Capítulo XI

Memórias dolorosas

Neste mesmo dia, foi intimado Bernardo Moniz para comparecer
irremissivelmente em designada hora da noite no clube. O aprazado pediu aos
irmãos que o representassem e no seu nome recebessem o plano da
emboscada.
— Não sei se será a última noite que dou a Ricardina — disse Bernardo.
— O homem do coração primeiro; depois o assassino; são coisas que se
compadecem perfeitamente.
— Não vás à quinta — obstou o médico.
— Que não vá?!
— Que intento levas? Dizer a Ricardina que na seguinte noite vais esperar
a deputação? Tens coragem de lho dizer? Tencionas convencê-la da
necessidade política de tal empresa?
— Não: Deus me livre que ela me julgasse capaz de tal. Uma mulher pode
lá compreender sem horror estas heroicas infâmias?!
— Bem. Mas terás a superior valentia de passar com ela as horas chegadas
ao transe do assalto, sem que a tristeza te acuse? Se podes encarar
serenamente Ricardina, vai. Se receias de ti, poupa-te a essa entrevista. Eu iria
mais depressa trucidar o corpo catedrático e os verdeais que sujeitar-me a tal
dilaceração.
— Pensas bem — condescendeu Bernardo. — Não vou. Irás tu dizer-lhe
que estou ligeiramente incomodado na cama, donde não posso sair dois dias.
Nem sequer posso escrever-lhe... Não posso.
Bernardo já com muito esforço vingava represar as lágrimas; todavia, dos
irmãos não as escondia ele, porque o tremor da voz, a cada instante cortada e
desfalecida, o denunciava. O que o médico fazia, sem auxílio do consternado
teólogo, era pintar-lhe a facilidade da façanha e o segredo inviolável dos
comprometidos.
De aí a pouco entraram dois dos sorteados, íntimos de Bernardo: um era
Domingos Joaquim dos Reis, jovem de 20 anos, índole branda e triste; o
segundo, de 22 anos, gentil rapaz, estudante distinto, e de condição faceta,
chamado Carlos Lidoro de Sousa Pinto Bandeira. Abraçaram-se taciturnos,
desluzidos do menor lume de entusiasmo, pedindo tacitamente coragem uns
aos outros. Neste lance; sobreveio outro sorteado, Bento Adjuto Soares
coiceiro, de 24 anos possante, destemeroso, sedento de perigos, e bom para
zombar deles na aresta da voragem. Entrou representando a passagem de
Orestes, famoso baile trágico, que ele tinha visto representar no Teatro de S.
João em Agosto do ano anterior. Figurou-se ele de Pílades apresentando a
urna com as cinzas de Orestes. A urna era o gorro; e as cinzas eram castanhas
piladas que ele depunha aos pés de Egisto. que vinha a ser Bernardo. Depois,
voltando-se para o filho do capitão-mor de Sintra, exclamou:
— Faze tu de Clitemnestra, ó Reis, que és bonito!
O jovem olhava triste para as truanices de coiceiro. Os outros pareciam
invejar-lhe o grande ânimo ou a carnívora crueldade.
Quase agastado da indiferença do auditório, Bento Adjuto compôs
sisudamente o aspeto e disse:
— Temos homens ou meninas? Podemos contar com treze irmãos
juramentados, ou faz-se votação nova?
— Quem te disse que a nossa seriedade é medo? — respondeu com
hombridade Bernardo Moniz. — Se não rimos das tuas pilhérias, a culpa é
tua, coiceiro. Dá-nos cenas mais salgadas, se podes.
— Folgo de altivez! Sim, senhor! — volveu coiceiro. — Parecias-me agora
grego ou romano pelo tom e pela postura!
— Português, somente — replicou o médico, satisfeito do aprumo do irmão.
Seguiu-se uma prática ordenada a discutir a matéria que na reunião noturna
havia de votar-se. Era simplesmente o local da emboscada; que o restante fora
decidido na véspera. À proporção que se afogueava o assunto, ardentemente
debatido por coiceiro, os três consortes ganharam o entusiasmo próprio dos
anos, e saíram do quebranto em que os atonizara menos o medo das leis que a
repugnância de matar sem o incentivo do extremo ódio.
