Capítulo I


O Abade de Espinho

O abade de Espinho, um dos mais ricos da diocese de Viseu, pecara na
juventude. Coisa rara, senão singular, em abades. A serpe tentadora fizera-lhe
o salto do pescoço de uma bela mulher, onde a mensageira do Averno se enroscara.
Era também gentil o presbítero. Bem pode ser que as línguas farpadas de duas
serpentes se encontrassem na remetida, mutuando-se a tentação. Se a
cúmplice do seu delito não estivesse desvairada dos mesmos filtros, é crível
que fugisse da casa solarenga dos seus pais para a residência abacial do padre
Leonardo Botelho de Queirós? Responda a dignidade e o pudor de quem lê.
Arriscou-se a muito o abade. Clementina Pimentel tinha irmãos assomados. A
residência foi, noite alta, investida e metralhada. O pastor, dado que a ovelha
não fosse do seu rebanho, defendeu-a dos lobos, arcabuzando-os
donosamente. Levantaram o cerco os fidalgos, com reserva de matarem o
raptor no dia seguinte. Padre Leonardo afrontou-se com eles, ladeado de
criados pimpões. Passou ileso, e recolheu-se tranquilo e disposto a não se
deixar eliminar sem desforra antecipada. O pundonor da ilustre família esfriou
depois de uma façanha memorável. Nada menos que lançar mão o morgado
do in-fólio manuscrito da sua linhagem, e raspar freneticamente com uma
navalha o nome da irmã. Feito isto, outro qualquer castigo excederia as
barbaridades mais notáveis.
Passara este caso em 1810. No fim de 1812, Clementina Pimentel era mãe de
duas meninas: Eugénia era a mais velha; a outra, Ricardina. Cresceram
mimosas, educadas senhorilmente, presuntivas herdeiras de bons dotes. A
abadia dava dois contos de réis anuais. Por sobre isto, o padre sucedera na há
rança de tios ricos. Faziam-lhe cem mil cruzados.
Assim que as filhas perfizeram a idade perigosa, o abade entrou-se do
capricho de as casar com primos, sobrinhos de Clementina. Lisonjeava-o
entrar com as filhas na casa de onde fugira a mãe, quinze anos antes. Os
Pimenteis receberam agastados a proposta, enviada por medianeiro hábil.
Depois discutiram menos irritados. Por fim, pediram prazo para refletir. Os
dotes prometidos eram trinta mil cruzados para cada menina.
Os noivos acederam, tirando a partido que a mãe das nubentes se recolheria
em mosteiro, antes das núpcias das filhas. O abade replicou, observando ao
comissário da cláusula que D. Clementina, se houvesse de ser Madalena certo
não se guardaria para tão fora de horas, nem a justiça de Deus levaria em
grande conta um arrependimento aos 40 anos. Em suma, rematou o espírito
forte do padre Leonardo Botelho dando por terminadas as notas diplomáticas.
Voltaram os Pimenteis a refletir. Acharam-se subitamente filósofos.
“Filósofos” vinha a ser “tolerantes”, quando não significasse “despejados”.
— Pensemos filosoficamente — dizia o irmão de Clementina. — As
raparigas que venham com a condição de cá não pôr o pé a mãe.
Comunicaram ao abade a modificação.
— Não, senhor — retorquiu o padre. — Onde as filhas estiverem há de ir
a mãe.
— Pensemos filosoficamente — disseram entre si os Pimenteis. — A mãe
poderá vir alguma vez; mas o abade nunca.
— Não, senhor. — insistiu o abade. — Eu hei de ir com as minhas filhas,
porque lhes quero muito, e decerto dava sessenta mil cruzados com a
obrigação de as não mais.
Não cabia tanta ignomínia no bojo de uma família que procedia de D.
Ordonho I, rei das Astúrias. Debateu-se, ainda assim, três semanas o
escândalo. Venceu a filosofia! D. Ordonho I deu com o capacete na pedra
sepulcral, querendo exumar-se para esfolar os netos quando ouviu dizer:
— Pois deixemos vir o abade. Pensemos filosoficamente. A desonra que
recebemos há quinze anos é coisa em que ninguém já fala. Tudo esquece. Foi
uma desgraça; todas as famílias têm destas nódoas. Já agora, sejamos filósofos
como toda a gente.
