O homem e o bosque

Um homem por um bosque um certo dia entrou,
E assim com branda frase às árvores falou:
«Propício o céu vos seja, e nunca o rijo vento,
Nos ares combatendo em furacão violento,
Da rama vos despoje, ou faça baquear
Dos vossos um só tronco.» E vendo-as exultar
Com suas expressões, o astuto lisonjeiro
Prossegue: «Oh! tende dó de um triste passageiro
Que de pesada marcha em tal cansaço vem,
Que a força o abandona, em pé mal se sustém.
Dai-me um estéril ramo, a que eu possa encostado
Os passos dirigir.» E apenas lhe foi dado,

Com muita prontidão da casca o despojou,
E numa extremidade um ferro lhe ajeitou.
Feita a bipene assim, o bosque foi cortando;
Com hórrido estampido à terra vem rodando
Piramidal cipreste, o teixo carpidor,
O louro, que coroa o vate, o vencedor;
Rui o frondoso ulmeiro, os chopos alvejantes,
O pinho, o roble, o buxo, o mirto dos amantes.
E todos, ao cair, diziam a uma voz:
«Para a desdita nossa os meios demos nós!»

Aquele que armas dá da pátria ao inimigo,
Por suas próprias mãos procura o seu castigo.

Costa e Silva
A Morte e o desgraçado


Chamava um desgraçado, a toda a hora,
Em seu socorro a Morte.
«Vem, ó Morte! – gritava – e, sem demora,
Ceifa-me a rude sorte!»

Quis a Morte fazer-lhe um bom serviço,
E à porta lhe bateu.
Entrou-lhe em casa, sem se dar por isso,
E disse-lhe: «Sou eu!»

«Que vejo! – grita ele – ó monstro horrendo!
Espectro de pavor! Foge de mim!
Nunca pensei – clamou todo tremendo –
Que fosses feia assim!»

Ora, Mecenas foi um homem douto,
Que disse: «Tomem-me antes impotente,
Tolhido, manco, tendo só um coto,
Gotoso – mas que eu viva longamente!»

Nós dizemos o mesmo à Omnipotente.

Gomes Leal
O corvo e a raposa


É fama que estava o corvo
Sobre uma árvore pousado,
E que no sôfrego bico
Tinha um queijo atravessado.

Pelo faro àquele sítio
Veio a raposa matreira,
A qual, pouco mais ou menos,
Lhe falou desta maneira:

«Bons dias, meu lindo corvo;
És glória desta espessura;
És outra Fénix, se acaso
Tens a voz como a figura!»
A tais palavras o corvo
Com louca, estranha afoiteza,
Por mostrar que é bom solfista
Abre o bico, e solta a presa.

Lança-lhe a mestra o gadanho,
E diz: «Meu amigo, aprende
Como vive o lisonjeiro
À custa de quem o atende.

Esta lição vale um queijo,
Tem destas para teu uso.»
Rosna então consigo o corvo,
Envergonhado e confuso:

«Velhaca! Deixou-me em branco,
Fui tolo em fiar-me dela;
Mas este logro me livra
De cair noutra esparrela.»

Bocage
A andorinha e os passarinhos


Certa andorinha que por esse mundo
Mil viagens fizera,
De muito e muito ver muito aprendera.
Chegara a tal primor, que inda a tormenta
Nem sequer negrejava,
E já ela às marítimas companhas
A queda anunciava.
Sucedeu que no tempo em que é costume
Começar-se do linho as sementeiras,
Viu que um maltês andava nessa faina
Pelas compridas leiras.
«Mau vai isto – disse ela aos passarinhos –
Causais-me dó; por mim, tenho caminhos
De sobra onde vogar.
Vedes-me aquela mão que diligente
Gira e toma a girar?
Pois não vem longe o dia em que a semente
Que hoje essas linhas traça,
Vos cause, pobre gente,
Eu sei, quanta desgraça!
Tereis a cada canto uma armadilha,
Perpétuo susto em horas de canseira;
Que na estiva sazão quando o sol brilha,
Anda perto a gaiola da caldeira.
Devorai-me esse pão já semeado,
E lestes, podeis crer.»
Fez-lhe chacota o bandozinho alado:
Tinha mais que comer.
Ao surdir o linhal volta a andorinha:
«Fora com esta planta que é daninha,
Ou perdidos ficais!
Profeta de desastres, tagarela,
Bom feito nos lembrais;
Fora mister para um desbaste desses
Mil pessoas, ou mais!»
Crescera o linho, e a astuta conselheira
Insiste em martelar:
«Vejo que não há forma nem maneira
De vos poder guiar;
Pois, olhai: dentro em pouco o seareiro,
Apenas vir que a messe lhe loureja,
Põe logo mão na rede, e muito arteiro
Convosco entra em peleja
Sem vos deixar a cola;
Não sair do cadoz, e muito tento,

