Capítulo XII

Esperanças

Às onze horas chegaram a Coimbra dois soldados de cavalaria a todo o
galope, noticiando o assassínio dos doutores e a captura de cinco estudantes,
devida ao povo das aldeias vizinhas, alvoroçadas pelos brados de uma mulher
que testemunhara a carnificina, e aos soldados dos esquadrões do general
Agostinho Luís, que passara na conjuntura de se apinhar o povo na estrada.
Os “divódis” ainda projetaram sair afinados ao encontro dos presos, e
arrancá-los; mas paralisou-os não já o medo, se não a geral manifestação do
ódio público a tão covarde feito. Além disso, a máxima parte da academia
liberal, não juramentada no clube republicano, estigmatizou a protérvia, ao
mesmo passo que tremia de ir incorrer nas suspeitas da justiça.
Francisco Moniz estava na Rua da Calçada, quando a nova se divulgou. Foi
um dos que incitaram o clube a um rasgo de heroica desesperação. Os
aplausos esfriaram logo que os académicos realistas e a gente cordata saíram
armados vociferando contra os assassinos .
Moniz foi encontrar o teólogo fulminado pela nova dos cinco presos.
Ricardina, já também avisada pelo seu criado, pusera as mãos à frente dos dois
irmãos de Bernardo, pedindo-lhes a verdade do que soubessem.
— Senhora — exclamou o médico — , tenha calma! A nossa situação é tão
horrorosa, que eu não sei que lhe diga... senão “coragem”! Por tudo quanto há
sagrado, lhe peço em nome de Bernardo que não agrave com as suas lástimas
a deplorável situação em que nos vemos. Bernardo e mais doze mataram dois
homens. Cinco foram presos. Não sabemos se ele aí vem nos cinco. Se não
vier, há ainda esperanças de salvação... Se é um dos cinco — Ricardina já não
ouviu a última condicional. Desfalecera, amparada nos braços de Francisco
Moniz, quando caiu hirta e lívida, expedindo um arranco dilacerante.
— Salva-a, se puderes... — disse o médico ao irmão, e saiu.
Foi à Ponte, coberta de académicos e povo. Contrafez-se, quando um amigo
lhe disse: “Cuidado, que te denuncias!”
Perguntava serenamente se já viera notícia dos nomes dos presos, e quantos
eram. Cinco, todos sabiam; mas ninguém dava a certeza dos nomes.
Ao meio-dia, entraram os presos por entre as turbas que voz em grita
levantava “vivas” a D. Miguel I. Francisco Moniz examinou o trajo dos cinco
presos, que traziam as caras ainda cobertas, excetuando coiceiro, que entrou
sem o lenço, sorrindo aos conhecidos, e zombando sarcasticamente dos insultadores.
Respirou o médico. Nenhum dos quatro vestia como seu irmão. Correu a
casa, encontrou Ricardina de joelhos, ao lado do teólogo, que também orava.
Abraçou-os ambos, e clamou sofreando o júbilo:
— Não é nenhum dos cinco... Salvou-se...
— Salvar-se-ia?! — perguntou o irmão desconfiado. — Não será ainda
preso, ou denunciado pelos cúmplices?
— Bem fundado receio! — obtemperou Francisco Moniz. — Que
resolves tu?
— Que fujamos.
— Será bastante para nos denunciarmos.
— E pensas que nos salva o ficar? Crês que Bernardo volte a Coimbra?
Nunca mais. Se pôde fugir, procuremo-lo na nossa casa. Que nos disse ele?
Lembras-te? Que levássemos esta senhora a casa do nosso pai.
Ricardina seguia com um vivo movimento de olhos o diálogo dos dois; mas o
restante da fisionomia parecia marasmado. O médico atentava nela suspeitoso
de maus sintomas. Incitou-a com perguntas; mas nem sequer respondia
soluçando. No entanto, o pulso batia aceleradíssimo, e as faces conservavam a
compostura não indiciativa da demência, chamada espasmódica. Levaram-na
ao quarto de Bernardo.
Neste comenos, voltou um académico vizinho com a notícia de terem sido
presos quatro estudantes no Rabaçal, dois na Ega e um em Pereira .
— Isto agora é horrível! — disse o médico ao irmão, chamando-o à escada
para que Ricardina o não ouvisse. — Estão presos doze. Falta um... Que
esperanças temos de que seja este o nosso?... Então é certo que está tudo
perdido, não é?
— Ainda mo perguntas.
— E agora? Fugir?
— Não. Esperemos que chegue Bernardo. Quem o há de socorrer no cárcere?
— E não seremos nós também presos?
— Decerto... E esta desgraçada? Que há de ser de Ricardina?
— Já resolvi, porque tive um presságio de tudo, há poucos momentos.
Ricardina sai daqui com o seu criado, à noite. Vai direita para nossa casa.
— Bem; mas hás de tu acompanhá-la.