Assim discorrendo, passaram juntos o dia. Ao jantar, brindaram à liberdade,
transportados pela eloquência espartíaca de coiceiro. O teólogo saíra da mesa
com qualquer disfarce, porque as lágrimas o tornavam indigno daquele
repasto de homicidas, laureados à grega e romana. Ao entardecer, entraram,
um a um, os outros seis dos nove sorteados para a imolação das suas vítimas.
Eram o barcelense Delfino António de Miranda e Matos, chegado momentos
antes de Barcelos , Urbano de Figueiredo, o algarviense Francisco do Amor, o
irrequieto filho do Porto, António Correia Megre, Domingos Barata Delgado,
Manuel Inocêncio de Araújo Mansilha, de Vila Real, António Maria das Neves
Carneiro, do Alentejo. Faltavam dois, cujos nomes a tradição conserva, e o
melindre pede que não se escrevam.
Tocaram-se de novo os copos impulsados pela veemência de que já todos se
tinham conflagrado, sem exceção de Bernardo Moniz, que se distinguiu a
beber. Queria esquecer-se; queria passar da temulência ao crime, turvejando o
coração para que a imagem de Ricardina Pimentel não transparecesse nele.
Noite alta, saíram separados e circularam pelas alfurjas lamacentas dos “Paços
Confusos”, onde negrejava o casarão quase subtérreo das suas assembleias.
Os treze “divódis” sorteados juraram cumprir as deliberações da Junta. Voz
contrária ao acordo feito não se levantou nenhuma. Planearam o assalto e as
medidas de segurança na retirada. Treze homens eram de sobra para matar
dois; urgia, porém, amarrar os caleceiros e criados, incutindo com a sobra
força terror aos outros deputados, menos odiosos e por isso isentos da pena última.
À uma hora da manhã debandaram os conjurados. Quando Bernardo chegou
a casa, já Francisco Moniz tinha voltado do retiro de Ricardina. Referiu ele
que a senhora se afligira com a inesperada notícia; mas sossegara e confiara no
médico, rogando-lhe muito que de manhã lhe desse aviso do estado do
enfermo. A carta que ela recebeu no dia seguinte escreveu-a Bernardo. No
post-scriptum dizia duas palavras das suas melhoras; o restante, que era muitas
páginas, continha um pungente recordar-se da sua infância, desde pastorinho
de um rebanho do seu pobre pai, desde aprendiz de pintura, através dos anos
escuros da sua juventude, alheio das alegrias que o ouro levara à quinta dos
seus avós. Que lhe fazia a ele riqueza? Sempre triste e sonhador nos benefícios
da morte, sempre a desejá-la, até àquela hora roubada aos prazeres do Céu, se
o Céu os tinha iguais à felicidade humana — hora suprema em que ajoelhara
aos pés da mulher amada por espaço de catorze anos, primeiro com o amor
do inocente, depois com a paixão do homem, arrancado à mortalha de um hábito.
Ricardina leu alvoroçada a longa carta em que apenas se lhe transluzia palavra
de esperança. Devia de estar muito escurecida e excruciada de maus presságios
a alma que se empenhava tanto em desafogar vagamente angústias sem
justificado nem claro motivo! Manteve-se Ricardina todo o dia pensativa e
chorosa, ideando conjeturas despropositadas até ao desatino de entrever a
possibilidade de ser aborrecida do homem a quem não dava o contentamento
absoluto. A suspeita seria incompatível com a inocência, se Ricardina
ignorasse do coração humano as revelações que a triste mãe lhe fizera no
convento, contando-lhe, com expansão de amiga, o castigo da sua cegueira.
E, como durante o dia não recebesse notícias de Bernardo, nem às dez da
noite o médico tivesse ido explicar-lhe a tristeza do irmão, Ricardina, às onze
horas, ordenou a um criado que lhe ensinasse o caminho e casa do seu amo.
Espantou-se, mas não a contrariou o servo. Saiu Ricardina, a pé, atravessando
os choupais que entremeavam por distância de légua e meia. Soavam três
horas da manhã, quando o criado lhe mostrou a janela do quarto de Bernardo
Moniz. Via-se luz pelos resquícios das portas entrecerradas. O criado bateu.
