Capítulo V

Mãe e Filha

Volvidos quinze dias, o académico passou em frente da residência, caminho
da sua casa, com os seus dois irmãos. O abade atravessava o terreiro
intermédio da igreja e residência. Viu-os. Voltou a cara, quando o cortejaram,
e não respondeu à urbanidade dos jovens. Francisco, o terceiranista de
Medicina, disse a Bernardo:
— Vou sacudir-lhe o chapéu com a cauda do macho.
— Não — acudiu o irmão — , peço-te encarecidamente...
— Este clérigo devasso... que mal lhe fizemos nós? — murmurou o indócil
Francisco Moniz, já provado em proezas coimbrãs.
O padre não o ouviu. Seria perigoso ouvi-lo. As antigas clavinas da defesa da
residência eram brunidas mensalmente e experimentadas no alvo em que os
criados se exercitavam. A colérica admiração do médico denota que Bernardo
ocultava dos seus irmãos a carta de Ricardina, e as iras do pai.
No mesmo dia da chegada, o jovem, insensível aos contentamentos da família
e lembranças da infância, que tão doces lhe despontavam os espinhos da
saudade nos antecedentes anos, procurou disfarçadamente a mãe de Norberto
Calvo, consoante Ricardina lhe recomendara em segundo aviso. A prevenida
velha recebeu uma carta e foi de noite em demanda do filho, que de clavina
sobraçada circuitava o muro do passai, segundo as renovadas e mais urgentes
ordens do abade.
Moniz respondia a sabor da sua desesperação. Nenhum expediente se lhe
oferecia, mediante o qual saísse com o intento de senhorear-se airosamente de
Ricardina. Tinha contra si o pai dela e o seu próprio pai, homem ignorante da
corrupção dos costumes, e conhecedor tão-somente de um enorme escândalo:
— a vida do abade. Para Silvestre da Fonte as filhas de Clementina eram...
filhas de tal mãe. Que Deus livrasse algum dos seus rapazes de tentação
matrimonial com alguma das filhas de coito danado! O possante lavrador,
morigerado pela riqueza, já tinha dito que de má vontade daria o seu Bernardo
à filha de Sebastião Pimentel, por ser prima das outras. Com quanta mais
repugnância o não daria à filha de um abade!
Portanto, a saída única e desafogada em tal angústia era a fuga, enlace mais
vulgar então do que hoje. Naquele tempo, o transferir judicialmente uma
noiva da casa paterna para outra era coisa de costa acima, se os executores da
lei tinham de tê-las com pais de sobrado alto e brasão na padieira da porta. A
lei encolhia-se de medo; e as meninas, postas em extremidade, fugiam. Agora,
esta coisa chamada rapto em obséquio ao pudor das voluntárias fugitivas é ave
rara que vai passando à fénix dos fabulistas. Graças à pontualidade do juiz e
do escrivão do bairro, hoje em dia, donzela que foge para casar não tem
desculpa nenhuma, salvo se os seus espíritos romanescos a fazem desadorar
vulgaridades.
Não assim a filha de Clementina Pimentel. Ricardina negou-se às insinuações
de Bernardo, recusando anuir ao plano da fuga. Explicava-lhe o seu grande
amor sem a ruim prova de algum acto indecoroso: queria morrer, amando-o;
mas abençoada de Deus e da sua mãe. Iria para o convento, logo que o pai
mandasse, e de lá; enquanto pudesse, lhe iria dando contas da sua vida.
Tão louvável resposta não demoveu Bernardo Moniz. As inferências que ele
tirou alancearam-lhe coração e amor-próprio. Não há mais desconfiadas almas
que as prevenidas contra o desdém da sua baixa origem. Desconfiadas e
orgulhosas. Entrou-o logo a suspeita da má-fé e mal simulada astúcia de
Ricardina. Arrependera-se, ou ofendera-se da proposta irreverente do plebeu;
lembraram-lhe ou lembrou-se de o conhecer a guardar ovelhas; cedeu às
instâncias do pai ou às seduções do primo; como quer que fosse, não o amava.
Tais eram e tumultuavam as hipóteses no ânimo do filho de Silvestre Moniz,
mais conhecido e sempre conhecido, a despeito de quinhentos contos, pelo
tio Silvestre da Fonte. Replicou alucinadamente o académico às sinceras
esquivanças da menina. Explanou os tópicos comuns dos ofendidos na sua
plebeia vaidade; porque é singular coisa ver assomar-se em arrogâncias de ter
nascido povo, propriamente aquele que reprova a filáucia do fidalgo. E então,
nisto de amoricos de corações desiguais quanto ao sangue, há uns fumos de
altivez agastadiça no homem de baixa estofa, que é preciso muita caridade
sobre a paixão requintada da mulher que o atura.
