O leão namorado

Leão de alta prosápia
Passando por um prado,
Certa zagala viu mui de seu gosto
E esposa foi pedi-la.
Quisera o pai menos feroz o genro.
Bem duro lhe era o dar-lha:
Mas também o negar-lha mal seguro;
E que inda a ser possível
Negar-lha, é de temer não venha a lume
Clandestino consórcio;
Que amava os valentões a mocetona.
De grado se encasquetam
As moças, de estofadas cabeleiras.
O pai, que não se atreve
A despedir o amante tanto às claras:

«Minha filha é mimosa,
E vós podeis, entre esponsais carícias,
Arranhá-la co’as unhas:
Consenti um cerceio em cada garra,
E em cada dente a lima,
Porque os beijos lhe sejam menos ásperos,
E a vós mais voluptuosos.
Que, sem tais sustos, há-de a minha filha
Prestar mais meiga a boca.»
Consente o leão: desmantelada a praça,
Falto de unhas e dentes,
Lançam-lhe os cães, vai-se o leão. Sem unhas
Como há-de resistir-lhes?
Quando, Amor, nos agarras, bem podemos
Dizer: «Adeus prudência!»

Filinto Elísio
Os dois homens e a Fortuna

Dois amigos numa aldeia
Viviam; um a cantar;
O segundo, volta e meia,
Descontente, a suspirar.

«Aqui, amigo, a abastança
Nos nega a sorte importuna;
Mas de lugar a mudança
Faz que se encontre a Fortuna.

– Não te quero dissuadir,
Vai ver mundo, vê se a apanhas,
Que eu ficarei a dormir,
A espera de que tu venhas.»

O ambicioso, neste intuito,
Lembrou-lhe a corte; partiu,
Chegou lá, procurou muito,
Mas a Fortuna não viu.

Busca monção oportuna,
Vai ao Mogol, mas em vão;
Dizem-lhe lá que a Fortuna
Se encontrava no Japão.

De novo ele sulca os mares,
E, não vendo a deusa amada,
Volta aos seus antigos lares,
Dando ao diabo a cartada.

E a Fortuna, seu castigo,
Veio encontrá-la a sorrir,
Sentada à porta do amigo,
Que dormia a bom dormir.
A.
A águia, a porca e a gata

Em cima de um carvalho a águia coloca
O ninho; cria a gata em uma toca
Desse mesmo carvalho; e cá vizinha
Do tronco, os seus leitões a porca tinha.

A gata enredadeira, vindo um dia
Com afectada cara de agonia,
Disse à águia: «Vizinha muito amada,
Venho aqui de tristeza traspassada
Pelas penas que quase estão presentes
A nós, e a nossos filhos inocentes.
Ah, míseros filhinhos tão queridos!
Que cedo dareis ais, dareis gemidos
Na boca da má porca, que, fossando,
O carvalho por terra vai lançando
Em ordem a que vós percais a vida,
Servindo àquela infame de comida!»

Aqui chorando, finge que lhe impede
O choro que mais minta e mais enrede;
E por modo de doida e a toda a pressa
Deu costas, sem que da águia se despeça.

Deixando-a em grande susto, à porca veio
Com focinho de pranto ainda cheio,
E lhe disse: «Ah, vizinha! uma amizade
Tão grande pede toda a lealdade;
Eu a tenho convosco; e assim vos digo,
Com bem mágoa, que estamos em perigo
De perder os filhinhos tão amados,
Que bem cedo serão da águia tragados;
Porque sei que ela espera que saiamos
A buscar com que os tristes mantenhamos,
Para haver de apanhá-los sem defesa,
E fazer nesses vossos e meus presa.»
Aqui fez outra grande choradeira;
E, trepando o carvalho de carreira,
Na toca se meteu, donde saía
Muito antepé de noite, o que não via
Nem a porca, nem a águia; e assim buscava
Com que a si e a seus filhos sustentava.

As duas, que a não viam, suspeitando
Que ela tinha fugido, e receando
Uma a outra, de modo vigiavam

Nos filhos, que dali se não tiravam:
Sucedeu-lhes perder ambas o alento
Com eles, pela falta de alimento.

