O leão, o lobo e a raposa

Adoeceu o leão, e o visitava
Tudo; só a raposa ali faltava:
Tomou daqui o lobo fundamento
De acusá-la de tal procedimento,
Dizendo que merece castigada,
Pois mostrava que tinha o rei em nada.

A raposa chegou ao mesmo ponto,
Ouviu, e disse: «Cala, que és um tonto.
Como eu só com o ver não dou saúde,
Andei por lá lidando quanto pude,
Para achar-lhe remédio competente.
Achei-o, do que venho bem contente.

Um médico que é muito exp’rimentado,
Me disse que o remédio mais provado
Era que logo um lobo se esfolasse,
E que o meu rei na pele se embrulhasse.»

Fez-se assim, e a raposa quando via
Já o lobo esfolado, lhe dizia:
«Pois, amigo, não vês já que delira
Quem rei contra vassalo mete em ira?
Se tu fosses um lobo de prudência,
Havias persuadi-lo à paciência.»

Não deve ser assim; mas a vingança
E recurso ordinário do ofendido:
Há raro neste lance comedido,
E menos em matéria de privança.

Cada qual para a sua segurança,
De intrigas anda aí sempre munido:
Quando um faz por ver outro decaído,
Sucede que sobre ele este se lança.

Por isso cada qual tenha cautela
Em que lhe não pareça depois duro
Ter armado a armadilha, e cair nela:

Há quem vê ainda o laço mais escuro,
Quem volte contra o dono a esparrela;
Assim o não armá-la é o mais seguro.


Couto Guerreiro
O gato velho e a rata novinha


Uma rata novinha e inexp’riente,
Tentando enternecer um velho gato:
«Não me comas, dizia; sê clemente!
Pequena sou, a fome não te mato!

Espera uns meses mais; bela pitança
Em mim terão teus filhos!
– Perdoar,
Um gato, e gato velho? Louca esp’rança!
Não deixo aos filhos meus um tal manjar!»
Tudo julga alcançar a mocidade,
E é cruel a velhice, na verdade!

Alberto França
O lobo, a mulher e o filho

Voraz lobo viu sair,
Uma vez de madrugada,
Do casal dum camponês
De reses grossa manada.

Logo no dia seguinte
Foi-lhe à porta madrugar,
Na ideia de que à saída
Pudesse alguma apanhar.

Pôs-se mui concho agachado
De ouvido alerta esperando,
Quando ouviu dentro da casa
Uma criança chorando,

E a mãe dizer-lhe enfadada:
«Cale essa boca, mofino!...
Inda chora?... Espere!... Ó lobo,
Vem comer este menino!»

Quando o lobo tal ouviu,
Cheio de alegre alvoroço,
Disse: «Imenso to agradeço,
O céu te pague este almoço!»

Depois, empinado à porta,
Abrindo a vasta goela,
Supôs que a mãe lhe botasse
O filho pela janela;

Mas nisto escutou dizer:
«Durma já, não seja mau!....
Se o lobo quiser cá vir,
Havemos corrê-lo a pau!

– Que inconsequência tamanha!
Diz o glutão insofrido;
Há-de cumprir-se a promessa,
Que o prometido é devido.»

Nisto, ao som de uivos horrendos,
Na porta a rapar entrou,
De sorte que aos guardadores
Que dormiam, acordou.

Eis de fouces roçadouras,
De paus e chuços armados,
Saltando-lhe logo em cima,
Fizeram-no em mil bocados.

Da vila ao senhor levaram
A cabeça do agressor,
Que a mandou, com esta letra,
Em mero da praça pôr:

«Da nímia credulidade
Vítima foi este louco;
Em ameaços de quem ama
Deve-se crer muito pouco.»

Curvo Semedo
A rata transmudada em rapariga

A uma rata um feiticeiro
Viu, e – que ideia ratona! –
Transformou-a mui ligeiro
Em formosa mocetona!

