A ingratidão e a injustiça dos homens acerca da Fortuna
Sobre as águas do mar, um negociante,
Depois de bastas viagens,
Dos ventos triunfando,
Foi venturoso e rico.
Bancos de areia, rochas, nem voragens
Lhe pediram portagem de algum fardo;
Francos lhos deu a sorte.
Cobrou de quantos camaradas teve
Átropos e Neptuno, seus direitos,
Enquanto se esmerava
Em pôr o seu mercante
Fortuna em salvo porto.
Sócios, caixeiros, todos leais lhe foram.
Vendeu, pelo que quis, tabaco, açúcar,
Canela e porcelana:
Que o luxo concorreu c’o desassiso,
A engrossar-lhe o tesouro.
Só de dobrões se lhe falava, em casa.
Ei-lo que tem matilhas, coches, urcos;
Seus dias de jejum eram noivados.
Certo amigo, que via
Tão esplêndidos banquetes,
Requer donde lhe vinha tão bom pasto.
«Donde é que me há-de vir? Da minha agência.
Tudo se deve a mim, ao meu talento,
Ao meu desvelo, e a aventurar a tempo
O meu dinheiro a juros, com bom tino.»
Como achasse em tais lucros
Sabor mui de seu gosto,
Quanto ganhado havia, arriscou tudo.
Mas nada, desta vez, lhe veio a salvo.
Quem foi a causa? A imprudência.
Foi-se ao fundo um navio
Que ele não segurara.
Falto de armas, tomado por corsários,
Outro navio foi. Surgiu no porto
O terceiro, e não teve
A fazenda consumo,
O luxo e o desassiso.
Feitores o lograram;
E ele mesmo, c’o estrondo e escaparate
De banquetes sumptuosos,
Grande gosto em prazeres,
E em edifícios grande,
Súbito se achou pobre; e o seu amigo,
Que tão caído o viu: «Donde vem isso?
– Ai de mim! da Fortuna.
– Consolai-vos; e se ela não consente
Que gozeis de ventura,
Tende juízo ao menos.»
Filinto Elísio