Couto Guerreiro
O camponês do Danúbio

Pela aparência não julgues;
Conselho é velho, mas sábio.

O camponês das margens do Danúbio,
Que Marco Aurélio retratou, bem pode
Ser prova do que avanço. E senão, vede:
Era um monstro completo esse campónio:
Boca enorme, olhar vesgo, nariz torto;
Espessa e feia barba. Cabeludo
No corpo era a tal ponto, que disséreis
Ao vê-lo, ver um urso e dos mais feios.
Trajava um saio de caprina pele,
Que à cinta lhe prendia um junco algoso.

Pois bem; cidades que o Danúbio lava,
Tal homem deputaram!
E tamanha eloquência viram nele,
O Senado assombrou de tal maneira,
Que o criaram patrício! E quanto disse
Requer a Cúria que por norma escrita
Fique para modelo de oradores.

Alves Teixeira
Aviso de Sócrates

Sócrates fez umas casas
De Atenas em certa rua,
Para nelas habitar
Co’a pouca família sua.

Que eram baixas uns diziam,
E outros bastante elevadas,
E em suma convinham todos
Em que eram muito apertadas.
«São apertadas, é certo
– Disse o sábio; – mas eu sei
Que de amigos verdadeiros
Cheias jamais as verei.»

É mais raro do que a Fénix
Um amigo verdadeiro:
Não há nome tão sagrado,
Que seja mais corriqueiro.

Curvo Semedo
O gato e os dois pardais

Era uma vez um gato, o qual, desde criança,
Com um pardal vivia em boa vizinhança.
Junto à gaiola, a cesta. O pássaro, a miúdo,
Entendia c’o gato. Este aturava tudo,
Bicadas mil e mil, um mau costume antigo,
Que o bicho ia pagar... com festinhas de amigo;
Pois não fora decente
A um ser tão delicado
Arreganhar o dente!
De escrúpulos armado,
Foi encolhendo as unhas,
Sem fazer caramunhas,
Que entre amigos de infância
É mau desconfiar e dar muita importância
A quaisquer frenesis, fáceis de desculpar
Quando afinal se andou desde o berço a brincar.
Gozavam desta paz, quando um pardal vizinho
Foge do pátrio ninho
E visitá-los vem, travando dentro em pouco
Amizade co’a ave e mais c’o bicharoco.
Mas um dia os pardais, ambos muito egoístas,
Tiveram grande turra e jogaram as cristas.
O gato em boa hora
No combate intervém contra o brigão de fora,
E exclama: «Aqui d’el-rei! que o pássaro maldito
Quer dar cabo do nosso. Espera!...» – O dito, dito;
Salta sobre o novato
E engole-o duma vez. «Deveras, diz o gato,
A carne de pardal é um manjar esquisito!»
E ao bucho, sem tardar,
Com o outro atira. – Mau é começar!


Conde de Azevedo da Silva
Os coelhos

...Posto à espera
Ness’hora em que os seus raios precipita
A luz, no undoso império, ou quando enceta
O Sol sua carreira,
Que noite já não é, nem inda é dia;
Trepado em tronco, à raia de algum bosque,
E do alto desse Olimpo, novo Jove,
Fulmino a bel-prazer certo coelho
Que em tal não punha tento.
Foge logo a nação coelhal, que sobre
O arneiro, olho apontado, orelha alerta,
Retouçava, e o banquete
Com tomilho adorava.
Vai, c’o estampido, o bando todo em busca
De couto, na cidade subterrânea.
Mas passa o p’rigo, e esquece;
E ei-lo presto esvaiu o grande susto.
Torno a ver os coelhos
Mais contentes que dantes
Vir-me cair nas mãos. Quem não conhece,
Em tal lance, os humanos? Derramados
Por qualquer tempestade,
Mal entram pelo porto,
Eis que a arrostar-se correm
C’os ventos, c’os naufrágios. Como os coelhos
Cair nas mãos, os vemos, da Fortuna.

