O conselho dos ratos


Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era seu nome,
Sua alcunha – Esgana-Ratos.

As ratazanas mais feras
Apenas o percebiam,
Mesmo lá dentro das tocas
Com susto dele tremiam;

Que amortalhava nas unhas
Inda o rato mais machucho,
Tendo para o sepultar
Um cemitério no bucho.

Passava entre aqueles pobres,
De quem ia dando cabo,
Não por um gato maltês,
Sim por um vivo diabo.

Mas Janeiro ao nosso herói
Já dor de dentes causava,
E ele de telhas acima
O remédio lhe buscava.

Dona Gata Tartaruga,
De amor versada nas lides,
Era só por quem na roca
Fiava este novo Alcides.

Em tanto o deão dos ratos,
Achando léu ajuntou
Num canto do estrago o resto,
E ansioso assim lhe falou:

«Enquanto o permite a noite,
Cumpre, irmãos meus, que vejamos
Se à nossa comum desgraça
Algum remédio encontramos.

Rodilardo é um verdugo
Em urdir nossa desgraça;

Se não se lhe obstar, veremos
Finda em breve a nossa raça.

Creio que evitar-se pode
Este fatal prejuízo;
Mas cumpre que do agressor
Se prenda ao pescoço um guizo.

Bem que ande com pés de lã,
Quando o cascavel tenir,
Lá onde quer que estivermos
Teremos léu de fugir.»

Foi geralmente aprovado
Voto de tanta prudência;
Mas era a dúvida achar
Quem fizesse a diligência.

«Vamos saber qual de vós,
Disse outra vez o deão,
Se atreve a dar ao proposto
A devida execução.

– Eu não vou lá, disse aquele;
– Menos eu, outro dizia;
– Nem que me cobrissem de ouro,
Respondeu outro, eu lá ia!

– Pois então quem há-de ser?
Disse o severo deão;
Mas todos à boca cheia
Disseram: «Eu não, eu não!»

Tomou-se em nada o congresso;
Que o aperto às vezes é tal
Que o remédio que se encontra
Inda é pior do que o mal.

Assim mil coisas se assentam
Numa assembleia, ou conselho;
Mas vê-se na execução
Que têm dente de coelho.

Curvo Semedo
O menino e o mestre-escola


Tenho em vista zurzir na minha história
Todo o pedante, autor de vão discurso,
Que ralhando, não vale a quem se afoga,
À míngua de recurso.

Rapaz travesso, doidejando às soltas,
Perto da margem do empolado rio,
Tais cabriolas fez que, ao fim de contas,
Dentro de água caiu.

Quis o céu que no sítio do sinistro
Vegetasse, a propósito, um salgueiro,
A que, abaixo de Deus, salvar a vida
Deveu o calaceiro.


Passava por ali um mestre-escola;
E o rapaz, a gritar: «Senhor, socorro!
Acudi-me, por Deus, que o ramo estala,
E, em se quebrando, eu morro.»

Ouvindo este clamor, o pedagogo,
Sem notar ser imprópria a ocasião,
Dirige ao pobre, prestes a afogar-se,
Este longo sermão:

«Vede a que ponto chega a travessura!
Vão lá matar-se por traquinas tais!
Como é difícil tomar conta deles!
Oh! desgraçados pais!

Quanto a família e os mestres envergonham!
Que sustos causam! Que profunda mágoa!»
Tendo assim esgotado o palanfrório,
Tira o menino d’água.

Gente, em quem não pensais, aqui se abrange;
Pedantes, tagarelas e censores,
Entram no quadro, que esboçado fica
Com verdadeiras cores.

Faz grande turma cada classe dessas,
– Raça da Providência abençoada,
Que em tudo busca exercitar, sem peias,
Sua língua afiada. –

Mas ouve, amigo meu: Se em transes luto,
Vem primeiro livrar-me do embrechado;
Deita arenga depois e a gosto exaure
O teu palavreado.

João Cardoso de Meneses e Sousa
A Fortuna e o rapaz


Sobre o bocal de um poço descansava
Um rapaz; a Fortuna o acordava,
Dizendo que se o moço se afogasse,
Não havia faltar quem a culpasse.

