A ave ferida de uma flecha

Foi de uma flecha emplumada
Uma das aves ferida,
E assim ao seu matador
Falou no extremo da vida:

«Contribuir deveremos
Para a nossa ímpia desgraça,
Dando penas que aligeirem
A seta que nos traspassa?

Das nossas asas as plumas
Arrancais, progénie atroz,
Que depois presas em ferros
Voar fazeis contra nós.

Mas, ó prole de Jafet,
Da nossa cruel desgraça
Não zombeis, não façais mofa,
Que o mesmo entre vós se passa.

Mil vezes vos acontece
A mesma infelicidade;
Metade de gente as armas
Dá contra a outra metade.»

Curvo Semedo
O lobo e o caçador

Não gozas o que tens: queres juntar
Para gozar dobrado.
E não pensas que podes acabar,
Com o remorso de não ter gozado?

Um caçador de truz matou, um dia,
Um gamo gordo e altivo;
Era motivo já para alegria...
Se não fosse um gaminho,
Que veio, fugitivo,
A correr pelo próximo caminho,
Direito à morte escura
Que o caçador lhe deu com mão segura.
Pagavam já os dois toda a canseira:
Quando, súbito, aponta da clareira
Soberbo javali!
Retesa o arco o caçador, e a frecha,
Sibilando, veloz,
Deita por terra o animal feroz!
«Três! (eram três!), decerto ninguém conta
Caçada tão feliz!
E mais esta perdiz!...»

(A desgraçada!) E aponta...
Quando o porco
Agonizante, se ergue, truculento,
E, no extremo furor,
Mais rápido que o vento,
Põe as tripas de fora ao caçador!
Nisto, um lobo, que vinha de passeio,
Lambendo os beiços, riu do ambicioso
Que, com tanto asseio,
Lhe arranjara banquete sumptuoso!
«Mas poupemos! poupemos!
Que a neve não parou...
A neve até conserva!
Portanto, economia! Comecemos
Pela tripa do arco.» E começou,
Duma avareza insana,
Pela corda, pensando que a reserva
Dos mais corpos daria uma semana.

Terrível avareza! O arco armado
Para a perdiz ligeira
A quem salvara o javali prostrado,

Distendeu-se, e a frecha bem certeira
Deu em terra c’o lobo atravessado!

Cipriano Jardim
Demócrito e os de Abdera

Quanto às ideias sempre odiei o vulgo;
Que o cri profano e injusto.
...............................................................
Bem o aprendeu o mestre
De Epicuro1 quando o creu doido Abdera.
Vede que grandes néscios!
Ninguém profeta foi na sua pátria.
Abdera é que era a doida;
Demócrito o sisudo. E foi esse erro
Tanto ao longe, que a Hipócrates
Abdera o convidou, por deputados,
Por cartas, e embaixada,
E chorando pediu-lhe que viesse
Compor do enfermo o siso.
Hipócrates não creu muito em tal gente;
Porém partiu, não menos.
Ora vede que encontros causa a sorte,
Na vida! Chega Hipócrates
No prazo em que esse havido ali por tonto,
Desjuizado – esquadrinha
No homem, no bruto, onde é que a razão mora;
E à beira dum regato,
Sentado, os labirintos o ocupavam
Do cérebro; e aos pés tinha
Muito livro; e ali fixo (a seu costume)
Não deu fé da chegada
Do amigo seu. – Como o pensais1 mui curtos
Os cumprimentos foram;
Que o sisudo as palavras poupa, e o tempo.
A entretimentos frívolos
Dando de mão, ao longo discorreram
Do homem, e também do ânimo;
No moral descambando... Não releva
O que um, o que outro disse Assoalhar.
Bem basta o que é já dito
Para mostrar que o povo
É rejeitável juiz.