«Escolhe esposo; brilhantes,
Dei-te uns olhos de tentar!...
– Quero o que entre os meus amantes
Mais possante se ostentar!

És tu, Sol?» O Sol responde:
«Não! não poderei ser seu,
Que o Nevoeiro me esconde
E é mais possante do que eu.»

O Nevoeiro: «Também não
Sou para o caso capaz;
Mais potente é o Furacão,
Que mil vezes me desfaz.»

O Furacão, contentinho,
Vem lá dos fins do horizonte,
Mas é logo no caminho
Impedido por um monte.

Ao Monte passa o contrato;
Este, esquivar-se procura,
Dizendo temer o rato,
Que muitas vezes o fura.

Mal lhe falam no ratinho,
A moça dá um suspiro,
E diz soltando um risinho:
«Pois é esse que eu prefiro!»

Não se faz dum vilão um cavalheiro,
E chora o porco pelo seu chiqueiro.

(***)
Um animal na Lua

Quando afirma um filósofo, que aos homens
Logram sempre os sentidos,
Nos jura outro filósofo que nunca
Os sentidos nos lograram.

Têm razão ambos eles. Diz verdade
Filosofia, quando
Diz que em tanto os sentidos nos enganam,
Enquanto os homens julgam,
Pelo que eles relatam; porém logo
Que nós rectificamos,
Sobre a distância e meio que o circunda,
Sobre órgãos e instrumentos,
A imagem desse objecto, seus sentidos
Então a ninguém logram.
Tais coisas ordenou sábia natura!
Dia virá, que eu fale
Dela com mais largueza.
O Sol avisto.
Qual é sua figura?
Visto de cá, três pés tem de redondo.
Ah! que se eu lá o visse,
Quão grande, aos olhos meus, fora então esse
Olho da Natureza!
Pela distância, julgo-lhe a grandura,
Sobre os lados e o ângulo,
Que, co’a mão, determino. Assenta um néscio
Que o Sol é corpo plano;
Mas eu lhe encorpo a redondez, e o poiso
Imóvel; e a caminho
Ponho a Terra, e por essa inteira máquina
Tanto os olhos desminto,
Que, em nada, me é nociva a ilusão sua.
Minh’alma, em todo o lance,
Do seio da aparência o exacto colhe.
C’o olhar talvez mui lesto,
Me não conluio, nem c’o ouvido lento
Em me acudir c’o soído.
Quando n’água o bordão me faz um ângulo,
Recto a razão mo torna.
Magistral a razão me dá a certeza.
Com tal auxílio, os olhos
Mentindo sempre, não me enganam nunca.
Se o que eles dizem creio,
Fêmeo rosto há no côncavo da Lua.

Jaz lá tal rosto? – É logro.
Donde procede pois? – De altos e baixos
Que encerra em si a Lua.
Não tendo a face lisa, sim montuosa
Em partes, noutras plana,
Onde, co’a luz e a sombra, em si debuxa
Homens, bois, elefantes.

Pouco há que engano igual viu a Inglaterra:
A esse belo astro o óculo
Assestado, se avista animal novo:
«Prodígio! – grita a gente;
Mudança aconteceu lá nas alturas,
Que, certo, nos agoira
Grandes casos. Talvez que é seu efeito
A guerra que entre tantas
Potências anda ateada.»
El-rei acorre,
(Rei é que, mui grandioso,
Essas altas ciências favoneia).
El-rei viu, por seu turno,
Esse monstro na Lua.
E era um ratinho
Agachado entre as lentes;
E o ratinho agoirava as grandes guerras!