É pobre um, porque foi ao ócio dado;
Pergunta-se-lhe a causa da pobreza,
Responde-nos com toda a singeleza:
«A Fortuna me pôs em este estado.»

Outro está em galés por ser malvado;
Pergunta-se a razão de tal baixeza,
Responde-nos com rosto de tristeza:
«A Fortuna me fez tão desgraçado.»

Perversos dão em muitos precipícios
Pela sua vontade depravada;
Mas nunca hão-de culpar seus maus ofícios;

A Fortuna há-de ser sempre a culpada:
Tomando-se a Fortuna pelos vícios,
Outra culpa não há mais bem formada.

Couto Guerreiro
O passarinheiro, o açor e a cotovia


A injustiça, o rigor desculpam-se em geral
Citando como exemplo a quantos fazem mal,
Ninguém deve esquecer a regra tão cediça:
«Respeite sempre os mais quem atenções cobiça.»

Certo dia um campónio armava aos passarinhos –
Vem despontando Abril, estão já sós os ninhos,
A grande Natureza há muito que não dorme,
O campo todo em flor ostenta um luxo enorme,
Imprime vibrações no ambiente perfumado,
O constante esvoaçar do inquieto mundo alado –
E o homem de atalaia...
De repente sorri dizendo: – «Talvez caia!»
– Cair o quê? Não sei – objecta-me o leitor.
Era uma cotovia. A tola, a sensabor
Dispunha-se a trocar a boa liberdade
Pela rede traiçoeira, e até, que ingenuidade!
Vinha cantando alegre a procurar a morte:
Ou se é, ou não se é forte.
Neste ponto um açor, que andava pelos ares,
Faminto, peneirando em voltas circulares,
Avista a pobrezinha e rápido qual seta
Silvando fende o espaço em breve linha recta,
Cai sobre a cotovia, empolga-a rudemente,
Aperta-a, despedaça-a em fúria recrescente.
Que bárbaro glutão!
Viu tudo o caçador e resolveu-se então
A puxar o cordel da pérfida armadilha,
Que ao distraído açor enreda, envolve e pilha.
Colhido de improviso o bicho quer soltar-se,
Mas logo dissuadido, usando de disfarce,
Murmura em voz mui doce:
«Meu caro caçador, sem dúvida enganou-se,
Podia lá prender-me! Eu nunca lhe fiz mal!...»
Replica-lhe o campónio: «E o pobre do animal
Que aí tens, fez-te algum? Não me responderás?»
O açor quis responder, porém não foi capaz.

Maximiliano de Azevedo.
O pastor e o mar


Dos lucros dum rebanho, longos anos
Vivia, sem cuidados, satisfeito
De Neptuno um vizinho.
Segura, bem que estreita, tinha a renda.
Tanto o tentam, porém, certos tesouros,
Que descargar na praia
Viu, que o rebanho vende; e traficando
C’o ele, o arrisca por mar, onde um naufrágio
Os cabedais lhe sorve.
De senhor de rebanho descaído,
De ovelhas guardador ora é Bieto;
Não Córidon, não Títiro,
Que seus carneiros nas ribeiras pasce. –
Ganhou, c’os tempos, cobres; e lanígeros
Animais recomprando,
Um dia, em que os assopros represando
Os ventos, manso as naus ao porto vinham,
Disse: «Senhoras ondas,
Quereis dinheiro? Ide pedi-lo aos outros.
Fazei-me esse favor; que, quanto ao nosso,
Não tendes de gramá-lo.»

Filinto Elísio
O marido, a mulher e o ladrão


Um marido extremoso,
Que adorava a mulher
Sendo, embora, feliz – julgava-se inditoso.
Dos olhos dela nunca um só fugaz volver,
Um modo gracioso,
Uma frase de amiga, um lânguido sorrir,
Mil expressões gentis, rápidas mas sinceras,
Lisonjeando o descrido,
Conseguiram jamais de leve persuadir
Que era amado deveras.
Enfim... era um marido!