Ricardina chorou quando leu as acusações iniquíssimas. Desde ingrata e cruel
até desvanecida e pérfida. Esgotou Bernardo o vocabulário das fúrias do
ciúme. Redarguiu o paciente anjo, aprazando-o para lhe fazer justiça com estas
comoventes expressões: “Quando eu estiver no convento, meu amigo, tu me
pedirás perdão. Desde já te perdoo...” Caiu em si o desatinado jovem.
Remediou o mal feito, saneou-lhe a chaga com o bálsamo das lágrimas. Que
importava! Ricardina insistia em não fugir de casa. Apuros de tanto decoro
não condiziam com o exemplo da mãe, cujo passado as filhas adivinharam,
desde que no livro dos batismos descobriram que não tinham pai, ou, se o
tinham, chamara-lhe incógnito o abade, sendo ele, que a si mesmo se
desconhecia, o redator do assento!
Quinze dias, os que restavam ao prazo assinado pelo padre, passaram rápidos.
Ao fim do décimo quarto. D. Clementina disse à filha:
— Ricardina, faz amanhã um mês...
— Bem sei, minha mãe.
— Já pensaste no que hás de dizer?
— Já, minha mãe. Há muito que estou decidida. Quando o pai quiser, irei
para o convento.
— Que me dizes, filha?! Pois teimas...
— Não teimo nada... Casar com o primo Carlos não posso. Com o Moniz
não quer a mãe que eu case. Que hei de eu fazer? O pai determinou que eu
fosse para o convento... vou.
— Mas, olha, filha, vai entretendo, pede mais algum tempo.
— Não sei para quê... Afinal, quanto mais tempo estiver a enganar o pai,
mais ódio ele me ganha. O melhor é ir já. Levo muitas saudades da minha mãe
e da minha Eugénia; hei de chorar muito; mas o que vale é que a minha vida
tem de ser curta.
— Não é de nós que tu levas saudades... — invetivou a mãe com ingrato
ânimo e sorriso amargo. — As tuas saudades ficam onde deixas o coração.
— Está enganada, minha mãe — balbuciou Ricardina. — Sou muito amiga
de Bernardo; mas sou mais ainda da minha família. Se o não fosse... poderia
dar algum passo que lhe causasse muita pena.
— Qual passo? — acudiu D. Clementina, como quem conhecia
experimentalmente os passos usuais em lances análogos. — Que havias tu de
fazer? Fugir?
A filha não respondeu às instâncias iradas da mãe.
— Fugir?, responde... Tu pensas que o Bernardo, se praticasse essa
infâmia, vivia vinte e quatro horas? Não sabes o pai que tens, nem o filho do
Silvestre da Fonte conhece Leonardo Botelho de Queirós! Matava-o, tão certo
como dizer-to eu; e a ti, desgraçada, não sei se te seria melhor ter sorte igual à
do homem que nos fizesse tamanha afronta! Então ele já te convidou a fugir?
— exclamou D. Clementina com raivosos trejeitos.
— A mãe está fora de si! — atalhou amedrontada Ricardina. — Pois eu já
lhe disse que queria fugir, ou que ele me...
— Então que querias dizer senão isso? — volveu a mãe já menos
incendida. — Apre! que estou a suar! Fugir!
Faz-me horror esta palavra! Concentrou-se com amargurados sinais de dor
profunda, a olhar fitamente nos olhos orvalhados da filha; e, à volta de alguns
segundos, repetiu:
— Fugir!... Sabes tu o que é isso?
E, circunvagando os olhos às portas por onde podia ser escutada, continuou
abaixando a voz, quase ao ouvido de Ricardina:
— Eu fugi, filha; fugi, cega de luz infernal; e quando abri os olhos, e
conheci o que era, e sem remédio havia de ser sempre, tornei-me a desgraçada
mais sem consolação que o mundo tem. Olha que eu sou nova. Tenho 37
anos. Vês os meus cabelos quase brancos? Olha tuas tias e as minhas irmãs
mais velhas como estão novas! Não as viste já passar aí a cavalo com tanta
gente ilustre a acompanhá-las? Vinham mostrar-se, para que eu as invejasse e
tivesse pena e vergonha de mim... Tive, filha, tive pena e vergonha. Vi-me
num espelho depois de as ver a elas, e fui com os olhos queimados, de
lágrimas procurar-te, minha filha, a ti e a tua irmã, para me abraçar convosco,
e lembrar-me de que as minhas irmãs não tinham duas filhas, dois anjos como
eu...