Filinto Elísio
Testamento que Esopo explica

Esopo, segundo contam,
Foi da Grécia a maior glória;
E entre mil provas que apontam
Dão de mistura esta história.
Um pai tinha três filhas: a primeira
De avarenta chegava a ser catinga;
A segunda era atroz namoradeira,
A terceira pegava bem na pinga.
Morre o velhote; testando
Segue as leis municipais,
A suas filhas deixando
Os bens em partes iguais;
E que a sua mãe cada uma
Um quinhão distribuísse
No dia em que já nenhuma
O que herdara possuísse.
Dar depois de não ter! ... Ninguém, ninguém,
Nenhum doutor decifra esta charada;
E as filhas resolveram dar à mãe
A quantia por ela reclamada.
Partem-se os três quinhões; primeiro, a adega;
Segundo, as jóias que na casa havia;
Terceiro, os aparelhos para a rega
E tudo que à lavoura pertencia.
Tudo destarte disposto,
Segundo a todas agrada,
Cada uma o lote arrecada
Que mais achar do seu gosto.
Sucedeu isto em Atenas,
E julgou-se maravilha;
O famoso Esopo apenas
Achou mal feita a partilha.
«Repartam-se os quinhões de encontro aos gostos,
Forçando-as a trocá-los a dinheiro;
E poderão casar-se e, sem desgostos,
Cumprir o testamento por inteiro.»

Alexandre Ramos
O cabrito e o lobo

Indo a pasto uma cabra, quis primeiro
Fechar o seu filhinho no corveiro;
E disse-lhe que a porta não abrisse
Senão quando outra vez ali a visse.
Um lobo que ouviu tudo, despedida
A mãe, veio bater com voz fingida;
(Pingia a voz da mãe que estava ausente.)
O cabrito porém como prudente
Lhe disse: – «As gretas dizem que não abra;
Pois me mostram que és lobo em tom de cabra.»

Couto Guerreiro
Vantagem do saber

Numa certa cidade, dois burgueses,
Um pobre e sábio, o outro um ignorante,
Mas de chelpa abundante,
Tinham suas questões frequentes vezes.
Dizia o rico ao pobre: «De que presta
O gastares semanas e semanas
A queimar as pestanas
Sobre esses livros? – Tens um T na testa!
Mesa terás qual tenho?
Dá-te esse seu empenho
P’ra poderes trajar de panos finos,
Morar em bela casa alcatifada,
E a mulher e os meninos
Vestir à moda?» – O sábio não diz nada.

Mas vem a guerra:
No mesmo instante,
Sábio e ignorante
Nada têm já.

Mudam de terra:
Um acha abrigo,
Outro o castigo
Da língua má.

Falai do estudo
Sem tom nem som:
P’ra tudo e em tudo
Saber é bom.

J. I.
A mulher teimosa afogada

Um homem que era casado
Com mulher néscia e teimosa,
Que tinha um génio danado,
Foi um dia
Fazer certa romaria
Distante do povoado.

Eis que um rio caudaloso
No fim da estrada encontraram,
Que passar era forçoso:
O marido
Sonda o vau, e prevenido
Teme entrar no pego undoso.
A mulher, teimosa e má, Lhe diz:
«Entra n’água, ó fona,
Que perigo nenhum há.
– Há perigo,
Torna-lhe ele – e não prossigo!»
E ela diz: «Pois eu vou lá.»

Nisto, mete-se imprudente
A levada impetuosa
Feita pela grossa enchente;
Então cai,
E indo ao fundo aos urros vai
Envolvida na corrente.

Aterrado o pobre esposo
Vendo aquela atroz desgraça,
Inda quer salvá-la ansioso;
Que a lastima,
E vai pelo rio acima
Procurando-a cuidadoso.

Os que viram abismá-la
Vendo-o ir contra a corrente,
Dizem: «Valha-te uma bala,
Ó borracho!
Se foi pelo rio abaixo,
Lá em cima é que hás-de achá-la?»

