O poder das fábulas

No povo leve e vão da antiga Atenas,
Certo orador que a pátria em p’rigo via,
Corre à tribuna, e arroja-se violento
A impelir os ânimos repúblicos.
No comum salvamento falou rijo.
Não se vendo escutado, o orador vibra
Os atrevidos tropos que revolvem
Ronceiras almas. Faz falar finados:
Troou, disse o que pôde. Tudo o vento
Levou. Ninguém fugiu. O animal frívolo
Usado a rasgos tais nem o escutava,
Para os lados olhava. Vendo-o fito
Nas brigas infantis, nada em seus tropos,
Que faz o orador? Mudou de rumo:
«Ceres, co’a eiró e co’a andorinha, um dia,
Indo em jornada as atalhou um rio:
A andorinha voando, a eiró nadando,
Passam presto de além...» – Eis já que o povo,
Voz em grita, pergunta: «E que fez Ceres?»
– Que fez?... Súbito n’alma iras lavraram-lhe
Contra vós. – Que o seu povo se embasbaque
Em contos pueris! Dos gregos todos
Seja ele só, que, do ameaçado p’rigo
Se descuide! – Clamai: «Que faz Filipe!»
Espertou-se c’o apólogo a assembleia.
E ao que o orador bem quis, se entregou toda.
Logrou essa honra um rasgo só da Fábula.
Vós sois de Atenas, todos; e inda eu mesmo,
No instante que em moral assim discorro,
Contem-me pele de asno, extremo gosto
Ouvindo-o tomarei. O mundo é velho,
Dizem, e eu creio que inda diverti-lo
Compete, como as crianças se divertem.

Filinto Elísio
A leiteira e a bilha de leite

Com sua bilha à cabeça,
Maria, de pouca idade,
Vinha, marchando com pressa,
Vender o leite à cidade.

E a leiteira diligente,
Enquanto assim caminhava,
Estes cálculos na mente,
Consoladores, formulava:

«Com o dinheiro da venda
Encho de ovos três cestinhas;
Deito os ovos, e a fazenda
Aumento a vender galinhas.

Depois, na feira anual,
Comprarei porquinho belo;
Mais tarde, no meu curral,
Terei vaquinha e vitelo.»

Antegozando um deleite
Nestas ideias, tropeça;
Cai-lhe a bilha da cabeça,
E entorna-se todo o leite.

É fácil de decorar
A lição singela e breve
Que ensina que ninguém deve
Fazer castelos no ar!

J. I.
O cavalo e o cervo

Um cavalo e um cervo tinham guerra
Sobre o pastar ou não em certa terra:
O cervo conquistou umas pastagens
Donde o outro tirava antes forragens,
Que vencido da cólera em que ardia,
Rinchando, com a mão no chão batia.

Foi-se ter com um homem, fazem liga
Por uma convenção: o homem se obriga
A recobrar-lhe o campo conquistado;
Porém que havia de ir nele montado
Com sela, com esporas e com freio.
Foram: fugia cheia de receio
A guarnição que o cervo ali pusera,
E o homem das pastagens se apodera.

Concebeu o cavalo grande glória,
Quando viu que por si era a vitória.
Que importa, se também ficou vencido?
Porque a sela, que tinha consentido,
Com o freio consente ainda agora,
E picá-lo aliado com a espora.

Couto Guerreiro
O lobo e a raposa

Raposa esfomeada
(Pois que para roer nem tinha um osso!)
Viu no fundo dum poço
A Lua retratada.
A orbicular figura um queijo crê,
E pula de contente!
Água dois baldes alternadamente
Desse poço tiravam. No que vê
Suspenso pelo peso do segundo,
Do poço desce ao fundo;
Mas – coitada!
Viu que fora lograda e bem lograda!
«Em maus lençóis, dizia, eu vou achar-me!...
A menos de que alguém, como eu, com fome,
Por queijo a Lua tome
E, fazendo o que eu fiz, venha salvar-me.»
Nisto, com sede, um lobo se aproxima,
E quer beber no poço. Ao vê-lo em cima,
Diz-lhe a raposa muito amavelmente:
«Desça, desça, compadre!... Vou presente
Fazer-lhe deste queijo, convencida
De que outro assim não vê neste arrabalde!»
O lobo desce pronto, e na descida
Faz subir a raposa no outro balde.
Que motivo de riso isto não seja;
Dá-se o mesmo connosco exactamente:
Qualquer de nós crê sempre facilmente
Tudo o que teme e tudo o que deseja.