Abriu-se outra janela, e saiu o médico perguntando. Respondeu o criado
conhecido. Desceu Francisco Moniz atemorizado e perdeu a cor e a voz
quando viu Ricardina.
— Aqui... — balbuciou ele.
— Venho ver Bernardo... — disse a senhora entrando e subindo ofegante
de cansaço.
— Jesus! — murmurou Moniz.
— Que é?! — exclamou ela, aterrada pela hesitação do médico. — Ele está
pior?
— Não, minha senhora, não está; mas...
Ricardina subiu pressurosamente as escadas; e, como no primeiro andar
ficasse perplexa sem saber por qual dos lados entraria, chamou Bernardo em
gritos aflitivos.
O teólogo, que vinha então saindo do seu quarto, deu com ela de rosto, e
disse a meia voz:
— Sra. D. Ricardina, entre, entre. O meu irmão não está em casa; mas
volta daqui a poucas horas. Peço-lhe encarecidamente que não levante a voz;
porque será perigoso saber-se que o meu irmão Bernardo não está em casa.
— Mas aonde está? — murmurou Ricardina a tremer.
— Queira sentar-se e sossegar. Conversaremos de espaço.
— Mas diga-me pelo amor de Deus que é isto? Ele escreveu-me uma carta
muito amargurada... Ai! que o meu coração me disse que havia uma grande desgraça.
— Grande desgraça, não, minha senhora — interveio o médico. — O
mano Bernardo foi tratar de certos negócios respetivos à política; não podia
deixar de ir esta noite; mas na volta das dez horas da manhã está em casa.
Descanse, menina. Perigo não terá nenhum, se os seus gemidos não chegarem
à casa deste lado, onde moram estudantes, e podem suscitar desconfianças.
— Então o pai procura-me? — interrompeu ela sem entender de outra
sorte o perigo das desconfianças.
— Não, minha senhora. O seu pai está na abadia — prosseguiu o médico,
logrando prender-lhe o agitado espírito. — Dizem-nos cartas da terra que ele
tem ataques de fúria e ameaça o nosso velho pai de lhe queimar as casas; mas,
querendo Deus, a proeza não lhe será fácil, salvo se, como lá julgam, ele
capitanear algumas guerrilhas que já se movem na Beira a favor de D. Miguel
absoluto. Não é, porém, de esperar que o pai de vossa Senhoria, além de
sacerdote, cavalheiro, e sobretudo ministro de paz, se manche nas demasias
populares, sobrepondo em si toda a responsabilidade das malfeitorias que se
praticarem. O seu pai não será tão rancoroso que, sabendo que a Sra. D.
Ricardina é esposa do nosso irmão... Não tardará que seja. Vi uma carta do
capitão-mor de Sintra anunciando ao filho que na volta do segundo correio,
viria a provisão régia para se realizar o casamento, sem intervenção do pai de
vossa Senhoria.
Prolongou-se a prática, em que D. Ricardina escassamente falou, até às seis da
manhã. Queixou-se ela de forte dor de cabeça. O médico e o teólogo saíram
da alcova de Bernardo, pedindo-lhe que conciliasse o sono. Eram sete horas,
quando Ricardina caiu num marasmo sonolento com intermitentes de dormir
e despertar sobressaltado.
À mesma hora, uma légua além de Condeixa, no sítio chamado Cartaxinho,
saíram de súbito à comitiva da deputação treze homens armados, com os
rostos mascarados ou cobertos de lenços. Pararam as caleças em frente das
clavinas abocadas aos peitos dos condutores. O agressor que parecia
acaudilhar a jolda aproximou-se das caleças, com a arma inclinada sobre o
antebraço esquerdo, cotovelo levantado, e o dedo no gatilho.
— Saltem cá fora! — bradou ele.
Os lentes e os cónegos apearam.
— Sigam para além — disse Bento Adjuto, apontando para uma charneca
na ourela esquerda da estrada.
