Capítulo IX

Até que enfim!

Bernardo Moniz estava em Coimbra desde a abertura das aulas. A vontade
suplicante de Ricardina demudara-o do intento de enclaustrar-se. As palavras
“não sei o que me diz o coração...”, da última carta dela, rasgaram-lhe
horizontes donde bafejavam auras de esperança.
Dizemos a “última carta” das que o leitor conhece. Há outras, porém, escritas
no Convento das Chagas, e enviadas por mediação de certa freira, irmã de um
condiscípulo de Bernardo. A correspondência ligou-se regular e de todo
insuspeita. Os espias do padre não descortinaram o segredo nem se
empenhavam zelosamente nisso; antes se espantavam de que o soberbo e
contraditório pai da menina lhe impedisse o casamento com um dos mais
ricos jovens da Beira.
Na linguagem de Ricardina transluzia sempre aquele moderado entusiasmo
que não inculca paixão superior à temperatura da íntima estima. A de
Bernardo Moniz, com breves intercadências de resignação, era, pelo ordinário,
arrebatada. Insistia ele agora em tolher-lhe os votos, facilitando-lhe planos de
fuga, mas ela, perdoando às instâncias do amor desvairado, tinha-lhe enfim
rebatido a pertinácia, escrevendo que lhe seria menos doloroso fugir de casa
que do mosteiro, onde sua mãe se encerrara. Conformou-se o académico
durante alguns dias; mas vencida a prudência pela saudade, renasciam os
queixumes e propósitos de se recolher ao Buçaco.
A notícia da perigosa enfermidade de D. Clementina, atuando sobre aquela
espécie de lacerante egoísmo de Bernardo Moniz, desentranhou-o de si para o
converter todo a compadecer-se de tão afligida menina. Consolativas foram
então as suas cartas. As expressões eram fagueiras como as do irmão já adulto
que distrai e acaricia a irmãzinha chorosa à beira do esquife da sua mãe. À
notícia da morte de Clementina, seguiu-se o silêncio de duas, semanas, bem
que a freira, escrevendo ao irmão, lhe pedia, que explicasse ao seu amigo o
silêncio de Ricardina, forçado pela doença e mais ainda pela incessante
companhia das religiosas, que se revezavam ao pé dela, noite e dia.
Prosseguiu a correspondência depois com a mesma regularidade. Os
sentimentos da noviça eram já diversos quanto a professar. Tinham feito
grande abalo no seu ânimo as derradeiras palavras da mãe: “espera” quando
acabava de louvar o exaltado amor de Bernardo. Facilmente pensou a filha
que vinham inspiradas do Céu as ordens da moribunda, santificada por vinte
anos de secretas angústias, a tempo que todos a julgavam tão criminosa
quanto feliz. Deliberada, pois, a protrair os votos, enquanto, pudesse.
Ricardina referiu a Bernardo as palavras da mãe e a promessa de ir rogar a
Deus que os unisse. Reanimou-se o académico.
No princípio de Fevereiro daquele ano de 1828, o abade de Espinho passou
em Lamego, caminho de Amarante, onde tinha o irmão morgado. Procurou a
filha, disse-lhe benignamente que lhe perdoava os desgostos recebidos por
causa dela, e contou que ia espairecer com o seu irmão, por sentir-se morrer
na solitária residência da abadia. No objeto da profissão disse que o mundo
ainda podia dar muitas voltas. Ricardina decifrou do misterioso destas
possíveis voltas do mundo que o seu pai se ia amolecendo a favor de
Bernardo, quer por eficácia das orações da sua mãe, quer por se ter desavindo
com Eugénia. Assim o comunicou a esperançada menina ao estudante.
Corridos quinze dias, voltou de Amarante o padre, acompanhado de um
sobrinho, filho segundo do seu irmão. Chegados a Lamego, seguiram para o
convento. O abade apresentou à filha seu primo Gaspar Botelho de Queirós,
que ela ainda se lembrava de ter visto na infância em Espinho. Sucedeu à
visita da apresentação a da despedida. Iam ambos para a Beira. Isto nem
levemente insinuou desconfianças em Ricardina. Mas, passados dias, recebeu
ela, incluída na carta do pai, uma do seu primo Gaspar, recheada de galantarias
e devaneios de um coração amante. O abade pelo seu lado, confirmando à
filha o conteúdo epistolar do sobrinho, significava-lhe o desejo e a deliberação
feita de a ir buscar ao convento para os casar, logo que a dispensa viesse da
nunciatura.