Ou dar asas ao vento
Como sucede ao pato e à galinhola.
Mas vós não podeis tal, não vos é dado
Transpor o monte, o cerro, a extensa onda:
Pois cada qual, prudente e a bom recado,
Na mais profunda toca se me esconda.»
Refartos de presságios, os incautos
Rompem a vozear num desatino,
Quais Troianos no tempo em que Cassandra
Lia o porvir nas folhas do destino.
Andaram por igual: da passarada
Muita se viu prender.

Nós damos peito à nova, se ela agrada,
E só cremos no mal depois de o ver.

E. A. Vidal
O homem de meia idade


Um homem que era já de meia idade,
Tomando impertinências por vontade,
Teve duas mulheres; uma antiga,
Outra que era ainda muito rapariga.
A velha, que o queria semelhante,
A fim que fosse dela bem amante,
Todo o cabelo preto lhe arrancava;
A moça, que mais moço o desejava,
O branco lhe tirava. De maneira
Que a cabeça era já uma caveira.

Ninguém seja tão néscio que presuma
De ajuntar de mulheres um processo:
Raro com uma só tem bom sucesso,
Que sucessos terá tendo mais uma?
Terá quem sem dar tréguas o consuma,
Quem peça e talvez furte com excesso;
Não fará em ter bens algum progresso,
Fazendo elas que tudo se lhe suma.
Cada qual das perversas, como aspira
A tirar o que é mais do seu agrado,
Arrepela sem pena de que fira.
Em puxar e arrancar vai o cuidado;
Por isso o menos mal, que o louco tira,
E sair-lhe das unhas bem pelado.

Couto Guerreiro
O gato e o macaco


Ratão era um malandro. Se era um gato!
Beltrão, outro maior, porque era mono.
Gozavam ambos um viver pacato,
Servindo com preguiça o mesmo dono.
Este par de tratantes
Tinha perdido o medo a toda a gente.
Furtavam a valer! E felizmente
Que – não sendo os criados vigilantes –
Não punham pé em casa dos estranhos.
O Beltrão, que larápio! E malfazejo.
O Ratão, esse andava atento ao queijo
E já nem se importava com murganhos.
Um dia os dois, sentados
À lareira,
Recebendo o calor, muito chegados,
Viam assar castanhas. E pensavam,
Sentindo comichões de ladroeira:
«Quem as surripiasse! Tinha graça!»
Era um belo petisco que papavam,
E pregavam por cima uma pirraça.
Beltrão, já com a boca muito aguada,
Pespegou no colega uma palmada
E disse-lhe, a sorrir, com muitas manhas:
«Quero admirar a tua habilidade!
Tu dizes que és esperto,
Que tens agilidade...
Ora vê lá se safas as castanhas! ...
Não és capaz. Vamos a ver se acerto.
É difícil, é facto,
Mas... Ah! que se eu tivesse mãos de gato,
As castanhas saltavam cá p’ra fora!»
Ratão, sem mais demora,
Inchado de fumaças de quem pode,
Com muita ligeireza
Arreda a cinza, escalda-se, sacode
Os dedos, vai com mais delicadeza...
Pá! rola uma castanha, duas, três!...
Beltrão ria-se, vendo
Executar esta partida nova.
«Que grande ligeireza!» E ia comendo.
Chega a criada... Zut! Mas desta vez
O hábil Ratão saiu-se mal. Que sova!
Uma observação aqui registo:
Seria muito fácil quanto a mim,
Mudar este macaco num ministro
E transformar o gato em galopim.


Garcia Monteiro
A raposa e a cegonha


Quis a raposa matreira,
Que excede a todas na ronha,
Lá por piques de outro tempo,
Pregar um ópio à cegonha.

Topando-a, lhe diz: «Comadre,
Tenho amanhã belas migas,
E eu nada como com gosto
Sem convidar as amigas.

De lá ir jantar comigo
Quero que tenha a bondade;
Vá em jejum, porque pode
Tirar-lhe o almoço a vontade.»

