Capítulo XIV

Planos do Abade

Acredita-se que os nove estudantes processados guardaram inviolado segredo,
por mais induzidos que foram a declarar os cúmplices. Ainda assim, a Justiça,
devassando, achou provas convincentes da cumplicidade dos quatro. E não
era preciso grande faro para ir na pista de Bernardo Moniz, combinando-se os
indícios por maneira insólita nos casos contingentes.
Primeiro as ideias políticas. Depois a notória amizade entre Bernardo e
Domingos dos Reis. Além disto, a frequente hospedagem que os Monizes
davam ao maior número, se não a todos os presos. Acrescia o testemunho de
académicos vizinhos que deram fé e notícia dos extraordinários movimentos
na casa dos Monizes, durante a noite da véspera, e durante o dia do assalto.
Por última e máxima prova, o desaparecimento inesperado dos dois irmãos
com criados e cavalos, sem de antemão terem anunciado a alguém o propósito.
A prova máxima para a Justiça não era assim mesmo concludente. Alguns
estudantes saíram logo de Coimbra, sem leve incriminação no inescusável
atentado: para intimidá-los bastava a restauração do absolutismo, contra o
qual se tinham arregimentado, e a maior ou menor convivência com alguns
dos presos. Muitos saíram e voltaram 2 a concluir formatura cinco anos
depois. Outros emigraram e desistiram de graduar-se. Porém de todos os
Monizes e mormente de Bernardo, a justiça conimbricense formou logo
conceito idóneo e bastante a expedir secretas ordens de prisão ao juiz de fora
de Viseu, levadas por águazil que jornadeou toda a noite de 19 para 20 de Março.
O esbirro chegou a Viseu no dia 20 às duas horas da tarde, e Bernardo Moniz,
à vista de Viseu, endireitou para Espinho por atalhos montanhosos já
conhecidos desde a infância, enquanto Norberto seguia estrada direita, e
chegou de noite à residência. Quando entrou à presença do amo, cresceu para
ele o abade, exclamando:
— Estava cá morto por ti, homem!... Que diabo de demora!
— Aqui estou, meu amo.
— Esperava-te já de manhã.
— Encravou-se o macho, e tive de esperar três horas que aparecesse
ferrador. Aqui está a resposta.
E entregou-lhe uma carta.
— Que ouviste por lá dizer? — disse o abade, lendo rapidamente.
— Dos lentes? Mataram-nos não sei quantos estudantes.
— E sabes que o Bernardo foi dos matadores?
— Não ouvi nada disso, fidalgo.
— Pois foi. Já está em Viseu ordem de prisão para todos. Cheguei de lá
agora. Amanhã ou depois cerca-se a casa, e, se eles lá estão, como já tive
notícia, vão todos malhar à forca, que nem Deus nem o Diabo lhes pode valer.
— E a fidalga? — atalhou Norberto, apiedando o rosto.
— Que vens tu cá falar-me nessa mulher perdida?... Se eu a lá
encontrasse..., essa quem na enforcava era eu no galho de um castanheiro. Eu
não tenho filha nenhuma, percebes?
— Sim, senhor.
— Então nem mais palavra a tal respeito! — ordenou rispidamente o abade.
— Não que vossa senhoria tem razão — remediou Norberto. — Eu disse
isto; mas não é por querer que vossa senhoria perdoe à menina nem a ele.
Quem primeiro lhe atira, se o vir, é cá o Calvo. Lobrigue-o eu que à forca não
vai ele. Qual forca? Isto de homens ricos não vão à forca. O melhor é dar-lhe
cá o passaporte para o outro mundo, e pô-lo logo a responder de facto e
direito, como o outro que diz.
Jubilou o abade, riram-se-lhe olhos e dentes, e desbordou-lhe a ternura do
seio nesta doçura de falas quase segredadas:
— Olha cá, Norberto! O meu homem hás de ser tu sempre! Não me fio
do Frazão nem do Torto, que são bravos, mas muito brutos. Vamos arranjar o
plano. O que tu disseste é o que eu quero. O Bernardo, se estiver aí, há de morrer.
— Pudera! É como Vossa Senhoria diz.
— O juiz de fora de Viseu já hoje queria mandar cercar-lhe a casa, e
consultou-me a esse respeito; mas eu, que não tinha o meu plano traçado,
convenci o juiz a esperar até depois de amanhã à noite, para eu lhe preparar os
meios de não perder a diligência, espionando primeiro se eles aí estão. Logo
que cheguei, me contou o Torto que ouvira dizer que esta madrugada, ainda
não se via bem, tinham passado pelo menos três pessoas a cavalo e duas ou
três a pé, acolá pelo caminho das Rechousas. Não podiam ser senão os três e
mais os criados. Bem estamos. Pilhados são eles; mas o meu empenho é que o
Bernardo morra. Como há de ser isto? Dá lá a tua ideia, Norberto.
— A minha ideia, Sr. Abade, não lha dou já. Deixe-me Vossa Senhoria
pensar duas horas, que ainda há muito tempo. Vou cear alguma coisa e depois
hei de dar uma volta cá pra certas congeminências. Quero ver as entradas e
saídas da casa da Fonte. Eu logo vejo por onde eles hão de querer fugir; e aí é
que é atirar-lhe à cara; mas de modo que a gente não fique culpada na morte;
porque a Justiça não há de querer isso.
— Que me importa a mim a Justiça?
— Pois sim; está visto que o fidalgo tanto se lhe dá como se lhe deu; mas
diz lá o outro, melhor é que se não saiba. Deixe-me cá o Sr. Abade; que eu
gosto de me sair bem das coisas em que me meto, e até agora não me saí mal.
