Capítulo III

Reações

— Jantar na mesa! — tinha dito imperiosamente o abade.
Jantou à tripa-forra, tomou café placidamente no caramanchel do jardim,
mandou passear as filhas, e ficou palestrando com D. Clementina em assuntos
alegres conducentes à elaboração de um bom quilo.
Em seguida, foi vendo os frutos vingados nas árvores, e conversando em
termos brandos com a senhora, que lhe admirava o sossego, sem atrever-se a
abrir-lhe oportunidade para falar da filha.
Deu ele azo perguntando a D. Clementina que lhe parecera Ricardina.
— Pobre pequena! — disse a medo a senhora.
— Bem pobre... — confirmou o abade.
Nisto, como o sol ainda apertasse, entraram num túnel de murtas e ciprestes,
que não deixavam ao sol zebrar o chão apaulado, nem entrever para fora,
onde se levantava em cerco um renque de faias entrelaçadas com olmeiros. E
conversavam.
Norberto Calvo tinha visto as duas meninas no pomar. Ricardina estava
chorando encostada ao seio de Eugénia. O criado não ousou perguntar a sua
ama porque chorava. Afastou-se triste, e foi trabalhar no campo convizinho
do túnel. Quando passava, ouviu a voz do abade. Aproximou-se de mansinho,
movido pelo desejo de entender as lágrimas da sua adorada salvadora, e ouviu
o seguinte:
— Estás enganada, Clementina. Eu não obrigo a filha a casar contra sua
vontade; e também não consinto que ela case contra a minha. Estes extremos
têm o termo média, que é não casar com o teu sobrinho nem com Bernardo
Moniz. Não há pai mais indulgente. Outro qualquer dizia-lhe: “É para diante.”
Eu não. Fique embora solteira; mas case-se com o divino esposo.
— Freira! — atalhou a senhora.
— Porque não? Freira, e o mais tardar um mês. Mas não freira à moda —
freira delambida e derrancada de chichisbéus em grade. Freira, segundo o
instituto, é que eu a quero. Esposa fiel do Espírito Santo. Convento austero e
pobre. A riqueza das ordens monásticas é regalo de corpos e fermento de
vícios... Hei de pensar ainda a este respeito. Não sei para onde irá.
— E para além do mais freira pobre! — disse D. Clementina. — O teu
meio termo é violento, Leonardo! Antes Deus ma leve.
— Deus que a leve, se quiser. Por enquanto o que eu quero está dito e há
de cumprir-se... Nada de lástimas, Clementina! Que queres tu? Justificas o
amor da tua filha ao pintor?
— Não, mas...
— Queres ser avó dos netos do Silvestre da Fonte?
— Mas, meu Deus! — exclamou D. Clementina — nós não sabemos ainda
em que ideias está a nossa filha. Esperemos que ela pense e mude de
sentimentos.
— Pois sim, esperemos. Isto não vai de afogadilho. Tem trinta dias para
pensar e repensar. Em todo o caso, a questão reduz-se a uma de duas: casar
com o primo Carlos, ou ser freira. Uma observação: daqui até que ela se
resolva, nesta casa não entra pessoa estranha. Hei de ter boas espias... Carta
que eu apanhe, entra em buchas no corpo de quem a cá mandar.
— Quem há de cá mandar cartas?! — acudiu a senhora. — O Bernardo
está em Coimbra...
— Está de volta para casa. Já começaram os actos. Não me faças reflexões,
que eu sei sempre o que digo e porque o digo.
Retirou-se D. Clementina para poder chorar desabafadamente. Ao mesmo
tempo, Norberto Calvo, sumindo-se a coberto das ramagens das faias, baixouse a segar serradela no ervaçal.
— Estás aí, Norberto? — disse o abade à entrada do túnel.
— Saberá vossa senhoria que sim, senhor. Cheguei agora.
— Vem cá. Tenho que te dizer.
Abeirou-se o criado.
— Toma tento, homem. Não me saias do passai por este mês mais
chegado, entendes?
— Sim, senhor.
