Capítulo XIII

Norberto Calvo

Bernardo Moniz, António Maria das Neves Carneiro e os dois inominados
fugitivos , quando ouviram o tropel de cavalos e grita do povo a distância tão
curta que apenas se interpunha o rescaldo de um outeirinho, desceram por
barrocas precipitosas procurando o sopé da escarpa que entestava com um
ribeiro fundo, cortado por ponte de um arco.
Chegados ao rio, lançaram-se à corrente, e foram ao arrepio até ganharem,
acobertados pelos salgueiros, o arco da ponte. A este tempo, já o alarido e
tinir das espadas nos ilhais dos cavalos soava perto deles ao alcance de tiro.
Cingidos com o arco, fincados às pedras escorregadias dos limos, e com a
água pelos peitos, ouviram a estropeada da cavalaria que passava a trote pela
curvatura da ponte vacilante. Os aldeãos corriam na frente dos cavalos,
galgando a ladeira da outra margem, e opinando desencontradamente. Uns
diziam: “Ficam já atrás!”, outros teimavam que os tinham visto passar num
teso distante dois tiros. A maioria decidiu-se pelo testemunho ocular, e
redobrando a velocidade da carreira, transpuseram todos de roldão as
penedias e pinheirais que recortavam o horizonte.
— Não sei qual das mortes é mais suave, se a da pólvora quente se a da
água fria... Hei de consultar o corpo catedrático... — disse António Maria
Carneiro, tiritando em convulsões glaciais.
— Parece-me que esta morte é a mais ignominiosa das duas — observou Bernardo.
— Séneca morreu num banho; mas banho de água tépida — disse Carneiro.
— Os Romanos sabiam morrer confortavelmente — disse o padre.
— Vamos ver se ainda conservamos a natureza de focas? — disse
Carneiro. — Declaremo-nos animais anfíbios, e vamos um pouco para terra.
— Parece incrível — disse o outro inominado — que vocês, depois de
uma hora de molho, ainda tenham sal! Eu declaro-me estúpido como um carapau.
— Sejamos cordatos — volveu António Maria — . Parece-me acertado
que não nos deixemos matar, ou pescar, que importa o mesmo, se não é pior.
Sair daqui é temeridade; passar para acolá é prudência, porque ali reflui menos
água, e poderemos esperar algum tempo a ver se o inimigo retrocede.
— Pois vamos para além — concordaram, atravessando de mãos dadas até
se acocorarem cosidos com o pilar em frente.
O padre, passada meia hora de silêncio nos caminhos e montes, pediu que o
deixassem espiar de um alto por entre os rochedos.
— Vai — disse António Maria — , mas não faças como a pomba da arca.
Em vez de ramo de oliveira, traz algum fruto destas árvores paradisíacas.
— Bolotas, por exemplo?
— Boletas, é mais português. Ceva-te, e conduz as que te sobram.
Volveu o futuro comandante do corpo legionário da Junta suprema. dizendo
que não vira fôlego vivo.
— Nem morto? — perguntou António Maria. — Convencidos de que
somos anfíbios, convinha saber se também somos carnívoros. Qual de vocês
não comia agora um boi?
— Eu por mim — disse Bernardo — não tenho sombra de apetite. O
homem é uma rija monstruosidade, não te parece?
— Rija e abominável... — acrescentou o alentejano. — Esta força que nos
permite encarar sem lágrimas a nossa situação, que é? Impassibilidade de tigre
que estende as garras sobre o cadáver da presa e encara destemido o caçador
que lhe faz a pontaria às espáduas. Nenhum de nós se lembrou ainda que está
desgraçado e perdido para sempre?
— Todos se lembrariam... — murmurou Bernardo.
— A perdição relativa — emendou o padre.
— Que é a perdição relativa? — perguntou Carneiro.
— É a comparada ao aproveitamento que se perdeu. Eu não acho
abominável a valentia da alma, que sobreveio à fraqueza de um vil feito.
Quando a tristeza me cravar as unhas, hei de sacudi-la. Tenho ao meu favor
que o remorso de assassino me não há de entrar no peito com ela.
— Mas a honra, a pátria, a família?... Que coisas são estas, padre?
Poderemos jamais restaurá-las?
— Não sei. Conservemos a vida.
— Boa palavra! — disse António Maria. — Segue-se portanto
deliberarmos acerca do nosso destino. Para onde vais tu, Bernardo?
— Para minha casa, e de lá não sei para onde.
— E tu, padre?
— Para onde os fados me levarem.
— César era mais cristão, que disse Deus e não fados. Quo Deus
impulerit. E tu? — perguntou ao inominado.
— Que sei eu! Não tenho mãe, nem pai, nem irmãos Leva-me contigo.
