Capítulo VIII

O bem-fazer da morte

Desafogou-se o espírito do abade, negociando rapidamente o casamento de
Eugénia. Sobrepôs nova condição ao noivo: que Luís Pimentel viria para sua
casa, visto que a solidão lhe era penosa. Concordância absoluta dos Pimenteis,
dobradamente satisfeitos da resolução da contrita Clementina. O tropeço que,
apesar da sua filosofia, ainda lhes dava rebates de vergonha, era a entrada
escandalosa da “perdida”, como eles a alcunhavam, na casa cujo brasão de
armas enlameara.
Realizaram-se as escrituras e casamento em princípios de Outubro de 1827.
Luís Pimentel contou os trinta mil cruzados do ajuste, e afagou a esperança de
abarcar ainda os destinados ao seu irmão Carlos. A casa da Reboliça
desapressou-se dos credores que a traziam em agonias de penhoras. Uns dias
por outros, o abade entrava ovantemente nas salas — onde dezoito anos antes
tecera a desonra daquela família — e gizava obras de gosto e primor
arquitetónico, despendendo-se em dádivas computadas para as liberalíssimas despesas.
Era para ver e pasmar os abraços estremecidos que ele trocava com o irmão
de Clementina, um velho ainda fresco, genealógico de polpa, que, no seu
parafusar constante dos ramos esgalhados de D. Ordonho, rei das Astúrias,
vingara tirar a limpo, fora toda a lisonja, que o décimo quinto neto daquele
príncipe foi D. João Afonso Pimentel, 1º conde de Benavente; e que o quinto
neto deste conde casara com D. Isabel Botelho Pimentel, a qual era
duodécima avó de Leonardo Botelho de Queirós. Em conclusão, a
consanguinidade de Queiroses com Pimenteis era tal e tanta que o abade foi
proclamado primo em quinto grau do irmão de Clementina, e os noivos, pelo
conseguinte, primos coirmãos pela mãe, e em sexto grau pelo pai. Com isto, a
consciência dos Pimenteis, no artigo pundonor, desobstruiu-se de travancos
impertinentes. Quase que dispensavam a filosofia!
Correram as coisas mirificamente e a bel-prazer de sogro e genro até fins de
Novembro. Um dia, porém, Luís Pimentel estomagou-se contra Frazão e
Torto, criados de predileção do abade, à conta de eles acobertarem os machos
do sogro com os xairéis dos seus cavalos. Os eguariços abespinharam-se
fiados no arrimo do patrão. Luís remeteu contra eles armado de estadulho; os
agredidos, porém, defenderam-se com idêntica arma, buscando ocasião de o
esquadrilhar com alguma lombada. Aquietou a desordem Norberto, que era
temido dos seus companheiros. Pimentel queixou-se ao abade, exigindo que
os petulantes fossem despedidos. Quis o padre amaciar o genro, obrigando os
seus fiéis criados a darem-lhe satisfação. Luís desprezou tal desforço, como
indigno de si, e sobresteve na exigência da saída dos criados. Contraveio o
padre amontoando razões que lhe atavam os pulsos, fundadas todas em
gratidão aos bons serviços de vinte anos. Redarguiu o genro que, em tal caso,
sairia ele com a sua mulher. O abade encolheu os ombros e esbugalhou os
olhos, como quem diz: “faça o que quiser”. Consultou Luís a esposa:
— Vamos daqui embora, Eugénia?
— Morta por isso estou eu — acudiu a senhora, que idolatrava seu marido.
— O pior é...
— O quê?.
— O dinheiro...
— A quem há de ele deixá-lo? A mana Ricardina vai ser freira. Quem pode
herdar senão nós?
— Dizes bem.
— Vamos — insistiu ela — , que esta canalha dos criados é insuportável.
O pai é tão fidalgo numas coisas e tão plebeu em outras!... Não o entendo.
— E se ele nos for procurar, terás saudades?
— Eu!... Ora!... O que eu quero é ter-te ao pé de mim, filho. Tenho mais
medo que amizade ao meu pai. Quando me lembro o que a minha mãe
padeceu, dá-me vontade de chorar!
— Está decidido — fechou Luís Pimentel.
