O raposo e os perunzetes

De cidadela uma árvore servia
A perus, contra assaltos do raposo.
Tendo o velhaco dado volta aos muros,
Visto cada peru em sentinela:
«E zombará de mim tal raça? Os únicos
Serão que à lei comum escapam? Logro!
Voto aos numes do céu...» Cumpriu palavra.
Brilhava a Lua, como que quisesse
Amparar a ninhada perueira
Contra o bargante. Ele não sendo novo
No mister de assaltadas fraudulentas,
Recorre ao saco das maldosas manhas.
Dá visos de trepar: c’os pés se guinda,
Faz-se morto; ressurge. Arlequim mesmo
Tais papéis não faria, e tão de molde.
Alta a cauda, cambiava-lhe os reflexos;
Mil outras mogigangas... Nesse entanto
Tosquenejar nenhum peru ousava,
Cansando-os o inimigo, e assim cravando-lhes
Sempre a vista no brilho. A pobre raça
Encadeada alfim, vinha caindo.
Tantos caídos, tantos apanhados,
Fazem monte. Mais de ametade cai;
E o marau foi depô-los na despensa.
A sobeja atenção fita nos p’rigos
Nos faz neles cair bastantes vezes.

Filinto Elísio
O cão desorelhado

Ganindo, um pobre cão a perda chora
Das orelhas que o dono lhe cortara:
«Com que cara – dizia – com que cara
Me hei-de aos mais cães apresentar agora?»

Mas em breve pulava de contente,
Em breve o dono havia abençoado,
Percebendo que assim desorelhado
Menos presa deixava a estranho dente.

Luciano Andrade
Simónides protegido pelos deuses

A Simónides, que fora
Facundo argivo poeta,
Procurou um dia em casa
Um novo enfunado atleta.
Havia em dúbio certame
Vencido o seu contendor,
E em áureos versos queria
Ver cantado o vencedor.
Ajustou dar um talento
De prémio ao sublime vate,
Pedindo que erguesse às nuvens
Aquele egrégio combate.
O sábio empenhou no encómio
Toda a força da eloquência;
Hipotiposes mostravam
Ao vivo a nobre pendência.
Mais que dizer não havia;
Porque o destro aventureiro
Era de família obscura,
E este o certame primeiro.
Com as flores da eloquência
Ornou o grato elogio,
Símiles e paralelos
Serviram de áureo atavio.
Aos gémeos Castor e Pólux
O seu herói comparava,
E as nobres acções daqueles
Amplamente numerava.
De sorte que uns bons dois terços
Do poema que tecia,
Em digressões agradáveis
Aos dois gémeos pertencia.
Findo e copiado o encómio,
A casa o levou do atleta,
Que depois de o ler três vezes,
Disse ao facundo poeta:
«Meu louvor neste poema
Só ocupa a terça parte;
Portanto, do que ajustámos
Só devo o terço pagar-te.
Os dois gémeos, a quem tanto
Teus nobres versos exaltam,
Que te paguem do talento
Os dois terços que te faltam.
Entanto, para mostrar-te
Que não fico mal contigo,
Quero esta noite que venhas
Sem falta cear comigo.»
O convite lhe aceitou
De Apolo o filho sisudo,
Julgando que era melhor
Perder pouco do que tudo.
Parentes, muitos amigos
Dos que usam comer de mofa
A lauta mesa cercavam;
Tudo era festa e galhofa.
Saúdes a uns e a outros,
Saúdes ao novo atleta,
E só lá de quando em quando
Levava alguma o poeta.
Sentiu-se em tanta algazarra
Que muito à porta batiam;
Abrindo-a, viram dois jovens
Que ao vate falar queriam.
Ele, erguendo-se da mesa
Antes da ceia dar fim,
Viu à porta dois mancebos
Que lhe falaram assim:
«Nós de Leda os filhos somos,
Astros no globo celeste,
Que hoje agradecer-te vimos
Os incensos que nos deste.
Também salvar-te queremos
Dum iminente perigo;
Foge, que vai neste prédio
Cair dos céus o castigo.»
Saiu prontamente o sábio;
E a companhia indiscreta
Com saúdes aplaudia
Quanto ao vate fez o atleta.
Eis de improviso estalando
As colunas do edifício;
Sofreram todos o estrago
Dum funesto precipício.
Dos céus a Poesia é prole;
Ela aos céus tece o louvor;
Aquele que a menoscaba
Ofende o seu criador.