Agradeceu-lhe a cegonha
Uma of’renda tão singela.
E contava que teria
Uma grande fartadela.

Ao sítio aprazado foi,
Era meio-dia em ponto,
E com efeito a raposa
Já tinha o banquete pronto.

Espalhadas num lajedo
Pôs as migas do jantar,
E à cegonha diz: «Comadre,
Aqui as tenho a esfriar.

Creio que são muito boas –
Sans façon – vamos a elas.»
Eis logo chupa metade
Nas primeiras lambedelas.

No longo bico a cegonha
Nada podia apanhar;
E a raposa, em ar de mofa,
Mamou inteiro o jantar.

Ficando morta de fome,
Não disse nada a cegonha;
Mas logo jurou vingar-se
Daquela pouca-vergonha.

E afectando ser-lhe grata,
Disse: «Comadre, eu a instigo
A dar-me o gosto amanhã
De ir também jantar comigo.»

A raposa lambisqueira
Na cegonha se fiou,
E ao convite, às horas dadas,
No outro dia não faltou.
Uma botija com papas
Pronta a cegonha lhe tinha.
E diz-lhe: «Sem cerimónia,
A elas, comadre minha.»

Já pelo estreito gargalo
Comendo, o bico metia;
E a esperta só lambiscava
O que à cegonha caia.

Ela, depois de estar farta,
Lhe disse: «Prezada amiga,
Dêmos mil graças ao Céu
Por nos encher a barriga.»

A raposa, conhecendo
A vingança da cegonha,
Safou-se de orelha baixa,
Com mais fome que vergonha.

Enganadores nocivos,
Aprendei esta lição:
Tramas com tramas se pagam,
Que é pena de Talião.

Se quase sempre os que iludem
Sem que os iludam não passam,
Nunca ninguém faça aos outros
O que não quer que lhe façam.

Curvo Semedo
O veado enfermo


Em país só dos seus, caiu doente um veado.
In continenti acha a seu lado
Camaradas que o vão visitar, socorrer,
Ao menos consolar; uma corja maçante.
«Senhores, deixem-me morrer;
Deixem que a Parca neste instante
Me despache ao seu uso; e terminem as dores
E o pranto.» Os seus consoladores
Tardando esse dever cumpriram, e só quando
Deus quis se foram retirando,
Não sem beber um belo trago,
Assim como quem cobra imposto de visita.
Sofreram do veado os campos grande estrago
E os tosou a valer a cambada maldita.
Nada a dizer o doente achou:
De um mal num mal pior tombou,
E foi forçado – ó dor sem nome! –
A jejuar, morrer de fome!


Do corpo, ó médicos, e da alma!
Quem vos reclama perde a calma.
Bem alto eu grito, e não me iludo:
Int’resse! és quem dá leis a tudo!

Filinto de Almeida
O leão vencido pelo homem


Pôs-se em venda uma pintura
Onde estava figurado
Leão de enorme estatura
Por mãos humanas prostrado.

Mirava a gente com glória
O painel. Eis senão quando,
Um leão que ia passando,
Lhe diz: «É falsa a vitória.

Deveis o triunfo vosso
A ficção, blasonadores!
Com mais razão fora nosso,
Se os leões fossem pintores.»

Bocage
A panela de ferro e a panela de barro


A panela de ferro, um certo dia,
Ao sair do esfregão da cozinheira
Mui fresca e luzidia,
Disse à de barro, sua companheira:
«Vamos dar um passeio,
Fazer uma viagem de recreio.»
«Iria com prazer – disse a de barro; –
Mas sou tão delicada,
Que se acaso num seixo ou tronco esbarro,
Lá fico esmigalhada!
Acho mais acertado aqui ficar,
Ao cantinho do lar.
Tu sim, que vais segura:
A pele tens mais dura.»
«Se é só por isso, podes ir comigo;
É medo exagerado o teu; contudo,
Se houver qualquer perigo,
Serei o teu escudo.»
A tal dedicação, a tal carinho
Não pôde a companheira replicar,
E as duas a caminho
Lá vão nos seus três pés a manquejar.
Mas, ai! não tinham dado quatro passos,
Numa vereda estreita,
Eis que se tocam – e a de barro é feita,
Coitada, em mil pedaços!

Para sócio não busques o mais forte,
Que te arriscas decerto à mesma sorte.