Luís de Macedo
A pomba e a formiga

Enquanto a sede uma pomba
Em clara fonte mitiga.
Vê por um triste desastre
Cair n’água um formiga.

Naquele vasto oceano
A pobre luta e braceja,
E vir à margem da fonte
Inutilmente deseja.

A pomba, por ter dó dela,
N’água .uma ervinha lhe lança;
Neste vasto promontório
A triste salvar-se alcança.

Na terra a põe uma aragem;
E, livre do precipício,
Acha logo ocasião
De pagar o benefício;

Que vê atrás dum valado,
Já fazendo à pomba festa,
Um descalço caçador
Que dura farpa lhe assesta.

Supondo-a já na panela,
Diz: «Hei-de te hoje cear!»
Mas nisto a formiga astuta
Lhe morde num calcanhar.

Sucumbe à dor, torce o corpo,
Erra o tiro, a pomba foge;
Diz-lhe a formiga: «Coitado!
Foi-se embora a ceia de hoje!»

De boca aberta ficando,
Conhece o pobre glutão
Que só devemos contar
Com o que temos na mão.

E posto enfim que haja ingratos,
Notar devemos também
Que as mais das vezes no mundo
Não se perde o fazer bem.

Curvo Semedo
Tributo dos animais a Alexandre Magno

Por terras mil tinha espalhado a Fama
Que Alexandre, progénito de Jove,
Mandara que a seus pés do mundo o povo
Corresse a avassalar-se: homens e brutos.
Juntam-se os animais, e deliberam
Enviar-lhe tributo. Encarregado
Do modo de o fazer o mono fica;
Por escrito lhe dão quanto lhe cumpre
Dizer como enviado. – Preocupa-os
Apenas o tributo. O que ofertar-lhe?
Dinheiro só; e havê-lo era difícil.
Um príncipe que tinha minas de ouro
Do apuro os salva. – Partem c’o tributo
O cavalo, o camelo, o macho e o burro,
Do mono embaixador em companhia.
Mas eis que no caminho dão de cara
Com Monsenhor Leão, que assim lhes fala:
«Ditoso encontro, amigos! De jornada
Iremos; também eu presente levo.
Mas pesos não me agradam. Por fineza,
Levai-mo repartido entre vós outros.
Demais, melhor assim defendo a todos
Se por ladrões formos atacados.»
A leões replicar não é costume.
Aliviam-no, e – mais! – tratado à grande
É na jornada: paga a bolsa pública!
Chegado a certo ponto, aos companheiros
Por doente se dá; diz-lhes que sigam,
E o seu ouro reclama. Desenfardam,
E grita o nosso herói: «Das minhas moedas,
Que de filhas, olhai, não têm nascido!»
Isto dizendo, arrecadou-as todas.
De Jove ao filho, em vão, queixar-se foram:
Leão contra leão não tem vantagem.