Curvo Semedo
A andorinha e a Filomela

Progne, a andorinha singela,
Foi ter, deixando a cidade,
A um bosque onde habitava a Filomela.

«Irmã, diz Progne, estimo vê-la bem.
Há mil anos talvez, oh que saudade!
Desde a Trácia, que não a vê ninguém.
Pensa acaso em ficar
Neste ermo triste?
– Ah! onde o encontrar
Mais grato?
– Pois o encanto
Do teu divino canto
Vais consagrá-lo aos brutos animais
Ou aos rudes campónios? Ermos tais
Não são para talentos como o teu.
Volta para a cidade,
Onde luzem tuas graças imortais.
Além de que, desse feroz Tereu,
Que num ermo violou tua beldade,
Não vem este ermo a afronta recordar-te?
– Oh! não! – a Filomela respondeu.
Não! é a lembrança dessa injúria acerba
O que me impede, irmã, de acompanhar-te...
A presença dos homens a exacerba!»

Cristóvão Aires
O ratinho e a mãe

Certo ratinho inda novo,
Lá da toca onde nasceu,
A vez primeira saiu;
E quando se recolheu,
Contou à mãe quanto viu.

Disse: «Apenas saí fora,
Para o casal mais vizinho,
Trotando me encaminhei,
Meti-me num buraquinho,
E dali tudo espreitei.

Vi, ó mãe, dois grandes bichos,
Diferentes na figura,
Defronte de mim andar;
Um respirava doçura,
O outro fez-me trepidar!

Este dum morro vermelho
Ornava a cabeça esguia,
Que as orelhas tinha em baixo;
Só com dois dentes comia,
Tendo por cauda um penacho.

Andava em dois pés, e tinha
Em cada perna um ferrão;
Em si c’os braços bateu,
Desatou voz de trovão,
Que de horror me estremeceu!

Pelo contrário o primeiro,
Era da nossa figura;
Com modéstia passeava,
Tinha meiguice e doçura
Na mansa voz que soltava.

Era o seu rosto redondo,
Barba hirsuta, olhos luzentes,
Curta orelha e nariz chato,
Ralos e brancos os dentes,
Quase era o nosso retrato.

Tanto me encantou seu modo,
Que fora a seus braços ter,
Se a tal fera, impia e feroz,

Me não fizesse deter
Com susto da sua voz!

– Ai, filho!, a mãe lhe tornou,
Quanto a aparência te engana!
Essa figura adorável
É duma fera tirana,
Nossa inimiga implacável!

Se lhe caísses nas unhas,
Em postas serias feito!
Finge doce mansidão,
Chama-se gato, e no peito
Guarda um feroz coração!

E diferente o segundo
Que te deu susto mortal!
Tendo um aspecto feroz,
Se nos vê não nos faz mal,
E é benigno para nos.

Galo se chama, e nos pode
Servir de pasto alguns dias;
Olha como te enganavas!
Ao bom por susto fugias,
Ao mau por gosto buscavas!»

Uma doçura afectada
É fruto da hipocrisia.
Sirva ao mundo esta lição:
Quem de aparências se fia,
Gosta da sua ilusão.

Curvo Semedo
Dáfnis e Alcimadura

Desprezado da bela Alcimadura,
A quem amava loucamente, Dáfnis
– Pastor de nobre raça – quis pôr termo
Ao seu sofrer, matando-se.
Mas, antes,
À ingrata assim falou:
«Dos bens que tenho,
Metade vou deixar-te. A outra metade
Ordeno seja entregue
Aos companheiros meus, que um templo fundem,
No qual a imagem tua se contemple.
Junto do templo, quero um monumento
Simples na arquitectura,
Em que um letreiro ao caminhante diga:
"Pára um momento, e chora
De Alcimadura o desditoso amante!"»

Morto o pobre pastor, Alcimadura
Não verte uma só lágrima! Ao contrário;
Folgando, vem com suas companheiras
Dançar-lhe em torno à estátua!

Dureza tanta ao deus do Amor indigna;
À ingrata a morte dá; e, pronto, ordena:
«Tudo ame doravante!»