— Pessoa conhecida ou desconhecida que bata ao portão, não entra sem
que eu esteja em casa, entendes?
— Sim, senhor.
— De noite, dá-me duas voltas em redor da casa e da parede do passai. Se
enxergares vulto de que desconfies, segura-o ou atira-lhe, entendes?
— Sim, senhor. Então há novidade de maior, Sr. Abade?!
— Escusas de saber mais nada.
— Perdoará, Sr. Abade... eu perguntava... porque enfim... vossa senhoria
cá comigo nunca teve aquelas de segredos.
— Faze o que te digo.
E voltou as costas ao criado com fidalgo orgulho, agastado da liberdade da pergunta.
Norberto, ao soar das ave-marias, estava sentado junto do gradeado de
madeira onde Ricardina criava perus, e costumava levar, ao entardecer, urtigas
e ovos cozidos. Ia sozinha.
— Queria falar-lhe, fidalga — disse Norberto, espreitando que o não
vissem — Eu vou dizer-lhe o que quero pelo outro lado das grades.
Rodeou e sumiu-se entre um loireiral que formava teto de folhagem sobre a
capoeira. Ricardina cingiu-se às ripas do gradeado e escutou:
— O Sr. Abade esteve a dizer que a menina havia de ir para um convento
pobre, e disse coisas do diabo do Sr. Bernardo Moniz. Se for preciso alguma
coisa, o Norberto está aqui. Ele mandou-me agarrar ou atirar, se visse alguém
de noite cá por perto das paredes. A fidalga esteja descansada, que eu não lhe
faço mal, se for ele. Estou pronto para tudo, menina; mas não me fale diante
do paizinho. que senão esbarronda-se o negócio.
— Obrigada, Norberto.
— Não tem de quê...
— Olha...
— Que é, fidalga?
— Fazes-me um favor?
— O que vossa senhoria quiser, se for para bem da fidalga.
— Levas-me uma carta ao correio?
— É para o Sr. Bernardo?
— Sim.
— Ele quer casar com a menina?
— Pois então!
— Pronto! Se ele quer casar com vossa senhoria, e a fidalga quer, quem os
faz desistir?! Ele é bom rapaz e rico a valer. Também o Sr. Abade tem
teimosias! Querer à fina força que as suas filhas casem com os da Reboliça!
Não se lembrar que o pai deles por um triz que lhe não metia três zagalotes no
peito, quando a mãezinha para cá fugiu...
Chamou Clementina a filha. A menina alvoroçou-se, e apenas pôde dizer:
— Procura amanhã ao meio-dia debaixo do vaso de. mármore por cima da fonte, sim?
— Sim, fidalga.
A mãe já vinha descendo em cata de Ricardina.
— O teu pai já tinha perguntado onde estavas — disse ela.
— Pois não sabia a mãe onde eu estava?!
— Sabia; mas que queres? Está desconfiado.
— Eu que mal faço?
— Nenhum... estás a pagar as imprudências que fizeste... Foi uma desgraça
ele escutar o que dizíamos no teu quarto.
Prosseguiram conversando até se retirarem à sala mais afastada. Referiu-lhe a
mãe o que passara com o abade, e a ordem positiva de propor-lhe o
casamento ou mosteiro, concedido um mês para deliberar.
Ricardina ia responder logo, optando pelo convento; mas obstou-lhe a mãe,
aconselhando-lhe a aceitação de todo o tempo aprazado com admirável
magnanimidade por pessoa de génio tão despótico.
Chorou longo tempo a menina, e acompanhou a mãe à mesa junto da qual o
risonho abade, com a outra filha, esperava que o chá abrisse.
Durante o repasto, palavreou alegremente o padre com Eugénia, e declinou
dos gracejos para o tom sombrio da política, invetivando rancorosamente
contra os liberais, que naquele ano de 1827 assentavam os já minados
cimentos do edifício, derruído no seguinte ano.