Se amor neste himeneu,
Como bênção divina,
Mudado lhe tivesse a tão estéril sina...
Mas... tal não sucedeu!
Batida pela sorte,
Sem mais um desafogo,
Nem mimos para o triste e mísero consorte,
Esta esquiva mulher
Ouvia-lhe uma noite o lamentar de fogo,
Sem um suspiro só de todo compreender,
Quando surge um ladrão,
E interrompe o queixume acerbo e dolorido.

Ela sente do susto a fria contorção...
Procura amparo e cai... nos braços do marido!...
«Amigo – exclama então
O jubiloso amante
Ao pérfido ladrão –
Foram-se os meus pesares!
Sem ti, eu não teria um tão gostoso instante!
Ventura tão intensa!
Toma, leva, arrecada aquilo que encontrares,
Leva a casa também... E justa a recompensa!»

Não se perdem ladrões por homens delicados,
E a crer ninguém se inclina
Que eles sejam um pouco honestos ou vexados:
Este, pois, atirou-se impávido à rapina!

Deste conto se infere
Que o medo é das paixões a que mais largo fere;
Pois quando audaz assoma,
Como vence a aversão,

Algumas vezes doma
O amor que avassalou de todo um coração.

Tu bem viste, leitor,
Somente para ter
Nos braços a mulher...
Um marido o que fez!
Foi vítima do amor!

Eu gosto deste amor altivo e temerário
Que brilha e não se estiola,
Que cresce e não se apouca!
O conto me agradou de um modo extraordinário:
Ele bem diz num’alma indómita, espanhola,
Mais sublime que louca!

Hipólito de Camargo
O velho, o rapaz e o burro


O mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão.
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.

Partia um velho campónio
Do seu monte ao povoado;
Levava um neto que tinha,
No seu burrinho montado.

Encontra uns homens que dizem:
«Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz, que é forte,
E o velho trôpego a pé!

– Tapemos a boca ao mundo –
O velho disse. – Rapaz,
Desce do burro, que eu monto,
E vem caminhando atrás.»

Monta-se, mas dizer ouve:
«Que patetice tão rata!
O tamanhão, de burrinho,
E o pobre pequeno à pata!

– Eu me apeio – diz, prudente,
O velho de boa-fé; –
Vá o burro sem carrego,
E vamos ambos a pé.»

Apeiam-se, e outros lhes dizem:
«Toleirões, calcando a lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?

– Rapaz – diz o bom do velho –
Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram.»


Montam, mas ouvem de um lado:
«Apeiem-se, almas de breu!
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu!

– Vamos ao chão – diz o velho –
Já não sei que hei-de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que se não pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é;
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé!

De tudo me têm ralhado;
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta!»

Pegam no burro; o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão;
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.

«Olhem dois loucos varridos! –
Ouvem com grande sussurro –
Fazendo mundo às avessas,
Tomados burros do burro!»

O velho então pára, e exclama:
«Do que observo me confundo!
Por mais que a gente se mate,
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições:
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações.»

Curvo Semedo
O mono


Em Paris, noutro tempo, um mono havia
A quem deram esposa. Ele, imitando
Certos maridos, ia-a desancando;
Ela apenas seu mal triste carpia.

Tanto a pobre chorou, que um certo dia
Deu fim ao seu destino miserando.
O único filho deste par, guinchando
Ficou a morte, de que o pai se ria.

Dão-lhe outra mona: ele enche-a de taponas,
E por fim, na taberna, por desgraça,
Tomava o mono formidáveis monas!

Não vos fieis de um povo imitador,
Quer ele seja mono ou livros faça;
Mas da espécie o pior é sempre – o Autor.

Filinto de Almeida
O mergulhão, a silva e o morcego


O mergulhão, a silva e o morcego
Fizeram sociedade: entram no emprego
De embarcarem, levando por contrato
Metais o mergulhão, a silva fato;
O morcego, sem fundo, foi forçado,
Para a carga, a valer-se do emprestado.
Tal tormenta lhes deu, que lá ficaram
Os bens, e eles com custo se salvaram:
O mergulhão da praia agora gosta,
A ver se os seus metais deram à costa;
A silva, quando o fato nela embarra,
Cuidando que é o seu, a ele se agarra;
O morcego de dia não se atreve
A sair, temendo esses a quem deve.