Acácio Antunes
Os lobos e as ovelhas


Os lobos e as ovelhas, que tiveram
Uma guerra entre si, tréguas fizeram:
Os lobos em reféns lhes entregavam
Os filhos; as ovelhas os cães davam.
Os lobinhos, de noite, pela falta
Dos pais, uivavam todos em voz alta.
Acudiram-lhes eles acusando
As ovelhas de um ânimo execrando;
Pois contra o que é razão e o que é direito,
Algum mal a seus filhos tinham feito.
Faltavam lá os cães que as defendessem,
Deu isto ocasião a que morressem.

Haja paz, cessem guerras tão choradas;
Mas fiquem sempre as armas e os soldados,
Que inimigos que são atraiçoados,
Tomaram ver potências desarmadas.
Não durmam, nem descansem confiadas
Em ajustes talvez mal ajustados:
Nem creiam na firmezE’ dos tratados,
Que os tratados às vezes são tratadas.
Só as armas os fazem valiosos;
E ter muitos soldados ali juntos
Respeitáveis a reis insidiosos.
Senão para os quebrar há mil assuntos;
E mais tratados velhos, carunchosos,
Firmados na palavra dos defuntos.

Couto Guerreiro
O galo e a raposa


Empoleirado num sobreiro antigo,
Fazia um velho galo sentinela.
Uma raposa diz-lhe: «Irmão e amigo,
Venho trazer-te uma notícia bela.

Nas nossas dissensões passou-se um traço
E acaba de assinar-se a paz geral;
Desce, que quero dar-te estreito abraço
E juntamente o beijo fraternal!»

«Amiga – diz-lhe o galo – folgo imenso;
Não podia esperar maior delícia! ...
Vejo dois galgos a correr, e penso
Que são correios da feliz notícia.»

Foge a raposa sem dar mais cavaco;
E o galo sentiu íntimo consolo.
Pois é grande prazer ver a um velhaco
Entrar espertalhão e sair tolo!

J. I. de Araújo
A ingratidão e a injustiça dos homens acerca da Fortuna


Sobre as águas do mar, um negociante,
Depois de bastas viagens,
Dos ventos triunfando,
Foi venturoso e rico.
Bancos de areia, rochas, nem voragens
Lhe pediram portagem de algum fardo;
Francos lhos deu a sorte.
Cobrou de quantos camaradas teve
Átropos e Neptuno, seus direitos,
Enquanto se esmerava
Em pôr o seu mercante
Fortuna em salvo porto.
Sócios, caixeiros, todos leais lhe foram.
Vendeu, pelo que quis, tabaco, açúcar,
Canela e porcelana:
Que o luxo concorreu c’o desassiso,
A engrossar-lhe o tesouro.
Só de dobrões se lhe falava, em casa.
Ei-lo que tem matilhas, coches, urcos;
Seus dias de jejum eram noivados.
Certo amigo, que via
Tão esplêndidos banquetes,
Requer donde lhe vinha tão bom pasto.
«Donde é que me há-de vir? Da minha agência.
Tudo se deve a mim, ao meu talento,
Ao meu desvelo, e a aventurar a tempo
O meu dinheiro a juros, com bom tino.»
Como achasse em tais lucros
Sabor mui de seu gosto,
Quanto ganhado havia, arriscou tudo.
Mas nada, desta vez, lhe veio a salvo.
Quem foi a causa? A imprudência.
Foi-se ao fundo um navio
Que ele não segurara.
Falto de armas, tomado por corsários,
Outro navio foi. Surgiu no porto
O terceiro, e não teve
A fazenda consumo,
O luxo e o desassiso.
Feitores o lograram;
E ele mesmo, c’o estrondo e escaparate
De banquetes sumptuosos,
Grande gosto em prazeres,
E em edifícios grande,
Súbito se achou pobre; e o seu amigo,
Que tão caído o viu: «Donde vem isso?
– Ai de mim! da Fortuna.
– Consolai-vos; e se ela não consente
Que gozeis de ventura,
Tende juízo ao menos.»

Filinto Elísio
As rãs pedindo rei


Viviam certas rãs num charco imundo
Em república plena. Era um pagode!
Tal-qual uns democratas que há no mundo
Julgando que a república, no fundo,
Outra coisa não é senão a gente
Fazer o que bem quer e quanto pode,
A rã tripudiava impunemente.
Todos os dias era certo o choque
Entre o batráquio forte, intransigente,
E parte da nação já descontente
Que a Júpiter pedia ou rei ou roque.