— Eu vou para o Alentejo, e de lá para Espanha. Mas é forçoso que
sigamos daqui avante separados. A união pode perder-nos. Quem quiser
untar-se comigo, e quinhoar do meu pão, espere-me ou espere na raia de Espanha.
Ao cair da tarde, abraçaram-se e deram o último adeus com os olhos enxutos .
Três léguas arredadas do ponto em que se afastaram pensou Bernardo Moniz
que teria palmilhado, quando, ao romper da manhã, se sentiu desfalecer de
cansaço e extenuação. Não obstante a sua crença da rija monstruosidade do
homem, pensou que a morte lhe não deixaria ver as alvoradas de mais um dia.
Figurou-se-lhe uma visão que lhe dulcificava a morte. Ricardina com a cara
caída para o peito, amarelida e arregoada de lágrimas já frias, ia também
morrer. Os objetos mostravam-se-lhe todos à feição da sua agonia. As nuvens
alvacentas, as estrelas esmaecidas, as boninas, as árvores, os fraguedos, os
córregos, tudo se lhe desfazia num vórtice de cinzas, que lhe regirava em
redor da cabeça aturdida. O desgraçado apertava as fontes e cerrava os olhos.
Queria reabri-los para os levantar à piedade do Céu. Recrudesciam-lhe as
angústias; mas as do coração não as sabia extremar das outras. Pendeu a face
sobre os joelhos, enclavinhou os dedos sobre a cabeça, e disse entre si:
— Quem me dera morrer...
Nasceu o Sol. Os primeiros raios aqueceram-lhe as mãos. Espertou da letargia,
com renovado alento, como se anjos andassem nos infernos desta vida em
busca de uns infelizes que Deus ainda não condenou. Ergueu-se cambaleando,
encostado às árvores, que o ajudavam a ensaiar as forças. Olhava à volta e ao
longe. Quem lhe poderia dizer onde estava? A distância de meia légua viu uns
coruchéus de torres por entre nevoeiros. A vinte passos de distância alvejava
um trilho de pé posto que descia da serra por entre olivedos, e se espraiava
num caminho espaçoso.
— Estou perto de uma estrada e de uma vila — pensou Bernardo. —
Perdi-me, provavelmente. Caminhava para a serra, e estou numa chã povoada.
Quando sair gente aos campos, serei preso. Mas, se volto a embrenhar-me nas
matas, lá me colherá a morte. Que importa aqui ou além?
Viu passar dois caminheiros na estrada. Apalpou as algibeiras. Tinha ouro que
chegue para comprar o segredo e a piedade de um pobre. Aproximou-se do
caminho. Atravessou-o para um bosquete de olmos. Esperou largo tempo.
Ninguém passava. Assomou na revolta da estrada um cavaleiro a trote.
Primeiro, o fugitivo recuou para a espessura dos olmos; depois, sem temor
nem alento, levado automaticamente pela indiferença de morte ou vida,
aproximou-se da estrada, disposto a perguntar ao viandante que terra era aquela.
O passageiro, a poucos passos de distância, deu tino do outro que o esperava,
apoiado o ombro contra uma árvore. Sofreou as rédeas do macho, estacandoo de súbito.
Bernardo Moniz não lhe via senão os olhos; que o viageiro se envolvia num
farto capote de saragoça, e as abas do chapéu lhe cobriam os ombros. A
paragem repentina do macho e a fixidez do cavaleiro deviam aterrar o
foragido; mas nem de leve o abanaram. Desencostou-se da árvore, deu dois
passos vacilantes para o outro, e disse:
— O senhor faz favor de me dizer que terra é aquela onde se vê uma torre?
— Ó Sr. Doutor!... — bradou o assombrado passageiro, deixando cair as
bandas do capote. — É Vossa Senhoria?... É o Sr. Doutor?
E, dizendo, apeou de um salto, e correu para Bernardo Moniz que lhe abria os
braços, exclamando:
— Tu aqui, Norberto!... Que vens fazer? Onde estamos nós?
— Perto de Condeixa, senhor.
— De Condeixa?! Ó meu Deus! Pois eu estou em Condeixa? Andei mais
de três léguas e estou no mesmo ponto donde fugi!
— É meia légua daqui lá... — disse Norberto. — Querem ver que vossa senhoria...
— Acaba, meu amigo!... Perguntas-me se sou um dos desgraçados
estudantes que mataram os lentes?
— É que ali atrás encontrei muita gente no sítio onde os mataram, e fui
ver o sangue. Valha-me Deus!... Vamos embora daqui, porque andam esses
caminhos até Freirigo cheios de povo na cola dos estudantes, e já lá vão para
Coimbra nove, que eu ouvi dizer. Salte para cima do macho, Sr. Doutor.
Vamos sair da estrada por este caminho de cabras até arribarmos lá prá serra.