Foi embate que desvairou o espírito sereno de Ricardina, tão forte e discreta
em mais apertados conflitos! Revelou a Bernardo as desventuras sobrevindas
quando começava a criar esperanças; pedia-lhe que a não julgasse capaz de
faltar à sua palavra. E dado que o pai a quisesse tirar do mosteiro não sairia; e,
se a prelada e o bispo a mandassem obedecer, então fugiria para onde o
esposo da sua alma quisesse. Explosão de fogo que o cegou! Não precisava o
académico de outro aviso. Dispensa-se de esperar que as condições
estipuladas se realizem. Rasga com jubiloso delírio o véu do segredo aos seus
irmãos. Não os consulta nem quer conselhos. Comunica-lhes a sua felicidade
e agasta-se porque os vê melancólicos. O médico receia resultados funestos; o
teólogo acha imoral o feito da fuga e abominável a profanação do mosteiro.
Refuta-os o jurista: ao primeiro impugna com o mistério em que há de ficar o
destino e paragem de Ricardina; ao teólogo apoda-o de ignorar o que seja
profanação, não pensando ele em pôr pés debaixo dos tetos sagrados da
clausura.
Procura o condiscípulo confidente das cartas. Pede-lhe fervorosamente
proteção como se nisso lhe fosse a vida. Consegue senhorear-se de uma
quinta convizinha de Lamego, onde o amigo tem caseiros. Ao mesmo tempo
circunvaga nos arrabaldes de Coimbra em pesquisa de uma casa bem insulada,
e cingida de arvoredos. Por terceiras pessoas de segura confiança aluga a mais
apropositada vivenda à orla esquerda do Mondego. As árvores estão nuas e
tristes, o rio vai torvo, as aves não cantam quando o céu está em luto. Aquilo
é inspirativo de fastio e amargura; mas o seu delírio deleitou-lhe magicamente
o que dias antes lhe pareceria estância de degredo. Não há senão dois
criadores: Deus e o amor.
Mobilado o prédio com as melhores alfaias que um, seu confidente escolheu,
partiu para a quinta suburbana de Lamego. Ao mesmo tempo eram avisadas a
irmã do académico e Ricardina. A noviça esperava algum lance arrojado; mas
muito aquém da temeridade realizada. Trespassou-a frio e febre de medo.
Queria ofender-se da precipitação do passo, e mandá-lo sair de tão perto do
convento; mas o coração reprovava as demasias de tão severa prudência.
Propriamente a freira se admirava do hiperbólico juízo da sua amiga,
malsinando-lhe de ingratidão caprichosa o desamor com que respondia aos
tratos do pobre jovem. E a falar verdade, Ricardina gostava de ser repreendida
para se ir compenetrando do pesar de ingrata.
Graças ao poder da sensibilidade, respondeu cordialmente a noviça ao ditoso
Bernardo; todavia não se dispensou de lhe reprovar a vinda intempestiva,
segurando-lhe que somente fugiria na extrema certeza de ser levada do
convento para casar com o primo. A condição verificou-se depressa.
Anunciou-lhe o pai, irritado pelo silêncio dela, que se, preparasse para sair no
prazo de oito dias. O remate da carta merece traslado: “Quero castigar tua
irmã mostrando-lhe que és mais rica e feliz que ela. Hei de comprar-te um
palacete em Viseu, e dar-te sege. Passarás com o teu marido lá o Inverno, e eu,
que hei de brevemente ser nomeado deão da Sé, irei também para lá. Faz-me a
vontade sem me desconsolar com as tuas criancices; que tu me dirás ainda que
és a mulher mais afortunada do mundo. O teu primo Gaspar é a bondade em
pessoa, e jura-me que nunca hás de arrepender-te de ser sua esposa”, etc.