Ricardina abraçou-se palpitante de ternura contra o seio da mãe, beijou-lhe as
faces coradas de choro, e murmurou:
— Não se lembre que eu fuja, não? Se fugir da minha mãe, há de ser para
Deus.
— Mas, Ricardina — disse a mãe acariciando-a e em tom suplicante — ,
porque não casas com o teu primo? Não é ele um bonito rapaz? Receias que
ele seja mau esposo? Ah! Eu sei que ele há de amar muito a minha Ricardina,
que é tão linda no rosto como na alma... Filha, a felicidade alcançam-na os que
mais sacrificam as suas inclinações. Verás como tudo esquece, tudo se desfaz,
menos o remorso de uma ação condenada primeiro pela sociedade e depois
pela consciência... Tu não podes entender-me estas palavras, filha... Deus
permita que elas te não lembrem quando as puderes entender, porque serás
então desgraçada como tua mãe...
— Não chore, não chore, minha querida mãezinha — obstou a menina,
alimpando-lhe o choro com o seu lenço.
— E tu que me prometes, filha? — sobreveio D. Clementina, afetando
alivio no sorriso.
— Que hei de eu prometer?
— Casas com o meu sobrinho Carlos?
— Não posso, minha mãe, porque tenho ódio àquela gente. Nunca os vi
nesta casa senão depois que podiam levar daqui não sei que dinheiro. O que
eles querem é que eu e a minha irmã levemos o dinheiro que lá é preciso...
— Tens razão! — exclamou expansivamente D. Clementina. — Tens
razão! A tua alma vê bem as indignidades da minha família! Agora, imagino
quanto será grande a tua repugnância!... Não ta combato... faz o que te disser
o bom anjo das tuas orações... Vai para o convento, vai, meu amor. Os teus
primos não me conheciam antes de saber-se que o teu pai dava trinta mil
cruzados a cada filha. Voltavam-me o rosto, se acaso me viam, quando eu ia
para eles com o coração cheio de ternura!... Eram aqueles mesmos que há um
mês me beijaram a mão... eles, para quem eu tinha olhado com a humildade de
pecadora a pedir-lhes que me concedessem o prazer de os contemplar... e me
deixassem sentir o contentamento de ainda ter família, de pisar ainda as tábuas
em que passei a juventude... Vexavam-se de me ver... — prosseguiu ela com
transportada e veemente cólera. — Fugiam-me e creio até que o pai os
castigaria, se me não fugissem Oh! Tu não sabes as desonrosas condições que
eles puseram, antes de aqui virem pedir-te e a tua irmã... Nem eu tas digo,
porque quero esconder de ti o orgulho do teu pai, orgulho misturado com
baixeza... Ainda assim, quando vi os filhos do meu irmão, alegrei-me,
imaginei-me outra vez na casa dos meus pais, rodeada de família, de tantos
parentes, de tantas amigas, que todas me cuspiram na cara, pensando que não
bastavam as lágrimas para o tormento!... Pobre mulher! Foi uma fraqueza de
que tu me levantas, filha! Ensinas-me a ser nobre na desgraça, e mais não
sabes quanto me cumpria sê-lo... Não to direi; a tua alma adivinha-me... Olha
que eu não posso defender-te, porque teu pai tem vontade de ferro, é
inflexível, e eu valho menos nos juízos dele que a opinião de Norberto e dos
criados, que lhe obedecem e morreriam por lhe satisfazer as vinganças. A
minha filha, não podes contar com a tua mãe, senão para tomar o maior
quinhão das tuas aflições. Se fores para o convento, ainda pode ser que eu
peça à caridade da tua prelada que me deixe lá ir acabar os dias ao pé de ti. Irei
ver-te, se o teu pai me deixar; e, se não for, hei de escrever-te todos os dias,
hei de contar-te a continuação da minha vida, enquanto Deus quiser que eu
seja o exemplo da penitência. A minha filha... O meu querido anjo do Céu...
como eu me sinto tua amiga! — exclamou a senhora, abraçando sofregamente
a menina, que a estreitava ao seio, beijando-lhe a cara. — Fiz-te minha
confidente... Há dezassete anos que esperava esta hora... Dizia tudo a Deus;
mas o coração ficava-me sempre abafado... Respirei agora; já sei que tenho um
coração que se condói... Escuta... — interrompeu-se D. Clementina, fitando o
ouvido — chega teu pai... Que me não veja ele sinais de lágrimas...