A vista de quem é dono

Um tímido veado
Por ímpios cães instado,
Foi num curral de bois
Buscar piedoso abrigo
E escudo ao seu perigo.

Um boi disse: «Ó vizinho,
Vai, segue o teu caminho,
Melhor asilo busca.»
Tomou-lhe o cervo assim:
«Irmão, tem dó de mim!

Lá fora anda um cachorro,
Que se me apanha eu morro!
Aqui ficar me deixa,
Que em prémio um bom pascigo
Te indicarei, amigo.»

Calou-se o boi, e entanto,
O cervo pôs-se a um canto;
Trouxeram erva os moços,
Entraram e saíram,
E o hóspede não viram.

Já livre se julgava
Do susto que encarava;
Pôs-se a comer no feno,
E junto à manjedoura
Foi rede varredoura!

Um boi lhe disse então:
«Em risco estás, irmão!
Que esse homem de cem olhos
Não veio inda hoje aqui!
E a vir, pobre de ti!»

O tímido veado
Foi pôr-se alapardado
Entre uma carga de erva;
E entrou nela a comer
Por tempo não perder.

Chegou pouco depois
O dono a ver os bois,
Dos moços precedido;
E um tanto carrancudo,
Pôs-se a ralhar por tudo:

«Levanta esse aguilhão,
A canga está no chão,
Feno ao mourisco deita;
Parece esta erva pouca,
Aqui há outra boca!»

Deitando ao lado os olhos,
Viu entre os verdes molhos
Um galho da armadura
Do timido veado,
Que estava acaçapado.

Então lhe disse: «Olá!
Você também por cá!
Comendo o pasto aos bois!
Espere!...» E c’um forcado
Deu morte ao malfadado!

Tem mais vista, ou melhor,
Os olhos de um senhor
Do que os dos seus criados;
Porque o próprio interesse
As vistas esclarece.

Curvo Semedo
O financeiro e o remendão

O remendão cantava noite e dia,
Era um gosto escutá-lo!
Feliz em sua pobreza, parecia
Um nababo nadando em opulência.

Seu vizinho não tinha igual regalo,
Nem quieto repouso.
Apesar da riqueza, a consciência
Trazia-o cuidadoso.

Era um grão financeiro o tal vizinho;
Vivia maldizendo a Providência
Por não ter feito o sono e a alegria
Uma mercadoria
Que se comprasse como o pão e o vinho.
Se às vezes dormitava,
Do remendão o canto o acordava!

Fê-lo ir à sua casa o financeiro
E perguntou-lhe:
«Ó mestre, quanto ganha
Você num ano inteiro?

– Não posso calcular conta tamanha...
Tantos santos há hoje na folhinha
Causando feriados,
Que não ouso dizer, por vida minha,
Minha renda anual... Alguns cruzados.

P’ra não morrer de fome chega apenas
O que faço por dia,
Miserando salário,
Após muito trabalho, rudes penas!...

– Pois toma esta quantia,
Returque o milionário.
Quero dar-te a fartura.
Não mais trabalharás em tua vida.»

E entregou-lhe uma bolsa bem sortida.

Foi às nuvens o pobre sapateiro!
Julgou-se logo o dono
De todo o outro da terra!
Apressado correu ao seu telheiro,

Aonde esconde e enterra
Não só o ouro... a alegria e o sono!
Adeus, ledas cantigas!
Qualquer ruído o põe em sobressalto;
Se dorme, escuta vozes inimigas,
E treme até de leve andar do gato!

O mísero maldiz do seu contrato,
E prestes o desfaz;
Vai Ter c’o financeiro,
Que tranquilo dormia,
E diz-lhe:
«Aqui tem o seu dinheiro,
Guarde-o, eu guardarei cantoria,
E o meu dormir em paz!»

Joaquim Serra
A mosca e a formiga

Uma mosca importuna contendia
Com a negra formiga, e lhe dizia:
«Eu ando levantada lá nos ares,
E tu por esse chão sempre a arrastares;
Em palácios estou de grande altura,
Tu debaixo da terra em cova escura.
A minha mesa é rica e delicada;
Tu róis os grãos de trigo e de cevada.
Eu levo boa vida, e tu, formiga,
Andas sempre em trabalho e em fadiga.»
A formiga lhe disse:
«Tu me enfadas
Com essas tuas vãs fanfarronadas.
Que te importa que eu ande cá de rastos
Com desprezo das pompas e dos fastos?
Para amparo e abrigo não há prova
De valer mais palácio do que cova.
O palácio é do rei ou da rainha,
E não teu; mas a cova é muito minha;
Eu a fiz com a minha habilidade;
Porventura tens tal capacidade?
Pára aqui. Tuas prendas afamadas
Não passam de zunir e dar picadas.
No que toca a comer, os meus bocados
Não me sabem pior que os teus guisados.
Teus lhe chamo? Os que furtas; nesta parte
Vais comigo, que eu uso da mesma arte;
Porém não vivo em ócio e em preguiça,
Como tu, lambareira, metediça;
Por isso te aborrecem e te enxotam
Com uma raiva tal, que ao chão te botam.
Fazem-me porventura esse agasalho?
Louvam-me em diligência e em trabalho:
Eu faço para Inverno provimento;
Morres nele – ou por falta de alimento,
Ou por vir sobre ti algum nordeste,
Que para a tua casta é uma peste.»