Filinto Elísio
As exéquias da leoa

De el-rei Leão morrera a esposa. Pêsames
A dar ao seu monarca os bichos correm,
Cerimónia que mais a dor lhe aumenta.
Por todo o reino anúncios se fizeram,
Que em tal dia, a tal hora,
Se celebrava o funeral e enterro
Da chorada rainha.
Ninguém falta ao convite. À dor entregue,
O desditoso príncipe
Solta fundos gemidos – e outros tantos
A corte aduladora.
O cervo unicamente
Não chorou. Como havia de fazê-lo?
A morte da leoa
Vingava-o: tal rainha, noutro tempo,
Esganado lhe havia esposa e filho.
O cervo, pois, nem lágrima!
Cortesão lisonjeiro o seu monarca
Avisa, prontamente, acrescentando
Que vira mesmo o cervo às gargalhadas!
A cólera de um rei – se bem recordo
O que nos diz o sábio
Salomão – é terrível; mas o cervo
De ler não era amigo!
Chamado ante o leão, este lhe disse:
«Grandíssimo tratante!
De rir a audácia tens, quando traspassa
A dor os nossos peitos?!
Minhas unhas sagradas se não manchem
Nos teus profanos membros!
De pronto vinde, ó lobos,
Vingai vossa rainha; esse perverso
A seus augustos manes
Sacrificai!» – O cervo, então, responde:
«Senhor, findar já pode
Tão amargo sofrer; a mágoa vossa
Já de nada aproveita.
Perto acabo de ver a vossa esposa
Sobre um leito de flores;
E ouvi-lhe estas palavras:
“Minha morte não chores; nos formosos
Elísios campos gozo
Quanta ventura possa imaginar-se!
Com esses que, como eu, são puros, tenho
Conversação frequente.
Nada contes, porém, a meu marido;
De afecto clara prova,
Apraz-me a sua mágoa!”»
Isto ouvindo: «Milagre! – exclamam todos.
Apoteose!» – Em vez da negra morte
Um prémio teve o cervo.
Monarcas diverti com ledos sonhos,
Agradáveis mentiras;
Lisonjeai-os bem; por muito irados
Contra vós, seus amigos
Decerto ficais sendo.

Sousa Carneiro
A raposa e o bode

Um bode e uma raposa, por matarem
A sede, resolveram-se a baixarem
A poço, onde depois de ter bebido,
O chibarro, com seu focinho erguido,
Olhava cuidadoso a toda a parte,
Buscando de se ver fora alguma arte.
A raposa lhe disse: «Animo! temos
Um bom modo por que ambos escapemos:
Se à parede te pões muito empinado,
E o focinho no peito tens firmado
De tal modo, que as pontas reclinadas
Agora também fiquem empinadas,
Subo pelo teu ombro, e do mais alto
Delas sobre o bocal do poço salto,
De lá puxo por ti; e assim ficamos
Ambos livres dos sustos em que estamos.»
Agradou-se o chibarro, o corpo erguia;
A raposa subiu, como dizia;
Dava mostras do seu contentamento,
E tanto que se viu em salvamento,
Dançando com a cauda levantada,
Sem fazer caso algum do camarada.
Queixou-se este do logro; ela parando
Em cima do bocal, e ele olhando:
«Ó amigo, lhe diz, se tu tiveras
De miolo o que tens de barbas feras,
Não te havias meter em esparrelas,
Sem veres como havias sair delas.»


Couto Guerreiro
Os milhanos e os pombos

Por causa de um cão morto houve nos ares,
Entre os milhanos, guerra atroz, bravia;
Na terra o sangue deles já chovia...
A potes não direi, mas a alguidares.

Causou isto aos pombinhos mil pesares,
E puderam – que val’ diplomacia! –
Chamá-los a um acordo, a uma harmonia
Que um termo pôs aos dares e tomares.

Porém firmar-se a paz entre os malvados
Foi para os pombos caso bem funesto,
Pois foram p’los milhanos trucidados!...

É para os bons proveito manifesto
A guerra entre os patifes declarados:
De passagem vá dito... e calo o resto.

A.
A gralha entre os pavões

Pavão que andava na muda,
Sua plumagem largou,
E uma gralha presunçosa
Com ela o corpo adornou.

Entre um rancho de pavões
Atrevida se meteu,
Até que um dos camaradas
A impostora conheceu.