O deus fez-lhe a vontade.
Largou-lhe lá do céu um rei pacato,
De suma gravidade.

Das alturas tombando, o rei na queda
Fez tal espalhafato,
Que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
Aquelas saltitando, estes aos pulos,
Como é uso das rãs nas grandes crises,
Cada qual a gritar: arreda! arreda!
Entre os juncais, no lodo, nas raízes,
Dos salgueirais se enreda.

Por longo tempo em seus esconderijos
Das rãs esteve homiziado o povo.
Transformaram-se em medo os regozijos
Da antiga bacanal. Gigante novo
Cuidavam ser o rei que o céu lhes dera.
Não ousavam sequer sair da toca;
Pois, não raro, os instintos maus da fera
Por imprudente a presa e que os provoca.
Já nessas eras muito a pêlo vinha
Dizer: Cautela e caldos de galinha...

O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos. Numa bela tarde
Uma das rãs, por ser menos covarde
Ou mais bisbilhoteira,
Tirou-se de cuidados, manso e manso
Na flor das águas surge, e às guinadinhas
Com muito tento e jeito,
Do cepo se aproxima.
Após ela vem outra... e outra... aos centos!

Vendo que o rei não sai do seu ripanço,
Rodeiam-no; coaxam: Salta acima!...
E coaxado e feito!...

O rei, temido outrora, às picuinhas
Dessa chusma vilã se vê sujeito.
Em rápido momento
Sobre ele a malta audaz se encarrapita,
E faz do bom monarca um bom assento.
Nem chus nem bus! Calado que nem porta,
Qual fora noutros tempos!...
Isto irrita.
Rompem as rãs então numa algazarra
Que o pântano atordoa,
Os fios da alma a quem as ouve corta:
«Leva daqui, ó Jove, esta almanjarra
Que nem mexe, nem pune, nem perdoa,
E mais parece uma alimária morta.
Cabide duma c’roa,
Em vez de nosso rei – nossa vergonha!»
Vai Júpiter que faz? Uma cegonha,
Das muitas que possui, logo destaca,
E manda que das rãs ponha e disponha,
Numa das mãos o queijo e noutra a faca.

Ora a cegonha, apenas em seu trono
Dona das rãs se vê e sem ter dono,
Diz consigo:
«Nasci dentro dum fole!
Quem tira agora o papo da miséria
Sempre sou eu!...»
Passeia toda séria,
Perna aqui... perna além, num andar mole,
E quanta rã apanha quanta engole.

Geral consternação o charco enluta,
Renovam-se as lamúrias:
Que o rei é doido e tem às vezes fúrias;
Que, doido ou não, o povo trata à bruta.
Por fim, que faça o deus formal promessa
Doutro rei que as não coma tão depressa!
O Júpiter tonante
Destarte lhes responde:
«Inútil prece!
Dei-vos um rei tranquilo, inofensivo,
Que nem sempre se tem nem se merece;
Um rei que era um regalo!
Foi vê-lo e pô-lo pela barra fora!
Dei-vos segundo: um génio um pouco vivo.

Meninas, aguentá-lo!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
É mau este de agora.
Contentai-vos com ele, ó meus endezes,
Que venha quem vier.., pior mil vezes!»

Francisco Palha
Os médicos


Certo médico, chamado
De alcunha o Tanto-Melhor,
Foi visitar um doente,
Do qual o Tanto-Pior
Era médico assistente.

O último, sempre funesto,
Que o doente morreria
Altamente sustentava,
E o Tanto-Melhor dizia
Que o pobre enfermo escapava.

Houve sobre o curativo
Mui grande contestação;
Um aplicava calmantes,
O outro armava uma questão
Em favor dos irritantes.

No fim de tanto debate,
O enfermo a vida perdeu,
E o Tanto-Pior clamou:
«Vejam qual de nós venceu!
Se o meu cálculo falhou.»

Tornou-lhe o Tanto-Melhor,
Mostrando um vivo pesar:
«Pois eu sempre afirmarei
Que morreu por não tomar
Os remédios que indiquei.»

Enquanto a mim, se os tomasse,
Morrer havia igualmente;
Mas é desgraça maior
Cair um pobre doente
Nas mãos dum Tanto-Pior.