Couto Guerreiro
A raposa e o busto

Era um busto famoso, um todo teatral...
Por entre a multidão, o burro, esse animal
Que não sabe julgar senão as aparências
Gabava da escultura as raras excelências.

A raposa, porém, um tanto mais sabida,
Aproxima-se e diz: «Não vi, por minha vida,
Cabeça tão perfeita!... É mágoa verdadeira
A falta que lhe faz lá dentro a mioleira!»

Aos centos, pelo mundo, os homens conto
Que são bustos perfeitos neste ponto.

Moura Cabral
Os dois ratos, o raposo e o ovo

Dois ratos, indo buscar vida, acharam
Um ovo, que jantar daria farto
A gente dessa laia.
Que de acertar c’um boi não necessita.
De apetite e folgança mais que cheios,
Cada um já se dispunha
A ter no ovo quinhão. Mas, eis que avistam
Um fuão, que se diz Misser Raposo.
Aziaga aventura!
Salvar o ovo era o ponto, enfardelá-lo,
Ir, c’os dianteiros pés levando-o a pino,
Rodá-lo, ou já arrastá-lo,
Sobre arriscado, era África impossível.
Necessidade é astuta, é inventiva.
Mede a distância à toca,
Mede a distância ao sôfrego raposo,
Obra de mais de légua. Eis que um se abraça
C’o ovo, e se pôe de costas,
Tombos sofre, sofre ásperos caminhos,
Enquanto o outro o reboca pelo rabo.
Meditem neste conto,
E não venham clamar que é nulo o juízo
Nos animais; quando eu, se em mim coubesse,
Lho dera igual à infância.

Filinto Elísio
O tesouro e os dois homens

Um pobretão, enfim, um desgraçado,
Que a miséria mais negra padecia,
Achando a vida um fardo bem pesado,
Quis pôr um termo à existência um dia.
Compra um metro de corda, arranja um prego,
E sem mais reflexão, sem mais conselho,
Quer realizar o seu desejo cego
Numa parede dum casebre velho.
Oscila enfim o prego; e às marteladas
Esboroa-se todo o pardieiro,
E do buraco feito co’as pancadas
Saem rios e rios de dinheiro!
«Oh, céus! – exclama bem contente, enfim –
Sou rico!... Sou feliz!... Quero viver!
Ao diabo o suicídio, hoje p’ra mim
Tudo são festas, hinos e prazer!...»
Mas chega horas depois o avarento,
Que vinha contemplar o seu tesouro;
E encontra, em vez dos seus punhados de ouro,
O muro aberto onde atravessa o vento.
E enforca-se por fim o desgraçado
À corda que do muro vê pender!...

É pois bem certo o popular ditado:
Guardado está o bocado P’ra quem o há-de comer.

Xavier de Carvalho
O carreteiro atolado

Por caminho apaulado,
Mui barrento e mal gradado,
O seu carro conduzia,
Que trazia
De erva e feno carregado,
Inexperto carreteiro:
Por incúria o desgraçado
Num grandíssimo atoleiro
Enterrar deixou seu gado.
Era longe o povoado,
E não vinha caminheiro
Que o ajudasse e lhe acudisse.
De aflição desesperado,
Se maldisse!
E exclamou todo inflamado:
«Vem, ó Hércules sagrado,
Acudir-me pressuroso;
Pois que já sobre o costado
Sustentaste o céu formoso.
O teu braço vigoroso Se me acode,
Este carro tirar pode
Do atoleiro.»
Deste modo se carpia
O carreiro,
Quando ouviu uma voz forte,
Que não longe lhe dizia
Desta sorte:
«Se quiseres que te valha,
Mandrião, lida, trabalha,
Examina donde vem
Esse estorvo que te encalha,
Ou detém:
Salta acima desse carro,
E tirando-lhe um fueiro,
De redor lhe arreda o barro;
Bota pedras no atoleiro,
Calça as rodas, e depois
Põe-te à frente, e pica os bois.»

Tudo fez o carreteiro
Que lhe tinham ensinado;
E ficou muito pasmado,
Quando viu surdir avante
O seu carro do lameiro.
«É milagre! exclamou logo,

Ouviu Hércules prestante
O meu rogo,
E evitou-me o precipício!»

Acabando
De falar apenas ia,
Outra voz, em tom mais brando,
Lhe dizia:
«Confiar na Providência
Para obter o que intentamos
Sem que os meios lhe ponhamos,
É demência.
Nada obtém quem não procura;
Que foi sempre a diligência
Mãe da sólida ventura.»