E, buscando animosamente o sogro, disse-lhe:
— Tio Queirós (desde o descobrimento da duodécima avó, chamava-lhe
tio), visto que não despede os criados, permita-me dizer-lhe que mudamos de
casa. A nossa, na Reboliça, está sempre às ordens de vossa Senhoria.
— Obrigado. Façam o que quiserem. Viverei sozinho. Tenho sobrinhos
em Amarante; mandá-los-ei chamar para aqui. Ainda posso dotar guapamente dois.
— Um Pimentel não se assusta com tais ameaças, tio Queirós... —
redarguiu o genro.
— Então um Pimentel que é?
— É um homem brioso que não vende a sua dignidade por trinta ou cem
mil cruzados.
— Ora, adeus! Um Pimentel... sabe o senhor o que é um Pimentel? Quer
que eu lho diga?
— Ouvirei.
— Um Pimentel... é um asno. Acredite isto que lho digo eu... Em suma,
faça o que quiser e mais a sua esposa.
— Felizmente — retorquiu Luís — que o amor da minha mulher quebra
as pontas desses dardos que vossa senhoria despede contra o marido dela. Eu
não sou tão asno que o não conheça ao senhor.
— Está bom; não me turve o juízo... vá com Deus, Sr. Luís, e deixe-me...
Vá, e pergunte ao seu pai quem eu sou.
Alusão pungentíssima, se o broquel da filosofia a não rebatesse. Na mesma
hora, aparelharam-se os cavalos. Eugénia saiu, sem despedir-se do pai. Era
medo ou ódio? Ambas as coisas talvez, porque o marido lhe reproduzira o
diálogo e a petulante injúria do sogro. Por maneira que está sozinho o padre
Leonardo! Tem que ver o esforço com que ele quer esmagar na alma o pesar
de ver-se desprendido de todos os afetos que alguma hora lhe foram caros. Os
relâmpagos da saudade queimam-no. porque têm o ardor do castigo. Revira-se
contra si próprio, se a solidão o aterra. Quer espancar a imagem de
Clementina e de Ricardina que, a espaços, se lhe figuram sentadas nas cadeiras
à volta da mesa em que ele violenta a deglutinação do bocado. Foge de si
mesmo, e cada hora se sente a cavar mais fundo no lodo da consciência. As
camadas sobrepostas ao remorso são espessas; mas afinal a faísca ressalta,
invade-lhe o peito, e pega-lhe no bravio resseco do coração.
Começa o condenado a temer Deus. A sua fé não transluz da desgraça, nem
do raio influído do alto, nem do reconcentrar-se a indagar a causa dos efeitos:
a sua fé não é senão cobardia, medo de sofrer. O sibarita, estribado no seu
ouro e na provada força das vitórias sobre os reveses. espanta-se da subitânea
transformação da vida. A dor ainda assim não o amolga. Pouco vai além dos
40 anos. Se a alma lhe fraqueja, o corpo reage e sacode de si a importuna
hóspede, sem a qual pôde saborear as coisas boas deste mundo, que todas são
doçura estreme quando assim as tempera o despejo. Está ele já remoçando às
práticas da sua juventude dissoluta. Lembra-se da mulher que antecedera os
amores de Clementina, e da presteza com que a segunda lhe despintara da
fantasia afogueada os traços da outra. Como aquela alma se ia atolando na
lama que o esgoto do remorso lhe desenchia da consciência!
Abrangeu de um lance de olhos as ovelhas mais nédias do rebanho, e andava
confrontando as recenseadas no propósito de eleger a mais de feição para
fazer luz e vida na escuridade das suas salas desertas.
Nestas reflexões com que ia entretendo o mês de Janeiro de 1828 o encontrou
uma carta vinda dos primos lamecenses, com a nova de que D. Clementina
Pimentel estava muito enferma e já desconfiada dos médicos. Acrescentava o
comovido primo que as religiosas, edificadas pela contrição da pecadora,
oravam incessantemente, pedindo a Deus a conservação daquele raro exemplo
da divina graça. Concluía a carta rogando que, em acatamento à opinião
pública, não aparecesse em Lamego, nem fosse de qualquer maneira perturbar
os últimos dias da moribunda.