Torna-lhe ele: «Este dragão
Sempre com todos viveu
Em fera contradição,
E por má

Juro que subindo irá,
Se as águas descendo estão.

Às avessas da outra gente
Andou toda a sua vida;
Mas já teimosa imprudente
Não será;
Que o génio que o berço dá
Tira-o a tumba somente.»

Curvo Semedo
A aranha e a andorinha

«Escuta a minha queixa, ó grande Jove!
Dizia a aranha. – Progne, à minha porta,
Vem as moscas roubar-me! Sem tal ladra,
Bem provida estaria a minha teia!»

Foi surdo à voz da aranha o pai dos deuses;
E de tal modo surdo, que a andorinha,
De asa co’a ponta arrebatava, um dia,
A teia – e desta, a um fio presa, a aranha!

Duas mesas pôs Jove neste mundo:
O destro, o esperto, o forte vemos sempre
À primeira sentados. Os pequenos
Os seus sobejos comem, na segunda.

Sousa Carneiro
A cabeça e a cauda da serpente

Tem dois membros a cobra,
Que são da humana prole as inimigas:
São a cabeça e cauda,
Que granjeado têm famoso nome
Entre as tiranas Parcas.
Ora, debates crus aconteceram
Outrora entre ambas, sobre
Precedências. Tinha a cabeça andado
Sempre diante da cauda.
Queixou-se disso a cauda ao céu, e disse:
«Como lhe apraz a esta,
Despejo infindas léguas. E ela cuida
Que eu sempre esse uso abrace?
Nec semper Lilia florent. Eu fui feita,
Graças a Deus se rendam,
Para ser sua irmã, não sua serva.
Vimos dum mesmo sangue;
Encerro em mim peçonha igual à dela,
Tão pronta, como activa;
E a minha petição só quer que de ambas
Se iguale o tratamento.
Mandai – e ela mo assine – que preceda
Eu cauda e ela cabeça.
De modo a guiarei que se não queixe.»
Teve cruel bondade
Com seu desejo o céu. – Bem ruins efeitos
Têm seu comprazimento
Não raras vezes! A desejos tontos
Melhor fora ser surdo.
Mas não o foi então. A nova guia,
Que, à luz do sol mais clara,
Melhor não vira que num forno escuro,
Topava aqui num mármore,
Além num tronco, ou já num viandante.
Levou em direitura
A irmã ao lago estígio. – Assim sucede
Aos desafortunados
Estados que em tal erro descaíram.

Filinto Elísio
A águia e a pega

A águia, um dia, atravessando um prado,
Co’a pega se encontrou;
Muito esta se assustou;
Mas a águia, que bem tinha jantado,
A sossega e lhe diz: «Vamos de rancho.
Se Jove se aborrece,
Estranho não parece
Dar-se isso em quem pertence ao seu farrancho.

Conversa um pouco.» – A pega é palradora,
(Disso fama tem ela)
E, a dar à taramela,
Tem que dizer para gastar uma hora.

E depois de falar p’los cotovelos
Sem que a zoina lhe cesse,
A águia ela oferece
De informadora os seus serviços belos.

«Arreda lá! – lhe grita a águia em tom forte;
Quem de tão feio jeito
Fala a torto e a direito,
Não tem aceitação na minha corte.»

Foi isto o que a pega quis:
Conseguir na corte entrar
Obriga a espinha a dobrar,
Requer tento no falar,
E nem sempre é ser feliz.

Mas, se entras lá, talvez que te alinhaves
Aprendendo a tocar em várias claves.

J. I. de Araújo
O homem e o sátiro

Um sátiro tomou por companheiro
Um homem, que no frio de Janeiro,
Abrindo a sua boca, as mãos soprava,
Dizendo que com isto as aquentava.
Soprava papas quentes, e dizia
Que para arrefecê-las o fazia.
O sátiro notando a habilidade,
E cheirando-lhe mal a variedade:
«Rua, rua!, lhe diz; meu grande amigo;
Rua! que nada quero já contigo;
Marchar; que de quem faz calor e frio
Com uma mesma boca, não me fio!»