— E deixar-te?
— Sim. De que me serves tu? Vai apresentá-la ao nosso bom pai. Contalhe tudo. Vai;
mas acautela-te, que o abade não saiba que ela chegou. Entra de
noite, pelos caminhos menos trilhados. Aí estão os nossos cavalos.
— E terá ela forças? — obviou o teólogo.
— Há de tê-las. Diz-lhe que Bernardo fugiu para casa. Mente-lhe. A
questão é tirá-la daqui. Não há nada mais infernal que saber ela que Bernardo
está preso e arriscado à forca. Tira-ma de Coimbra, que o nosso pobre irmão
suicida-se, despedaça-se contra os ferros, se souber que Ricardina aqui está
contando-lhe os dias da vida...
Entrou Francisco Moniz, entalado de soluços, que em vão forçava reprimir,
no quarto de Ricardina.
— Que é? — clamou ela.
— Boa nova!
— Qual? — acudiu Ricardina erguendo-se ainda com as mãos erguidas.
— Bernardo foi para casa. Está livre.
— Quem o disse?
— Um enviado que ele mandou. À noite partimos para Espinho. Vamos encontrá-lo.
— Vamos? ô Virgem Nossa Senhora! Ó alma da minha santa mãe, que me
ouviste! Vamos encontrá-lo? Tem a certeza disso? Vamos?
— Sim, minha senhora, tenho a certeza de que ele está a caminho de casa e
livre de perseguição.
— Ó meu Deus, quanto sois bom para os aflitos! — exclamou ela,
ajoelhando outra vez, debulhada em lágrimas.
Quem poderia dizer o tormento de Francisco Moniz naquela hora!
Até ao cair da noite, as notícias vindas confirmavam o boato da prisão dos
sete estudantes; mas não se diziam nomes nem sinais. O médico entrou à hora
em que o irmão devia sair com Ricardina. Despediu-se a chorar de ambos, e
disse ao ouvido do irmão:
— Ampara os dias do nosso velho pai, que perde dois filhos. Assim que
souberes que eu fui preso, emigra. Olha sempre por esta infeliz senhora, e...
— Fez uma breve pausa e continuou: — Devo dizer-te que Ricardina é mãe,
se a dor lhe não houver matado o feto. Bernardo já o suspeitava, e com razão.
Aviso-te disto para que te abstenhas de a recolher nalgum convento em tal
estado. Não sei dizer-te o que devas fazer. Pensarás, segundo as
circunstâncias. Tem tu ânimo; segue os conselhos da tua virtude.
Partiram caminho de Viseu. E, ao mesmo tempo, Francisco Moniz, esforçado
pela deliberação de arrojar-se aos perigos, montou a cavalo e saiu pela estrada
de Coimbra. Chegou a Condeixa à meia-noite. Indagou dos presos, e soube
que estavam em ferros quatro, capturados no Rabaçal. Teve meios de os ver
na madrugada, quando saíam do cárcere para meio da cavalaria e povo
armado. Não estava seu irmão entre eles.
Perguntou pelos três que tinham sido agarrados na Ega e em Pereira.
Disseram-lhe que, afora os nove, todos tinham fugido por arte de Satanás.
Ourou-se-lhe a cabeça de alegria. Renasceu naquele momento! Orou: sentiu a
precisão de crer que brilhava um reflexo divino na exultação da sua alma.
Lembrou-se da sua mãe, que morrera chorada dos pobres, porque, ainda em
tempo de pobreza, repartia o pão dos seus filhos pelas criancinhas mais indigentes.
— Agora, guiai os meus passos, minha santa mãe! — disse entre si
levantando ao céu os olhos orvalhados de doces lágrimas.
Meditou sobre o caminho de casa mais desempeçado de perigos. Era-lhe já
aprazível a vida e a segurança. Temia-se de encontrar povo, que o suspeitasse,
e perseguisse. Confiava muito no cavalo, mas receava-se das balas. Aventurouse
com o espírito confiado e enlevado na santa alma da sua mãe. Como a
desgraça, a um tempo, escurenta e ilumina este confuso caos da razão!
Internou-se num caminho travesso que, ao fim da tarde, o conduziu a Santo
António de Cântaro, nove léguas distante de Viseu.
Ao outro dia, por noite, chegou a casa, ladeando as montanhas vizinhas para
não passar na estrada próxima da residência abacial. Ouviram os de dentro o
tropel de cavalo. Correram Ricardina, os irmãos e o velho ao pátio. O teólogo
lançou-se-lhe aos braços, exclamando:
— Perdido?
— Não, salvo.
— Onde está?
— Não sei. Está salvo. Sei tudo quanto queria.
Ricardina, que ouvira o rápido diálogo, lançou-se entre os irmãos,
perguntando:
— Ele não veio?
— Há de vir, talvez hoje, talvez amanhã. Está vivo, minha senhora! E estar
vivo é tudo.