, cortesãos... são todos comedores,
Todos têm consigo o mesmo mal profundo.

Este apólogo audaz foi aplicado ao homem;
Aristóteles fê-lo e tinha-o como certo;

Exemplos destes há imensos e bem perto...
Quanto mais cheios, mais saciados, menos comem.

Alberto Bramão
A galinha que punha ovos de ouro

Um homem tinha
Uma galinha,
Que Juno bela
Por desenfado
Tinha fadado.

Vivia ela
Dentro dum covo,
E punha um ovo
De ouro luzente
Em cada um dia,
Que valeria
Seguramente
Dobrão e meio.

Mas o patrão
Um dia cheio
De ímpia ambição,
Foi-se à galinha
E degolou-a

Examinou-a
Porque supunha
Que em si continha
Rico tesouro,
Visto que punha
Os ovos de ouro.

Mas nada achou!
E por avaro
Se despojou
Do rico amparo
Que nela tinha.

Outra galinha
Jamais topou
Com tal condão;
E assim pagou
Sua ambição.

Curvo Semedo
O faceto e os peixes

À mesa dum fidalgo
Um faceto jantava.
Graúdos peixes servem aos convivas;
A ele, um mui pequeno.
«Esperem, que eu lhes conto!» – diz consigo.
E, pegando no peixe,
Finge baixo falar-lhe – e de resposta
Parece estar à espera.
Pasmam todos, perguntam
Da charada o conceito.
«É que receio –
Diz então o faceto – que um amigo,
De infância um companheiro, naufragasse
Da Índia na carreira.
Informar-me tentei deste peixinho;
Porém diz-me que sendo inda tão novo
Nada pode contar-me; que os mais velhos
Decerto me esclarecem.
Permitam, pois, senhores, que interrogue
Algum dos mais graúdos!»

Avelino Abrantes
O gato e a raposa

Uma vez a raposa conversando
Com o gato, se esteve ali gabando
De ter artes e gírias bom recheio;
Enfim que delas tinha um saco cheio.

O gato lhe dizia:
«Para tudo
Vós tendes cachimónia: eu sou mui rudo;
Tendes um saco cheio; eu por desgraça
Nunca pude aprender mais que uma traça.»

Nesta prática estavam divertidos;
E quando muitos cães foram sentidos,
Já os tinham no meio: em tal trabalho
O gato saltou logo em um carvalho,
E pôs-se lá de cima a ver a festa,
Que foi para a raposa bem funesta.

Couto Guerreiro
O pastor e o rebanho

«O lobo é forte, vós fracos;
Mas ele é um – vós duzentos:
Podeis, portanto, em momentos,
Fazer o lobo em cavacos!»

Desta maneira um pastor
Ao seu rebanho falava;
E o seu rebanho jurava
Dar provas mil de valor.

Mas chega o lobo – e assustado
Deita o rebanho a fugir! –
Nunca dum reles soldado
Fareis um bravo sair.

Alberto França
A carangueja e a filha

Madre Cangreja, um dia,
Dizia à filha sua:
«Que andar, meu Deus, é esse?
Porque não vais a direito?

– Oh, mãe, vós como ides?
Andarei eu diferente
Que anda nossa família?
Querer que ande eu direita
Quando andam todos tortos!...»

Razão tinha. É geral o poderio
Do doméstico exemplo.

Filinto Elísio
Os companheiros de Ulisses

O rei de Ítaca, havia dez anos,
Rumo incerto nas ondas errava;
Chega um dia c’os sócios à plaga,
Em que a filha de Apolo reinava.

Deu-lhes Circe um licor deleitoso,
Que, de todo, os privou da razão;
Perdem de homens a forma e o semblante;
De animais tomam vulto e expressão.

Ei-los – ursos, leões, elefantes;
Uns têm corpo de grande craveira;
Há meões, há de marca pequena,
Por exemplo: a mesquinha toupeira.

Mas o filho do grande Laerte
Suspeitou do enganoso licor;
E, aplicando as lições da prudência,
Escapara do laço traidor.

Com seu garbo de herói, nobre gesto,
Sedução de melíflua palavra,
Infundiu na princesa um veneno,
Mais subtil, que nas veias lhe lavra.