Couto Guerreiro
Os desejos

Há no Mogol uns duendes
Serviçais – uns criadinhos:
Leitor, se não compreendes,
Passe na fé dos padrinhos.
P’ra limparem a casa erguem-se cedo,
E fazem muito mais;
Mas no que arranjam não toqueis c’um dedo,
Porque tudo estragais!
Um destes, perto ao Ganges alojado,
Tratava dum jardim
E era pelo patrão muito estimado.
(Devia ser assim.)
Porém outros duendes – dos mais reles,
Segundo o que se conta –
Tomaram-no de ponta
E forjaram intrigas. O rei deles,
Por ordem que assinou com régia mão,
Manda-o dali sair;
E ele, antes de partir,
Saudoso se despede do patrão:
«Posso cumprir num momento
Três desejos que tu tenhas;
Dize no que mais te empenhas,
Que ao teu serviço me vês!
– Dá-me riqueza abundante
Que todo o mundo cobice!»
O duende, se bem o disse,
Ainda melhor o fez.
Ei-lo cheio de riquezas
Que lhe engrossam a vaidade;
Já não sabe onde arrecade
Os seus imensos milhões.
Já o carregam tributos,
Já lhe pedem por abono;
E por vezes perde o sono,
Com receio dos ladrões.
«Vem, ó mediania!» – Ela, ao pedido
Acode; é festejada,
É bem agasalhada.
E só falta um desejo a ser cumprido.
Riu-se o duende ao ver que em coisas fúteis
As horas se consomem,
Que bem se empregariam nas mais úteis;
E então o nosso homem
Pediu a sapiência, bem sem par,
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E o mais útil e fácil de guardar.

Alexandre Ramos
Os dois burros carregados

Qual romano imperador,
Um pau por ceptro levava
E a dois frisões orelhudos
Um burriqueiro guiava;

Um deles trazia esponjas,
E qual postilhão corria:
O outro de sal carregado
Os pés apenas mexia;

Um sem custo, outro com ele,
Montes e vales andaram,
Até que ao vau dum ribeiro
Ultimamente chegaram.

No que levava as esponjas
O burriqueiro montou,
E fez ir para diante
O que de sal carregou.

Ele o vau desconhecendo
Pregou consigo no pego,
Nadou, veio acima, e viu
Aliviado o carrego:

Porque o sal, de que era a carga,
Derreteu-se n’água entrando,
E o seu condutor, já leve,
Pôs-se em terra e foi trotando.

O camarada esponjeiro,
Que o viu tão leve sair,
Quis à sua imitação
Também no pego cair;

Ei-lo nas águas submerso,
Esponjas e burriqueiro,
Todos três bebendo à larga
Querem secar o ribeiro.

Tão pesados se fizeram,
Por beberem sem cessar,
Que sucumbido o jumento,
Não pôde as margens ganhar.

O homem lutava co’a morte,
Té que um pastor lhe acudiu;
Mas o burro das esponjas
Foi ao fundo, e não surdiu.

Guiar por cabeças más
Não é um bom portamento;
Às vezes a dita de um
Faz a desgraça de um cento.

Curvo Semedo
Júpiter e os trovões

Júpiter, lá das alturas,
Vendo cá tanto perverso,
Disse: «De novas criaturas
Povoemos o Universo!

Mercúrio, desce aos Infernos,
As minhas ordens fiel;
Dentre os horrores eternos
Traz-me a fúria mais cruel!

Raça por mim tão amada,
Desta feita morrerás!»
Júpiter daí a nada
Fez-se menos ferrabrás.

(Se a cólera vos tornar,
Reis, por vezes nosso açoite,
Deixai sobre ela passar
O intervalo duma noite.)

Mercúrio, o de acções não sãs,
Porém de asa mui ligeira,
Foi ter com as três irmãs
E preferiu a primeira.