O abade ouviu a mensagem, e disse:
— Agora, sim; mas é preciso que mas venham pedir, para depois se
negociarem as dispensas.
Era muito! O apurar tanto o aviltamento dos futuros maridos das suas filhas
denuncia mau carácter, índole retrincada, que seria a desonra de um faquir,
quanto mais de um abade cristão, e, sobre cristão, católico, e, sobre católico,
pai! A baixeza dos Pimenteis não se explica bastantemente com a filosofia.
Causas mais vulgares os determinaram a entrar prazenteiros e submissos na
casa que os seus pais e tios tinham, dezassete anos antes, espingardeado.
Digamos primeiro a mais poética: Eugénia e Ricardina eram belas. Agora a
outra que não tinha vislumbres de poesia: os rendimentos da casa dos
Pimenteis não bastavam à quitação anual dos juros a vários santos usurários
que exercitavam a onzena mediante os seus procuradores chamados “confrarias”.
Em nome de S. Martinho e das almas santas e da Senhora do Rosário, eram
eles citados a miúdo para pagarem os débitos à corte celeste. Se o feito
corresse na comarca dos credores, seria de esperar que os santos cordatos
fossem à mão dos litigantes, admoestando-os a usarem generosamente com os
devedores; mas na comarca de Viseu as sentenças saíam todas contra os
Pimenteis, e já sucedia penhorarem-lhes os frutos pendentes em nome das
almas ou do Senhor S. Joaquim.
Ainda depois de beatificados por méritos de martírio, há santos que
continuam a ser neste mundo flagelados no seu crédito. S. Martinho, por
exemplo, dava aos nus metade da sua capa; agora acontece que a confraria que
lhe zela os cofres cá em baixo, dá a logro o dinheiro dele, e tira a capa a quem
lhe não paga o juro. Casos destes enchem a gente de fé.
E, por causa de tais juros, a fazenda dos Pimenteis ia deperecendo a olho, e as
herdeiras ricas a fugirem dos descendentes dos Ordonhos, dos Mauregatos e
outros príncipes, constantes do in-fólio donde Clementina havia sido cancelada.
Vencidas pois as repugnâncias do sangue e dos brios, Luís e Carlos Pimentel
foram à residência de Espinho, beijaram a mão da sua tia, que os recebeu
enternecida, cortejaram o abade menos amável que criminoso, e pediram suas primas.
Foram chamadas Eugénia e Ricardina. Luís pedia a primeira, que era morena,
olhos negros e vivos, alta e nervosa, altiva e risonha. Carlos pedia a segunda,
que era alva, olhos sonhadores e estáticos, compleição linfática, estatura
mediana, ar melancólico e pudico, um certo quebranto que a poetas daria mais
inspirações que a outra.
Era a primeira vez que viam os seus primos tanto ao pé; nunca lhes tinham
falado, nem suspeitado os projetos do seu pai. O abade proibira à mãe o
mínimo boquejar sobre os seus intentos. “Não quero”, dizia ele, “que as
raparigas, se o meu propósito falhar, fiquem descontentes, e se lastimem da
sua má fortuna; que não vão elas depois remover os tropeços pela sua conta.”
Interrogadas pelo seu pai na presença dos pretendentes, espantaram-se; mas o
espanto operava diversamente nas duas meninas. Eugénia espelhava nos olhos
o júbilo interior: Luís era um galante jovem. Ricardina, porém, deu-se a ver
nos olhos alguma coisa do que lhe ia na alma, era a resolução das lágrimas. Os
lábios da mais velha entreabriram-se, quanto o pudor permitiu, e disseram:
— Faço a vontade ao meu pai.
— E a tua? — perguntou o abade.
— Também.
— Que respondes, tu, Ricardina? — interrogou o padre Leonardo.
— Se o pai deixar... darei a resposta noutra ocasião.