— Pois vai, vai lá fazer as tuas descobertas: mas olha te não vejam.
— A mim? Hão de ter bom olho... Até de manhã ou até logo, Sr. Abade.
Vossa Senhoria vai-se deitar?
— Vou que estou moído; mas assim que for dia vem chamar-me.
Norberto ceou e saiu. Foi para casa da mãe e levou-a consigo. A menos de
oitavo de légua demorava o majestoso palacete dos Monizes, levantado sobre
o terreno da antiga quinta.
O amigo de Ricardina mandou a mãe bater à porta. Saiu um criado,
perguntando quem buscava.
— Diga ao Sr. Dr. Bernardo que está aqui a velha.
O criado ia dizer que não estava em casa o Sr. Doutor, quando Bernardo o
mandou retirar da janela, e disse à velha que esperasse.
Desceu ao pátio e abriu o portão.
— Está ali o meu Norberto que lhe quer falar, Sr. Doutor — disse a velhinha.
— Vá dizer-lhe que ninguém o vê neste pátio, e que venha cá.
Enquanto a velha levou o recado, Bernardo subiu, chamou Ricardina. e
desceu com ela a tempo que o Calvo chegava com o rosto oculto num
cobrejão, por debaixo do qual se viam os dois canos da clavina.
— Entra, Norberto — disse Bernardo, comovido — , aqui tens a tua
amiguinha de infância, que te vem agradecer.
Ricardina deu-lhe as mãos, que ele não ousava aceitar nas suas. Forcejou ela
por tomar-lhas, e disse banhada em alegre choro:
— Como poderei eu pagar os favores que te devo, Norberto!
— Vamos ao caso fidalga... — disse o criado roçando as pálpebras com o
punho direito da véstia. — Olhem que isto está muito mau. O juiz de fora
vem depois de amanhã cercar esta casa porque já chegou ordem de Coimbra
para serem todos presos. O Sr. Abade, se não vier, manda gente com os
milicianos, e olhe que a ideia dele é ver se o matam, Sr. Doutor, antes de vossa
Senhoria ser preso. Eu que lho digo é que o sei tão bem como estarmos aqui
todos os três. Agora o que devem fazer é pôr-se ao largo. Toca para Espanha
o mais tardar depois de amanhã, senão está tudo perdido.
Ricardina tremia, trespassada de glacial terror. Bernardo aconchegou-a do seio
e disse-lhe:
— Minha filha, não tenhas medo, que o teu Norberto ainda nos salvou
desta vez. Entre amanhã e depois prepara-se tudo, e vamos para Espanha.
Obrigado, honrado homem! Deus te pague com as alegrias de salvar da forca
o futuro marido da tua querida menina. Mas olha, Norberto, sabes tu que nos
custa deixar-te? Queres tu vir connosco? Queres ser um amigo da nossa
família, um irmão que a tua probidade nos deu?
— Vem, vem, Norberto! — interveio Ricardina — e deixa à tua mãe e os
teus sobrinhos o dinheiro que quiseres.
— Tudo que quiseres — confirmou Bernardo.
— Já, não posso ir... — disse o criado — , mas, passados alguns dias, lá
vou ter onde estiverem Vossas Senhorias. Acho que ainda sou cá preciso... E,
com isto, adeusinho. Não me posso demorar. Andem depressa com os
arranjos, que não há tempo a perder. Não deixem nada de valor à vista dentro
do palácio, porque o Sr. Abade tem lá por casa todos os criminosos e ladrões
que não podem ir às suas terras, à espera da ocasião para fazer estardalhaço
por essa Beira fora. Adeusinho, fidalga, até mais ver.
Ricardina e Bernardo abraçaram-no. Ao tempo que o cingia ao peito, o
estudante introduziu-lhe na algibeira da jaqueta um rolo de dinheiro, que
trouxera quando desceu com Ricardina. Norberto fez pé atrás e disse, tirando o rolo:
— Isto que é, Sr. Doutor?!
— É da tua mãe e dos teus sobrinhos. Se recusares aceitar o que é dos
pobres, fazes uma ação má, e quase um roubo à tua família.
— Pois, bem haja! — disse Norberto. — Bem pobrinhos são todos!
E retirou-se a depor nas mãos da sua mãe todo o dinheiro recebido, dizendolhe:
— Peça muito a Nossa Senhora que guarde esta boa gente dos seus inimigos.
A família de Bernardo esperava ansiosíssima as novidades levadas por
Norberto. O ancião, que ainda ignorava as ameaças que rodeavam os filhos,
assim que ouviu dizer que iam fugir, e a casa havia de ficar abandonada ao
saque, rompeu em clamores, pedindo a Deus que lhe acabasse a velhice tão
amargurada. Aquietaram-no as súplicas de todos e as admoestações um tanto
severas do filho Francisco, arguindo-o de demasiadamente egoísta do seu
descanso, quando nada menos que a forca lhe ameaçava os filhos.
Desde logo começaram a encher baús com as preciosidades de mais vulto, que
eram sacas de dinheiro em ouro, a máxima parte da grande herança, que o
velho muito se saboreava de ver amoedada, contando-a e recontando-a com o
júbilo não de avaro, mas de pai que deixava riquíssimos seus filhos, tão
pobremente nascidos e criados.
Ao romper do dia tinham encaixotado a bagagem que devia ser transportada
em duas cargas. O medo estimulava a energia de todos; o velho Moniz,
porém, atirara-se desanimado para um velho catre, e continuava a pedir a
Deus em silêncio que o deixasse acabar na cama onde tinha nascido.