Leonardo Botelho sentiu a primeira e sincera agonia na alma encouraçada às
dores que dobram as compleições mais rijas. Ficaram-lhe enxutos os olhos
porque as lágrimas são o limbo: além destas está Céu, consolação, desafogo.
Então que flecha vingou fender-lhe o aço do peito? Devia de ser o desprezo,
se não ódio dele com que a asceta Clementina se voltara para as quimeras de
além-mundo, deixando-o apontado como algoz de uma alma, que lhe fugiu
para salvar-se. Esta satânica soberba afogava os germes da compaixão. A cada
assomo de remorso correspondia a força reativa da sua razão, desvanecendolho com
a ira de se ver sem família, ludibriado por uma filha, que o deixa por
lhe ser negada licença para honorificar um vilão; ludibriado pela mãe, que se
bandeara com a filha rebelde; ludibriado pela outra filha, que, decorridos dois
meses de apartamento, não mandara saber do seu pai.
Mais suaves angústias, ao mesmo tempo, eram as de Clementina. A sua cela
desbordava de amigas extremosas que se pasmavam a contemplar-lhe a
paciência invencível às ânsias de uma hipertrofia do coração. Não havia ter as
lágrimas quem lhe escutava o confessar-se do seu desmerecimento para tanto
amor de senhoras sem mácula. Pode ser que a enferma se enganasse no juízo
das caridosas amigas; sem embargo, deviam de ser boas almas aquelas que se
não melindravam de confortar pecadora tão inveterada no crime. Chegada ao
termo, e já entrevendo por olhos baços as alvoradas do dia eterno, disse à
filha:
— Ricardina, deixo-te no meio do teu noviciado. Tens ainda sete meses
para sondar a tua inclinação. Por obediência não professes; se amares ainda
Bernardo, não professes também. Espera com esse hábito o chamamento de
Deus, que te há de mover alegremente. Sem isso não te ofereças a um
sacrifício inútil para o Senhor, e perigoso, e desgraçadíssimo para ti. Não me
palpita o coração — pobre coração que está morto! — qual seja o teu futuro...
Quem sabe! Talvez ainda venhas a casar com Bernardo. Se tal acontecer,
Ricardina, diz-lhe que eu também lhe quis como podem querer as mães aos
que tão nobremente lhes amam as filhas. Era merecedor da tua alma, era...
Deus vê tudo... Espera, filha. Pode ser... eu vou pedir muito ao Senhor que te
deixe ser feliz.
Descansou a doente, atormentada pelas dores do seio, e continuou:
— E Eugénia que não veio ver-me!... Quantas cartas lhe escreveste,
Ricardina?
— Três, minha mãe.
— Que te disse ela?
— Primeiro, que estava também doente... Depois, que estava doente o
primo Luís. À terceira, também...
— Não respondeu?
— Não, minha mãe.
— Pois perdoo-lhe... Se ela se ligou aos meus parentes contra a sua mãe,
também lhe perdoo... Disse-te ela que era feliz?
— Ah! isso escreve ela sempre.
— Ainda bem. O Luís será muito amigo dela?
— Diz que não há esposa mais adorada, e pede-me: que vá gozar a
felicidade que ela goza.
— Não é bom conselho... Cada qual tem o seu modo de ser feliz... E do
pai não diz nada?
— Não se lembra, mãe? Fala muito mal dele... Chama-lhe cruel e bárbaro.
— Pobre homem! Que velhice há de ser a dele.
Neste ponto, recresceu-lhe a ansiedade, agravada pelos soluços tirados do
peito sem ar. Pediu por acenos à filha que lhe chegasse aos lábios o crucifixo.
Apertou-o ao peito convulsivamente, enquanto Ricardina foi chamar as
religiosas das celas próximas. Clementina chamou a si a filha, e volteou-lhe o
braço: pelo pescoço, inclinando-lhe para o ombro a face esmaecida. Nesta
postura entreabriu um sorriso às religiosas soluçantes, arrancou um suspiro
com o qual todo o corpo vibrou, descaiu a cabeça sobre o antebraço de
Ricardina e... já não ouviu os gritos da filha, e o salmear das freiras ajoelhadas...