— Deixo — acedeu o abade. — Responderás quando quiseres.
Os primos retiraram-se.
— Aqui há história... — segredou o abade a D. Clementina. — Que sabes
tu do coração desta rapariga?
— Nada.
— Nunca desconfiaste que ela se inclinasse ao Bernardo Moniz?
— Não. O Bernardo veio aqui visitar-nos nas férias do ano passado,
porque tu o visitaste quando chegou de Coimbra. Depois veio despedir-se, e...
— Sei isso — atalhou o padre, comprimindo com o dedo indicador a asa
nasal direita, e assestando à esquerda a pitada de grandes bordos. — O que eu
sei, não preciso que mo digas. Não sabes mais nada?
— Mais nada... e tu?
— Se o soubesse, não to perguntava. Mas creio que há mais alguma coisa.
— Que há de ser.
— Não sei; incumbo-te de o indagar. Não indago, porque as mulheres é
que sabem o segredo de certos escaninhos do coração. Anda tu lá, e olha se te
sais bem.
Clementina foi dar com a filha a chorar ao pé da irmã.
— Que tens tu, menina?! — perguntou a mãe enquanto Ricardina retraía a
face, escondendo-a com o disfarce de andar alporcando os craveiros da sua
varanda. — Estavas a chorar?
— Eu, mãe?
— Sim, tu... Deixa ver os olhos... Ora, se choravas! Pois eu não vi? A tua
irmã que tem, Eugénia?
— Nada.
— Não mintam, meninas! Não se engana a sua mãe. Muitas coisas podem
as minhas filhas esconder de mim; lágrimas é que não... Vem cá, Ricardina,
porque choras?
A interrogada olhou para a irmã como a consultá-la ou a pedir-lhe que a não
descobrisse. Eugénia entendeu a primeira conjetura, e disse:
— O melhor é dizer tudo à mãe, não é, Ricardina?
— O quê?... Ora tu!... — acudiu a enleada irmã.
— É melhor dizerem-me tudo, é... — sobreveio a mãe. — Segredos que se
escondem de mim, pode ser que sejam inocentes, mas não o parecem...
— E não diz nada ao pai, não, minha mãezinha? — condicionou Eugénia.
— Mas que segredos podem ser esses que o pai não deve saber?
— Ah! vês? — exclamou Ricardina. — Bem to dizia eu.
— Pois está bom — disse a mãe. — Se o que for puder passar sem o pai
saber, não lho digo. Que mais quereis, meninas?!
— Então... digo? — perguntou Eugénia à irmã.
Ricardina abaixou os olhos, aplaudindo com o silêncio a revelação.
Começou Eugénia a contar que a sua mana ficara apaixonada por Bernardo
Moniz, desde que o viu. Atalhou logo a mãe:
— Mas ela só o viu duas vezes!... Como se apaixonou depressa!
— Viu-o mais vezes, minha mãe... — contestou a cândida narradora.
— Cá em casa?
— Não, senhora... Via-o acolá em frente nos montados, por onde ele
andava a caçar, e via-o na igreja aos domingos. Ele também se apaixonou por ela.
— Como soubeste que ele se apaixonou por ti, Ricardina? — interrompeu
a mãe. — Quem to disse? Escreveu-te?
As duas meninas mutuaram um relance de olhos consultivos.
— Assim como assim, o melhor é dizer tudo... — deliberou Eugénia. —
Escreveu, sim, senhora.
— Quem trouxe a carta?
— Ninguém.
— Ninguém! Essa é boa!... Então a carta veio sem ninguém a trazer?
— Nós chegámos à janela do mirante ao fundo do passai, quando vimos a
carta entre as roseiras que fazem o pavilhão da janela, e vimos Bernardo da
parte de além do ribeiro a olhar para nós. Foi ele que lá pôs a carta, quando
nos ouviu rir por debaixo da parreira, e supôs que nós íamos para o mirante.
— E depois? — animou a senhora a narrativa, simulando sossego e
nenhum espanto do acontecimento. — A carta que dizia?
— Muita coisa. A mãe verá.