Curvo Semedo
O rei, o milhafre e o caçador

Vivo, no ninho, um caçador pegou,
Uma vez, um milhafre, e o destinou
Ao príncipe por mimo. Era precioso,
Porque raro, o presente.
Timidamente dado ao poderoso,
O pássaro, se o conto não nos mente,
Imprime logo a garra – oh, impiedade! –
Bem no nariz de Sua Majestade.
«Como! no real nariz? – Do próprio rei.
– Não trazia a coroa então, já sei...
– E que a trouxesse! O pássaro não quis
Investigar de quem fosse o nariz.
Renuncio pintar, por não ter cores,
Dos cortesãos a lástima, os clamores.
Quieto o rei ficou, porque já vêem
Que à majestade os gritos não vão bem.
Quedo também no olímpico poleiro
O pássaro ficou, muito lampeiro.
O dono o chama e grita e se afadiga,
Mostra-lhe o engodo, o punho... qual cantiga!
Parecia que ao bicho apetecia,
Embora o ruído, ali passar o dia
E pernoitar ainda empoleirado
No nariz inviolável e sagrado.
Tentar tirá-lo era o irritar. Enfim
Resolveu-se a largar o rei, e assim
Este falou: «Deixai que vão em paz
O milhafre e o rapaz.
Bem se saíram, fosse como fosse,
Um, milhafre; outro, rústico mostrou-se.
E eu, que sei como um rei deve de obrar,
Do suplício hei por bem de os aliviar.»
Pasmou a corte. Os cortesãos não cessam
De exaltar feitos tais, não que os conheçam:
Muito poucos, e fossem reis até,
Fariam como este. O certo é
Que de boa livrou-se o caçador;
E o seu erro maior,
O dele e o do animal, foi não saber
Que é mau do amo aproximar-se tanto.
Se os tristes, entretanto,
Só c’os do mato ousavam de se haver!...

Diz Pilpay que se deu na Índia o caso.
Naquela terra, um respeito absoluto
Vota o homem ao bruto.
O próprio rei temeu tocar-lhe, acaso,
Pensavam entre si:
– E quem nos diz que esta ave de rapina
Não combateu em Tróia, e que alta sina
De príncipe ou de herói não teve ali?
E a ser o que já foi, pode tornar.
Pitág’ras ensinava
Que c’os brutos a forma permutamos:
Humanos ora estamos,
Logo voláteis recortando o ar.
Como o conto varia,
A segunda versão ora ofereço.

Contam que certo caçador, um dia,
Um milhafre apanhou (raro sucesso)
E ao rei o foi levar
Como presente muito singular:
Uma vez em cem anos acontece;
É o cúmulo da caça.
Rompe de cortesãos cerrada massa
O caçador, aceso de interesse.
Já pensa que enriquece
Com tal presente, verdadeira mina:
Mas a ave de rapina,
Nunca educada para estar no paço,
As rijas unhas de aço
Ferra ao nariz do mísero sujeito.
Ei-lo a gritar, e eis em riso desfeito
Príncipe e cortesãos. Quem não riria?
Eu não me conteria.
Que um papa ria, isso, em boa-fé,
Não me atrevo a jurar; mas olhem que é
Bem desgraçado um rei que nunca ria.
É o prazer dos deuses. Apesar
Dos cuidados, ri Jove e os imortais.
A crer – deve-se crer –
Nas velhas tradições de nossos pais,
Riu, riu a arrebentar,
Quando uma vez lhe trouxe de beber
Vulcano, o coxo. O que houve lá não sei,
Mas com razão a fábula variei;
Pois, já que aqui se trata de moral,
A aventura não era original:
Um caçador simplório é mais frequente
Do que um rei indulgente.

Lúcio de Mendonça
Os dois amigos e o urso

Um urso acometeu dois passageiros:
Um deles, que os pés tinha mais ligeiros,
Pôs-se em cima duma árvore escondido.
Vendo o outro que tinha mau partido,
Estendendo-se em terra nem bulia
Nem respirava: morto se fazia.
Cheirando-o por orelhas e por cara,
O deixa intacto a fera, e se separa.
Dizem que, se encontrou uma pessoa
Que julga estar já morta, lhe perdoa.

O da árvore já livre do perigo,
Vindo com ar de riso ao seu amigo,
Lhe disse:
«Que segredo era o que o horrendo
Urso te estava agora aqui dizendo?

– Disse-me, respondeu ele, que em jornadas
Não leve semelhantes camaradas.»

Couto Guerreiro
O lobo e os pastores

Um lobo, de humanidade
Repleto (se os há no mundo)
Sobre a sua crueldade
(Posto a exercesse por necessidade)
Assim, um dia, reflectiu, profundo:

«Sou odiado... De quem? De toda a gente.
Ao lobo hostis são todos, geralmente:
Para o perder, ligados,
Jove, lá em cima, azoinam, com seus brados,
Cães, caçadores, aldeões, em grémio:
Erma de lobos a Inglaterra está
Por essa causa... E lá
Nossa cabeça já foi posta em prémio!

