Capítulo VII

O que ela pedia a jesus

Consentiu o abade que a sua filha se despedisse dele. Eugénia deplorou
medianamente a partida da irmã. Quem chorou ansiadíssima foi Clementina,
abraçada à filha que ficava. Tais choros pareciam desarrazoados ao
entendimento do padre Leonardo, e à própria filha.
Fez-se na casa um silêncio triste. Ouvia-se, porém um alto soluçar na adega,
onde se escondera quem quer que fosse. Era Norberto, atabafando o rosto
nas rimas das cepas. com receio de ser ouvido.
Não chorava já ninguém mais. Dizia o abade a Eugénia:
— Tu é que és a minha filha. Hás de ser muito rica. Mereces-mo. Tudo o
que eu tenha há de ser teu.
— Isso não — contrariou a menina, dorida de saudades. — Ricardina é
minha irmã. O pai não lhe queira mal.
— Achas bonito que ela quisesse casar com Bernardo?
— Coitadinha! apaixonou-se por ele... A gente...
— Qual apaixonou-se! A tua irmã é mulher sem sentimentos nobres... e a
tua mãe...
Calou-se de si mesmo envergonhado. Ia dizer que a mãe não era mais
pundonorosa do que a filha. O receio de injuriar indiretamente Eugénia
amordaçou-lhe o insulto. Para divertir o ânimo irritado, perguntou à filha se
estava pronta a cumprir a sua promessa de casar com o primo.
— Quando o pai quiser.
— As dispensas estão lavradas. Pode marcar-se o dia. Há de ser logo que a
tua mãe chegar.
E convieram em esperar a mãe; não porque o abade julgasse precisa e
decorosa à cerimónia a presença maternal de D. Clementina: era o anseio
orgulhoso de ver entrar com a filha em casa dos seus pais.
No dia em que se esperavam a senhora e os criados por noite alta, chegaram eles.
— A fidalga? — perguntou o abade.
— Ficou lá.
— Aonde?
— No convento com a menina. Aqui está uma carta do primo da vossa
senhoria, onde as senhoras passaram a noite.
Padre Leonardo saltou de entre as cortinas adamascadas do leito, e foi ler a
carta à luz da lamparina. A informação resumida contava que D. Clementina
Pimentel, meia hora depois que se apeou na casa do informador, lhe pedira
que mandasse alguém acompanhá-la ao paço do bispo, com quem precisava
falar urgentemente. “Foi meu filho acompanhá-la”, continuava o relator, “e
depois me contou que D. Clementina conseguira que uni fâmulo a conduzisse
à presença do prelado, onde ela se demorou por espaço de cinco quartos de
hora, a sós coar o bispo. Voltou a senhora, e fechou-se no quarto da filha,
sem querer assistir à ceia, nem tão-pouco a menina se afastou da mãe. Por
mais diligências que fizeram tuas primas, tudo se frustrou. Não houve trazêlas
ao chá, nem obrigá-las com extremos de delicadeza a receber a ceia no seu
aposento. Hoje às onze horas foi a entrada no mosteiro. D. Clementina entrou
no pátio interior com a filha e apresentou à prioresa uma licença do bispo em
que lhe é concedida a residência de secular no mosteiro enquanto for sua
vontade residir conventualmente. Quantos presenciámos o lance ficámos
assombrados, e igualmente comovidos vendo mãe e filha abraçadas e
chorosas, ao mesmo passo que D. Clementina, voltada para uma cruz,
exclamava: "Graças meu Deus, que ouvistes a minha súplica! Agora, defendeime, Senhor!".
“Fechou-se a porta do mosteiro, e eu fui de ali ao paço. Ouviu-me o bispo
serenamente, e perguntou-me que eu queria afinal. Disse-lhe que D.