Luís Serrão
O pastor e el-rei

.......................... Um rebanho
Viu el-rei, que cobria
Toda aquela campina, pastejando
Bem medrado e rendendo
– Desvelos do pastor – grossas quantias.
Diligentes desvelos,
Tanto ao gosto de el-rei, que assim lhe disse:
«Deixa esses teus cordeiros,
Que mereces melhor ser pastor de homens.
Juiz supremo sejas.»
Eis que o nosso pastor libra as balanças.
Dado que pouca gente,
Salvo o ermitão, conheça, e os cães, e o gado,
E o lobo: e eis tudo;
Bom senso tinha; o mais o tempo vence;
E em suma, conseguiu-o.
Corre o ermitão vizinho, e vem dizer-lhe:
«Sonho eu? ou ‘stou desperto?
Tu, valido? Tu, grande? – Desconfia
Dos reis: que assaz resvala
Seu valimento esconso, e o pior inda
É, que esse caro custa.
Virão desgostos mil.» – E tais lhe vieram,
Que o ermitão foi profeta.
A peste ruim das cortes, por mil máquinas
Tanto fez, que a candura,
Que do juiz o mérito, em suspeita
Caíram do monarca.
Eis conluios, eis peias, eis falsários,
Eis causas mal julgadas.
«De nossos bens ergueu palácio!» o acusam.
Riquezas tão notáveis,
Qui-las el-rei ir ver. Só medianias
Achou, por toda a parte
Louvores do ermo seu e da pobreza.
E eis em que consistiam
Suas magnificências. «Mas (instavam
Os que lhe mal queriam)
Um cofre aferrolhado a vinte chaves,
Encerra pedrarias. »
Abre o cofre o pastor, deixa pasmados
Do engano os urdidores.
Que é o que viram, dentro? as rotas vestes
Do pastor do rebanho.
...................................................................

«Ricas jóias, penhores caros, nunca
A vós acareastes
Invejas, nem embustes; vinde, vinde,
Saiamos destes paços,
Como quem sai dum sonho. Perdoai-me
Este meu desafogo.
Quando subi, Senhor, a auge tão grande,
Bem antevi a queda.
Assaz me comprazi, mas quem dum toque
De ambição se ressalva?»
Filinto Elísio
As duas cadelas

Estando p’ra cada hora
Certa cadela de rua,
Pediu a uma amiga sua
Quarto e cama. Sem demora,

Valeu-lhe a amiga; e passado
Sendo talvez mês e meio,
Com bons modos pedir veio
O que lhe havia emprestado.

A hóspeda, para ficar,
Quinze dias pede ao menos,
Alegando que os pequenos
Mal começavam a andar.

Cede a amiga... triste dela!
Pois, findo o prazo ajustado,
Reclamando o ninho amado,
Lhe rosnou a mãe cadela:

«Sairemos da casa tua
Eu e toda a minha gente,
Se for capaz o teu dente
De nos pôr no andar da rua!»

De emprestar a casa, foge:
Todos vêm com pés de lá;
Porém do hóspede de hoje
Sai-te o patrão de amanhã!

J. I. de Araújo
O mal casado

Um tinha a mulher brava e pretendendo
Saber se aquele génio tão horrendo
Em casa de seu pai assim seria,
Para lá por bom modo a remetia.
Voltando a seu marido aquela fera,
Este lhe perguntou que tal se dera.
Respondeu que com raiva dos pastores
Entrara muitas vezes em furores.
Ele lhe replicou: «Se és um açoite
Contra os que estão em casa dia e noite,
Como pode não ter muito má vida,
Quem contigo continuamente lida?»

Couto Guerreiro
A montanha e o rato

Certa montanha
‘Stando co’as dores
Em mil clamores
Se desentranha!

Que espalhafato,
P’ra que à luz dê,
Sabem o quê?
Pequeno rato!

(***)
O jumento que levava relíquias

Um pobre sendeiro
Relíquias levava
A sitio remoto,
E o povo devoto
Quando ele passava
Mil cultos lhe dava;
Inchando-se o estulto,
Julgou, presumido,
Que todo esse culto
Só era devido
À sua pessoa;
E teve tal proa
Com esta ilusão
O paparrotão,
Que sendo um selvagem,
De grã personagem
Fumaças criou:
Um tal, que ‘observou
A vã presunção
Do fofo asneirão
Só digno de insultos,
Assim lhe falou:
«Vê bem que esses cultos
Que os homens te dão,
Com que, vil mazombo,
Tão concho te fazes,
São só ao que trazes
Em cima do lombo.»
Ao fofo jumento
Serão comparados
Alguns potentados
De chocho talento,
Que são respeitados
Só pelo ornamento
De que andam cercados.