J. M. Silva Galão
A rã e o rato

Trazendo viva guerra antigamente
Rãs e ratos, houve uma tão valente,
Que tomou em um choque prisioneiro
Um rato, que era entre eles cavalheiro.
Pediu-lhe este licença em certo dia,
Para acudir a um pleito que trazia.
Concedeu-lha. Era o rato precisado
A passar um profundo rio a nado:
Deu indícios de medo; a rã lhe disse
Que se prendesse a ela e que a seguisse;
Que como no nadar tinha mais arte,
O poria sem risco da outra parte.
Aceitou, e de junça fabricaram
Uma boa tamiça a que se ataram;
Porém a falsa rã, que a má vontade
Encobria em finezas de amizade,
Desejava afogá-lo; e lá no meio
Puxava para baixo, e com receio
Puxava para cima o triste rato,
E faziam um grande espalhafato.

Passava acaso uma ave de rapina;
E vendo aquela bulha, o voo inclina;
Pilha ambos pelo atilho; e a tal contenda
Acabou em fazer deles merenda.

Ninguém creia em finezas de inimigo,
Porque o ódio se oculta e não se entende;
Dirá que de perigo nos defende,
Para haver de meter-nos em perigo.

Sabemos que não fica sem castigo;
Porque às vezes no laço em que pretende
Ofender-me, também a si ofende:
Mas que importa, se lá me tem consigo?

Se padecesse só o embusteiro,
Menos mal; porém vou com ele atado,
E posso no penar ser o primeiro;

Por isso nada fico aproveitado,
E talvez se aproveite algum terceiro
À custa do inocente e do culpado.

Couto Guerreiro
O pescador e o peixinho

Peixe pequeno será grande um dia,
Se Deus vida lhe der;
Mas é falta de siso em demasia
O largá-lo qualquer,
Esp’rando que ele cresça
E depois apareça:
Apanhá-lo outra vez é muito incerto.
Um pescador esperto
Em a rede apanhou
Uma carpa muitíssimo pequena:
«Se os poucos muitos são, valem a pena!»
Disse, e a carpa guardou.
Pergunta-lhe a coitada:
«De mim o que farás, se chego a custo
Para meia dentada?...
Oh! deixa-me no mar crescer sem susto...
Mais tarde vender-me-ás por alto preço!»
«Tua esperteza muito bem conheço,
Lhe toma o pescador. Irás, amiga,
Apesar da cantiga
Parar à frigideira!»

Diz-nos desta maneira
Certo rifão que achei
E vem de molde para casos tais:
Um toma vale mais
Que dois eu te darei!

J. I. de Araújo
As rãs e o Sol

Querendo o Sol casar-se,
As rãs, quando o souberam,
A Júpiter fizeram
Humilde petição,
Dizendo: «Não consintas,
Ó Júpiter sagrado,
Que mude o Sol de estado,
Que tenha geração;
Porque se ele sozinho,
Com seu calor intenso
Nos faz um dano imenso
Na cálida estação;
Em tendo esposa e prole,
Seus novos sucessores,
Com férvidos calores
O mundo abrasarão.
Secando-se as lagoas,
As fontes e as correntes,
Os nossos descendentes
A vida acabarão!»
Ouvindo Jove as preces,
Negou consentimento
Do Sol ao casamento,
As rãs em atenção.
Aquele que previne
Que o mal se reproduza,
Prudente evita e escusa
De horrores profusão.


Curvo Semedo
A gata metamorfoseada em mulher

Era uma vez um bom rapaz, celibatário.
Tinha uma gata branca e, caso extraordinário!
Enamorou-se dela! Amava-a com ternura,
Chamava-lhe anjo e amante e noiva! Uma loucura!
O mundo inteiro não tinha
Delícia que ele igualasse
Ao meigo miau da gatinha
E ao aparar-lhe na face
A graciosa marradinha.
O homem tanto pediu, tanto chorou, que um dia,
Por artes do Demónio ou coisas de magia,
Fez-se a gata mulher. Ora! foi dito e feito:
Levou-a logo à igreja e casa-se o sujeito.
Facilmente se adivinha;
Com a astúcia feminina
Acrescendo à que ela tinha
E lhe ficou da gatinha,
Imaginem! que menina!
Requebrava-se toda em lânguida meiguice
Até lhe ouvir gemer: «Filha, não se espreguice,
Ou morro aqui de amor!» E então fugia logo
Para voltar depois a reacender-lhe o fogo,
E fugir daí a nada
Outra vez ao beijo ardente...
Em suma, precisamente
Como fazia a malvada
Aos gatos antigamente.
No coração do noivo a chama lavra, lavra,
Té irromper num vulcão! Doido, numa palavra,
Crê na metamorfose e toma-a tanto à letra,
Que acha a gata mulher em tudo, tudo, etc.
Mas entre os beijos em chama,
Rói um ratinho na esteira,
Pressente-o a noiva e ligeira
Ei-la debaixo da cama
Toda agachada, matreira.
A falar a verdade, aquilo não se atura,
E o marido, a meu ver, fez muito má figura.
Se não fosse um escravo, a bem dizer, da esposa,
Pegava da vassoura e dava-lhe uma tosa.
Mas o bom foi que o ratinho,
Perdendo o antigo respeito,
Sentou-se muito direito,
E entra a cofiar o focinho
Em ar de troça! Bem feito!
É assim o natural. Não há poder que o torça
Nem há força igual sequer à sua força.
Connosco vem crescendo até que em certa idade
Lhe achámos, feita de aço, a algema na vontade,
Que, se às vezes se rebela
E nos seus ímpetos corta,
Despedaça a algema, ai dela!
Porque fecha-se-lhe a porta
E ele entra pela janela.