Uma deusa diz tudo o que sente.
Circe presa do herói se confessa:
E em tirar desse amor bom partido
O finório de Ulisses se apressa.

Conseguiu que seus Gregos pudessem
À roubada figura volver;
«Mas duvido – pondera-lhe a deusa –
Que hoje queiram à troca aceder.

Ide, pois; perguntai a esses bichos
Se desejam ser homens de novo.»
Vai Ulisses, sem perda de tempo,
Arengar deste modo a seu povo:

«A taça empeçonhada
Remédio encerra em si;
E a vossa cura, ó sócios,
Eu vo-la trago aqui.

Quereis, meus bons amigos,
Voltar à espécie antiga?
Falai, e o seu desejo
Cada um bem claro diga.»

Responde o rei das selvas,
Supondo que rugia:
«Perder garras e juba?
Tão tolo eu não seria!

Posso com estas presas
A postas reduzir
A quantos temerários
Me ousarem agredir.

Rei sou – voltando a homem,
Também volto a soldado!
P’ra ser simples vassalo
Não val’ mudar de estado.»

Ulisses, surpreso, dirigiu-se ao urso:
«Irmão, que figura! que feio que estás!
Tens pêlos hirsutos, medonha dentuça,
E, entanto, já foste bonito rapaz!»

Regouga-lhe o bruto: «Não vês que sou urso?!
Eu tenho o feitio que Deus dar-me quis;
Quem acha dos homens mais bela a figura?
Quem é que da nossa te arvore em juiz?

Gentil ursazita, meu novo derriço,
Não tem tão mau gosto; prefere-me assim.
Oh! deixa-me; vai-te, prossegue o teu rumo
Se, sob este aspecto, não gostas de mim.

Eu vivo contente, sou livre e não sinto
Tirar-me o sossego pensão nem cuidado;
Por isso respondo, bem firme e bem claro:
Rejeito a proposta; não mudo de estado.»

Confuso o príncipe grego
Vai propor ao lobo a troca,
E os brios do antigo sócio
Com estas frases provoca:

«Estou pasmo, ó camarada,
Porque aos ecos pregoeiros
Conta uma linda pastora
Que lhe comeste os carneiros!

Quem diria! Tu, que outrora,
O rebanho lhe salvaras;
Tu, que foste exemplo e tipo
De qualidades tão raras!

Abandona estas florestas;
Volta aos teus; comigo vem!
Despe essa pele nojenta;
Volve a ser homem de bem!»

Uiva o lobo: «Ai, que vai torta!
Já se viu maçada igual!
Quem és tu, que ousas tratar-me
De carniceiro animal?

Quem deste modo me increpa
Pouparia as ovelhinhas?
Se eu homem fosse, as poupara
Menos que as feras daninhas?

Por uma palavra, às vezes,
Não vos matais mutuamente,
Fazendo o papel de lobos,
Perdendo os foros de gente?

Eu penso, por fim de contas,
Que, malvado por malvado,
Melhor é lobo que gente.
Não quero mudar de estado.»

A igual proposta,
Que o rei formula,
Responde acorde
Toda a matula.

Tornar-se em homens,
Quem diz? Não querem.
Ser sempre feras
Todos preferem.

Matar a fome,
Seguir o instinto,
Vagar das selvas
No labirinto:

Eis as delicias
Da estulta grei,
Surda a incentivos,
Rebelde à lei.

Julgam ser livres
Nas solidões,
Cevando, a soltas,
Brutais paixões.
Curto bestunto
De bichos bravos!
Dos próprios vícios
São mais que escravos.

Barão de Paranapiacaba
O pavão queixando-se a Juno

A Juno o pavão se queixa
Dizendo: «O deusa celeste,
Com razão de ti murmuro
Pela má voz que me deste.

Sou ave tua, e se quero
Entoar os teus louvores,
Estrujo os campos em torno
Com meus guinchos troadores;

O rouxinol tão mesquinho
Deleita, se a voz levanta,
É honra da Primavera,
De ouvi-lo o mundo se encanta!»

Irada lhe torna Juno:
«Cala-te, néscio invejoso!
Porque desejas as vozes
Do rouxinol sonoroso?