Ande depressa que não vá o Diabo armar das suas. Vossa Senhoria está a
perder a cor... Valha-me S. Pedro.
— Não como há dois dias, sinto-me a desfalecer... — murmurou Bernardo.
— Há aqui que comer, graças a Deus. Os alforges trazem provimento.
Toca a sair da estrada, que é o principal.
Bernardo Moniz cavalgou ajudado pelo ombro de Norberto Calvo. Subiram o
escarpado trilho por onde o fugitivo descera à estrada, e contornearam a
parede de uma devesa de carvalhos até encontrarem passagem para dentro.
Depois, como a bouça era entremeada de grandes clareiras, visíveis dos
picotos da montanha eminente, prosseguiram até se embrenharem num
pinhal, cujas ramarias estilavam ainda o orvalho da noite.
Apeou-se Bernardo nos braços do confidente de Ricardina, e voltando-se
peito com peito abraçou-o com efusão de lágrimas, exclamando:
— Foi Deus que te enviou no meu socorro, meu amigo!
— Agora é comer! — disse Norberto, despejando os alforges. — Ainda
temos meia galinha, dois salpicões cozidos e pão branco. Vinho não no há;
mas bebe-se água, que corre lá em baixo um regato. Ande-me, Sr. Doutor!
Coma bem, se tem vontade. Olhe esta perna de galinha; vá misturando com o
salpicão. Se quiser água, vou-lha buscar nas abas do chapéu. De fome já não
morremos hoje. O pior é o macho, que não come rama de pinho; mas o
descanso também é mantença.
Recobrou cores o estudante assim que deglutiu os primeiros bocados.
— Para onde ias, Norberto? — perguntou Bernardo.
— Para Coimbra.
— O teu amo já sabia da morte dos lentes?
— Não, senhor; pois como havia de ele saber, se eu fiquei atónito, quando
mo contaram ontem à noite na estalagem de Porto Coelheiro!
— Mas que caminho trouxeste de Viseu para aqui?
— É que o meu amo mandou-me à Redinha com carta a um fidalgo não
sei para quê. Acho que é coisa de partidos pra se levantarem guerrilhas por
todo o reino; que eu também desconfio que o Sr. Abade o que quer é saber se
está em Pombal o corregedor que fugiu de Viseu quando meu amo saiu da cadeia.
— Mas que ias tu fazer a Coimbra?
— Ia ver a fidalga. Vossa Senhoria já casou com ela?
— Ainda não.
— Pois é preciso casar, senão arrenego-me, e vai tudo cos diabos. É ao
que eu ia.
— E sabias onde ela estava?
— Não; mas o meu objetivo era procurar o Sr. Doutor, e dizer-lhe:
“Quero ver a minha menina; diga-lhe que está em Coimbra o Calvo.” Morra
eu, se ela me não mandasse logo entrar!
— Mandava, Norberto; mas, se a quiseres ver, hás de ir a casa do meu pai,
onde ela deve estar a esta hora.
— Vossa Senhoria que me diz! Em casa do seu pai!?
— Sim.
— Oh! Com mil diabos! Se o abade o sabe! Olhe que ele já tem mais de
trinta homens a receber soldada para saírem armados à primeira ordem. Só lá
em casa tem sete de Midões a comer e beber e a ganhar doze vinténs por dia.
Os outros estão à espera que eu os vá reunir. E ninguém me tira da cabeça
que a primeira faxina é em casa de vossa Senhoria; depois não sei se escapará
a família da Reboliça, e mais tem lá casada a Sra. D. Eugeninha. Diz ele que os
há de perseguir até os meter no Inferno aos fidalgos lá da parte da senhora
fidalga velha que Deus lhe fale na alma. De maneira que a Sra. D. Ricardina
foi mal guiada lá para Espinho; que não vá isso assanhar mais o pai e ir aí o
diabo a quatro!
Prolongou-se a conversa animada. Combinaram sair de noite, e seguir a
estrada até encontrarem vereda transversal que por entre serranias os levasse
ao Criz. Ao meio-dia, Norberto foi a Condeixa sob o disfarce de saber
notícias dos estudantes presos. Proveu-se de alimentos, arraçoou o macho
fartamente, e voltou ao pinhal onde deixara Bernardo Moniz enroupado no seu capote.
Assim que escureceu, tirou o bacamarte do arção, escorvou-o com pólvora
nova, acomodou o estudante, agasalhando — lhe as pernas entorpecidas da
submersão em que as tivera debaixo da ponte, saiu à frente do macho, e disse:
— Vamos lá com Deus! O Sr. Doutor, se vir que nos sai gente, não espere
por mim. Esporas ao macho, e não olhe para trás. Eu lá irei ter, se me
deixarem. E se eu por cá der a ossada, diga Vossa Senhoria à Sra. D. Ricardina
que o Norberto sabia ser amigo.