Filinto Elísio
A garça

Pela margem dum rio passeia a garça;
Nas águas transparentes vê brincando
Dona Carpa e Dom Lúcio. Prontamente
Nos dois saltar devera; mas, sem fome,
E, demais, pachorrenta,
Deixa-os fugir; pelo apetite espera.
Pouco tempo depois, este lhe chega.
Do sítio se afastara, ao sítio volta;
Mas tencas vê somente; melhor prato
Deseja. – «Eu, comer tencas?!»
Diz com desprezo; e às tencas dá desquite.
Cadozes lhe aparecem: «Não são dignos,
Cadozes, do meu bico!»
Para menos
Teve, porém, de abri-lo; a fome aperta-a,
Não vê com que matá-la – e se contenta
Um caracol comendo!
Quem muito quer ganhar, arrisca e perde!

Luís Serrão
O homem e o ídolo de pau

Houve quem um deus tinha de amieiro;
Muitas vezes gastava o dia inteiro
Em pedir que o socorra na tristeza
Em que andava por causa da pobreza;
Porém via que quanto mais orava,
Mais a mísera casa se atrasava;
Até que um dia já desesperado,
Lançando mão das pernas do malvado,
Lhe pregou a cabeça a uma parede,
Isto com tanta raiva e tanta sede,
Que a maldita cabeça se partia,
Donde muito dinheiro aparecia.
«Oh! – exclamava a pobre já contente –
Com que foste tão mau, tão insolente,
Que enquanto eu te fiz honra, te fechaste,
E quando foi por mal, logo largaste?
Es tal-qual a azinheira tão malvada,
Que só dá fruto à força de pancada!»

Couto Guerreiro
A velha e as duas criadas

Houve uma velhota que a duas criadas,
Teimosa, obrigava da roca ao labor;
Giravam c’os fusos, faziam meadas,
E nem as três Parcas fiavam melhor.

O dia apontava, e Andreia e Josefa
A velha acordava, mandando-as erguer;
Já tinham as duas marcada a tarefa,
Que só alta noite podiam vencer.

Um galo maldito, que tinha hora certa
De erguer matutino, rouquenho cantar,
Ao demo da velha trazia o alerta
Que cedo a obrigava da cama a saltar.

«Verdugo de crista, devemos-te a sorte!»
Bradaram as duas com sanha de algoz;
Lavraram ao galo sentença de morte,
E o galo foi morto, cozido em arroz.

Mas não melhoraram – que a velha ou a harpia,
Temendo que a hora deixasse passar,
Sempre em sobressalto mais cedo se erguia,
E às tristes tornava mais duro o lidar.

Aplico, leitores, no caso presente,
O velho e sensato rifão que nos diz
No bojo do mundo viver muita gente
Que pensa benzer-se, mas quebra o nariz!

J. I. de Araújo
O oráculo de Apolo e o ímpio

Estúrdio pagão, um dia,
Inda mais ímpio que tolo,
Que pouco em seus deuses cria,
Entrou no templo de Apolo
E assim ao Númen dizia:
«Para em ti, ó deus, ter fé,
Cumpre que digas ao certo
Se é coisa viva, ou não é
O que nesta mão aperto.»
Era um pardal que trazia,
E doloso pretendia
De repente sufocá-lo,
Ou incólume deixá-lo,
Segundo fosse a resposta
Que do oráculo obtivesse,
Fazendo uma coisa oposta
Àquela que ele dissesse.
Ardendo em furor activo,
O oráculo lhe responde:
«Mostra-nos, homem nocivo,
Esse pardal morto ou vivo
Que a tua mão nos esconde,
E vê, sacrílego estulto,
Que aos olhos dos sacros entes
Nada pode ser oculto
Que se faça entre viventes.»
O ímpio estático ficou,
Mas de intuito não mudou;
Que o mau de ser mau só deixa
Nos momentos de terror,
Ou quando os olhos lhe fecha
Para sempre o sacro Autor.

