Capítulo VI

Agonias

— A tua mãe onde está? — perguntou o abade a Ricardina.
— Penso que está na sala de costura.
— Que venha à minha saleta.
Clementina, ao perpassar pela filha, segredou-lhe:
— Não to disse eu? Falta um dia.
— Anime-se, minha mãe... Diga-lhe que vou satisfeita para qualquer
convento.
Padre Leonardo passeava ofegante ao comprido e através da espaçosa quadra.
— Queres saber uma grande maroteira? — bradou ele, assim que a
senhora pisou o limiar da porta.
— Que é?
— Estava eu na sacristia, quando Bernardo Moniz entrou na igreja e foi
direito a mim. Perguntei-lhe o que queria. Respondeu que o escutasse com
sossego e bondade.
— Fale lá, que eu estou sossegado! — disse-lhe eu. Pespega-me ele então
um grande aranzel, com as bagadas a cair-lhe pela cara, e acabou por me pedir
Ricardina.
— E quem lhe deu ao Sr. Bernardo a ousadia de requestar a filha de
Leonardo Botelho de Queirós? — perguntei eu, que já o não via.
— O coração — respondeu ele.
— Qual coração nem qual diabo?! Não sei o que é o coração! O que eu sei
é que o senhor atreveu-se a pôr os olhos numa senhora que não pode ser nora
do seu pai, percebeu o senhor? E que há de ele dizer? Empina-se com ares de
soberba ofendida, e diz de papo empavesado:
— O meu pai é um homem de bem, e eu sou filho de Maria Clara, esposa
virtuosa do meu honrado pai.
— Sabes que me deram flatos de o esganar mesmo ali, e desfazer-lhe a
cabeça na esquina da porta? Aposto que não entendeste a ofensa que ele te
atirou à cara? Queria dizer que a mãe dele era mais honrada do que tu.
— Se ele queria dizer isso... — observou D. Clementina Pimentel — , tem
razão...
— Tem razão?!
— Sim... pois que sou eu, Leonardo? Que nome me dá o mundo? Que
conceito faziam de mim os meus parentes antes de constar que davas sessenta
mil cruzados a tuas filhas?
— Por isso mesmo é que eu os obriguei à humilhação de virem aqui; por
isso mesmo é que tu hás de lá ser recebida com muitos afagos; por isso
mesmo é que eu amontoei ouro para carregar de dinheiro os miseráveis, até
eles porem o nariz nas pontas das minhas botas, percebes?
— Percebo, sim... mas a sociedade depois há de rir tanto deles como de nós.
— De nós?! Pareces-me parva! Quem é que se ri de mim? Quem é?
— De ti, ninguém, que és homem, e és temido e respeitado, mas de mim...
— Quem se ri de ti, Clementina? Pois eu consinto que sejas escarnecida?
Fazes de mim tão vil conceito?
— Não te aflijas, Leonardo... diz-me o que passaste depois com Bernardo.
— O que passei?... Mandei-o despejar, sob pena de o levar a pontapés fora
do adro... E ele foi-se rebolindo, quando não... fazia-o engolir os dentes.
Pedaço de mariola!... O filho do Silvestre da Fonte vir falar-me da honradez
do bruto do pai e da virtude da maltrapilha da mãe!... Vamos agora à questão
mais importante. Falaste a Ricardina?
— Falei.
— De que bordo está?
— Pronta para entrar no convento.
— Boa palavra. Amanhã cedo faço jornada. Poderei demorar-me três dias.
O convento há de ser longe e seguro. Enquanto vou e venho, arranja-lhe o
enxoval. O que não puder ser, lá se arranjará.
Ao alvejar da manhã seguinte, o abade de Espinho, afastado com Norberto
Calvo no afogado de uma carvalheira, terminava desta arte as suas ordens:
— De dia não lhe atires; vigia-lhe somente os passos, e não me largues de
olho a Sra. D. Ricardina. Ora agora de noite, aponta-lhe ao peito, e deixa o
resto pela minha conta. Percebes?
— Sim, senhor. Vá vossa senhoria descansado, que se eu o lobrigar de
noite, fica onde estiver.
— Não lhe tenhas medo, ouviste?
— Medo! Eu!... Vossa senhoria então ainda me não conhece!
— Conheço-te, homem; mas vocês por aí catam respeito a estes
bigorrilhas... porque são ricos...
— Que me faz cá a mim que sejam ricos!... Eu cá só cato respeito ao meu
amo, e tanto monta atirar ao Bernardo como ao Diabo do Inferno que me apareça!