O padre Leonardo Botelho de Queirós era primo dos Silveiras, consanguíneo
ainda mais na política, realista por linhagem de barões feudais — se eram
barões feudais em Portugal uns potreiros mestres de estradiota nas suas
comarcas — , realista por interesses aligados à sua abadia, realista, enfim, por
estupidez, não desfazendo nos espíritos que ainda luzem e abundam nas
crenças políticas do abade de Espinho por ilustração.
D. Clementina Pimentel escutava-o por delicadeza e bocejava por não poder
ser mais civil, quando o abade lhe prelecionava os horrores da liberdade, e ao
propósito lhe lia um opúsculo de certo frade, seu amigo, tendente a provar
que o general Gomes Freire de Andrade fora enforcado como devia ser para
desagravo da justiça e moral .
As duas meninas tinham dispensa de ouvir a cristianíssima alegação jurídica do
monge. Pelo ordinário, assim que tomavam o chá, recolhiam-se à sua alcova,
onde esperavam o sono, que facilmente as favorecia aligeirando-lhes os
aborrecimentos da solidão.
Naquela noite, porém, Eugénia, sobrexcitada por comoções de noiva, e
Ricardina por saudades exacerbadas pela desesperança, não podiam
adormecer. Uma chorava, a outra queria consolar; mas espremia fel em vez de
linimento na chaga, quando dissuadia a irmã de amar Bernardo e lhe figurava
as delícias de ir com ela para uma vida mais alegre, casada com o primo Carlos.
— Não me digas isso, que não sou tua amiga! — segredava-lhe Ricardina,
receosa de ser escutada. — Quero ser freira, e morrer antes de faltar à minha
palavra. Amar outro homem não me é possível. Hei de esquecer o Bernardo
só quando morrer.
Eugénia replicava mais brandamente, e assim de argumento em argumento se
lhe foi esmorecendo a viveza da contenda, até que enfim, às três da manhã,
adormeceu.
Levantou-se então subtilmente Ricardina, subtraiu de entre os colchões um
tinteiro de osso, desarrolhou-o muito acautelada para não ranger, ajoelhou-se
à beira de um baú, e escreveu até às cinco horas a história por miúdos do
funesto dia passado. Às onze, desceu ao jardim e depositou a carta, a ocultas
da irmã, debaixo do vaso sobreposto à fonte. Por volta do meio-dia, Norberto
recolheu a carta, e foi à hora da sesta pedir a sua mãe que, no dia seguinte, a
levasse ao correio de Viseu.
Bernardo Moniz pressagiou desgraça quando reconheceu a letra. Era a
primeira carta que ele recebia em Coimbra. Tal ventura nunca ele se arrojara a
pedi-la. Sobrava-lhe felicidade, consentindo Ricardina em ler as centenas de
páginas que semanalmente apareciam pendentes dos festões do roseiral do
mirante. Não queria mais. Nem de tanto, na sua consciência, se reconhecia
digno. Leu, releu, quanto as lágrimas lho consentiam. A menina queixava-se
da sua sorte; mas não pedia socorro nem atrevimentos de fino amante.
Aceitava o convento com preferência a ser esposa de outro. Lastimava o seu
amigo como a si própria. Ensinava-lhe a resignação, dando-lhe o exemplo.
Queria, porém, que ele não amasse outra, sem ela ter morrido na clausura.
O primeiro pensamento de Bernardo Moniz foi entrar simultaneamente num
mosteiro da Arrábida, da Falperra, da serra de Ossa, do Buçaco, de S.
Francisco de Viana, num sepulcro bem triste, com a mais pobre das
mortalhas. Mas o coração repulsava a morte. A reação da saudade foi tão rija e
tão de fogo que os ermos cenobíticos se lhe afiguravam infernos, onde a
purificação das almas é hipócrita, quando, ao sair do mundo, o monge não
chorou desenganado das suas esperanças. Bernardo, aos 23 anos, ainda não
tinha perdido nenhuma.
Cada hora lhe desabotoava do coração rebentos novos a florir e a recender.
Não tinha ainda vivido. Era preciso suicidar-se ao tempo que apertasse o
cordão de frade como esparto de estrangulação. Não podia. Queria antes
morrer debaixo dos olhos dela.