Fatal vício o da sórdida avareza,
Porque além de meter os seus amigos
Em imensos trabalhos e perigos,
Por tenaz se converte em natureza.
No que procura o seu, não é defesa;
Mas hesita tormentos e castigos
Naqueles que perdendo os bens antigos,
Qual silva, nos alheios fazem presa.
O que intenta negócio do emprestado,
Manda a quem lhe emprestou muito presente;
Lá vai lucro, e talvez que vá dobrado.
Se houve perda, retira-se da gente,
Por andar do credor envergonhado,
Sente muito, e o que empresta inda mais sente.

Couto Guerreiro
A torrente e o rio


Com ruído e com fragor,
Tombava da montanha uma torrente,
Espalhando o terror
Nos corações da campesina gente.
E nenhum caminhante
Se atrevia a passar
Barreira tão gigante.
Eis que um vê uns ladrões e, sem parar,
Mete de meio a onda sussurrante.
Era bulha e mais nada; pelo custo,
O pobre do homem só tirava o susto.
Ganhando, então, coragem,
E os ladrões continuando a persegui-lo,
Encontra na passagem
Um rio ameno, plácido e tranquilo
Que, como um sonho, caricioso, ondeia
Por entre margens de luzente areia.
Procura atravessá-lo,
Entra... mas o cavalo,
Livrando-o à caça dos ladrões, dirige-o
Da onda escura ao seio negrejante,
E ambos foram dali no mesmo instante
Beber ao lago Estígio.
No Inferno tenebroso,
Por outros rios navegando vão.
O homem que não fala é perigoso;
Os outros, esses não.

Silva Ramos
O cisne e o cozinheiro


Num pátio, em que criavam mil plumíferos,
Vivia um cisne e um pato:
O cisne regalava os olhos do amo,
E o paladar o pato.
Comensal do jardim um se espaneja,
O outro de o ser da casa.
As cavas transformando em galerias,
Um a par do outro os viras
(Nunca cheia a seu gosto a vontadinha)
Nadando, mergulhando,
Correndo à tona de água. – O cozinheiro,
Que além da marca, um dia,
Os copos empinara, empunha o colo
Císneo, pelo do pato.
Tocando a degolar, o ia dispondo
Para a sopa. – Eis que adverte,
E dá no engano: «Eu sopas de tal músico?
Oh! Deus mo não permita!
Garganta que tais sons nos dá, não corto!»

Muito val’ meiga fala em tantos p’rigos,
Que andam em nosso alcance.

Filinto Elísio
O porco, a cabra e o carneiro


Uma cabra, um carneiro e um porco gordo,
Juntos num carro, iam à feira. Creio
Que todo o meu leitor será de acordo
Que não davam por gosto este passeio.

O porco ia em grandissimo berreiro
Ensurdecendo a gente que passava;
E tanto um como outro companheiro
Daquela berraria se espantava.

Diz o carneiro ao porco: «Porque gritas,
Animal inimigo da limpeza?
Porque, trombudo bruto, não imitas
Dos companheiros teus a sisudeza?

– Sisudos, dizes?!... Quer-me parecer
Que não têm a cabeça muito sã,
Porque pensam que apenas vão perder,
A cabra o leite, o companheiro a lã.

Mas eu, que sirvo só para a lambança,
Envio um terno adeus ao meu chiqueiro...
Pois cuido que à goela já me avança
O agudo facalhão do salsicheiro!»

Pensava sabiamente este cochino,
Mas p’ra quê? pergunto eu. Se o mal é certo,
É surdo às nossas queixas o destino;
E o que menos prevê é o mais esperto.