Esta da escolha se ufana
E jura, sem mais nem mais,
Sujeitar a raça humana
Às deidades infernais.

Júpiter não aprovou
Da euménide o juramento;
E um raio à terra lançou
Logo naquele momento.

Mas este, que um guia certo
Na mão que o despede tem,
Vai cair em um deserto,
E não fez mal a ninguém!

Muito estrondo e nenhum sangue;
Grandíssimo susto só:
Um pai, por mais que se zangue,
Quando castiga, é com dó!

A.
A lande e a abóbora

Bem faz Deus quanto faz. Sem buscar provas,
Por esse mundo além, acho-as na abóbora.
Contemplava um pastrano
Quanto avultado é o fruto
E quão delgado o talo: «Em que pensava
O autor de tais amanhos? Esta abóbora,
Eu ponho-a nesta enzinha,
Arrazoado gancho
Para tal dependura; e vinha a pêlo:
Para pêssego tal, tal pessegueiro.»
Foi pena, meu Bieito,
Não te achares no Conclave,
C’o Criador – do qual te prega o cura.
Tudo iria melhor. – «Ponhamos caso.
Quando muito, a bolota
Orça c’o meu meminho.
Porque a pôs numa enzinha? Deus deu cincas.»
Quanto mais cisma nos mal postos frutos,
Mais porfia o Bieito.
Que houve erro ali, nos poisos.
Como esta reflexão lhe dava tratos:
«Saber sobejo estorva que se durma.»
Para dormir escolhe
A sombra duma enzinha.
Caem bolotas, e o nariz o paga.
Acorda, e logo vai co’as mãos ao rosto,
E nos pêlos da barba
Depara inda co’a lande.
Fez-lhe mudar de língua o piparote
E o sangue, que lhe escorre dos narizes.
«E se em vez de bolotas,
Me chovessem cabaças,
Que as queixadas, caindo, me estroncassem!
Deus, que o não quis assim, andou com juízo.
Agora é que eu atino
C’o motivo acertado.
Louvando a Deus do bem que obrara tudo,
Veio de volta a casa o nosso Bieito.

Filinto Elísio
O lobo feito pastor

Para assaltar um rebanho
Sem nele espalhar o horror,
Um lobo – recurso estranho! –
Quis disfarçar-se em pastor.

Mas do pastor verdadeiro
Buscando a voz imitar,
Acordou este e o rafeiro,
Que estavam a ressonar.

E p’los dois reconhecido,
Morto é logo o espertalhão,
Que, pelo traje impedido,
Tentara fugir em vão.

Velhacos, ou longe ou perto,
São pilhados afinal.
O que for lobo, o mais certo,
E sempre obrar como tal.

Alberto Mendonça
O morcego e as duas doninhas

Um morcego já preso da doninha,
Dizia-lhe: «Perdoa-me, vizinha!
– Eu não quero cair na culpa grave,
Diz ela, de quartel dar a alguma ave,
Que já de lho não dar fiz juramento.»
O morcego com muito acatamento
Lhe diz: «Sossega a tua consciência;
Quem jura de fazer uma violência,
Não a deve fazer por ter jurado;
Que um pecado não tira outro pecado.
Demais que eu não sou ave, sou um rato;
Se não repara tu bem no meu fato,
Verás que tenho pêlo, e as aves penas;
E se tu por ter asas me condenas,
Isso é um acidente, é circunstância
Que não faz que eu varie na substância.»
A doninha de tais razões movida,
Concedeu-lhe que fosse ele com vida.
Veio tempo em que foi de outra colhido;
Pede o mesmo que tinha antes pedido.
«Nada, respondeu ela, eu me condoo
De ti, porém o rato não perdoo,
Fiz esse juramento, e hei-de cumpri-lo.»
O morcego tomando o mesmo estilo,
A tirava do escrúpulo, e dizia
Que ele não era rato, como via;
E no caso que não acreditasse,
Lhe diga se viu rato que voasse.
Persuadiu-se a doninha; e desta sorte
O morcego outra vez livrou da morte.

