Fábula e Contos
C''uma cobra domestica folgava
Criança innocentinha,
E_''Meu bicho'' dizia a criancinha
''Conitigo tam seguro eu não brincava
Se primeiro, o veneno refalsado
Não te houvessem tirado.


Que vós sois muito más, muito ingratonas,
Minhas serpentezonas.
Oh! nunca a tal historia me esqueceu
D aquelle homem que a cobra achou na rua
—Talvez fosse avó tua_
E tanto se doeu
De a ver toda de frio rctransida,
Que no seio a metteu
E comsigo a aqueceu.
Que fez a bicha mal-agradecida?
Apenas se recobra
A traidora da cobra
• Vai, e zaz!_e mordeu
O pobre homem, que logo da ferida
Venenosa morreu.''
-''Bem parciaes'' responde-lhe a serpente
''São as vossas historias;
Recontam-nos o caso mui diffrenle
Lá as nossas memorias.
O teu homem, que tens por charidoso,
Creu realmente a cobra ja finada,
E foi, por cubiçoso
Da pcllo, que era linda o mosqueada.
LU BO I NICO. «i;
Que o teu santinho d''home'' a quiz salvar:
Era para a esfollar.''
_''Vai-te'' responde em cholera o menino
''Vai-te, bicho inolino:
Todo o ingrato é ladino
Para se desculpar,
E ao seu bemfeitor ealumniar.''
O pae da criancinha, mui contente
Toda ésta conversa ouvindo esteve;
E-''Pois, meu filho'' disse ''honradamente
Julgaste como deve
Todo homem de bem:
Mas é preciso em tudo ser prudente,
E injusto com ninguém.
Ha casos de tam feia ingratidão,
Que a razão
Não se atreve
A crê-los, sem exame, assim de leve.
liaras vezes a ingratos obrigaram
Os que são verdadeiros bemfeitores;
Mas o mundo, meu filho, por desgraça,
Harto está cheio de ruins Mecenas,


De falsos protectores,
Que a detestável raça
Dos ingratos no mundo propagaram.
Arrastados favores,
Inda menos baratos
Que interesseiras sórdidas onzenas,
O que hãode produzir, senão ingratos?''
Coimbra-1821.