Curvo Semedo
O galo e o falcão

Um cozinheiro possuidor dum galo
– Encanto de dez léguas em redor –
Teve um dia o desejo de tragá-lo
Numa ceia de amigos.
Com amor,
Da capoeira a caminho, assim que avista
Do lindo galo a avermelhada crista,
Começou a chamá-lo – piu, piu, piu!...
O galo, que era espertalhão, fingiu
Não ter ouvido a voz do seu patrão.
Diz-lhe nisto um falcão
Do galo companheiro: «Estás com sono?
Não ouves que, por ti, chama o teu dono?»

O galo:
«Essa pergunta náo farias
(Pela melhor de todas as razões)
Se tantos, como eu galos em meus dias,
Tivesses visto acaso assar falcões!»

Xavier de Carvalho
O Amor e a Loucura

Um dia, ambos brincando,
O Amor com a Loucura
– Tinha inda o Amor seus olhos –
Travam-se de disputa.
O Amor quer que sobre ela
Se ouçam os numes todos.
Loucura, que é insofrida,
Tão desmarcado golpe
Lhe desanda, que o priva
De ver nem céu, nem terra.
Vénus que é mãe, que é dama,
Que motins não faria?
Pede vingança a brados,
Aos aturdidos numes.
E Júpiter, e Némesis,
E do Inferno os juizes,
E enfim toda a caterva
Vénus a enormidade
Que, sem bordão, seu filho
Não possa dar um passo,
Mostrou desse mau feito;
Que a tal crime, nenhuma
Pena seria grande;
E que às perdas e danos
Reparo se devia.
Quando bem consid’rado
Foi o interesse público
E o da parte – por cabo
Resultou o supremo
Tribunal, que a Loucura
Servisse a Amor de guia.

Filinto Elísio
O escolar, o pedante e o dono da quinta

Certo rapaz que andava no colégio
(Um palerma que tinha cão e guizo,
Já pela idade, já p’lo privilégio
Que têm pedantes de estragar o juízo);

Na quinta dum vizinho gatunava
Frutos e flores. Desta quinta o dono,
Dando-lhe na malhada, eis exclamava:
«Diabo de rapazes não têm sono!»

E vai queixar-se ao mestre. Este incha as frases,
E, para dar ensino ao povo inteiro,
Vem cercado dum bando de rapazes,
Que não eram melhores que o primeiro.

Lição mestra quer dar: cita Virgílio
E não sei eu que mais sábios antigos,
Chama grego e latim em seu auxilio...
Tudo por o rapaz ter ido aos figos!

Durou a arenga uma hora: durante esta,
Os rapazes, julgando-se em sua casa,
Saltaram no pomar... foi uma cresta!
Ou, por outro dizer... foi uma rasa!

Embirro co’a científica parola
Que vem fora de tempo e que é secante;
E por mil vezes que o rapaz de escola
E, quanto a mim, o professor pedante!
(***)
O velho e o burro

Andava um tardo velho apascentando
O seu burro em um vale ameno, quando
Ouviu um grande estrondo de tambores:
Montou, e disse ao burro: «Se não fores
Depressa, havemos ter algum perigo,
Porque temos já próximo o inimigo.»
O burro, bem quieto e sossegado,
Respondeu: «Ora diga, velho honrado,
Pôr-me-á duas algemas essa gente?
– Não – replicou o velho. – Belamente,
Prossegue o burro; – pois, se hei-de ter uma
Que sempre me maltrate e me consuma,
Para que hei-de apressar o meu caminho
Com medo de ma pôr Sancho ou Martinho?»