A fuga estava delineada. Encarregara-se a freira do traçado por ter recolhido
as tradições de deserções, mais ou menos antigas, daquele colmeal de virgens
cansadas de fabricar mel para os anjos. De Ricardina todas as religiosas
formavam conceito sem laivo de desconfiança. Deixavam-na as superioras
deter-se na cerca até noite, suavizando-lhe as asperezas claustrais, já pelo afeto
que lhe tinham, já por devoção com a memória da mãe, e não menos pelo
empenho de verem o seu hábito franciscano vestido em menina tão
luzidamente aparentada.
A cerca tinha uma porta da serventia do hortelão e outra dos carros. A evasiva
era fácil por ali, à hora em que o pomareiro, ocupado no seu lavor, deixava
descuidadosamente a chave na porta do seu uso. Prevenido do dia e hora,
Bernardo Moniz transferiu-se de noite, de S. Sebastião de Arneirós para
Lamego, onde o condiscípulo preparara a resguardada hospedagem. Grande
parte da manhã do dia aprazado, passou-a Ricardina ajoelhada na claustra à
beira da campa da mãe. Lá se ajoelharam de par com ela as mais reformadas
franciscanas, aguardando entreaberta de a consolarem. Assistiu ao refeitório
sem tocar na sua ração; ouviu ler as piedosas admoestações no púlpito,
concernentes às delícias da virgindade e da magnificência com que o divino
esposo esperava no paraíso celestial as suas esposas.
Às quatro horas abraçou a sua amiga, cujas lágrimas borbulhavam dignas da
saudade da outra. O frio era glacial; mas Ricardina, com o rosto e o coração
em fogo, se tiritava, era de medo. Anoiteceu. A demora da noviça
impressionou a prelada, unicamente receosa de algum acidente. Mandou as
criadas acerca, a tempo que o hortelão vinha perguntando se faltava alguém,
porque encontrara, ao sair, a porta aberta. Estrondeou grande e confusa grita
no mosteiro. Espreitaram-se os recantos todos da cerca. O espanto não dava
lugar a nenhum outro sentimento. Ia-se já virando do avesso o bom nome da
noviça no espírito da comunidade. Até certo ponto era natural a mudança. As
freiras ecléticas, quer dizer, as que tinham um poucachinho de crítica e
filosofia para entenderem que o bem e o mal estão ouro fio na condição
humana, diziam que Ricardina era filha do abade de Espinho, e herdara o
pecado da mãe, esperando talvez a idade própria de lhe herdar a contrição. As
místicas propendiam a crer que andava influência demoníaca naquele sucesso,
bem como em outros mais feios de que a memória lhes não era esquiva.
Como quer que fosse, a indignação monástica recresceu, e logo naquela
mesma noite se enviou aviso ao prelado, ao corregedor e ao juiz de fora.
Todos os avisados dormiram a trancos, até que no dia seguinte se começaram
a mexer as justiças seculares e eclesiásticas, mandando devassar no convento e
vizinhança. A devassa tirou a limpo que, por volta de onze horas da noite, um
barco atracado em frente da Régua recebera duas pessoas e derivara rio
abaixo, a quatro remos. O corregedor avisou os parentes da noviça, e estes
fizeram um próprio ao abade, como a pessoa idónea para rastrear a peugada
dos fugitivos.
Quando o próprio chegou a Espinho, estavam Bernardo e Ricardina em Vila
Nova de Gaia, esperando transporte — o rápido transporte da caleça — para
Coimbra. Ao fim do segundo dia de viagem, apeavam nos Fornos, e entravam
cavalgando jumentos, por veredas mal trilhadas entre matas de pinheiros,
caminhando a sul, para onde os guiava o académico irmão da religiosa, desde
que apearam da caleça. Ricardina entrou na casa triste à margem do Mondego.
Bernardo ajoelhou-se aos pés dela, que se assentara quebrantada num canapé.
Tomou-lhe as mãos regeladas, aqueceu-as no ardor da sua respiração e disse:
— Nunca te hás de arrepender, esposa da minha alma?
— Não, meu querido amigo — respondeu ela firmemente.
— E se a desgraça te perseguir?
— Tu me defenderás... Pois a desgraça não estará cansada?
— Que pergunta! A desgraça cansada! Teria ela come.