Os treze formaram filas ao lado dos deputados, de três inocentes meninos
parentes deles, e dos caleceiros e criados. Dados alguns passos, maniataram os
arneiros e criados. com ameaça de os arcabuzarem se boquejassem um
gemido. Em seguida emboscaram-se com os outros na espessura de árvores
mal folhadas ainda.
— Deitem-se em terra! — ordenou coiceiro.
Enquanto os deputados se estiravam, exclamando clamorosas súplicas,
Bernardo acercou-se do companheiro que cavalgara um possante cavalo do
deão, e disse-lhe:
— Queres matá-los todos?!
— Sei o que faço — respondeu Bento Adjuto.
— Mas não é isso que se tratou.
— Amarram-se? — perguntou Megre.
— Nada de amarras, nº 5 ! — respondeu o comandante, que assim se
arvorara por se ter em conta de mais sanguinário. — Segurem-nos a punhal e
tiro!
Detonou a descarga de cinco arcabuzes. Os crânios dos dois lentes, Mateus e
Figueiredo, abriram largas fendas por onde esvurmava o cérebro sanguento.
Aos outros! — bradou coiceiro.
— Isso é atroz! — atalhou Bernardo.
— Aos outros! — repetiu o chefe. — Leva rumor. Nº 2!
Outra descarga de três tiros feriu gravemente os cónegos, e levemente os dois
meninos. Bernardo remessou o bacamarte, exclamando:
— Isto é infame!
— Não se alteraram as ordens — redarguiu coiceiro. — Os outros não
morrem... não apenas avisados. Agora, fujamos!
E desataram em velocíssima corrida pelas gandras marginais da estrada.
— E a lista dos acusados? — perguntou Matos.
— Deve estar nos baús — disse coiceiro. — Voltemos atrás!
Voltaram às caleças; arrombaram os baús; encontraram papéis, que rasgaram,
e, entre a roupa, alguns saquinhos de dinheiro.
— Ser-nos-á necessário? — exclamou um dos treze.
— Deve ser... — respondeu outro, dando o exemplo de embolsar um dos
sacos.
— Outra infâmia! — murmurou Bernardo Moniz, rompendo a fuga com
os dedos fincados na cara, e afastando-se dos companheiros.
— Olha que não é esse o itinerário! — lhe bradou Urbano de Figueiredo.
— Já não recebo ordens — replicou o beirão, cosendo-se com uma
ribanceira.
— Deixá-lo ir — disse coiceiro. — A ocasião é má para o fazer entrar na
ordem... Sigam-me.
Três dos treze detiveram-se um momento, indecisos sobre seguir Bernardo ou
coiceiro. Decidiu-os pelo primeiro o apoio que lhe tinham dado na
repugnante e desnecessária crueldade afeiada pela ignomínia do roubo.
Uniram-se, pois, os quatro nomes que ninguém ouviu nos pregões levantados
desde o Limoeiro até à forca, no dia 20 de Junho de 1828. Um dos três, que o
seguiram, era António Maria das Neves Carneiro.
A minudenciosa descrição dos factos decorridos desde o crime até ao suplício,
na morosa agonia de três meses, é alheia do nosso intento. Escreveram pouco
do feito reprovadíssimo os coevos. Propriamente os liberais esconderam o
rosto para lhes não bater a bofetada dos inimigos. As lágrimas, derramadas no
seio das famílias, cobertas de vilipendioso crepe, não bastaram a fazer levantar
olhos piedosos às cabeças de Matos, Megre e coiceiro, expostas nos ângulos
da forca.
Não paremos diante deste espetáculo, leitor. Se tem filhos, se um dia os há de
afastar longe de si, onde os braços do seu amor não cheguem para salvá-los,
pense e chore. Depois, estreite-os ao coração, deixe que eles se revejam nos
seus olhos embaciados de lágrimas, e diga-lhes:
— Todos estes jovens tinham mãe ou pai que os choraram. Até a sepultura
lhes foi defesa; porque não houve aí pai que ousasse pedir os ossos do seu
filho. E, se a tivessem, o estigma de indelével desonra seria tal sobre a pedra
dos infamados, que o insulto do mundo responderia aos gemidos da oração.