Capítulo IV

Bernardo Moniz

Da vida anterior do académico já D. Clementina Pimentel referiu o principal.
O seu pai tinha oito filhos, e colhia escasso pão com que lhes pagasse o
incessante labutar nos campos. Enviara três ao Brasil, onde tinha um irmão
solteiro e sovina. Arranjara dois no Porto em trato de caixeiros. Mandou, com
poucos recursos, Bernardo a Lisboa aprender pintura. Escolheu o mais
robusto para o ajudar na lavoura, e a filha para a casar com um dote de
duzentos mil réis, quando aparecesse um rapaz videiro, que tivesse do seu
algumas leiras.
Já também sabem que o irmão sovina morreu atascado em ouro. Se não
voasse à glória de repente, era opinião geral que deixaria os seus quinhentos
contos a várias confrarias, sob condição de o baldearem do enxofre e betume
do Inferno, e o levarem a encontrões de sufrágios pelo Céu dentro. Se a
intenção o salvou, é questão de teologia moral em que não implico: salvados,
com toda a certeza, sei eu que foi o irmão e os oito sobrinhos do defunto, se é
profanamente lícito supor que quinhentos contos salvam do enxofre e betume
deste mundo nove pessoas pobres.
Bernardo Moniz, avisado pelo pai, largou a custo os pincéis. A pintura deralhe
pábulo ao devanear do espírito, por esferas mais altas e lúcidas que a do
seu nascimento. Era a sua poesia e brasão. A soledade falava-lhe. O céu, as
árvores, os ribeiros, os horizontes, o dilúculo da manhã e o arrebol da noite
entendiam-no, davam-lhe em troca do amor as suavidades da contemplação.
O jovem, às vezes, na praia de Belém, voltado ao mar, ou na quinta de Belas,
emboscado nas ramagens, chorava; mas a soledade enviava-lhe as carícias das
suas auras, o trilo das suas aves, e o acre balsâmico das suas moutas. E,
depois, o pintor, à luz da noite, e nas madrugadas convidativas da inspiração,
espelhava o coração na tela, reproduzindo quase sempre as poucas variantes
do mesmo motivo. Umas vezes, era uma menina de 8 anos espreitando
cautelosamente o ninho de uma toutinegra entre silveirais enredados à ourela
de um córrego, enquanto a ave irrequieta pousava latejante de susto num
salgueiro da outra margem. Outras vezes, era a mesma menina sentada no
peitoril de um miradouro, com uma abada de rosas de toucar, com as quais
orlava o decote do vestido menos alvo do que ela. A mesma menina lhe sorria
uma hora, do escuro de um caramanchel, enfeitando um cesto de pomos com
folhagem e grinaldas. Outra hora, sentada nos degraus de um cruzeiro, parecia
contemplar com tristeza outra menina que se balouçava numa redoiça
formada pelo esgalho flexível de um castanheiro. Esta criança, sempre a
mesma e inalterável na fidelidade das feições angélicas, era Ricardina; a outra,
menos frequente e menos poetizada nos seus quadros, era Eugénia.
Admirável parcimónia de imaginação! Espetáculos tão esplêndidos e alma tão
capaz de inspirar-se da beleza deles, davam de si tão pouco! Sempre as
mesmas árvores, o mesmo mirante, o silvedo com o mesmo ninho, e uma só
imagem infantil a dar relevo à monotonia das suas cópias! Vinha a ser esta
pobreza de fantasia, uma exuberância de tesouros do coração. Era amor do
tempo em que ele, debaixo do mantéu áspero de pastor de pobre rebanho,
escondia as asas do anjo, que, a espaços, o remontavam onde ele pensava que
o erguiam sonhos.
Aos 12 anos era Bernardo ainda o pegureiro das ovelhas da arribana paterna.
Guiava-as aos montados em frente da residência de Espinho. Na volta da
noite, passava o ribeiro, e rodeava o passai do abade. Então acontecia ver na
orla do regato Ricardina espreitando o ninho da toutinegra, ou sentada no
cruzeiro; alguma hora no miradouro, e uma só vez no caramanchel enflorando
o cabazinho da fruta, quando ele foi chamar o abade para sacramentar sua
mãe. Mas — audaz pastorinho — que doida inocência foi essa a tua de levares
retratada no coração a peregrina imagem da menina tão distante do teu
mesquinho nascimento, e das palhas onde pequenino choravas, sem mimos
que te acalentassem?
Aos 14 anos, poderia ele responder, apontando os seus quadros imperfeitos:
“Eu andava então entesourando estas memórias, com que a alma vem hoje
auxiliar a arte. O aproveitamento que me louvam é o coração que mo ensina, é
a saudade que faz esta luz e sombras, este quê inexplicável em que cismo e
choro.” Tal era, e destas puerilidades afetivas vivia Bernardo Moniz, quando o
pai lhe disse: “Escolhe outro modo de vida, que estamos ricos, louvado Deus!”
— Que tem que estejamos ricos?... Serei pintor.
— Não quero. Hás de ser o que os teus irmãos querem ser. António
escolheu ser médico; Francisco quer ser doutor-padre; e tu, vê lá... Queres ser
doutor de leis?
— O que o meu pai quiser.
— Então é já para Coimbra com os teus irmãos.
E partiram os três estudantes em 1820 para Coimbra começar humanidades.