De ricas pedras ornada
Não parece a cauda tua?
O listrão do íris brilhante
Em teu colo não flutua?

Ave nenhuma passeia
Que tanto pareça bem;
Em si ninguém reunir pode
Quantos dotes os mais têm.

Repartiu seus dons com todos
A profícua Natureza;
Às águias coragem deu,
Deu aos falcões ligeireza;

Por presságio o corvo grasna,
O mocho nas mortes pia,
A gralha males futuros
Com seu clamor pressagia.

Do que são se aprazem todos;
E se torno a ouvir queixar-te,
Dar-te-ei voz de filomela,
Mas hei-de as plumas tirar-te.»

Não quis o invejoso a troca;
Que é nosso instinto invejarmos
Sempre o que os outros possuem,
Sem o que é nosso largarmos.

Curvo Semedo
O círio

As abelhas vieram, reza a fama,
Da morada dos deuses. As primeiras
Dizem que foram habitar o Himeto
E ali fadar-se nas fragrantes flores
Que os zéfiros afagam.

Dessas filhas do céu, quando dos paços
A ambrosia roubaram, que nos claustros
Encerrada se achava,
Ou – para que melhor o entendam todos –
Quando as colmeias só continham cera,
Muitas velas e círios fabricaram.

Um destes, vendo ao fogo
O barro endurecido
Em ladrilho tornar-se
E resistente ser à acção do tempo,
Empédocles imita
Lançando-se no fogo.
Que era pouco filósofo o tal círio,
Bem prova esta simpleza.
Diverso é tudo em tudo:
Pelo molde do vosso, nenhum ente,
Podeis ter a certeza, foi composto.
Que essoutro, não mais louco,
O Empédocles de cera derreteu-se
Ao fogo num momento.

J. M. dos Santos Barbosa
A perdiz e os galos

Um tinha uma perdiz e tinha uns galos;
Determinou com ela associá-los:
Desgostou a perdiz dos camaradas,
Que com ela saltaram às picadas;
Entendeu que por ser uma estrangeira
A tratavam os mais desta maneira.
Mas um dia que viu dois encrespados
Saltarem de pescoços levantados,
E em mútua guerra às cristas investirem,
E com unhas e bicos se ferirem:
«Não vai mau – diz a triste – se discorde
Esta gente entre si se arranha e morde,
Já não tenho razão para queixar-me;
Devo com suas guerras consolar-me.»

Indicio de incivil barbaridade
De todo o malcriado, que grosseiro,
Em vindo a seu país um estrangeiro,
O despreza e lhe mostra má vontade.
O preceito da santa caridade
Distingue o natural do forasteiro?
Ser judeu, mouro e herege o viajeiro,
Não lhe tira o que tem por irmandade.

E se esse forasteiro se contenta
De ver que os naturais são mal unidos,
Também barbaridade representa:

Todos dum mesmo pai somos nascidos;
Se o sangue nos uniu, que nos alenta,
Não sejamos por ódio divididos.

Couto Guerreiro
O cão que leva o jantar ao dono

Marchando com grande entono,
Um cão esperto e sagaz
Levava o jantar do dono
Em um pequeno cabaz.

Passa outro cão – e atrevido,
Entra a rosnar, a rosnar,
E mostra-se decidido
Em lhe tirar o jantar.

Mas o que pensa não faz,
Que o primeiro cão, valente,
Da boca larga o cabaz
E ao ladrão refila o dente.

Um bando de cães acode;
Vê-se o jantar em perigo;
E o fiel cão, que não pode
Combater tanto inimigo,

Diz aos irmãos com bons modos:
«A questão é de barriga;
Reparta-se isto por todos,
E não pensemos na briga.»

Este atira-se a um bocado,
Aquele a um outro cobiça;
Cada um puxa p’ra seu lado...
Foi –fogo viste, linguiça!

É semelhante este cão
Ao empregado zeloso
Que arrecada, escrupuloso,
Os dinheiros da nação;

Mas não podendo estorvar
Que os outros comam do bolo,
Não quer que lhe chamem tolo
E é o primeiro a roubar.

J. I. de Araújo