José Inácio de Araújo
A cotovia e os filhos


Uma idosa cotovia,
Na meiga, flórea estação,
Foi mais tardia que as outras
Na sua propagação;

Entre uma pingue seara,
Que estava quase madura,
Tinha arranjado o seu ninho
E feito a sua postura;

Já pelos ares se viam
De novas aves cardumes,
E inda os filhos da ronceira
Estavam todos implumes.

Já seca a seara estava,
E o dono da sementeira,
Vindo vê-la com seus filhos,
Lhes falou desta maneira:

«Amanhã começaremos
A ceifar os nossos trigos;
Convidai para ajudar-nos
Todos os nossos amigos.»

Foram-se; e pode julgar-se
Que susto não sofreriam
Os passarinhos infaustos,
Que inda voar não podiam.

Quando a mãe veio de fora,
Disseram-lhe entre alaridos:
«Não sabe, ó mãe, o que vai?
Não sabe? Estamos perdidos!

Foi o dono destes pães
Seus amigos convidar,
Para amanhã muito cedo
A ceifa principiar.

– Os seus amigos? – disse ela.
A vossa agonia é vá;
Sossegai, dormi tranquilos,
Que se não ceifa amanhã.»


Assim foi; que no outro dia
Os amigos não chegaram,
Que dando ao velho desculpas
Cortesmente se escusaram.

Voltou no dia seguinte
O dono, e entrou a dizer:
«Nossos amigos faltaram,
E os trigos vão-se perder.

Para amanhã começarmos,
Ide, ó filhos, diligentes,
Dizer que venham com fouces
Todos os nossos parentes.»

Novos sustos, novas ânsias
Os passarinhos tiveram,
E apenas a mãe chegou,
Logo tudo lhe disseram.

«Ele convida os parentes? –
Disse a esperta cotovia. –
Pois sabei que inda amanhã
A ceifa não principia.»

Passou-se a manhã e a tarde,
E nenhum apareceu,
Respondendo que deviam
Primeiro ceifar o seu.

Então, no outro dia o dono
Disse: «Em nós só confiemos,
Eu e vós e os nossos moços
Amanhã começaremos;

Ide, ó filhos, comprar fouces
Hoje mesmo no mercado,
Que espero que em breve tempo
Vejamos tudo ceifado.»

Quando a cotovia esperta
Viu esta resolução,
Disse: «O filhos, logo e logo,
Deixai esta habitação!»

Prontamente os filhos todos
Cuadas e voltas dando,
Atrás da mãe aos saltinhos,
Se foram logo safando.

Em menos de três semanas,
Até sem muita canseira,
Estava já debulhado
O trigo dentro da eira.

O velho então conheceu,
Vencendo a sua demanda,
A força deste ditado:
Quem quer vai, quem não quer manda.

Curvo Semedo
O milhano e o rouxinol


Um milhano rapace e mau por natureza
Fez grande alarme um dia em toda a redondeza.
Corre em bando sobre ele a garotada em festa,
Mas nisto um rouxinol na garra crua e lesta
Por desgraça caiu do pássaro tirano.
« Não me tires a vida, atende-me, milhano!
( Exclama o rouxinol no tom mais comovente.)
A fome não te mato; eu tenho simplesmente
A voz; carnes não tenho. Escuta-me portanto!
Espera! Vou narrar-te em doce e febril canto
De Tereu forminando o caso lastimoso.
Ao menos uma vez, sê bom, sê generoso!
tereu? Nenhum manjar conheço desse nome,
e do que eu trato agora é matar a fome.
Será bela ( não ponho em dúvida ) a cantiga;
Mas não me satisfaz, não me enche esta barriga!
Um momento...Perdão! Tu vais ouvi-la... Espera !
Eu não posso esperar, herói da Primavera,
Que estou com fome, e assim sou surdo aos teus gemidos!»
Ventre que fome tem, não pode ter ouvidos.

Gaspar da Silva
Os dois galos


Dois galos se meteram em peleja
A fim de se saber qual deles seja
O capataz de um bando de galinhas:
Unhadas e picadas tão daninhas
Levou um, que se deu por convencido,
E andava envergonhado e escondido

O vencedor se encheu de tanta glória,
Que para fazer pública a vitória,
Pôs-se de alto, voou sobre umas casas;
Ali cantava, ali batia as asas.