Curvo Semedo
O mercador, o príncipe, o fidalgo e o pastor

Eram quatro os naufragados:
Um príncipe, um mercador,
Um fidalgo e um pastor.
Dois pares de desgraçados.

Ei-los em terra estrangeira
Mendigando a caridade
E vendo a triste verdade
De não ter eira nem beira!

Mas um dia resolveram
Nunca mais viver de esmolas,
E pondo ao lado as sacolas,
Falaram como entenderam.

«Eu cá – disse o mercador,
Deixo as partidas dobradas
E passo a ensinar criadas
A fazer contas de cor.»

O príncipe, que em consciência
Se achava abaixo da crítica,
Propôs ensinar política,
Coisa que não quer ciência.

O fidalgo estende a mão
E diz: «Não mais privações!
Eu, começo a dar lições
Da grande arte do brasão!

– Muito bem! São uns doutores!
Todos querem ensinar!
Pois eu vou-me a trabalhar,
Que é arte até de pastores!»

E cortando ervas do chão,
Faz-me um feixe, vai vendê-lo,
E ao fim da tarde era vê-lo
Dando aos outros vinho e pão.

E eis como do matemático,
Do fidalgo e do político
Teve razão o analítico,
Que era mais que os outros, prático!

Cipriano Jardim
O corvo, a gazela, a tartaruga e o rato

Gazela, rato, corvo e tartaruga
Viviam junto, em branda sociedade.
Que a dita asseguraram quando escolha
Fizeram de pousada ignota aos homens.
Que sítio há tão escuso
Que os homens não devassem?
Buscai sertões, desertos,
Lapas do mar profundo,
Inda alturas dos ares,
Deles não evitais tramas ocultas.
Sem fraude, ia a gazela espairecer-se;
Eis que, do prazer bárbaro dos homens
Instrumento maldito, um cão dá, na erva,
Faro de seus vestígios. Ela foge:
E às horas da comida diz o rato
Aos restantes amigos: «De onde nasce
Que hoje somos só três os convidados?
Por que causa a gazela nos deslembra?»
Quando tal ouve, clama a tartaruga:
«Se eu alígera fosse, qual é corvo,
Ia, ao menos, saber em que contornos
‘Stá nossa companheira velocípede.
Quanto ao bom coração, melhor julgai-a.»
Parte o corvo a voo solto, e ao longe avista
A imprudente gazela, presa em laços,
E a debater-se neles. Volta, e avisa
Os outros num instante. – Perguntar-lhe
Como? Quando? Por que caiu sobre ela
Tal desgraça, em vás falas consumira
O tempo útil. (Qual fez da escola o mestre.)
Tinha sobejo siso o corvo. Voa,
E revoa; os três amigos sobre o anúncio
Se aconselham. Parece a dois que é certo,
Sem tardar, transportar-se ao sítio, aonde
Presa a gazela jaz. – «Guarde essa a casa.
Quando é, com o lento andar, que ele lá chegue
Quando, morta a gazela?» – Dito e feito.
Vão-se ao socorro da fiel, e cara
Companheira, montês triste cabrinha.
Também lá quis correr a tartaruga,
Como eles, pôs-se em campo, e amaldiçoando
Seus curtos pés (com causa) e ser forçada
A carregar co’a casa. – Trinca-malhas
(Jus teve o rato à alcunha) os nós lhe rói.
Quanta alegria! – O caçador vem, grita:

«Quem me roubou a presa?» Numa toca
Trinca-malhas se esconde; o corvo na árvore,
Nas selvas a gazela. – Sem alguma
Notícia, o caçador meio estontado
Avista a tartaruga, e enfreia as iras:
«Inquietar-me que val’? Já para a ceia
Me desquita esta moca.» – E ei-la no alforge.

Por todos pagaria a tartaruga
Se à gazela não desse aviso o corvo.
Do retiro ela abala, faz-se coxa.
Foi fosca, que valeu. – Vai-se atrás ela
O homem, que atira ao chão toda alforjada.
Trinca-malhas destrói, com tanta ânsia,
Do alforge os nós, que solta a tartaruga,
Gualdindo a ceia ao caçador logrado.

