A raposa, as moscas e o ouriço
Deixando pelo chão rastros do próprio sangue,
Uma astuta raposa audaz que outrora fora
Enérgica, subtil, leve, jazia agora
Sobre um montão de lama, inanimada e exangue.
Tinha-a ferido em cheio um caçador valente...
E a mosca, o parasita alado do monturo,
Vinha alegre, num voo enérgico e seguro,
Cevar-se no seu corpo ainda vivo e quente.
E o mísero animal, com as pupilas foscas,
Invectivava triste o seu terrível norte,
Por lhe ter conferido a desgraçada sorte
De, com seu próprio corpo, alimentar as moscas.
«Fazerem-me sofrer assim um tal vexame,
A mim, ao mais subtil vivente das florestas!
Quando é que uma raposa alimentou as festas,
Os banquetes cruéis de esfomeado enxame?!
De que me serve a cauda? Acaso é um fardo antigo,
Inútil? Ah! que o céu to pague, mosca bruta!
Vai cevar noutro corpo a tua fome astuta,
E deixa só ficar a minha dor comigo.»
Nesta mesma ocasião, um ouriço piedoso
(Personagem estranho e novo nos meus versos)
Quis livrá-la, com dó, dos animais perversos
Que a afligiam assim, e disse-lhe bondoso:
«Raposa amiga, espera um só instante apenas...
Com meus espinhos bons eu mato-as num momento;
Vais ver como te vou tirar o sofrimento,
Como te vou tirar essas horríveis penas.»
«Não quero, respondeu, não as enxotes, deixa...
Oh! deixa-as acabar o seu furor nefando...
Quase estão fartas já... Viria um outro bando
Que teria mais fome, e eu mais razão de queixa.»
Assim é esta vida e tudo neste mundo,
Desde a negra miséria aos grandes resplendores;
Ministros, cortesãos... são todos comedores,
Todos têm consigo o mesmo mal profundo.
Este apólogo audaz foi aplicado ao homem;
Aristóteles fê-lo e tinha-o como certo;
Exemplos destes há imensos e bem perto...
Quanto mais cheios, mais saciados, menos comem.
Alberto Bramão