Bernardo ganhou prodigiosa vantagem aos irmãos e condiscípulos bem que
intervalasse o estudo com exercícios de desenho, cada hora mais aprimorado.
Era bom de graduar-lhe o progresso, porque os desenhos, como em Lisboa.
saíam sempre os mesmos: Ricardina o ninho, o mirante o cruzeiro, a gruta, e o
cabaz dos pêssegos. Os irmãos riam-se, e diziam entre si: “Não sabe mais nada!”
Nas férias grandes do 1º ano, Bernardo foi a casa. O abade de Espinho
maravilhou-se da latinidade do jovem, quando o viu desfazer as dificuldades
do Eutrópio, defesas ao examinador. E tanto assim que disse a D. Clementina:
— Quem diria que daquele cepo do Silvestre da Fonte havia de sair um
filho esperto! Desconcerto da natureza! Entendam lá isto de um selvagem não
produzir outro! Um burro produz sempre um burro, ou um macho,
conforme; um alarve não gera sempre outro alarve!
Os talentos do padre Leonardo Botelho de Queirós ainda abicavam teses
zoológicas deste volume!
Foi Bernardo à residência abacial receber para Coimbra as ordens da sua
senhoria. Viu Ricardina. Ousou remirá-la com transportes de artista. Partiu.
Começou a retocar as feições da sua inspiradora. Súbito, remessa a palheta, e
diz de si consigo:
— Não! Ela era assim, quando eu era pastor. Como não posso nem devo
esperar nada, tenho só do meu o passado.
Nos feriados dos seguintes anos, até 1826, o estudante viu Ricardina. Em
1824 ainda a viu florejando graças de criança; um ano adiante, espantou-se da
rápida passagem às formas divinas e sisudo porte de senhora. Tinha ela 14 e
ele 18 anos. Naquele ano de 1826, o fidalgo da Reboliça, irmão de Clementina,
sondou-lhe o ânimo, quanto a intentos matrimoniais. Como o rapaz não
formulou programa de celibato, mandou-lhe oferecer, com rodeios de hábil
mensageiro, sua filha mais nova.
Bernardo agradeceu a honra e furtou-se a responder enquanto se não
formasse. Como nasceu o amor de Ricardina ao antigo ovelheiro, que lhe
lucilava ainda nas memórias da infância? A pergunta é, sobre ociosa, estólida.
Como nasce o amor? Apenas sabemos como ele morre. Quando o
terceiranista de Direito, nas férias de 1826, lhe impendeu dos festões do rosal
a primeira carta, Ricardina já lha tinha lido no coração e já lhe havia
respondido num volver de olhos. Valente eloquência a dos olhos aprendida na
retórica com que as almas saem industriadas no seio da NATUREZA, que eu
escrevo com respeitosos versaletes, por se me figurar que ELA e DEUS tudo
é um. E não lhe respondeu senão assim a tão amorosa quanto assustada
menina — assustada mais do seu alvoroço que dos pavores do pai.
Abastou à felicidade de Bernardo Moniz que a sua primeira carta recebesse a
divinização de uns olhos indulgentes. Escreveu segunda. E, quando já eram
seis, e escassamente expressara muito da flor de alma o que não podia
desentranhar-lhe do íntimo, foi para Coimbra seguir o 4º ano. Delongue-se o
menos que ser possa uma intermitência enfadosa nesta narrativa. Duas linhas
sobre política.
Em 1827 referviam as paixões de escravos voluntários contra a ansiedade
irreprimível dos devotos da liberdade. Recendia no ar de Portugal o acre do
sangue de Gomes Freire de Andrade. O guião dos temerários agressores da
tirania estúpida ondeava nas fortalezas. A vitória incruenta enganava os mais
previstos. Conjuravam mais as forças inteligentes a arquitetar o edifício
constitucional, quando lhes cumpria contraminar as insídias da espanhola e do
filho, que parecia ter sido aleitado nos úberes da hiena materna.
Os académicos, mais de quinhentos, tinham ajudado a rebater os ímpetos do
marquês de Chaves. Venceram. Todavia, restaurada a regência e a
Constituição, atentaram para longe, e viram atroados de tempestades os
horizontes. Coligaram-se e conjuraram. Juramentaram-se e ofereceram vida e
honra em penhor da execução indeclinável dos seus compromissos. Puseram
ao alcance do punhal e da bala os esbirros abjetos e os déspotas coroados.
Todos a um tempo gravaram na cara do cobarde ou do apóstata o ferrete da
execração, sem cedência da vida.
Neste congresso de duzentos conjurados alistou-se Bernardo Moniz; porque o
verbo do cenáculo era sublime; dizia IGUALDADE; igualdade de direitos, de
deveres, de origem, de procedência diversa ou casual; igualdade em suma de
corações igualdade entre o filho do lavrador e a filha do abade fidalgo. E,
quando o secretário leu as obrigações temerosas dos juramentos, Bernardo
congelou-se de um frio que não era terror. Transiu-o o murmurar de cada
mancebo, filho, amante, esposo, ali, à mesa da presidência, com a mão posta
na lâmina da espada, prometendo matar e morrer com igual coragem.
Todavia, jurou.
E tinha jurado, no dia 22 de Maio de 1827, poucas horas antes de receber a
carta de Ricardina.