Filinto Elísio
Os peixes e o corvo-marinho

Nem lago, nem tanque havia
Que a certo corvo-marinho
Contribuição não pagasse.
Nédio estava que era um gosto!
Mas fez-se velho, coitado,
E, co’a vista enfraquecida,
Os peixes n’água não vendo,
E tendo fome de rabo –
Assim fala a um caranguejo:
«Compadre e amigo, depressa,
Passe aviso aos peixes todos
De que o dono deste lago
Redonda pesca projecta!»
Os peixes em rebuliço
Pôs co’a nova o caranguejo.
Já deputados ao corvo
Mandam, a ver se é verdade;
Já que partido, perguntam,
Devem tomar, sendo certo.
Responde o corvo: «Descansem;
De os pôr em sítio seguro
Eu me incumbo!» – Os pobres peixes,
Acreditando na léria,
Nas mãos se entregam do corvo,
Que os deposita, velhaco,
Em lugar onde, sem custo,
A pouco e pouco os devora.
Assim ficaram sabendo
Que é mau ouvir os conselhos
Desses que são por ofício
Devoradores de gente.

Santos Barbosa
O homem e a pulga

Deu urna pulga grande mordedura
Em um, e tendo-a este já segura
Entre os dedos, teve arte, que escapava;
Erguendo as mãos ao céu, ele exclamava:
«Hércules, que mil males extinguiste,
Ignoro por que tu não me acudiste
Quando eu quis com valor heróico e estranho
Extinguir animoso um mal tamanho!»

Couto Guerreiro
O prior e o defunto

Para a cova ia um defunto,
Levando por companhia
O prior da freguesia,
Corado como um presunto.

Era o morto endinheirado
E não ia a trouxe-mouxe,
Porém em dourado coche
A quatro mulas puxado.

E rezava a Frei Caconso
Mui devotas orações,
Versículos e lições,
Salmos e muito responso;

Mas sem que de atentar deixe
No pobre defunto frio,
Como quem encara o rio
De que espera tirar peixe.

E ia dizendo baixinho:
«Compro à minh’alma um capote,
E para mim um pipote
Do mais afamado vinho.»

Mas o que as mulas conduz
Mete-as por sobre um barranco;
Dá o coche um solavanco,
Tomba e cai – catrapus!

O padre morre. Depois
Diz o cocheiro: «Esta é nova!
Levava um só para a cova,
E tenho que levar dois!»

Nossa vida é sempre assim;
Andamos no mundo à toa:
Donde esp’ramos coisa boa
É donde vem a mais ruim!

J. 1. de Araújo
A lebre e a tartaruga

«Apostemos, disse à lebre
A tartaruga matreira,
Que eu chego primeiro ao alvo
Do que tu, que és tão ligeira!»

Dado o sinal da partida,
Estando as duas a par,
A tartaruga começa
Lentamente a caminhar.

A lebre tendo vergonha
De correr diante dela,
Tratando uma tal vitória
De peta ou de bagatela,
Deita-se, e dorme o seu pouco;

Ergue-se, e põe-se a observar
De que parte corre o vento,
E depois entra a pastar;

Eis deita uma vista de olhos
Sobre a caminhante sorna,
Inda a vê longe da meta,
E a pastar de novo torna.

Olha; e depois que a vê perto,
Começa a sua carreira;
Mas então apressa os passos
A tartaruga matreira.

À meta chega primeiro,
Apanha o prémio apressada,
Pregando à lebre vencida
Uma grande surriada.

Não basta só haver posses
Para obter o que intentamos;
É preciso pôr-lhe os meios,
Quando não, atrás ficamos.

O contendor não desprezes
Por fraco, se te investir;
Porque um anão acordado
Mata um gigante a dormir.