Clementina... aqui me interrompeu de chofre o prelado com estas palavras:
"D. Clementina Pimentel procedeu cristãmente. O que hoje fez já o devia ter
feito. Permita Deus que ela persevere e morra na graça de Jesus Cristo, da qual
tão desviada tem vivido na companhia do seu cúmplice, sobre quem pesa
tremenda responsabilidade." “Que havia eu de contrapor a isto? Bem sabes
que não há lógica nem retórica de servir na tua defesa, encaradas as coisas pela
sua face religiosa. Nisto gastei algum tempo, e só agora tão tarde pude aviar os criados...”
Seguia um N. B. deste teor: “D. Clementina mandou neste instante a inclusa carta.”
Viu o padre que o sobrescrito dizia: para a minha filha Eugénia. Abriu.
Continha o seguinte: “Minha filha, não precisas de mim para ser afortunada.
Tens pai, e vais ter esposo. A minha pobre Ricardina é que não tinha
ninguém, se eu lhe faltasse. Recebe a minha bênção, e acode às tribulações do
teu pai quando lhe chegar a hora de as experimentar. A tua mãe, Clementina.”
O abade rasgou a carta de três repuxões, e começou a enfiar as pantalonas.
Esperou a luz da manhã, e chamou Norberto. Mandou selar os dois machos,
foi bater à porta de Eugénia, disse-lhe que ia para fora, e jornadeou para
Lamego. Descavalgou no pátio da residência episcopal. Era noite. Enviou o
seu nome. O bispo, receoso do hóspede. acercou-se de fâmulos, e mandou
entrar à sua presença o abade de Espinho. Apenas se defrontaram, os olhos
do padre Leonardo menos escarlates que as incendidas belfas afunzilavam
faúlhas. Latejavam-lhe as cordoveias do pescoço esticadas pela tumidez dos
gorgomilos, onde as vozes se represavam abafadas pelo rancor. O prelado
esperava, não sem assombro, o estalar daquela borrasca. Estourou enfim,
perguntando com que direito lhe era roubada a mãe das suas filhas. A inépcia
da pergunta fez sorrir o bispo:
— Quem roubou a mãe das suas filhas? A mãe das suas filhas é uma
pecadora, manceba de um padre, e padre pastor de almas?
— É! — bradou o abade.
— Pois se é, incline-se diante de Deus, como ela.
— Quem é Deus? É Vossa Excelência? — disse o clérigo.
— Deus é Aquele! — e apontou para um retábulo em que se figurava o
lance do horto de Gethsemani. Padre Leonardo não seguiu de olhos o dedo
indicador do venerando prelado. Deu dois passos trémulos, apertou entre as
mãos convulsas o chapéu de seda, e rouquejou:
— Sabe quem sou eu?
— Já recebi a notícia do seu nome, Sr. Abade de Espinho.
— Não sou abade de Espinho: sou homem; e, como homem, o meu nome
é Leonardo Botelho de Queirós. Guarde bem de memória este nome, Sr.
Bispo.
— O seu nome não me pertence. Respeite a jurisdição do seu prelado, Sr.
Abade. Queira recomendar-se ao Sr. Bispo de Viseu, que me dizem ser bom
teólogo e exemplar príncipe da Igreja. No entanto, direi ao Sr. Leonardo
Botelho de Queirós o que se diz a todo homem vicioso e corrompido: Nisi
poenitentiam habueritis omites similiter peribitis. Palavras de S. Lucas, Sr.
Abade... Et annuntiabam ut poenitentiam aegerent et converterentur ad
Deum, digna poenitentiae opera facientes. Palavras dos “Actos dos
Apóstolos”, Sr. Abade.
O padre Leonardo não sabia bastante latim: sem embargo, percebeu que o
bispo lhe aconselhava penitência; com o quê, espirrou uma guinada de riso
cínico, e voltou as costas ao respeitável admoestador, dizendo:
— Nós conversaremos em idioma português, Sr. Bispo.
— Necessário lhe será, Sr. Abade de Espinho — replicou suave e risonho
o prelado.