Passou palra aos companheiros,
Que em cima dela saltaram,
E não só o adorno alheio,
Mas o próprio lhe tiraram.

Voltou para as companheiras,
Que, do sucesso informadas,
A baniram de seu rancho
Ao som de mil apupadas.

O que sucedeu à gralha
Aos homens pode convir;
Aquele que alheio veste,
O vem na praça a despir.

Este caso além de exposto,
Serve também de lição
A todos os que procuram
Parecer mais do que são.


Curvo Semedo
O juiz árbitro, o hospitaleiro e o solitário

Três santos, cobiçosos igualmente
Da sua salvação,
Tomou cada um caminho diferente:
Todos a Roma vão.

Of’receu-se um – juiz de fama imensa –
A empenhar suas artes
Em congraçar as partes
E em julgar sem a mira em recompensa.

Escolheu hospitais o outro santo:
Louvo-o, que, na verdade,
A pura caridade
Filha é do céu que vence as mais no encanto.

Caprichou em tratar bem os doentes; Mas estes a rosnar
E, por fim, a ralhar,
Mostraram-se deveras descontentes.

«Oh! vai mal!...» Porque torna e porque deixa...
Uns são filhos amados,
Outros são enteados!...
E o homem desesp’rou com tanta queixa.

Pior foi ao juiz: jamais agrada
A sentença arbitral.
Sempre julgava mal!
E ele embirrou, por fim, com tanta chiada!

Vai ter c’o seu hospitaleiro amigo:
Iguais nas queixas são;
E resolvem-se então
A ir procurar nas selvas doce abrigo.

Encontram o terceiro, o solitário,
E lhe pedem conselho.
Diz-lhes o sábio velho:
«Aconselhar-se a si é o necessário.

Quem melhor do que vós sabe nas mágoas
O que mais lhe convém?
Pensai, meditai bem,
Mas na mansão da paz. Turvando as águas,

Não vereis reflectida a vossa imagem;

Sossegado regato,
Vereis vosso retrato
Podendo apreciá-lo com vantagem.»

Seguiram-lhe o conselho. – Não digo eu
Faz mal quem busca emprego;
Mas digo que o sossego
Obriga a meditar, e é um dom do Céu!

E não digo é mau no mundo
Haver de saber profundo
Esculápios e letrados...
Mas digo que tais fregueses
Costumam errar às vezes,
Por mal de nossos pecados!

J. I. de Araújo
Os dois amigos

Viviam dois amigos
No Monomotapa; um não possuía
Coisa que não tocasse
Igualmente ao amigo. – Os desse império
Dizem que os nossos valem. –
Uma noite em que as rédeas davam ambos
Ao sono, e a tirar lucros
Das ausências do sol, um dos amigos
Sai da cama assustado,
Corre ao cordial amigo, acorda servos:
(Morfeu tocado as portas
Tinha do tal solar). O amigo espanta-se:
Ergue-se, toma a bolsa,
Arma-se, e vem ter c’o outro. Diz-lhe: «É raro
Nest’hora, em que se dorme,
Correres vós! Vós tendes visos de homem
Que entende melhor uso
Fazer do tempo que foi dado ao sono.
Perdestes por acaso
Vosso dinheiro ao jogo? Aí está dinheiro.
Nalguma briga entrastes?
Trago esta espada; vamos. Dá-vos tédio
Contínuo, só dormirdes?
‘Stava a meu lado uma assaz bela escrava;
Quereis vós que eu a chame?
– Nada tal me atormenta, disse o amigo;
Sou grato ao zelo vosso.
Em sonhos vos vi turvo e entristecido.
Receoso que assim fosse,
Corri presto. O maldito sonho é causa.»

Leitor, qual te parece
Que melhor ama, desses dois amigos?
Dificuldade é esta
Que bem val’ que proponham. Linda coisa
E um verdadeiro amigo
Que no seio d’alma escruta o que faz falta;
E que te forra o pejo
De lho apontares tu! Um sonho, um nada
O estremece e o assusta
Quando se trata do que mais estima.