Fidalgote não vive que não faça
Contra nós tais pregões correr em bando;
Se acaso algum fedelho está berrando,
É com lobos que a mãe logo o ameaça.
Tudo porquê? Por ter matado a fome
Com algum asno-ronha,
Cão bulhento, ou cordeiro que, medonha,
A podridão consome.

Pois bem! Vivente nada mais comamos,
Pastemos, ruminando, ou que afinal,
Famélicos morramos...
Será assim horrível
Tal morte ou preferível
A atrair-se o ódio universal?!...»
(Nisto avistou, pasmado,
Pastores no caminho
Comendo um cordeirinho
No espeto ao lume assado...)

«Oh – exclamou – pois contra mim me agasto,
Com remorsos do sangue desta gente,
E os seus guardas e cães, tranquilamente,
Dela mesma, eis ali, fazem repasto...
E eu, lobo, ainda a me escrupulizar...
Não! Seria ridículo, por Deus! Pelos gasnetes meus,
Ó Fulano Cordeiro, hás-de passar,
Sem que, no espeto, vá cozer-te às chamas,
Ou eu lobo não sou!...
Não só tu, mas também a mãe que mamas,

E o pai que te engendrou!...»
Tinha razão o lobo... Pois dar-se-á
Que enquanto somos vistos qualquer presa
Transformando em manjar, e em lauta mesa
A nós não se nos dá
Comer os animais,
Sem que panela ou garfo lhes deixemos.
A todo o transe os reduzir queremos
Da idade de ouro às refeições frugais...

Ah! pastores, pastores... E só quando
O mais forte não é, e no comando,
Não interpreta as leis,
Que ao lobo deixa de assistir razão:
– Acaso pretendeis
Que lobo leve vida de ermitão?!

Afonso Celso Júnior
O Baxá e o mercador

Um mercador fazia em certo sitio
Seu comércio e pagava
Como a baxás é dado, o auxilio e esteio
É um Que do Baxá lhe vinha.
É um protector caríssima fazenda!
Do mui caro que ele era
Se lastimava a toda a gente o grego.
Of’recer-lhe vieram
Seu amparo comum três outros turcos
De poder mais moído;
Mas mais somenos gratidão pediam,
Que lhe o Baxá custava.
Ouve-os o grego, e c’o eles se contrata.
Soube-o o Baxá de plano.
Té lhe disseram que alto logro lhe arme,
Prevenindo-os e enviando-os,
Rumo do Paraíso, c’um recado,
Sem tardar, a Mafoma.
«Olha, que unidos hão-de prevenir-se,
Se os não prevines. Certo,
Que te rodeiam gentes sempre alerta
Em vingar-se. Um veneno
(Dizem) te mandará lá no outro mundo
Proteger mercadores.»
Como Alexandre se houve c’o este aviso
O turco. Em direitura
Cheio de confiança sai, e busca
O mercador em casa.
E, posto à mesa, o viram tão seguro
No gesto e no discurso,
Que julgaram que nada suspeitava.
«Eu sei, amigo, disse,
Que me deixas: e uns certos conseguintes
Querem mesmo que eu tema.
Creio-te homem de bem; nem me tens cara
De quem dá beberagens.
Mais não digo. Essas gentes, que prometem
Dar-te apoio... Hás-de ouvir-me,
Sem arengas ou falas que te enojem,
Contar-te eu este apólogo:
Tinha um pastor um cão, tinha um rebanho.
Houve quem perguntasse:
De que lhe serve um cão que um pão inteiro
Engole cada dia?
Devera esse animal, mui lindamente,
Dá-lo ao senhor da aldeia;
E o pastor, por poupar, ter três cachorros,
Que despendendo menos,
Melhor que um só mastim, guardem o gado.
Mais do que os três comia:
Mas na triple dentuça não falavam,
Com que renhia os lobos.
Desfez-se o pastor dele, três cães toma
De pitança mais curta,
Mas que a brigas se escoam. Sente-o o gado.
E tu tens de senti-lo,
Que tal canalha escolhes. Se bem fazes
Tens de inda a mim volveres.»
O grego assim o creu. Por fim de contas,
Províncias, mais vos vale
De boa-fé confiar-vos e amparar-vos
Monarca poderoso,
Que tomar por esteio muitos príncipes
De estados diminutos.

Filinto Elísio
O urso e o amador de jardins

Em um bosque solitário
De funda mudez sombria,
Por lei do destino vário
Oculto um urso vivia.

Podia perder, coitado,
O juízo; vem dele a mingua
Ao que se vê isolado
Sem ter com que dar à língua.

É muito bom o falar,
O calar-se inda é melhor.
Dos sistemas no abusar
É que se encontra o pior.

Como no bosque recurso
P’ra conversar não achava,
Aborreceu-se o nosso urso
Da vida que ali levava.

E enquanto em melancolias
Ia consumindo o alento,
Não longe passava os dias
Um velho em igual tormento.

O velho amava os jardins
Que a capricho Flora esmalta:
Belo emprego, mas dos ruins
Quando um bom amigo falta.