Fernando Caldeira
A dama desdenhosa

Uma mui nobre – rica donzela,
Airosa e bela,
Fez a cidade – alvoroçar.

Nas sociedades – mui bem cantava,
Mui bem dançava,
Queriam todos – ser o seu par.

As outras damas – ao seu aspeito,
Cruel despeito
N’alma sentiam – de as eclipsar.

Rica e formosa – nobre e prendada,
Faltava nada,
Para partidos – ter a fartar.

Já dos mancebos – a estreia toda
Dela anda em roda,
Cada um procura – de a desposar!

Mas desdenhosa – dando à cabeça,
«Não tenho pressa –
Dizia ufana – de me casar!»

Depois severa – cada conquista
Passa em revista,
E em todas acha – que censurar:

Um, nímio branco – outro é trigueiro,
Outro grosseiro,
Outro mui velho – para a igualar.

No entanto os anos – vão de corrida;
Não pressentida,
Sua beleza – entra a baixar.

Roda somenos – de pretendentes,
Inda decentes,
Os seus obséquios – vem ofertar.

Mas segue a louca – sua mama:
«Ora – dizia
Se de tais monos – me hei-de agradar!


Fidalgos pobres! – ricos plebeus!

Sem tais sandeus,
Posso contente – vida passar.»


Os galãs vão-se – dela zombando;
Té que chegando
O seu espelho – a consultar,

Viu, que desgosto! – que entre os s cabelos
Louros e belos,
Alguns começam – a branquejar!

Então ansiosa – busca um marido,
Mas um partido
Sequer mediano – não pôde achar.

E quem rendera – cidade e corte,
Por grande sorte,
Com um corcunda – teve o casar.

Costa e Silva
O horóscopo

Dissera um charlatão
Ao pai duma criança que nascia,
Que esta cruenta morte sofreria
Nas garras dum leão.
Cresce, temos rapaz,
E o pai lhe diz: «Não sairás dos lares,
Para uma vez leões não encontrares.»
Se bem diz, melhor faz.
Tinha o pai, num painel,
Pintado um leão. Um dia o rapaz brada:
«Por causa desta fera aqui pintada,
Sofro eu sorte cruel!»
Forma um bom murro e – zás!
Investe c’o painel, de raiva cego;
Porém a mão lhe rasga oculto prego
Que estava por detrás!
____________________
Ésquilo ouviu rosnar
Que havia de cair-lhe em cima a casa;
Crê no que ouve, o pateta, vê-se em brasa,
E vai dormir ao ar.
Mas – oh, caso fatal! –
Passa uma águia nas garras empolgando
Enorme tartaruga; e esta largando
Na cabeça do tal,
Um bolo pronto a faz!
____________________
Um adivinho em méritos realça?
Não, respondo. Sua arte é mais que falsa,
Apesar do que atrás
Acabo de contar.
Crer nessa arte é no juízo haver atraso:
Aqui só vejo acaso – e pode o acaso
Às vezes acertar.
O homem e a serpente

Um moço encontrou
Dormente
Serpente
Que o gelo enervou.
A casa a levou,
E logo
Do fogo
Mui perto a chegou.
A vil se animou,
Que em breve
Da neve
O efeito acabou,
A cauda anelou;
Erguendo
E torcendo
O colo, silvou.
A quem a salvou
Da corte
Da morte
Matar intentou.
O moço tomou
Pesado
Machado,
E ao meio a cortou.
A ingrata acabou
Partida,
Co’a vida
Seu crime expiou.
O ter caridade
É da humanidade
Um sacro dever:
Porém não a ter
Com feras ingratas
É de almas sensatas.