— Vou descansado, Norberto? O Frazão e o Torto já sabem também o
que hão de fazer...
— Pode ir com o coração assente e ânimo à larga.
Norberto, assim que viu a fidalga, fez-lhe sinal. Desceu logo ao jardim a sua
adorada menina.
— Senhora. — disse ele — , faça favor de avisar o Sr. Bernardo, que não
apareça por aqui de noite. Eu não lhe quero mal; até, se puder salvá-lo, salvoo,
pondo o peito diante dele; mas o seu paizinho deu ordens de atirar a matar
ao Frazão e ao Torto, que são capazes de acertar numa andorinha com uma bala.
Acudiu a sobressaltada menina:
— Manda-lhe lá tua mãe, sim, Norberto? Pelo amor de Deus!
— Não diga pelo amor de Deus, que não é preciso, fidalga. Basta dizer faz
isto, faz aquilo. Eu vou já mandar recado à velha.
Inúteis cautelas! Bernardo Moniz, àquela hora, prostrado no leito, ardia em
labaredas de febre, ou escabujava em contorções delirantes nos braços do pai
e irmãos. O sangue congestionado nos olhos, quando o abade lhe disparou o
último insulto, refluíra-lhe à cabeça ameaçada de desconcerto cerebral.
Estrangulado pelo trago da ira, que a imagem de Ricardina lhe fez retrair,
abraseou-se-lhe no peito aquele lume que lhe escaldava as artérias e coriscava
nos olhos.
À hora da sesta, disse-lhe o irmão que o estava procurando uma velha já
conhecida deles. Aquietou-se de súbito o anseio. Sentou-se no leito, e pediu
ao seu pai que deixasse entrar aquela mulher. O consternado velho retirou-se
com os filhos, e viu com afável rosto entrar a velha de quem ele, esperava
remédio ao seu Bernardo.
Ouvindo o aviso, enviado da fidalga, o jovem saltou do leito, e escreveu estas
quatro linhas: “Queres fugir hoje? Amanhã será tarde, porque me sinto
morrer. O teu pai esmagou-me o espírito, mas o coração salvou-se. Queres
fugir hoje? Queres sentir as delícias de arrancar da sepultura o teu desgraçado amigo?”
Ao fim da tarde, Norberto entregou a carta a Ricardina, e devolveu pela velha
a seguinte resposta: “Jurei a minha mãe que não fugia. O que eu preciso não é
salvar-me das dores que me esperam: é morrer; se Deus me levar primeiro do
que a ti, chamarei a tua alma. Se fores adiante, não hás de esperar-me muito
tempo. A minha mãe tem chorado muito, porque o meu pai veio dizer que tu
a insultaste no seu infortúnio. Não acreditei. Pago-te com esta justiça as
injustiças que me tens feito. A minha mãe é muito infeliz. Atormentá-la ainda
mais com a minha fugida, é-me impossível. Se eu pudesse dar o passo que me
pedes, seria preciso que ela já não tivesse luz nos olhos, nem coração para
mais esta dor. Sê meu amigo, Bernardo; vive por amor de mim. Olha que me
sinto amparada pela tua vida. Se tu morreres, fica-me no mundo somente esta
pobrezinha, que talvez acabe mais cedo do que pensa. Adeus. Se souberes
onde é o meu convento, escreve-me, e pode ser que eu lá te veja. Adeus, que
vem aí minha irmã; e eu já me escondo de todos.”
Influiu santamente no coração de Bernardo a paciência adorável desta carta.
Como corrido da sua pusilanimidade, o desesperado cobrou alentos, à medida
que relia as expressões confortadoras de Ricardina. De esperança não eram
elas; mas sim de exemplar estorço, e valente resistência a porvindouras
agonias. Renovou-se-lhe, em sossegado pensamento, a fuga do mundo para
algum solitário mosteiro. Pintavam-se-lhe na fantasia as doçuras de tribulação
semelhante à de Ricardina. Evasiva que tanto quadrasse ao seu estado não via
outra nem queria já pensá-la.
Resolvidamente lho declarou assim a ela, despedindo-se em reportados
termos e sublime conformidade com os desígnios do Altíssimo. Redarguiu
Ricardina, reprovando-lhe o intento. “Eu não vou por vontade para a
clausura”, escreveu ela. “Vou constrangida: nunca me hei de arrepender de um
passo que sou obrigada; mas tu sacrificas-te sem com isso melhorar a minha
sorte. Eu ia com esperanças de ver-te. Se vais para o convento, acabou-se-me
tudo. Peço-te que não vás. Não sei o que me diz o coração...”