Curvo Semedo
Contra os ruins de contentar

Se ao nascer alta musa me doara
Os dons que ela concede aos escolhidos,
Às mentiras de Esopo os consagrara:
Mentira e versos foram sempre unidos.
Sou bem pouco estimado do Parnaso
P’ra tão belas ficções ornar com graça.
Lustre – conheço-o bem – requer o caso,
E quem mais sábio for essa obra faça.
Contudo, dando ao estilo novas cores,
Fiz o lobo falar com o cordeiro;
Mais adiante inda fui – que palradores
Fiz árvores, arbustos; – e requeiro
Me digam se há ou não já nisso encanto.
Dir-me-ão críticos tontos:
«Pois de crianças quatro ou cinco contos,
Acaso valem tanto?» –
Mais nobre estilo querem?
Pois esperem:
«Em guerra que durava já dez anos,
Fatigavam aos gregos os troianos,
Que da cidade dentro das muralhas,
Haviam resistido a cem batalhas,
Quando a astuta Minerva
De lenhos um cavalo enorme faz,
Em que Ulisses, Diómedes e Ajax,
– Que período enorme! (ouço a caterva
Dos críticos dizer!) Basta; já vemos
Que do alto estilo o tom não tens.» Baixemos
A cantiga dum tom: – Em seu Alcipe
Amarílis pensando, um tipe-tipe...
– Que rima! com desdém diz o censor.
Pois, meu caro senhor,
Fique sabendo
Que o não entendo;
E que os gostos difíceis de contento
Por muito desgraçados os lamento.

J. I.
Os alforges

«Venham – diz Jove, um dia – quantos vivem,
E ante os meus pés divinos compareçam.
Se algum achar senão em seu composto,
Sem susto o diga; e eu lhe porei remédio.
Vem, mono – e eu sei porquê – fala ante os outros.
Vê-me esses animais; suas belezas
Compara-mas co’as tuas.
Estás contente? – Eu, porque não? Não tenho
Eu quatro pés, tão bons como esses todos?
Ninguém pôs ‘té’qui pecha em meu retrato.
Quanto a meu mano, o urso, esse inda é esboço;
Que nunca, a bem me crer, dirá que o pintem.
Acode o urso, e o cuidavam
Dar-se por agravado; foi engano:
Que antes com muitos gabos
De si, chascos lançou contra o elefante:
«Massa informe que ele é, sem ar, sem garbo,
Bem podiam cercear-lhe das orelhas
Com que emendar-lhe o rabo.»
O elefante, que o ouve,
Dá, apesar da prudência que lhe imputam,
Outras tais badaladas,
Quando diz: que a baleia, por enorme,
É para o prato seu manjar sobejo.
Eis que Dona Formiga, que a respeito
Do oução, se crê colosso,
Guapa o tachou de anão. – Jove, que a todos
Os viu de si contentes
E a escarniçar dos outros, despediu-os.
Ora é para contar, que entre os mais loucos
Campou a nossa espécie.
O Eterno Fabricante
Os homens de outro tempo, e homens de agora
Alfoijeiros nos faz, num mesmo molde.
Na sacola de trás, nossos defeitos
Pôs, e na dianteira, os dos mais homens.

Filinto Elísio
O raposo e o lobo

Disse ao lobo o raposo: «Caro amigo:
Um frangão magro, um velho galo, às vezes,
É tudo quanto apanho. Francamente,
Mereço mais. Com menos p’rigo, o dente
A melhor presa deitas. Junto às casas
Tu rondas – e eu, de longe.
Por fineza te peço
Que a tua arte me ensines. Ser-te-ei grato.»
Responde o lobo: «Seja!
De meu defunto mano
Encaixa-te na pele; desse modo,
Mastins do gado afastarás de pronto.»
Lições que o mestre dera aproveitando,
Fez-se mestre o raposo. – Um belo dia,
Passa um rebanho; o novo lobo o assalta
E tudo assusta em roda!
Pastor, gado, rafeiros vão fugindo!...
Em penhor uma ovelha apenas fica;
E o lobo a agarra! – Eis que ouve, de repente,
Cantar vizinho galo...
A ovelha esquece, larga a pele – e corre,
A ver se o galo apanha!

Em nos contrafazermos, que lucramos?
Na primeira ocasião que se ofereça
O usado trilho repisamos sempre!

Sousa Carneiro