Andando nestas danças e cantares,
Veio uma águia, levou– o pelos ares;
E saindo o que estava envergonhado,
Gozou do seu ofício descansado.

Quem contemplasse bem quão pouco dura
Neste mundo qualquer prosperidade,
Livre estava de inchar por vaidade
Com um leve sucesso de ventura.

O que tem a alegria por segura,
É doente, e o seu mal fatuidade;
Que ela passa com muita brevidade,
E vem logo a tristeza, e muito atura.

De mudanças o mundo está tão cheio,
Que hoje rio, amanhã estou sentindo
Uma grande desgraça que me veio:

Delira quem dos tristes anda rindo;
Que é absurdo gostar do mal alheio,
Quando o próprio a instantes está vindo.

Couto Guerreiro
O estatuário e a estátua de Júpiter


«Mármore, o artista dizia,
Se o meu cinzel te lavrar,
O que, mármor, te há-de à fria
E dura entranha arrancar?

O deus será que, na altura
Estelífera, repousa,
Porventura? Ou porventura,
Será outra qualquer coisa?

Não! Será deus! Será! Quero
Que seja um deus! Que, na mão,
Astros tenha, e tenha fero
O aspeito, e fera a expressão!

Quem sobre nós traz suspensos
Os sóis, o trovão, o raio,
Ei-lo! Homens, tremei! Incensos,
Ardei! É deus: adorai-o!»

Com raro génio e alma rara,
Brune a pedra o artista... e, após,
Nada a Júpiter faltara,
Se lhe não faltara a voz.

E ele próprio, à majestosa
Catadura e ao torvo cenho
Do deus, pasmou da pasmosa
Produção, do próprio engenho!

Outrora também, como esse
Tímido e fraco escultor,
Um poeta o invento fez-se
Do deus de que era inventor.

Foi isso há muito: na infância
Do mundo; e, na infância, a gente
Dá valor, dá importância
Aos seus bonecos, somente.

O que sonhou, triunfante,
Cada um abraçando vai.
Pigmalião fez-se amante
Da Vénus de quem foi pai.

O coração sempre segue
O espírito; nasceu disto
O paganismo, a que entregue
O povo antigo foi visto.

Todo o mundo, quem não viu
O que não vê crer que vê?
Ser fogo ante o falso, e frio
Ante o que falso não é?

Raimundo Correia
O doido que vende siso


Um doido, pelas ruas, pelas praças,
Dizia, em seu pregão: Quem compra siso?
E os sempre crentes homens acudiam
À compra diligentes.
Primeiro, de barato, dava o doido
Muita careta, muita monaria;
Mas, logo que ensacava na algibeira
Dinheiro dalgum zote,
C’um bofetão, que vinha rebolindo,
Lhe dava duas braças de barbante
Aos tais fregueses, em lugar de siso.
Uns se agastavam; mas que vale irar-se?
Ser, por iras, de todos mais zombado?
Rir como os outros fora mais acerto;
Ou safar-se, sem chus nem bus, levando
O bofetão, e o fio.
Quer bem levar de todo a surriada
Quem ‘squadrinha sentido figurado
No proceder dum louco.
Que razão há que dar de doidarias?
Quanto chocalha em testos desvairados
A mão do Acaso o volve.
Mas fio e bofetão davam tortura
A certas cachimónias.
Um dos logrados vai-se ter c’um sábio,
Que logo lhe emborcou, sem muito empacho,
O oráculo seguinte:
«Hieroglíficos meros vende o doido.
Deve o prudente duas braças pôr-se
Longe, de quem tem eiva no miolo,
Se afagos tais não quer recolher dele.
Bom siso vos vendeu. Não sois logrado.»

