CONTO
Pois os mimosos sons da branda musa
Do tam gentil Bernard, na patria lyra
Queres ouvir suave modulados,
E cm luso trajo disputar-se um beijo
De Tempe os generosos amadores,
As cordas ferirei por comprazer-te,


Cortar-lhe-hei galas dos pastores nossos;
Na lingua de Camões, se posso tanto,
Virão aqui a suspirar d''amores;
E os echos d''estes valles mais sinceros
Te dirão suas falias namoradas.
Tu, que es meio francez, meio germano,
Que á meiga Deshouliers canções tam finas,
Que a Gesner mais singelo ouviste o canto
Na própria avena de seus tons cantado,
Se os teus pastores nas ribeiras nossas,
N''estas suaves margens do Mondego
Vires dilTrentes, demudada a graça,
E alternando sem arte a cantilena
Que em seu pátrio idioma foi tam bella,
A ti só, que o quizeste, imputa o êrro,
Nem acoimes á lingua tam formosa
O desprimor e as faltas do poeta.

Juncto aos valles de Tempe, amena estancia,
Mansão querida de Pomona e Flora,
O joven Hylas, Égle inda mais joven,
Ambos loucos d''amor, o amor se occultam.
A um terno olhar suas falias se limitam,
Sua chamina constrangida não se exhala:


O innocente pastor fallar não ousa,
Nem, que fallasse, a simples o intendêra.
Mas tarde ou cedo, se o desejo a inflamma,
Amestram a innocencia amor e a edade.
Tirou-os d''este nada em que jaziam
O acaso um dia. Á sombra da espessura,
Tam bella, ou mais que amor, Égle dormia,
Hylas a incontra, e os olhos namorados
Para admirá-la não lhe bastam ambos.
_''Venus'' exclama ''eu tibio em teu serviço
Ouso implorar-te: dá-me que estes lábios,
Em quanto aqui na relva Égle desçanfa,
Possam nos seus colhêr suave beijo.
E eu te juro, ó divina Cytherea,
Que em troco lhe darei dois mansos pombos
Muito mais lindos que os que tens cm Chypre.''

O voto fez-se; o beijo foi colhido:
Fingido somno approveitou á bella,
E, á noite o preço recebeu do voto.

Veio outro dia, e Égle a dormir sempre...
Mas não dorme o pastor:_''Deus dos amores,
Yes alli quanto adoro n''este mundo.


Ah, de lanta belleza, tantas graças
Consente que uma só eu gose ao menos.
Se eu podcssc_sem que Égle o presentisse,
Sob o lenço invejoso ir co''a mão trémula
Tocar n''aquelles cândidos thesoiros,
Dar-lhe-hia pelo roubo_tam secreto!
O cordeirinho que entre os meus mais quero.
Oh! adormece, amor, Égle formosa!''

O mais profundo somno Hylas incontra.
Viu, tocou, apalpou, beijou cem vezes
O seio d''Égle, que retem manhosa
Até o respirar, e a somno sôlto
Mais dormia... quanto elle mais velava.

Custou-lhe no outro dia a vir ao bosque,
Timida ainda e vergonhosa a bella;
Mas veio emfim... Foi só curiosidade,
Tinha curiosidade—era o que tinha —
De saber que presente aquelle dia
Lhe faria o pastor; veio. Após ella
Hylas veio também: -''Eternos deuses,
Aqui a incontro! Oh concedei-me agora
Um último favor, que nos seus braços


Eu gose emfim dos seus incantos todos.
Ah! vós bem o sabeis: eu nada tenho,
Mais nada ja do que o meu cão_e dou-lh''o.''
Oh que pesado somno Égle dormia!
E é bem de crer que o instante em que o mancebo
No cxtasi do prazer fechára os olhos,
Os lindos olhos d''Égle não se abriram.
Mas o sonho acabou... e despertaram.
O pastor imbrenhou-se na espessura
E o cãosinho fiel ficou co''a bella.

• Incontraram-se á tarde, invergonhados...
A pastora corou, elle suspira...
Sós se achavam, sem medo, sem receios...
Ao amante acordada Égle se intrega,
Acha mais doce não dormir agora,
E toda a imhriaguez do amor conhece;
Quantos dons do pastor Égle recebe,
Com dulcíssima usura os restitue.

Mas as antigas dadivas pesavam
A pastora gentil:-''Sei que te devo
Duas pombinhas que uma vez me déste.


E sc me ellas fugirem! vivo sempre
N''este receio! Toma-as lá, e o preço
Que por ellas te dei também m''o torna.''
Surriu-se o joven, e pagou-as... ambas.

Um momento depois o cordeirinho
Á pastora lembrou:—''Tanto te quero,
E heide-te privar do que mais amas?
Tam bonito! era a tua companhia,
Comia-te nas mãos! Nada, não quero:
Recebe-o, que t''o dou.'' E o cordeirinho
Foi restituído. _O cão só lhe restava:
Novas razões, e emfim ordem por fôrça
De acceitar outra vez o seu rafeiro:
_''Nãotens mais que um, é oguardado rebanho,
Recebe-o, doce amante, e ainda emeima,
DeXóraparte te heide dar um beijo.
Eu não quero mais dadivas, querido;
Com o teu coração estou contente.''

Oh! taes dons para dar custaram pouco,
Mas o preço da intrega era dobrado...
O pastor affroixou, negocio serio
Veio porfim a ser o tal brinquedo.


Aopé de Égle acordada Hylas dormia...
E ella, que mais pretextos ja não tinha,
A suspirar dizia tristemente:
—* Não me dar elle todo o seu rebanho!''
Coimbra-1821.