E cansado de viver
Com gente que muda nasce,
Meteu-se a caminho, a ver
Se achava com quem falasse.

Ora, quando o velho ia
Saindo para a jornada,
Do bosque o urso saia
Levando a mesma fisgada.

Encontraram-se – era cedo –
E o velho, como é de crer,
Teve do urso grande medo
Como teria qualquer.

Mas por fim, julgando-o manso,
Com ele simpatizou:
«Queres jantar com descanso
No meu lar?» Ele aceitou.

Comeram; de alma no centro
Nenhum receou perigos;
E ficam portas adentro
Vivendo os dois como amigos.

O velho as flores regava,
Com que muito se entretinha;
O urso saía, caçava
E abastecia a cozinha.

E tanto afecto exibia,
Embora em maneiras toscas,
Que quando o velho dormia,
Até lhe enxotava as moscas.

Mas um moscardo maldito
Apareceu, tão ruim,
Que o urso se viu aflito
P’ra conseguir o seu fim;

E, de raiva furioso,
Agarra num matacão,
E esborrachou o teimoso...
Sobre a tola do patrão!...

A mil iguais fulanejos
Lance a Parca a dura foice:
Querem encher-nos de beijos,
E o que dão, por fim, é coice!

José má cio de Araújo
O leão e o pastor

Sendo furtado um cordeiro
Por fero, voraz leão,
O bazófio pegureiro,
Cheio de raiva e paixão,
Clama: «Ó Jove justiceiro,
Se me entregas o ladrão,
Dou-te o mais gordo cordeiro
Que tenho no meu rebanho!
Ah! que se entre as mãos te apanho,
Traidor que o meu ódio excitas,
À força de bordoada,
Faço-te o corpo em salada!»
Palavras não eram ditas,
Quando vê dum arvoredo
Sair o bravo leão!...
Eis convulso o fanfarrão,
Ficando a tremer de medo,
Olha dum e doutro lado
Para poder descobrir
Algum tronco onde subir;
Mas teme ser apanhado.
Em tão fera colisão,
Exclama: «Ó Jove sagrado,
Eu te ofertei um carneiro
Se o ladrão me descobrisses;
Agora o rebanho inteiro
Te dava se me acudisses!»
O generoso leão
Observando um tal receio,
Teve dele compaixão
E voltou por onde veio.
Lances de aperto e de horror
A pedra-de-toque são
Onde a fraqueza ou valor
Sinais de si logo dão.
Defronte do contendor,
Redobra o forte a coragem;
E o fraco blasonador
Muda, ao vê-lo, de linguagem.

Curvo Semedo
A viuvinha

Não é sem soluçar que se perde um marido:
Mas tudo tem um fim, mesmo um grande alarido,
E a que mais chorincou e mostrou mais pesar
Acaba por calar-se e por se consolar.
Apaga o tempo a dor e reaviva a alegria.
Que querem? Não fui eu que fiz o bicho humano.
Entre a viúva dum ano
E a viúva dum só dia,
A diferença é tal, que se diria
Não ser decerto a mesma e haver por força engano.
Enquanto uma sorri e nos encanta e atrai,
A outra, derramando um pranto amargo em chuva,
Solta de quando em quando a mesma nota: um ai!
O que faz exclamar a quem passando vai:
«Eis uma inconsolável viúva!»
Sim? Pois não foste! Ora escutai:

Para o negro pais donde ninguém voltou,
Duma esposa gentil o esposo ia partir.
Clamava ao lado a esposa: «Espera! eu também vou!
Oh! leva-me contigo: eu quero-te seguir!»
O marido partiu, mas sozinho. Pudera!
Seguiu-se a usada dor sincera ou não sincera.
A bela tinha um pai, homem fino e prudente
Que foi deixando escoar toda aquela torrente,
E que um dia observou: «Ó menina, eu suponho
Que isto afinal é já choro demasiado.
O pranto estraga a pele e fica-se medonho.
Eu sempre te pergunto,
De que serve ao finado
Essa dor excessiva?
Inda por cá no mundo há muita gente viva.
Deixemos em sossego o pobre do defunto.
Eu não pretendo já que troques os teus goivos
Pelas galas joviais e floridas dos noivos.
Mas, enfim, se eu vier, dum certo prazo ao fim,
Propor-te, minha cara, em guisa de conforto,
Que aceites como esposo e concedas o sim
A um gentil rapaz, apessoado, enfim Muito melhor que o morto...
– Não quero, atalhou ela, alívio ao meu tormento!
Só por esposo aceito o claustro dum convento!»
Que havia a responder? Nada. Foi o que fez
O nosso velho astuto.
Assim se foi passando um mês. No outro mês,
Já se pensou um pouco em guarnecer o luto.

Cada dia se nota uma nova mudança
Na forma do vestido ou na do penteado.
Já se ri, já se brinca e se joga e se dança.
Deitou-se para trás das costas o passado.
O pai já não receando o tal que se finou,
Não pensa mais no resto ou se faz esquecido,
Quando a filha lhe diz: «O papá, e o marido?
– Hem! Qual marido? – O tal, em que o papá falou!»