Curvo Semedo
A tartaruga e os dois patos

Estava enfastiada a tartaruga
Da negra e estreita toca em que vivia;
Por isso um belo dia,
Apoderou-se dela
O desejo profundo
De abandonar a casa e correr mundo.
A todos bem parece a terra estranha,
E sempre foi notória a grande sanha
Que o coxo tem à casa.
A dois patos foi ela então dizer
A viagem que tinha projectado.
Solene, autorizado,
O par lhe respondeu:
«Tens aberto o caminho.
E nós te levaremos
A um sítio que sabemos;
Verás muito país e muitas gentes,
Repúblicas e reinos florescentes.
Terás muito que ver
E muito que aprender.
Ulisses muito aproveitou com isso.»
Os dois eram espertos,
E expeditos no ajuste do serviço
Que iam prestar à pobre tartaruga.
Foram logo fazer de um pau nodoso
Tirado de uma árvore,
Um engenho famoso,
A fim de transportar a viageira.
Agarra-se cada um
Valentemente a cada extremidade,
E apresentando o meio à tartaruga,
Disseram-lhe com grande autoridade:
«Ferra aqui e não largues!»
A mísera assim fez,
Sem de leve temer
O que ia suceder.
E foram pelos ares...
«Milagre! gritam todos os que vêem;
Tartaruga voar é caso estranho.
Decerto tem em si poder tamanho,
Que não cabe no mundo!»
A tartaruga enfatuada e louca,
Para responder vai a abrir a boca.
Melhor fora calada,
Pois logo num momento

Caiu arrebentada,
Aos pés do povo atento.

Vaidade, presunção, muita palavra
Reveladora de apoucado siso,
Têm a mesma origem,
Da mesma fonte brotam.

Alfredo Alves
As duas cabras

Dês que hão pastado, as cabras tomam
Largas; e um certo amor de liberdade
Lhes faz buscar ventura.
Fazem digressões vastas
A pastos, que os humanos pouco trilhem.
Se acham sítio, sem trilho, sem vereda,
Algum serro, ou despenho,
Lá vão as tais moçoilas
Dar ala a seus caprichos. Nada estorva
Esse animal trepante.
Assim duas cabras,
E ambas de pés mui alvos,
Por dar c’um bom achado,
Cada uma, do seu sítio, largam veigas.
Esta, que vai de cá, d’além vindo outra,
Deparam c’um ribeiro,
E por ponte uma prancha,
Que, mal, duas doninhas passariam,
De frente, por tal ponte; e, por mais sobras,
Corria fundo e rápido
Da água o fio... Toldar-se
De susto coube às amazonas.
Mau grado a tantos p’rigos, uma dessas
Guapas, o pé na ponte
Planta – e planta-o a outra...
Parece-me estar vendo Luís Magno,
Filipe Quarto entrarem mesurados,
Na Ilha da Conferência.
Assim se adiantavam
Nossas aventureiras, barba a barba:
Que, como ambas, de altivas caprichavam,
Chegando a meia ponte
Ceder não quis nenhuma.
Por timbre seu, contavam na ascendência,
Uma, a cabra sem par no engenho e arte,
Que em mimo, a Galateia
Dera olim Polifemo;
Outra, a cabra Amalteia, ama de Jove.
Nenhuma quis recuar; ambas dum tombo
Entraram de mergulho
No caudaloso rio.
Azar, que não é novo
Na estrada da Fortuna!

Filinto Elísio
O lobo e o cão magro

A pequena distância duma aldeia,
Um lobo encontra um gozo,
E quer ferrar-lhe o dente.
O cão, manhoso,
E vendo a coisa feia,
Rabo entre pernas, diz humildemente:
«Peço perdão, mas Vossa Senhoria,
Ou não vê bem de perto,
Ou vê decerto
Em mim pobre iguaria!...
Eu sou o que se chama um carga-d’ossos;
Vendido em qualquer talho,
Não valho
Dois tremoços!...
Quer um conselho? Espere. Muito breve,
Meu dono casar deve;
Convidado
Já fui para o noivado;
Tempo de boda,
Tempo de fartura:
Faz-se gordura
Esta magreza toda!...
Tal como sou, não passo dum lambisco;
Enquanto que, depois de uns dias ledos
– Não é por me gabar – mas... um petisco
Eu devo ser
De se lamber
Os dedos!
Deixe que eu tire o ventre de miséria,
E venha, venha então!»
O lobo crê na léria,
E larga o cão.