Filinto Elísio
O elefante e o macaco de Júpiter


P’ra terminar contenda em que renhia,
Por ciúme de mando e primazia,
Ajustaram outrora o elefante
E o rinoceronte
Dar na estacada decisivo prélio.
‘Stava o dia aprazado,
Quando notícia vem de que o macaco
Do grande Jove, o caduceu trazendo,
Os ares rompe. (Gil se apelidava,
Segundo reza a história.)
Eis que o elefante crédulo suspeita
Que, em to de embaixador,
Venha ele procurar sua grandeza.
E muito acho de si, por honras tantas,
Aguarda mestre Gil, se bem repare
Que tarde muito em vir depor-lhe às patas
As suas credenciais .
Gil por fim decidiu-se a, de caminho,
Cortejar a Excelência,
Que aliás se dispunha prà embaixada.
Mas, nem palavra. Pois seria crível
Que depois da contenda em que travavam,
Os deuses sem notícia alguma houvessem
Da justa concertada?
Aos íncolas do céu, no entanto, pouco,
Pouco importava que elefante fosse
Ou pequenino mosco.
Enfiado assentou de assim romper...
E disse: «Dentro em pouco, primo Júpiter
Verá do trono seu travada rixa,
P’rà sua corte diversão galante.
Que rixa? Diz o mono carregando
O senho. E o paquiderme então lhe volta:
Que rixa? Então não sabes que disputa
O mando a mim o grão rinoceronte?
Que em guerra estão Rinócera e Elefântida?
Por certo que tais sítios, por famosos,
Já são de ti sabidos.»
Mestre Gil replicou:
«Pois olha, estou deveras encantado
Por ouvir nomes tais, somente agora:
De tal nem se cogita em nossos paços.»
Entre surpresa e pejo o elefante
Pergunta: «A que missão vieste agora?
– Partir entre formigas as ervilhas;
Que a tudo nós provemos.
Quanto ao caso,
Nada transpira por enquanto aos deuses,
Que em tudo igualam grandes e pequenos.»

Brasílio Machado
O Homem e a cobra


«Morre animal virulento,
Emblema da ingratidão!»
Dizia Agrário a uma cobra
Que pedia compaixão.
«Na ponta deste cajado
Hás-de teus dias findar.
És de uma raça de ingratos
Que não se deve poupar.
Um homem viu a cobra
Pelo frio entorpecida,
Teve dó dela, e no seio
Lhe volveu calor e vida;
Porém assim que a traidora
O movimento cobrou,
No peito do bem feitor
Os feros dentes lhe cravou!»
Nisto, um chuveiro de golpes
Descarregou na serpente,
que entre arrancos de morte
Replicou com voz tremente
«Nossas crónicas referem
Como o caso aconteceu;
O homem foi o culpado,
a serpe bem procedeu;
Não lhe acudiu por piedade ,
Mas por lhe a pele tirar,
Ela somente o matou
Por não deixar-se esfolar.»
Há muitos que, por mal pagos,
Choram benefícios seus,
Porém se as partes se ouvissem,
Seriam eles os réus :
Dando pouco, exigem muito,
E até mesmo a escravidão;
Quem faz para seu proveito
Perde o jus à gratidão.

Costa e Silva
Os peixes e o pastor que toca flauta


Tirso, jovem amante pegureiro,
Que aos sons da flauta o canto acrescentava,
Tocava um dia á borda de um ribeiro
Que co´as linfas os prados refrescava.

Tocava Tirso; e a sedutora Aninha
Pescava ao mesmo tempo;
Mas – fatal contratempo! –
Nem um só peixe lhe acudia à linha!

O pastor, que com seu mavioso canto
Atraía inumanas,
Aos tais da barbatanas
Desta sorte cantou: «deixai o encanto

Da náiade que amais; doutra mais bela
Não temais prisão:
Cruel pode ser ela
Com os humanos – Com com peixes não!

Cruel fosse!... A morrer quem não de afoita
Àquelas mãos galantes?»
Os tais peixinhos – moita!...
Não acodem à linha como dantes.

Tirso Vê que se cansa
Em vão cantar; na água a rede lança;
E aos pés da pastorinha
Depõe o peixe que fugira á linha.

Reis, que por razões subtis fazeis estudo
P´ra convencer a estranhos,
Baldais vossos empenhos;
Lançai as redes. O poder faz tudo.

J. I. de Araújo