Couto Guerreiro
Prudência entre cães e gatos, e entre gatos e ratos

Em certa casa, muitos cães e gatos
Viviam em puríssima união,
Pois que um regulamento – e dos sensatos –
Lhes impusera o sábio do patrão.

Porém surge pendência entre os amigos,
Entra este a grazinar, grazina aquele,
E quiseram rever alguns artigos
Do tal regulamento. Mas que é dele?

Tinha sido roído pelos ratos!
Nova questão; já todo o rato guincha;
Vão sendo dizimados pelos gatos,
E é o dono da casa quem pechincha.

Tudo no mundo anda em guerra,
Seja bruto ou seja humano:
É a lei que rege a Terra,
E não profundo este arcano;
Mas o de que me convenço
Por uma razão maior
É que a raça a que pertenço
Não é no caso a melhor.


(***)
A doninha na despensa

Esguia e longa de corpo,
Entrou Madama Doninha
Por um estreito buraco
Que certa despensa tinha.

Passados nove ou dez dias,
Já nédia, gorda e pesada,
Vindo um criado à despensa,
Por um triz não foi pilhada.

Vendo o seu risco iminente,
Quis então salvar a pele,
Foi-se ao buraco da entrada,
Porém não coube por ele.

«Neste buraco, então clama,
Há dez dias, sem mentir,
Que para entrar coube, e agora
Não caibo para sair!

Ou eu perdi todo o tino,
Ou o buraco estreitou!»
Mas nisto um rato já velho
Desta sorte lhe falou:

«Magra e faminta vieste,
Gorda e farta agora estás;
Torna a ser magra e faminta,
Logo sair poderás.

Se alguém contigo aqui der,
Faz-te os ossos em açorda;
Reflecte se mais te agrada
Viver magra, ou morrer gorda!»

A doninha não fez caso,
E a mesma vida seguiu;
Até que deram com ela,
E dura morte sentiu.

A vários sucede o mesmo
Em qualquer ocupação;
Que o muito que engordar querem
Faz a sua perdição!

Curvo Semedo
As mulheres e o segredo

Não é lá no pensar muito atilado
Quem a mulher confia o seu segredo...
Mas neste ponto também tenho medo
Muitas vezes do sexo que é barbado.

Para experimentar sua mulher,
Estando certa noite ao lado dela,
Um marido exclamou: «Ai, Micaela,
Que dores tão cruéis! que atroz sofrer!...

Não sei, triste de mim, como me aguente!
Mas que é isto, mulher? Oh, caso novo!...
Mesmo agora acabei de pôr um ovo!
– Um ovo! – Aqui o tens; inda está quente!

Não contes este caso; tem cuidado,
Quando não, de galinha põem-me a alcunha.»
A mulher, que o engano não supunha,
Jurou fechar a boca a cadeado.

Mas apenas se ergueu de manhãzinha
Esta pouco assisada Micaela,
Desejosa de dar à taramela,
Foi o caso contar a uma vizinha.

«Sabe, comadre, o que hoje sucedeu?
– Então que foi? que foi? – O meu Torcato
Pôs um ovo que enchia bem um prato!...
Mas não conte a ninguém, ouviu? – Quem? eu!»

Do peso do segredo aliviada,
A mulher do do ovo entrou em casa;
Mas a vizinha já se vê em brasa
Por dar esta notícia desusada.

Deixa o almoço ao lume, sai mui pronta
E a outra conta a história de bom gosto;
Mas ao ovo que o homem tinha posto
Acrescenta mais um por sua conta.

Foi-se espalhando o caso em prosa reles,
E cada uma o seu ovo acrescentava;
De sorte que à noitinha se afirmava
Que o homem tinha posto um cabaz deles.

J. I.. de Araújo