Filinto Elísio
O raposo inglês

Raposo inglês
Vende-se em pancas,
Por ter às trancas
Dez cães, talvez.

Repara, e vê
Indo em corrida,
A forca erguida...
E nela, o quê?

Bichos cruéis,
Vis, importunos,
Que de gatunos
Fazem papeis.

Texugos vis,
Larápios bufos,
E irmãos tartufos
De sorte ínf’liz,

Exemplo atroz
Davam prestante
À rapinante
Raça feroz.

Que há-de fazer
O pai da astúcia?
Entre a mais súcia
Se vai meter.

Como convém,
Dependurado,
Finge enforcado
Estar também.

Ladram os cães;
Mas diz o dono:
«Do eterno sono
Gozam os bens!»

E, a assobiar,
Os fiéis chamando,
Vai-se safando
Sem suspeitar.

Os cães se vão;
O meu raposo
Crê-se ditoso
E salta ao chão;

Mas bulha faz,
E eis que a matilha,
A ver se o pilha.
Voltou atrás;

E o bicho inglês,
Que um susto apanha,
Ensaia a manha
Segunda vez;

Porém o pó
C’o sangue rega:
A manha pega
Uma vez só!

A.
A águia e o escaravelho

Uma lebre de uma águia perseguida,
Indo na maior força da fugida,
Viu um escaravelho vir voando;
Humilde lhe gritou quase chorando,
Que lhe desse socorro, que morna:
Doeu-se ele; e no meio se metia,
À águia suplicando cortesmente
Que deixasse ir em paz uma inocente;
Que sendo-lhe tal favor concedido
Lhe havia ficar sempre agradecido.

Ela, que negro o viu e tão pequeno,
Nem lhe fez de cortês um leve aceno;
Mas levada da fome que a provoca,
Por diante voou, e nele toca,
Que caindo por terra se lastima,
Ficando com as pernas para cima,
Onde andou patinhando longo espaço
Primeiro que pudesse tomar passo:
Acresceu uma ofensa a outra ofensa;
Matou-lhe a águia a lebre na presença.

De tais desatenções ele picado,
Ali logo jurou à fé de honrado,
Que lhe havia pagar aquela afronta,
Visto que dele fez tão pouca conta;
E com efeito à águia foi daninho,
Indo-lhe a rebolar fora do ninho
Os ovos da maneira que arrebola
Aquela sua mal cheirosa bola:

Assim quebrava tudo, mal tão grave,
Que se perdia a espécie de tal ave.
Andava muito triste e agoniada;
A Júpiter – que a ele é consagrada –
Recorreu, que acudisse a tal fracasso.
«Põe os ovos, lhe diz, no meu regaço;
Porque aí ficam livres de perigo,
Que não há-de cá vir esse inimigo.»

Assim fez; mas o bom do escaravelho
Tomou logo outro péssimo conselho,
Que subiu lá ao céu com uma péla;
E no fato do deus foi dar com ela,
O qual a sacudir a péla acode,

Mas os ovos na mesma acção sacode,
Com que tudo se quebra e se esmigalha.
Ignora a águia já de que se valha;
Resolveu-se a que em meses em que houvesse
Escaravelhos, ovos não pusesse.