Jaime de Séguier
A raposa, o lobo e o cavalo

O lobo e a raposa se ajustaram
Em caçarem de meias; e assentaram
Em que haviam partir com igualdade,
Levando cada qual sua metade.
Indo com este intento, descobriram
Um formoso cavalo, e pretendiam
Acometê-lo a peito descoberto;
Mas indo-se chegando para perto,
A raposa, temendo algum perigo,
Disse que era possante o inimigo;
Assim, que lhe não dessem logo caça,
Que seria melhor vencer por traça.
Para o génio tentar da boa presa,
A raposa, que tem mais esperteza,
Chegando-se com muita cortesia,
Lhe disse: «Rogo a Vossa Senhoria
Se digne de dizer a esta criada
Seu nome, e ser, e qual família honrada
Produziu tão magnífica pessoa,
Que dá grandes indícios de ser boa;
Na postura, no modo respeitoso
Se conhece um sujeito generoso.»
O cavalo, que tinha seu talento,
Logo lhe cheirou mal o cumprimento,
E cuidou na cautela, respondendo:
«De mim mesmo me estou aborrecendo,
Por ver em ti tal graça e tal policia,
E não te poder dar ampla notícia.
Só te digo que em anos inocentes
Perdi o pai, e a mãe, e mais parentes;
Por isso ignoro a raça donde venho,
E nem te sei dizer que nome tenho.
Contudo, esse bom modo que em ti vejo
Me obriga a saciar o teu desejo
Do modo que é possível: Tenho escrito,
Neste pé, quando já tivera dito
Se o soubesse dizer; podes chegar-te
E ler, que este é o meio de informar-te;
Porque nesta escritura acharás juntas
As respostas de todas as perguntas.
– Eu, lhe disse a raposa tão manhosa,
Em pequena fui muito preguiçosa:
Mandou-me a mãe à mestra, e deu bom preço,
Mas contudo nem letras já conheço.
Assim, cá mandarei meu companheiro
A ver se pode ler esse letreiro.»
Despediu-se, e contou ao lobo tudo,
Afirmando-lhe, em ar muito sisudo,
Que lhe havia de guardar fidelidade
Em toda e em qualquer calamidade,
E não o abandonar, inda metida
Em risco de perder a mesma vida.
O lobo imaginando que campava
Por esperto, atrevido se chegava,
E dizia com um tom muito arrogante:
«Dize-me já quem és no mesmo instante,
Quem foi teu pai, e mãe, e de que gente
(Que seria gentalha) és descendente.
– Podes, foi a resposta do cavalo,
Com bem facilidade examiná-lo,
Em lendo neste pé, onde essa história
Meu pai fez escrever para memória.»
– Vejamos, disse o lobo, e foi chegando.
O cavalo, que estava sempre olhando
Quando o acharia a jeito, apenas acha,
Dois coices à cabeça lhe despacha.
Sem sentidos caiu logo o letrado;
E entretanto ele pôs-se a bom recado.
Apenas a raposa o viu de largo,
Veio ao lobo, que estava inda em letargo;
Começou a abaná-lo, e quando abria
Já metade dos olhos, lhe dizia:
«Eis aí o proveito que tiraste
Do muito que tens lido, e que estudaste:
Na verdade que estou bem consolada
De nunca me meter a ser letrada:
É provável que tendo eu aprendido,
O mesmo me tivera sucedido;
E desta ocasião juro e protesto
Que me fica este exemplo por aresto.
Se tivera cem filhos, e tivera
De cada qual cem netos, eu lhes dera
De conselho, que a ler não aprendessem
Com temor de que nisso se perdessem.
Esta gente que é muito presunçosa
De sábia, de discreta e estudiosa,
Em falar lá tem seu desembaraço,
Mas daí por diante não dá passo.»
Assim falava, e vendo já mover-se
O lobo trabalhando por erguer-se,
Como pôde o ajudou a levantar-se.
Mal podia nas pernas sustentar-se;
E quando entrou em fala, pesaroso
Dizia: «Infeliz sou e desditoso:
Por sábio estive quase agonizante,
E tu ficaste bem por ignorante.»
Daqui toma a resposta outro motivo
De mostrar que o saber é ofensivo:
Marcharam, ela muito satisfeita
Por haver escapado da desfeita;
E o lobo, inda atontado, mal podia
Atinar com a moita onde assistia.

Couto Guerreiro
Os ratos e a coruja

Sobre um pinheiro anoso, o patriarca
Da floresta, elegera uma coruja
Ave sinistra, intérprete da Parca,
Seu domínio constante.

Caiu por terra um dia esse gigante...
Do carcomido tronco a prole suja
De mil ratos surdiram mutilados,
Mas gordos e anafados,
Porque o bico feroz do rapinante
Quebrando-lhes os pés em fúria brava,
Também os regalava
De belos grãos de trigo lourejante...