Passam dias – e, muito cauteloso,
Entra olobona aldeia,
A ver se acha no gozo
Melhor preia.
Mas em lugar seguro, o cão, velhaco:
«Por cá, meu caro? – diz – prazer sem par!...
Dois dedos de cavaco
Eu e o guarda-portão te vamos dar;
Espera aí portanto,
Abrimos-te o ferrolho!»
Era o guarda-portão
Um canzarrão

Capaz de estrangular um lobo enquanto
O demo esfrega um olho!
O lobo, ao vê-lo, diz todo assustado:
«Senhor guarda-portão, um seu criado!»
E as pernas pôs em rápido exercício!

Ora aqui está um lobo que, a meu ver,
Mostrava não saber
Do seu oficio!

Eduardo Garrido
O burro e o cavalo

Indo um burro e um cavalo de jornada,
Levava o burro carga tão pesada,
Que disse ao companheiro:
«Meu amigo,
Tão grande peso levo, que te digo
Que se não tomas parte e me alivias,
Chegado está o termo dos meus dias.»
O cavalo zombou, e o burro larga,
Estendido no chão, já morto, a carga.
Tratou o dono logo de esfolá-lo;
E não se pôs em cima do cavalo
A carga, mas a pele do esfolado.
«Ah, mísero!, dizia o carregado,
Eu tomei o levar parte em desprezo,
E agora levo tudo e contrapeso!»

Couto Guerreiro
Os dois cães e o burro morto

Dois cães um burro morto comer qu’riam,
Que nas águas dum rio viram boiando;
Como, porém, chegar-lhe não podiam,
Acudiu-lhes pescá-lo... o rio secando!
Tentando a empresa – caso presumível –
Bebem, bebem... a ponto de estoirar!
Assim os homens são, quando o impossível
Procuram realizar!

Luís de Macedo
O macho e o burrinho

Da sua nobreza
Vivia enfunado,
Um macho de sela
Dum gordo prelado;
Um dia o farfante
Assim blasonava
C’um velho burrinho
Que ao pé lhe ficava:
«Meu pai foi da raça
Do duque de tal,
Serviu muitos anos
Na Casa Real;
Também meu avo
No paço vivia,
E de ouro e veludo
Jaezes trazia;
Mas sendo tão nobre,
Estou companheiro,
Por minha desgraça,
Dum pobre sendeiro!»
«Olá, sô fidalgo!,
Lhe torna o burrinho,
Você já se esquece
De que é meu sobrinho?
Que foi minha irmã
A mãe que o pariu,
A qual numa nora
Dos peitos abriu?
Seu pai, meu cunhado,
De quem nos blasona,
Morreu trabalhando
Em pobre atafona:
Pois esse ricaço
Que foi seu avô?
Debaixo de albarda
A vida acabou!»
Embora um bazófio
Seu nada engrandeça,
Porém nunca avilte
A quem o conheça.

Curvo Semedo
A corte do leão

Um dia, a leonina majestade,
Forte no dente e unha,
Quis saber com verdade
De que povos seu reino se compunha;
E convocou por circular firmada
Com o selo real
A vária bicharada.
Dizia o papelucho, por sinal,
Que o rei daria audiência,
E que esta, por maior magnificência,
Seria aberta ao grito
Do macaco em caretas mais perito.
O monarca entendeu,
Para ostentar grandeza entre os vassalos,
Ao seu real palácio convidá-los...
Mas que palácio o seu!
Depósito de restos da matança,
De exalações ingratas
Que obrigam o urso, mal na entrada avança,
A tapar os narizes com as patas.
O rei, vendo isto, pula
E da vida e do enjoo lhe dá cabo.
A sacudir o rabo,
O mono aplaude a acção, e em prosa chula
Tece grande louvor
À cólera dum rei tão justiceiro,
E diz que não há flor
Que vença do antro o delicado cheiro.
Sua lisonja tola
Teve por prémio a morte.
Este senhor, a quem não lhe ia à bola,
Não sabia ensinar por outra sorte.
‘Stava a raposa perto,
E o leão lhe pergunta em sério tom:
«Com franqueza, este cheiro é mau ou bom?»
Responde o bicho esperto:
«Pronta o vosso desejo aqui cumprira,
Se um defluxo que tenho o consentira.»
Os contos são úteis, de ensino são ricos:
Se acaso na corte puderes entrar,
Faz sempre o teu jogo com pau de dois bicos,
Terás a certeza de ali agradar.

J. de Araújo