— Isso quando foi?
— Há mês e meio, quando ele veio a férias de Páscoa.
— E que dizia ele?... Vamos lá...
— Dizia que assim que estivesse formado havia de vir pedir ao pai a mana
Ricardina, se ela o amasse e quisesse ser sua esposa.
— E tu querias, menina? — perguntou a mãe com tristeza.
— Eu... se o meu pai deixasse... — balbuciou Ricardina.
— Mas teu pai, filha, não deixa, parece-me a mim. Tiveste uma infeliz
inclinação!
— Porquê, minha mãe? — perguntou Eugénia. — Então o Moniz não é
uma pessoa digna de casar com a mana?
— É... creio que é; mas... O teu pai nunca se lembrou de tal, e mais achava
que o rapaz tinha aparências de bom. Para ele não consentir no casamento,
basta saber que o Bernardo se atreveu a escrever-te. Vós não sabeis como é
vosso pai, meninas?... Não sabeis, não.
Calou-se reconcentrada D. Clementina, e prosseguiu após longa pausa:
— O vosso pai há mais de três anos que pensa em vos casar com os
primos. Quer e não desiste. É lá uma vaidade que ele tem consigo, e já me fez
chorar lágrimas que farte por eu lhe perguntar se não havia neste mundo mais
homens... Ainda outra coisa, filhas... O vosso pai é filho de um fidalgo
distinto, eu nasci numa das casas mais nobres da província, e quer ele que os
seus netos possam dizer que são fidalgos por pai e mãe.
— E Bernardo Moniz... — atalhou Eugénia, querendo defender a não
ignorada procedência do amador da irmã.
— Bernardo, meninas, é filho de um lavrador pobre, que teve uma herança
de um irmão que morreu no Brasil. Quando este irmão morreu, Bernardo
estava em Lisboa a estudar para pintor. O pai, assim que melhorou de fortuna,
mandou-o chamar para casa, e deixou-o ir estudar para Coimbra e mais dois
irmãos. Fez o palacete em que reside agora, e começou a viver à lei da
nobreza. Ora aqui tendes quem é Bernardo, se o não sabeis. Digam-me agora
se o seu pai quererá para genro o filho de um lavrador, ainda que ele seja
muito rico e muito bom rapaz!
— Mas a mãe já nos disse — contraveio Eugénia — que o tio Sebastião
Pimentel lhe mandara oferecer para esposa a prima Matilde.
— É verdade; mas agora te digo que o teu pai quando tal soube, reprovou
a baixeza do tio Sebastião, notando que noutro tempo os pintores só
entravam nas casas nobres para retratarem os donos... Repito que desgraçada
inclinação foi a tua, Ricardina, se a razão não puder mais que o amor. Pobre
filha! — prosseguiu a mãe, encarando-a com os olhos cheios de lágrimas, e o
coração de lembranças da sua paixão única, primeira, e, desde muito, morta!
— Pobre filha, não sei o que te hei de dizer, nem fazer no teu favor, senão
pedir-te que distraias as preocupações desse rapaz! Fazes-lhe grande bem, se o
desenganares; porque teu pai é ainda o homem que sempre foi. Se souber que
Bernardo é causa de rejeitares teu primo, o que aí não irá!... É capaz de... que sei eu!
Ricardina prorrompeu em choro cortado de soluços tão ansiosos que todas as
carícias maternais não lograram aquietá-la.
Neste lance, a porta do quarto abriu-se de repelão. O abade assomou no
limiar. Mãe e filhas estremeceram por igual. Caminhou para elas
mesuradamente, nem risonho nem severo.Olhou de frecha Ricardina, que não
ousava encará-lo. Depois, voltando-se a D. Clementina, disse com boa sombra:
— Não disseste a esta senhora o que eu era capaz de fazer, se Bernardo
estorvasse o casamento dela com o seu primo. Digo-to eu, Ricardina. O que
primeiro farei é avisá-lo de que eu não sou homem que o avise duas vezes. O
jantar na mesa!
Saiu. Ricardina parecia trespassada de um frio que a empedernira.