Couto Guerreiro
O carrão e a mosca

Trepando a custo em íngreme ladeira
Inundada de sol e de poeira,
Por um carrão bojudo
Seis valentes cavalos vão puxando.
Mulheres, frades, velhos, desceu tudo.
Sopram, suam as bestas, e a miúdo
Pegam-se, exaustas; quando
Surde uma mosca em roda
E chega-se aos cavalos;
Pretende c’o zumbido estimulá-los
E mover a caranguejola toda,
Um e outro aguilhoando, ora sentada
Na lança, ora nas ventas do cocheiro.
Mas em vendo o carrão pela calçada
De novo andar ligeiro,
Em si própria resume toda a glória.
Corre dum lado e doutro num tormento,
Qual activo sargento
Na pugna contribui para a vitória!
Depois entra a clamar
Que não tem quem lhe acuda;
Como há-de o carro andar,
Se ninguém mais a ajuda?
Rezava o frade o oficio;
O ensejo era propício!
Cantando ia uma dama: «Ora, cantigas!
A mosca lhe zunia, em boa hora!»
Louca andava! Depois de mil fadigas,
Chega ao alto o carrão: «Descanso, agora!
Descanso! a mosca diz.
Afinal tanto fiz
Que em cima os pus! Cavalos, meus senhores,
Façam favor, paguem-me os meus labores!»

Assim também há gente entremetida,
Que se finge expedita e diligente,
E é somente atrevida.
Fora com eles, fora, que é má gente!

Conde de Azevedo da Silva

Por certo pomo a Discórdia,
Foi do alto céu desterrada,
E pela muita embrulhada
Que entre as deidades teceu;

Onde habitam cultos povos,
Que há leis, ciência e polícia,
Com refinada malícia
A deusa atroz se acolheu;

Seu irmão consigo trouxe,
que Sim-e-Não se apelida;
Trouxe o autor que lhe deu vida,
Que se chama Teu-e-Meu.

Desprezou, só por honrar-nos,
Ao nosso antípoda rude,
Que incensos queima à virtude,
Não sendo nem meu, nem teu;

Que leis não conhece, e casa
Sem notário ou sacerdote;
Que à mulher só traz o dote
Que a natureza lhe deu.

Quando Jove, não com raios,
Punir os mortais queria,
Guerras a deusa acendia,
Qual na Grécia as acendeu;

A Fama, em sendo preciso,
Tinha a seu cargo chamá-la;
Mas de quase em vão buscá-la,
Muito a Fama se ofendeu.

Pediu a Jove que à deusa
Uma habitação fixasse,
Para que quando a chamasse,
Não perdesse o tempo seu.

Jove um domicílio certo
Quis que a Discórdia escolhesse,
Indicou-lhe o do interesse;
Buscou ela o do Himeneu.


Por isso quando o consórcio
Doura os laços que Amor urde,
A danar a indigna surde
Quanto Amor de glória encheu.

Curvo Semedo
A educação

Maluco e César, cães irmãos, provinham
De cães fidalgos e de raça forte;
Mas por coisas da sorte
Diversos donos tinham.

Um frequentava os bosques. Da cozinha
O outro não se tirava um só momento;
E o diverso alimento
Mudou-lhes génio asinha.

O primeiro meteu-se a caçador,
Apanhou javalis, corças, veados;
Foi dos cães afamados,
Um César no valor.

Sempre o dono o afastou de vis cadelas,
Para que a raça não degenerasse;
Mas antes se apurasse
Em prendas já tão belas.

O segundo dedica os seus afectos
À primeira cadela que ali passa;
E aumenta assim a raça
Dos gozos vira-espetos.

Nem sempre à raça nós saímos; vejo
Que se o filho que tenho não educo,
Não vale ser um César; terei pejo
De ver que o filho me saiu Maluco.

(***)
Os dois aventureiros e o talismã

À glória não conduz flórida estrada:
Dão-me Alcides e seus rivais a prova.
Hoje o Nume, em tais lidas, mal se ocupa.
Poucos vejo na Fábula,
E na História inda menos.
Inda acho um a quem talismãs surrados
Lançaram, no país lá das novelas,
A aforoar fortuna.
Ora, ele e um companheiro que levava
Acertaram c’um poste em que era escrito:
«Senhor aventureiro, se te cresce
Auso de ir ver o que outrem nunca vira –
Errante cavaleiro,
Atravessa a torrente, e toma em braços
O marmóreo elefante que deitado
Em terra jaz, e leva-o
Dum fol’go até ao tope desse monte
Que co’a fronte orgulhosa os céus ameaça.»