Couto Guerreiro
Tirso e Amaranta

Dizia o pastor Tirso à gentil Amaranta:
«Ah! se um dia, como eu, conheceras um mal,
Que nos seduz e encanta,
No mundo bem nenhum te parecera igual!
Consente que eu to diga,
E não tenhas receio,
Pois de pessoa amiga
Desprazer nunca veio.
– Que mal é esse então? pergunta a rapariga.
– Chama-se Amor. – Ah! chama?
Que lindo nome! Amor! E o que é pois que se sente?
– Mágoas tão doces dá, tal fluido em nós derrama,
Que dos reis o prazer faz parecer à gente
Insulso e indiferente;
Convida à solidão dos bosques e campinas;
Nas águas cristalinas
Daquela fonte clara
Se te fores mirar,
Teu rosto não verás, mas outra imagem cara
Que te vai perseguindo e volta sem cessar;
Só por ela se anseia.
Existe nesta aldeia
Um pastor, cuja voz ou cujo nome basta
P’ra arrancar um suspiro e a face enrubescer;
Sem se saber porquê, logo que ele se afasta,
Tem-se um desejo só – é de o tornar a ver!»

Amaranta, em seguida,
Exclama: «Ah! já percebo; e essa rara moléstia
Não me é desconhecida!»
Co’a natural modéstia,
Já Tirso imaginava aos seus fins ter chegado,
Quando ela diz, radiante:
«É quanto eu sinto, enfim, pelo meu Clidamante!»
De vergonha e despeito, o homem ficou passado.

Como este, andando à toa,
Há muita gente boa,
Que julgando servir o seu próprio interesse,
O alheio favorece.

Conde de Azevedo da Silva
O cavalo e o lobo

Na linda estação das flores,
Às horas do meio-dia,
Brioso, esperto cavalo
A verde relva pascia.

Dum bosque vizinho um lobo
Botando-lhe o lúzio, diz:
«Quem te comer essas carnes
É por extremo feliz

Ah! que se foras carneiro,
Ou mesmo burro, ou vitela,
Já marchando me andarias
Pelo estreito da goela;

Mas és um castelo! e assaz
Temo a tua artilharia!
Vou bloquear-te, e do engano
Fazer fogo à bateria.»

Então do bosque saindo
Em passo lento e miúdo,
De largo diz ao cavalo:
«Camarada, eu te saúdo;

Respeita em mim um galeno
Que passa a vida a curar,
Que das ervas as virtudes
Sabe aos morbos aplicar;

Aposto que tens moléstias,
E porque na cura erraram,
Tomar ares para o campo,
Como é uso, te mandaram.

Se quiseres que eu te cure,
Ficarás são como um pêro;
Grátis – que, bem entendido,
Paga de amigos não quero.»

O cavalo conhecendo
A malícia do impostor,
Diz-lhe: «O céu lhe pague o bem
Que me faz, senhor doutor;

E verdade que eu padeço,
Há nove dias ou dez,
Um tumor e uma ferida,
Tudo nas unhas dos pés.

– Bem que essa doença toque
À cirurgia somente –
Diz o lobo – eu nesse ramo
Sou um prático eminente!»

Torna-lhe o fingido enfermo:
«Pois então, senhor doutor,
Chegue-se a mim, que eu me volto,
Venha apalpar-me o tumor.»

«Pois não, filho!», diz-lhe o lobo,
E a fim de o filar se chega;
Mas de repente o cavalo
Dois grandes coices lhe prega.

Acerta-lhe pela frente,
Faz-lhe o focinho num bolo;
E o lobo exclama: «E bem feito!
Quem me manda a mim ser tolo?»

Mete pernas como pode,
Dizendo um tanto enfadado:
«Como a breca as arma! Fui
Buscar lã, vim tosquiado!

De carniceiro a herbanário
Quis passar sem que estudasse;
Levei da toleima o prémio;
Cada qual para o que nasce!»

Curvo Semedo
Os membros e o estômago

Não trabalhar do estômago em proveito
Resolveram os membros certo dia.
«Engordar mandriões!.., não leva jeito,
Acabe-se de vez esta porfia!...

Suar a bom suar para a este amigo
Dar sempre a chuchadeira apetecida?
Irra! não merecemos tal castigo...
Ele, se quer comer, que ganhe a vida!»

Dito e feito. – Lugar nas algibeiras
Procuraram as mãos; e em breve espaço,
Os pés, como atacados de frieiras,
Juraram de não dar nem mais um passo.

Mas ficaram por fim arrependidos,
Porque não se gerando um sangue novo,
Viram, a mais e mais enfraquecidos,
A falta que um bom rei faz ao seu povo.