Ao outro dia, por tarde, chegou o padre Botelho de Queirós, e procurou
Norberto antes de perguntar por Clementina.
— Não há novidade. — disse o criado. — Rondámos desde as nove da
noite, ora um, ora outro, até ao dia. Cá em casa não entrou fôlego vivo, e as
fidalgas nem às janelas foram, que eu visse.
— Está bom.
As meninas saíram ao patim da escada a beijar-lhe a mão. Cedeu-a com
repugnância a Ricardina, e afagou as faces da outra.
Ceou bem assombrado, e não releu o livro do sei Fr. Mateus Brandão contra o
ateu Gomes Freire: não leu nada, nem o breviário. O abade de Espinho,
quanto crenças religiosas, era ultraliberal, tirante certas superstições, que essas
eram arquiestúpidas. Dialogou assim com D. Clementina:
— E então? A rapariga? Mudou?
— Não.
— Que lhe disseste?
— Nada. É escusado pregar-lhe. Quer ir para o convento.
— Depois de amanhã. Ficou alguém encarregado de tirar as licenças do
bispo de Lamego.
— Ela vai para Lamego?
— Sim, vai para o Convento das Chagas. Tem um ano de noviciado.
Espero que não chegue a professar. O caso lá muda de figura.
— Não chegará a professar, não... Morrerá antes...
— Deus se compadeça da sua alma. Antes a quero morta que mulher do
filho do Silvestre da Fonte. Os mortos não envergonham os vivos...
— Despedaçam-nos com saudades — atalhou D. Clementina.
— Quando os vivos têm poucos brios.
— Os brios... os brios... — disse ela sorrindo tristemente.
— Sim, os brios! Que tem?
— Os brios de mãe... não o coração, Leonardo.
— E a darem-lhe com o coração!... Querem governar o mundo com o
coração!... A cabeça já passou de moda!... Pois, senhora, eu tenho cá uma regra
invariável... Filha desobediente perde o direito à estima dos seus pais.
— E não perde pouco... Perdi-a eu... e sei quanto perdi...
— Pois por isso mesmo — recalcitrou rudemente o desavergonhado abade
— , por isso mesmo. Vives mal? Estás arrependida? Mais uma razão para que
enfreies as liberdades da tua filha; que não vá acontecer igualar-se contigo na
sorte.
— Deus a mate! — exclamou a senhora, afogada de soluços.
— Está bom! Está bom! — rezingou o padre. — Nada de choradeiras
intempestivas. O mal feito fez-se; o mal possível prevê-se e remedeia-se: é o
que eu faço.
— Bem! — disse serenamente D. Clementina, sopeando a dor. — Queres
que eu a previna?
— Está claro. Amanhã chega a liteira; depois de amanhã faz jornada.
— Quem vai com ela?
— Tu e dois criados. Lá estão em Lamego os meus primos encarregados
de a receber e levar ao convento.
— Não me dispensas de ir a mim?
— Não. É necessário. Quem há de ir? Bem sabes que não conhecemos
senhora nenhuma no caso.
— Mas eu não posso suportar a dor da separação! Como hei de eu
despedir-me da minha filha?!
— Aí tornas tu com lástimas de carpideira! Forte zanga! As mulheres
parece que trazem as lágrimas numa bilha!
— Deixa-me chorar, Leonardo! — clamou ela pondo as mãos.
— Pois chora, chora por uma vez! — vociferou o abade, e saiu de ímpeto
para o jardim.
D. Clementina saiu também, endireitando ao quarto das filhas. Abraçou
Ricardina, e desafogou os soluços a beijá-la nos lábios e nos olhos.
— Vais depois de amanhã, meu amor do Céu!
— Paciência, minha mãe — disse sossegadamente a filha — , paciência!
Que outra coisa esperávamos? Eu já o sabia...
— E hei de ir contigo... hei de ir dar-te o último abraço à porta do mosteiro.
— Último, não, minha mãezinha... Eu pedi a Deus que a mandasse
comigo. Ouviu-me o Senhor. Quem me havia de dar o exemplo da resignação?
Neste lance, D. Clementina, após uma longa pausa, olhando fixamente para a
imagem de um Cristo do oratório das filhas, exclamou:
— Meu Deus, sim? Que pergunta silenciosa fizera ela a Jesus?