Poder do raciocínio! A ave de Marte
Preando outrora os lépidos murganhos,
Fazia-os prisioneiros;
Safaram-se os primeiros
E outros muito depois; e desta sorte
Lesada nos seus ganhos,
Não podendo de vez comê-los todos
Por causa da Higiene e seus apodos,
Entendeu a coruja, oh! raciocínio!
Que, mutilando os do porvir na toca,
Poupava à consciência o morticínio,
Assegurando ao ventre a paparoca.
Tinha almoço e jantar, a ceia pronta,
Contanto que os maraus alimentasse
No seu escuro in pace
Com fartos grãos de fécula sem conta.

Vamos, responde, cortesiano altivo!
Se o bruto é simples máquina, esse mocho
Que mola o propulsou a fazer coxo
E inábil para a fuga o bando esquivo?

Eis o seu argumento,
Claro primor de lógica cerrada,
Ou não sei o que seja entendimento:

«Quando se prende um rato, o rato foge;
Portanto, devorada
Deve ser prontamente a presa de hoje.
Mas se eu tiver o estômago repleto?...

Não devo ser discreto,
Fugir da incontinência
E, como ordena e manda a previdência,
Guardá-lo para a fome doutro dia?...
Cumpre mantê-lo vivo, é ponto assente;
Fazer com que não fuja e se alimente
Do bico meu, que de contrário morre...
Ergo... parto-lhe os pés e já não corre...
Não fugindo... é farnel que vou poupando...
E como à inanição sucumbiria,
Dar-lhe-emos de comer de quando em quando.»

Mas quem assim discorre
Lindou, confessa, a humana jerarquia,
Pois nem de Cnido o Velho argumentando
Mais lógico seria.

Freitas e Costa
Júpiter e o passageiro

Que ricos que seriam
Os deuses, se dos votos
Que nos arranca o p’rigo,
Tivéramos lembrança!
.......................................
No estrondo da tormenta, um passageiro,
Ao que os Titãs venceu, cem bois botara!
(E um só não possuía!)
Quando votado houvera
Um cento de elefantes
Não fora mor o custo.
Põe pé na praia, e queima achados ossos,
Cujo fumo ao nariz subiu de Júpiter.
«Senhor Jove, ei-lo vai, meu voto aceita.
Tua superminência
Cheirou bovino fumo.
Teu lote é o fumo; e estou contigo quite.»
Fez Jove que sorria;
Mas deixou correr tempos
E pregou-lhe um bom logro.
Um sonho lhe mandou, que o prevenisse
Donde um tesouro estava.
Ei-lo que acode logo,
Como ao fogo se acode.
No sitio achou ladrões. Como não tinha
Mais que um pinto na bolsa, sem mais soca,
Prometeu largo cem talentos de ouro
Luzentes, chocalhantes,
Do sonhado tesouro,
Tesouro em certa aldeia sepultado,
Saindo à luz do dia.
Parecendo aos ladrões suspeito o sítio,
Disse ao prometedor assim um deles:
«Zombas de nós, amigo? Morre, e vai-te
Fazer mimo a Plutão dos cem talentos.»

Filinto Elísio
A Gota e a Aranha

Ao dar o Inferno à luz a Gota e a Aranha,
«Ufanem-se, lhes disse, filhas minhas,
Em maldade, bem má, ninguém lhes ganha.
Nem feitas de encomenda há tais praguinhas!
Cuidemos de dispor-lhes aposentos.
Dou-lhes à escolha alcáçares dourados,
Choças gretadas ao raivar dos ventos,
Aos lutos, à miséria. Minhas filhas,
Façam, de mútuo acordo, estas partilhas,
Ou louvem-se nos dados.

– Choupana, acode a Aranha, não me agrada.»
A Gota, vendo os paços apinhados
Da raça dos Galenos,
Teve medo a grandezas de pousada.
Cativa-se do menos:
Arma a tenda em casebre esburacado.
Repetena-se à larga, a fome ceva
No artelho dum coitado.
«Aqui não falta que fazer, exclama.
Nem conheço Esculápio que se atreva
A trocar-me o fofinho desta cama
Pelo do andar da rua.»

No entanto a Aranha vai urdindo a sua,
Sumida no seu ninho,
Um friso de ouro e azul, tão rija, e fera,
E senhora de si, como se houvera
Aforado a seus donos o cantinho.
Estende a teia e espera.
Quase de gáudio estoura:
Chovem-lhe as moscas do artesão vizinho,
Eis senão quando arranca-lhe a vassoura,
Em punhos de criada,
Teia, esperanças, alegria, tudo!
A cada nova teia, vassourada.
Em vão se muda o nosso animalejo;
Quer recanto mais fundo, e cego, e mudo.
Vem a vassoura, e intima-lhe despejo!
Vai de visita à Gota, que na aldeia
Vive mil vezes mais afortunada
Que a própria Aranha do varrer da teia.
Seu hóspede, um grosseiro,
Sai com ela a sachar de madrugada,
Faz de azemel, simula de moleiro,

Lida a fartar, pois gota bem lidada,
Dizem que é meia cura.