Curvo Semedo
O filósofo cita


Na Citia, certa vez, por motivo severo,
Crendo encontrar o bem nas privações do exílio,
Saira a viajar um pensador austero.

Vivia então na Grécia, em farto domicílio,
Junto às flores que amava e na paz respeitado,
Um sábio igual àquele ancião de Virgílio.

O cita o foi achar no jardim ocupado:
Esmondava da erva as árvores de fruto
E do galho atrofiado.


Ali cortava um ramo, aqui outro corrupto;
E à cega natureza
Ia pagando a arte o liberal tributo.

O filósofo a olhar, tomado de surpresa
Lhe disse: «O que fazeis? Pois um sábio mutila
Os pobres vegetais com tão grande dureza?

Dai-me o vosso instrumento, o qual tudo aniquila;
O tempo obra melhor». Sem se alterar em nada,
O outro respondeu na sua voz tranquila:

«Eu só tiro o que sobra; à planta decotada
Melhor seiva aproveita.»
E o cita então volveu à sua triste morada.

Lá chegado uma vez, previne-se e endireita
Contra raro vergel, e do útil oficio
Ensina à vizinhança uma falsa receita.

Nada deixa de pé: os rebentos sem vício,
O caule mais florido, o tronco mais correcto,
E sem escolher lua e nem dia propício.

Afinal morreu tudo.
Imita este indiscreto
Aquele que da alma, e posto indiferente,
Repele o mau e o bom e o mais sagrado afecto.

Eu me acautelo bem e temo uma tal gente...
O estóico, incapaz do mais leve conforto,
Fazendo sempre o mal, vai levando o vivente
A já nem existir muito antes de estar morto.

J. Mariano de Oliveira
O camelo


Arrepiou-se ao homem o cabelo
Quando a primeira vez viu o camelo:
Aquele grande corpo, o mau feitio
O obrigou com pavor a ficar frio.

Mas vendo que a ninguém ele se lança,
Pouco a pouco tomou tal confiança,
Que não só a chegar a ele se anima,
Porém pôs-lhe uma albarda e carga em cima.

Couto Guerreiro
O avarento que perdeu o tesouro


Quem não usa não tem, reza o adágio;
E é bem verdadeiro;
Pois nada prestará, sem o gozarmos,
Acumular dinheiro.
Esopo, no seu conto
Do tesouro escondido,
Fornece belo exemplo ao nosso ponto.


Houve outrora um avarento
Que ouro sobre ouro juntava,
E nem um real gastava:
Dele escravo e não senhor,
Ao vê-lo, imaginaríeis
Que a fortuna assim unida
Guardava para outra vida,
Para outro mundo melhor.

Enterrou-o numa cova,
E a alma enterrou com ele.
Coma, beba, durma, vele,
O seu único prazer
É pensar a cada instante
No seu virginal erário,
Que adora, como sacrário;
E a cada instante i-lo ver:

Foi lá, foi lá tantas vezes,
Que um cavador, com suspeita
Do mistério, a cova estreita
Abriu, e tudo roubou.
Pouco depois o avarento
O passeio costumado
Fez ao seu ouro adorado.
Mas... só o ninho lhe achou!

Pasma; lágrimas derrama;
Soluça; geme; suspira;
De raiva os cabelos tira.
É um sonho! Não o crê!
Nisto acaso um viandante
Por aquele sítio passa,
E com dó de tal desgraça
Pede a razão do que vê.
«Roubaram-me o meu tesouro!

– O teu tesouro roubaram?
E em que lugar o encontraram?
– Junto desta pedra; aqui.
– Porque o trouxeste tão longe?
Receias alguma guerra,
Para o esconderes na terra
De todos, e até de ti?

Veio espairecer no campo?
Antes em casa guardado
Estivesse a bom recado,
E tu a vê-lo, e a gastar.
– Eu gastar o meu dinheiro!
O meu dinheiro! Estás louco!
Custa ganhá-lo tão pouco?
Eu nunca lhe ousei tocar!

– Que me dizes! Impossível!
– Nunca! – Então inútil era.
E a mágoa te desespera?
Famoso! Deixem-me rir!
Nesse caso, põe na cova
Uma pedra: o mesmo importa
Que a tua riqueza morta:
Do mesmo te há-de servir.»

Ramos Coelho
O avarento que perdeu o tesouro


Quem não usa não tem, reza o adágio;
E é bem verdadeiro;
Pois nada prestará, sem o gozarmos,
Acumular dinheiro.
Esopo, no seu conto
Do tesouro escondido,
Fornece belo exemplo ao nosso ponto.