Já se tinha divulgado em Lamego a chegada do tonsurado valentão, que por
ali, na juventude, afamara o nome com façanhas condignas de outras da
começada velhice. Os parentes esperavam-no atemorizados em frente do
paço, e lastimavam a posição perigosa do bispo. Saíram-lhe ao encontro,
quebrando-lhe os assomos com judiciosas reflexões, tendentes a
convencerem-no da desairosa saída que ele ia dando em conjunção de
tamanho melindre para si e mais ainda para D. Clementina Pimentel,
ilustremente aparentada naquela terra.
Reduziu-se algum tanto o abade, assediado de cavalheiros e senhoras, suas
primas, às quais prometeu portar-se de modo adequado ao seu nascimento e
estado. Levaram-no pelos brios jerárquicos. A noite desvelou-a, cansado de
espírito e macerado de corpo, resultas do muito que chutara no macho por
aquelas penhascosas nove léguas da sua casa a Lamego.
Sol nado, saiu do quarto furtivamente e encaminhou-se ao Convento das
Chagas. Esperou que se abrissem as portas, e anunciou-se a sua filha.
Conduziram-no ao locutório, onde já o esperava Ricardina. Algumas
memórias rezam que o padre Botelho de Queirós chorara, quando viu a filha.
Duvida a minha ciência experimental do coração humano. Dê-se, porém, de
barato que chorasse. O que pertence aos factos averiguados desta história é
que o abade perguntou à filha:
— A tua mãe?
— Está doente.
— Quero vê-la.
— Está de cama com febre desde que entrou; mas, se o pai quer, digo-lhe que...
— Preciso falar-lhe — concluiu o pai.
Saiu a noviça e voltou com a resposta:
— A mãe não pode erguer-se; e pede ao pai que a não procure mais.
— Disse-te isso tua mãe?
— Sim, senhor.
— Pois diz-lhe que eu vou mandar a sege dos meus primos buscá-la; que,
se está doente, é melhor tratar-se cá fora.
— A mãe não pode ir, meu pai. O meu dever é evitar que ela se aflija mais
do que está. Perdoe-me, por quem é; que eu esse recado não lho levo.
— Conluiou-se contigo? — bradou o padre. — Estão vocês apostadas a
dar cabo de mim? Pois enganam-se... Lá tenho uma filha a quem amar muito e
dar tudo que tenho.
— Aqui pouco nos basta — replicou Ricardina. — Seja minha irmã feliz.
— Então tua mãe sairia do convento — redarguiu ironicamente o abade
— se eu te deixasse casar com o Bernardo? Responde a isso!
Ricardina abaixou os olhos, e cobriu duas lágrimas com as pestanudas
pálpebras.
— É assim ou não é? — repisou o pai. — O que a tua mãe quer é ser
sogra do filho do Silvestre da Fonte?
— Não se fala em tal coisa, meu pai.
— Não se fala? Então em que se fala? Porque se meteu aqui tua mãe?
— A mim não me conta os segredos da sua alma. Diz que me tem muito
amor, e quer morrer ao meu lado.
— Faz muito bem — concluiu o abade, e saiu mal seguro nas pernas, que
vergavam sob o peso da ira.
Da casa hospedeira escreveu a D. Clementina. A má índole reluzia de entre
contrafeitas expressões de estima. Atraiçoava-se a cada frase. O filho do
Silvestre da Fonte dava-lhe os realces do estilo sarcástico. Arguia a fugitiva
senhora de má filha e má mãe. Que mais ervada injúria podia expedir-lhe ao
coração a proterva alma do padre? Concluída a leitura, D. Clementina
queimou a carta, dizendo à filha:
— É coisa que não podes ler, menina. Manda dizer que responderei,
quando Deus me der força.
Desenganou-se o padre. Os parentes louvaram-lhe notavelmente a sua
prudência e honestidade quando o viram partir, limitando-se a vociferar
maldições à filha, que lhe pervertera o coração da mãe. Seria ridículo, se não
fosse ignóbil, o sedutor da pura e formosa Clementina Pimentel.