«Não posso mais – suspira. A desventura
Prostra-me, irmã e amiga. Se consente,
Troquemos de pousada. Fica assente?»
E a Gota logo: «Aceito.»

Pega-lhe a Aranha na palavra, e a jeito
Se hospeda na choupana,
Onde ri de vassouras e criadas.
E, de sorrate, a mana
Embebe-se nas juntas dum prelado,
Que sepulta em perpétuas almofadas.
Cataplasmas receita a medicina,
Oleoso xarope, amarga quina,
Enxúndias e tisanas:
E vê sem grande pejo, nem cuidado,
Oh, cura inteligente!
Que engorda o mal à custa do doente.

Só lucraram na troca as duas manas.

José de Sousa Monteiro
O leão e o rato

Saiu da toca aturdido
Daninho pequeno rato,
E foi cair insensato
Entre as garras dum leão.
Eis o monarca das feras
Lhe concede liberdade,
Ou por ter dele piedade,
Ou por não ter fome então.
Mas essa beneficência
Foi bem paga, e quem diria
Que o rei das feras teria
Dum vil rato precisão!
Pois que uma vez indo entrando
Por uma selva frondosa,
Caiu em rede enganosa
Sem conhecer a traição.
Rugidos, esforços, tudo
Balda sem poder fugir-lhe;
Mas vem o rato acudir-lhe
E entra a roer-lhe a prisão.
Rompe com seus finos dentes
Primeira e segunda malha;
E tanto depois trabalha,
Que as mais também rotas são.
O seu benfeitor liberta,
Uma dívida pagando,
E assim à gente ensinando
De ser grato a obrigação.
Também mostra aos insofridos
Que o trabalho com paciência
Faz mais que a força, a imprudência
Dos que em fúria sempre estão.

Curvo Semedo
O burro e o cão

A lei do mútuo auxílio é lei antiga e bela,
Imposta por Natura.
O burro, com ser burro, andava ao facto dela,
E se em funesto dia a desprezou de vez,
Não sei como tal fez. Esta justiça devo à boa criatura.
No convívio do cão, seguia de jornada,
Com toda a pacatez e sem pensar em nada.
Tinham o mesmo dono,
O qual, afadigado,
Fez a vontade ao sono.
Veio a talho de fouce o caso apropriado:
Por isto sucedeu, mesmo a meio dum prado
Onde a erva crescia à mão de semear.
O burro, que não era atreito a hesitações,
Pôs-se logo a pastar.
De cardos viu a falta, olhando-a indiferente,
Pois muito bem sabia
Que era ser exigente.
Ele, a gema, o primor dos burros mansarrões,
Negar-se a dispensar, ao menos por um dia,
O frequente manjar, que ainda o fartaria
Em mais ocasiões.
Criado em tais doutrinas,
Sabia as paixões más vencer de quando em quando,
E assim, dizendo adeus às tentações mofinas,
Continuou pastando.
O cão, esse, coitado! à força de jejum
Viu-se obrigado a ter menor filosofia;
Chegou-se ao companheiro, e sem rodeio algum,
Disse-lhe francamente: «Amigo, eu tiraria
Decerto o meu jantar
Podendo-lhe chegar.
Tenho deveras fome, e a fome é um tormento;
Dá-me um minuto só, faze-me este favor,
Abaixa-te um momento.»
O burro nem palavra. Aquilo era, talvez,
Ataque de surdez;
Ou estaria pensando inconscientemente:
– Ser caridoso é bom, mas é muito melhor
Calar e ir dando ao dente. –
Volvido largo tempo, achou-se mais disposto
O burro a responder. Vê-se que a digestão
Lhe despertava o gosto
De dar à taramela. Assim falou ao cão:
«Amigo, ouve um conselho;
Deves saber esp’rar e deves ter paciência.
Lições da experiência
Que eu sei, já por ser velho.
Mais um momento, e breve,
O nosso dono esperta. O seu dormir é leve,
E tão depressa acorde, é ponto certo que há-de
Cuidar logo de ti, tratando-te de sorte,
Que fiques como um frade.»
Nisto, um lobo feroz, prenunciando morte,
Aparece, esfaimado.
O burro, transtornado,
Aflito, chama o cão e pede que lhe acuda.
Outra vez se repete a mesma cena muda,
Até que o cão responde: «Ouve um conselho, amigo:
Deita a fugir depressa, enquanto o nosso dono
Acaba de dormir. Ele tem leve o sono,
E, logo que acordar, acode sem demora
A livrar-te do p’rigo.
Quem sabe até se agora
Já sonhará contigo?
Bem sabes que o viver tem cenas variadas,
No mundo anda-se exposto a muitas más venturas;
Se o lobo te apanhar, levanta as ferraduras
E quebra-lhe as queixadas.»
Ao burro este aranzel de pouco aproveitou,
Pois, durante o sermão,
O lobo o devorou,
Sem dó nem remissão.
É bom, convém saber,
Uns aos outros valer.

Fernandes Costa