Um dos tais cavaleiros
Não assinou, e disse:
«Se, quanto é rápida, a corrente é funda
(Inda supondo que franqueá-la possam)
A que vem o empecilho do elefante?
É ridícula a empresa.
Por arte o fez o sábio, e por tal jeito
Que o levem quatro passos;
Mas ao cimo do monte, e dum só fôlego...
Não cabe a algum mortal, menos que aborto
Anão, pigmeu não seja esse elefante,
Que possa ir pendurado
Num bordão, qual cabaça de romeiro.
Então que honras ganhais nessa aventura?
Quis-nos dar ópio o sábio, nesse anúncio?
Enigma é com que só crianças logre.
Assim, lá vos avinde c’o elefante.»

Ido o tal discursista,
O ousado aventureiro os olhos fecha,
E atira-se à torrente,
Sem que altura nem rapidez o atalhe.
Segundo reza o anúncio, vê na praia
Fronteira, esse elefante
Estirado no chão. Já o toma, e o sobe
Ao pinác’lo do monte, e lá depara

C’um terreiro, e depois c’uma cidade.
Então solta o elefante um fero grito,
Ao qual acode o povo armado e forte.

Fugido houvera ao ruído estrepitoso
Qualquer aventureiro,
Que ele não fosse; mas mui fora, o nosso,
De voltar costas, quis vender a vida,
E morrer como herói.
Ei-lo atónito, ouvindo essa caterva
Chamá-lo rei, no posto de el-rei morto;
Mas fez-se de rogar: «O encargo é duro!»
Xisto outro tanto disse,
Quando o nomearam Papa.
Ser papa ou rei será miséria? – Claro
Se viu logo à má-fé com que o dizia.
Fortuna cega ampara a audácia cega.
Bem o fez o sábio em pôr por obra, às vezes,
O feito, sem consulta, sem reparos,
Antes que a sapiência e o tempo o estorvem.

Filinto Elísio
Os dois aventureiros e o talismã

À glória não conduz flórida estrada:
Dão-me Alcides e seus rivais a prova.
Hoje o Nume, em tais lidas, mal se ocupa.
Poucos vejo na Fábula,
E na História inda menos.
Inda acho um a quem talismãs surrados
Lançaram, no país lá das novelas,
A aforoar fortuna.
Ora, ele e um companheiro que levava
Acertaram c’um poste em que era escrito:
«Senhor aventureiro, se te cresce
Auso de ir ver o que outrem nunca vira –
Errante cavaleiro,
Atravessa a torrente, e toma em braços
O marmóreo elefante que deitado
Em terra jaz, e leva-o
Dum fol’go até ao tope desse monte
Que co’a fronte orgulhosa os céus ameaça.»

Um dos tais cavaleiros
Não assinou, e disse:
«Se, quanto é rápida, a corrente é funda
(Inda supondo que franqueá-la possam)
A que vem o empecilho do elefante?
É ridícula a empresa.
Por arte o fez o sábio, e por tal jeito
Que o levem quatro passos;
Mas ao cimo do monte, e dum só fôlego...
Não cabe a algum mortal, menos que aborto
Anão, pigmeu não seja esse elefante,
Que possa ir pendurado
Num bordão, qual cabaça de romeiro.
Então que honras ganhais nessa aventura?
Quis-nos dar ópio o sábio, nesse anúncio?
Enigma é com que só crianças logre.
Assim, lá vos avinde c’o elefante.»

Ido o tal discursista,
O ousado aventureiro os olhos fecha,
E atira-se à torrente,
Sem que altura nem rapidez o atalhe.
Segundo reza o anúncio, vê na praia
Fronteira, esse elefante
Estirado no chão. Já o toma, e o sobe
Ao pinác’lo do monte, e lá depara

C’um terreiro, e depois c’uma cidade.
Então solta o elefante um fero grito,
Ao qual acode o povo armado e forte.