Houve outrora um avarento
Que ouro sobre ouro juntava,
E nem um real gastava:
Dele escravo e não senhor,
Ao vê-lo, imaginaríeis
Que a fortuna assim unida
Guardava para outra vida,
Para outro mundo melhor.

Enterrou-o numa cova,
E a alma enterrou com ele.
Coma, beba, durma, vele,
O seu único prazer
É pensar a cada instante
No seu virginal erário,
Que adora, como sacrário;
E a cada instante i-lo ver:

Foi lá, foi lá tantas vezes,
Que um cavador, com suspeita
Do mistério, a cova estreita
Abriu, e tudo roubou.
Pouco depois o avarento
O passeio costumado
Fez ao seu ouro adorado.
Mas... só o ninho lhe achou!

Pasma; lágrimas derrama;
Soluça; geme; suspira;
De raiva os cabelos tira.
É um sonho! Não o crê!
Nisto acaso um viandante
Por aquele sítio passa,
E com dó de tal desgraça
Pede a razão do que vê.
«Roubaram-me o meu tesouro!

– O teu tesouro roubaram?
E em que lugar o encontraram?
– Junto desta pedra; aqui.
– Porque o trouxeste tão longe?
Receias alguma guerra,
Para o esconderes na terra
De todos, e até de ti?

Veio espairecer no campo?
Antes em casa guardado
Estivesse a bom recado,
E tu a vê-lo, e a gastar.
– Eu gastar o meu dinheiro!
O meu dinheiro! Estás louco!
Custa ganhá-lo tão pouco?
Eu nunca lhe ousei tocar!

– Que me dizes! Impossível!
– Nunca! – Então inútil era.
E a mágoa te desespera?
Famoso! Deixem-me rir!
Nesse caso, põe na cova
Uma pedra: o mesmo importa
Que a tua riqueza morta:
Do mesmo te há-de servir.»

Ramos Coelho
O leão e o jumento à caça


Por folga, o rei dos animais, um dia,
E dia de anos, quis andar à caça.
Pardais, para leões, são caça ténue;
Sim bons veados, corços,
Possantes javalis. Para este empenho
Surtir melhor, usou do ministério
Do zurro de Estentor dum forte burro,
Que fez da trompa o ofício;
Posto na espera, e oculto nos silvados,
Lhe ordenou Monsenhor Leão que zurre.
Bem certo, que sons tais aos menos tímidos
Dos covis arrancassem.
Não tinham de costume inda esses brutos
Ouvir trovoada tal. Com o espantoso
Estrugido esses ares ribombavam,
E se apossava o susto
Dos hóspedes das selvas. Fogem todos,
E caem na emboscada inevitável
Em que os espera o leão. Ovante o burro,
Dando-se grandes gabos,
Dizia ao rei: «Não vês quanto hei servido?
– Sim, zurraste tão rijo, que a não seres
Tu, e tua relé de mim sabida
A mim mesmo espantaras.»
Bem que assaz tinha o chasco merecido,
A ter auso, o jumento se agastara.
Quem há, que as roncas sofra dum jumento,
Que sai da sua esfera?

Filinto Elísio
A lebre e as rãs


Muito alapada, cismando
Deixou-se a lebre ficar.
Quem vive só numa toca
Por força que há-de cismar.

Ralava-a susto e tristeza,
Por isso entre si dizia:
«Quem veio ao mundo com medo
Não tem hora de alegria.

Nada me luz nem me sabe,
Meus passos vagam incertos,
E sou tal que, até dormindo,
Durmo c’os olhos abertos!

É ter emenda! – convenho;
Mas quem é que a pode dar?
Neste ponto há-de haver homens
Que me estejam muito ao par.»

Assim ponderava a lebre,
De olho vivo e orelha fita.
Se uma sombra ondula, treme,
Qualquer murmurinho a agita.

Eis que ouvindo um rumor leve,
Ao covil corre açodada.
No caminho havia um brejo
Onde as rãs tinham morada.

Estas mergulham de chofre,
Nas lapas buscando abrigo.
«Pois também eu causo medo,
Trazendo-o sempre comigo?

Pus o campo em debandada,
Em volta paira o terror!...
Não há poltrão neste mundo
Que não ache outro maior!»

E. A. Vidal