Separar-se a comuna do senado
Quis, vendo neste as honras e o poder;
Porém com este apólogo, avisado,
Menénius conduziu-o ao seu dever.

X.
A Morte e o moribundo

A Morte nunca o sábio sobressalta;
Que sempre a partir pronto, soube dar-se
Aviso, como cumpre,
Para a partida se aviar com tempo.
Ai, que esse tempo abrange os tempos todos.
Em dias o partimos,
Em horas, em momentos, sem que aí haja
Um só, que na fatal coima não colha.
Domínio seu são todos:
E o prazo, em que dos reis os filhos abrem
Olhos à luz do dia, é talvez prazo
Que, para sempre, os fecha.
Alega que és um duque, ou que és virtuoso,
Que és moço, que és gentil, sem pejo a Morte
Te rouba. – Virá dia,
Que os cabedais lhe aumente o mundo inteiro!
Nada é menos sabido... e hei-de dizê-lo:
Nada se avia menos. –
Mais que anos cem contando, um moribundo,
De vir mui temporã, taxava a Morte,
E de que o constrangia
A partir, sem ter feito testamento,
Nem dantes o advertir: «E é bem que eu morra,
Assim de afogadilho?
Espera um pouco. Pugna a minha esposa,
Que eu, sem ela, não vá: Tenho um sobrinho,
A quem dar rumo importa.
Sofre que uma ala ajunte às minhas casas.
Oh! que urgente que és tu, nume tirano!»
«Velho – lhe diz a Morte –
Não te colho de salto; a queixa é injusta
Do insofrimento meu. Cem anos contas.
Depara-me dois homens
Dessa idade em Paris, e dez em França.
Devia eu, dizes, dar-te algum anúncio
Para dispor-te ao transe:
E então se achara o testamento feito,
Arrumado o sobrinho, a ala acabada?
E não tens por anuncio
O teu trôpego andar, teu mover lento,
O senso, os sucos radicais falidos?
O ouvido, o padar1
botos?
Não sentes como tudo em ti desmaia?

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1
Forma antiga de paladar.

Desvelos toma o Sol, por ti, supérfluos.
Bens que já não desfrutas,
Lastimas? Fiz que visses teus amigos
Moribundos ou mortos, ou enfermos:
Que fiz nisso? Avisar-te.
Vamos, velho; e sem réplica: À República
Que importa que tu faças testamento?»

Tinha razão a Morte.
Quisera eu, em tais lances, que saíssemos
Da vida, qual saímos dum banquete,
Agradecendo-o ao hóspede,
Entrouxando o fatinho. E que tardança
Pode a jornada ter? Murmuras, velho?
Vê morrer esses moços,
Como vão, como correm. Buscam mortes:
Mortes famosas, sim, mortes ilustres,

Mas todavia certas,
E bem vezes cruéis. Por mais que eu clamo,
Baldado zelo! Quem mais similha2
a um morto
Mais repugnante morre.

Filinto Elísio
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2
Similhar: semelhar
O leão

Sultão Leopardo
Foi dono de gados
Que tinha espalhados
Num vasto sertão;
E em certas devesas
Dali muito perto,
Com fama de esperto
Nascera um leão.
Consulta o leopardo
Raposo entendido:
«Do bicho nascido
Devemos temer?
Sossego e descanso
Nos campos espero
No dia em que o fero
Papá lhe morrer.»

Responde o raposo
Meneando a cabeça:
«Bom é não esqueça
Quem é tal senhor.
P’ra sua amizade
Prudente é que apele...
Ou dar cabo dele,
Que isso é o melhor.»
O esperto raposo
Não foi atendido,
E o bicho, crescido,
Mostrou a ralé.
«E agora? – o leopardo
Asnático exclama.
– Chorá-lo na cama,
Que parte quente é!»
Se o leão crescer deixas, já te digo
Que andarás bem tomando-o por amigo.
Inda um outro conceito, aqui me ocorre:
Quem o inimigo poupa, às mãos lhe morre.

J. I. de Araújo