Fugido houvera ao ruído estrepitoso
Qualquer aventureiro,
Que ele não fosse; mas mui fora, o nosso,
De voltar costas, quis vender a vida,
E morrer como herói.
Ei-lo atónito, ouvindo essa caterva
Chamá-lo rei, no posto de el-rei morto;
Mas fez-se de rogar: «O encargo é duro!»
Xisto outro tanto disse,
Quando o nomearam Papa.
Ser papa ou rei será miséria? – Claro
Se viu logo à má-fé com que o dizia.
Fortuna cega ampara a audácia cega.
Bem o fez o sábio em pôr por obra, às vezes,
O feito, sem consulta, sem reparos,
Antes que a sapiência e o tempo o estorvem.

Filinto Elísio
O charlatão

Sempre o vulgo, pendente de seus lábios,
Mais crê num charlatão que em vinte sábios.

Na corte um se gabava, certo dia,
De ter tão grande ciência,
De ser tão grande mestre de eloquência,
Que até de um burro um orador faria.
Disto el-rei sabe, e diz-lhe: «Do jumento
Que hás-de encontrar na minha estrebaria,
Fazer vais pois um orador portento!»
Mediante certa adiantada soma,
O charlatão o compromisso toma;
Combina mesmo, audaz, ser enforcado
Se em anos dez tal não tiver obrado.
«Vais na forca dançar!» – lhe diz alguém.
Responde o charlatão: «P’rigo não tem;
Antes que o prazo finde, a negra Parca
Um dos três tem levado: ou o monarca,
Ou o jumento, ou este seu criado.»
Teve razão; é de cabeça tonta,
Com dez anos de vida fazer conta.

Alberto França
O macaco e a raposa

No congresso dos brutos o bugio
Se meteu a dançar com tanto brio,
Que logo quase todos concordaram
Em que fosse seu rei, e o aclamaram.

A raposa invejosa, com desgosto
De vê-lo conseguir tão alto posto,
O levou a um lugar, onde enterrada
Com carne uma armadilha estava armada,
E dizia-lhe: «Aqui há escondido
Um tesouro por leis a ti devido
Como rei; e por isso vai tirá-lo,
Não venha algum ladrão desenterrá-lo.»

O macaco saltou muito lampeiro,
A ver a qualidade do dinheiro;
Ficou preso no laço; ali guinchava,
Ali contra a raposa se queixava,
Que por dolo o meteu nesta amargura.
«Ui! – disse ela – se quis tua ventura
Dar-te o ceptro, é loucura imaginares
Que com isso és capaz de dominares.»

Couto Guerreiro
O rato e a ostra

Cheio de enfado profundo,
Ratinha de siso fraco
Sai um dia do buraco,
Com a mira em correr mundo.

Põe-se a andar – toca que toca,
Ora corre, ora esfuraca;
Pasma aqui, lá embasbaca,
Tudo espantos lhe provoca.

«Eis os Alpes! as serras alpeninas!»
E são tais pasmaceiras
De ver as pequeninas
Empolas sobre as tocas das toupeiras!

Passados uns dias, o nosso viandante
Às praias chegou;
Viu de ostras mui belas porção abundante,
E naus as julgou!

«Meu pai um bronco foi, um pobre-diabo,
Um medroso a valer;
Só correndo este mundo cabo a rabo
Se consegue o saber.»

Isto solta dos lábios,
Porque alguém lhe fizera esta advertência;
Não era dos que alcançam a sapiência
A roer alfarrábios.

Eis que uma ostra, toda bela,
Aberta vê: – «Que pitéu!
É maná que vem do céu!»
Forma pulo, e salta nela.

A ostra, muito ligeira,
Fecha a casca... Coitadinho,
Era uma vez um ratinho
Que acabou na ratoeira!

Quem não tem deste mundo experiência,
Tudo prodígios crê;
E quem quer apanhar, tenha paciência
Se apanhado se vê.

J. I. de Araújo