Fábula e Contos
Eu por mim gósto de contos,
Diga o mundo o que quizer;
E para rnattar o tempo
Um conto quero escrever.

Mattar o tempo é preciso
Aos ignorantes_dirão;
Ao sábio sempre elle corre
Voando, que lento não.


Porém, amigo censor,
E quem me fez sábio a mim?
Sou cu lente ou academico,
Pregador ou coisa assim?

Verdade é, no Quebra-costas
Minha vez escorreguei,
Fui prêso por Verdeaes,
E á porta Ferrea m...ei.

Mas que doutor fiquei eu,
Se nunca o Martini li,
Se, o que sube da instituta
E do digesto, esqueci?

Sabenças para que servem?
Brucharia, eu t'' arrenego!
Vou-me contar o meu conto;
E o meu conto é de um Gallego.

Era uma vez um Gallego
Boçal, felpudo e lanzudo,
Um Gallego em corpo e alma,
Em chancas, juizo e tudo.


Nunca lá das Galiileas*
Sahiu cabeça tam romba
A alistar-se nas companhas
Dos bravos heroes da bomba.

Melena loira e comprida,
Azeitada e corredia,
Olho azul, pasmado e parvo,
Bôcca aberta, a barba esguia;

Calção de abanante orelha,
Por onde fura o quadril,
Nos pés a fragante chanca,
Ás costas sacco e barril;

Eis-aqui a vera effigie
De Thiago Manuel Juan,
O mais fiel dos Gallegos
Que jamais comieron pan.

Terra de Gallego», em dialecto seholastico.

Em deveção não fallemos,
Que nosso era exemplar;
Deixára um prato de tripas
Para á missa não faltar.

A miúdo ia a confêsso;
E nunca o somno o pilhou
Senão a rezar o terço,
Que-nunca mais acabou.

Em duas ou tres egrejas
Era freguez de basar;
O seu barril tinha a honra
De agua benta ás pias dar.

Tam devoto, tam modesto
Nunca houve outro Thiago;
Não ha memorias de ouvir-lhe
Nem uma só vez um ajo.

Um dia, á volta das onze,
Cançado de apregoar,
_Era em Julho que escaldava,
Um calor mesmo dc assar!—


N''uma egreja de capuchos
O bom dc Thiago entrava;
E a egreja tam fresquinha,
Que á oração convidava.

Por tendencia natural,
Instincto de chafariz,
Ajoelhou aopé da pia,
Herdeira de seus barris.

Mal se tinha santiguado,''
Isto é, se persignou,
Um berreiro destampado
Detrás de si escutou:

Era um membrudo capucho,
Destemido Ferrabraz
Que, a duros botes d''estolla,
Brigava com Satanaz.

Feito o signal da cruz.


Tinha-se o demo incaixado
No bôjo de uma beata,
E d''alli se defendia
Como de uma casa-matta.

Arripiaram-se as melenas
A Thiago no toitiço,
Pôz-ze-lhe em pé no cachaço
Até o proprio choiriço."

Mas o ôlho arregallado
Em ponto de admiração,
Não se attrevia a tirá-lo
D''aquella horrível visão.

Travava a descompostura
Do dize-tu, direi-eu...
Fallava o frade latim
Que nem o demo intendeu.

* O non-descriplum de trapo e cordagens que o gallego põe no cachaço quando carreira a pau e corda.


Satanaz é bom latino;
Ninguém lh''o pôde negar:
As syllabadas do frade
Faziam-n''o blasphemar.

Grita o frade:—''Abrenumcí-ò!''
E o cachorro do Asmodeu:
—''Assim não me deitas fõra;
Dize abrenún-cio, sandeu.''

-''Latim sabe elle, o malditto...''
Disse o frade aos seus cordões;
Que os frades, como os não usam,
Não fallam c''os seus botões:

'' No Latim me venceu elle,
E não fez grande façanha;
Elle é o diabo, e eu sou capucho!
Veremos se o faz na manha.''

Ria o demo ás gargalhadas
Por ter o frade incovado;
E o capucho, de velhaco,
Dava-se ja por cangado,


Mas co''a mão á caldeirinha,
Sem que o pesque Satanaz,
Vai mansinho... e de repente
Prega-lhe a hyssopada_zaz!

Deu tal estoiro a beata,
Que parecia uma bomba...
Não era ella, era o demo:
Cheira a enxophre que tomba.

_''Eu te esconjuro, malditto!''
Brada o frade cm Portuguez
(Que não quiz comprometter
O seu Latim d''esta vez)
''Eu te esconjuro, malditto,
Que d''este corpo te vas,
E não tornes a entrar n''elle,
Negregado Satanaz.''

_''Vou-me'' disse o pòrco-sujo
''Vou-me embora, Fr. Sandeu,
Que me escalda essa agua benta.
Mas para onde heide ir eu?''


-''Para onde?..'' E deitando os olhos
A um lado d''improviso,
Deu o frade com Thiago
Que rebentava de riso

Thiago, de um grande medo
Passára a grande alegria;
E, esfregando as mãos no sacco,
Como um perdido se ria.

Leitor não te escandalizes;
Que o ver logrado o demonio
Até fez perder de riso,
N''um sermão, a Sancto Antonio.

_''Para onde?..'' repete o frade
''Que me importa a mim, pespêgo?
Vai-te metter, se quizeres,
No c... d''aquelle Gallego.''

Conhecem-se os grandes homens
Nas grandes occasiões:
Thiago, sem mais demora,
Deitou abaixo os calções;


E, em menos tempo ainda
Do que o demo esfrega um ôlho,
Ja na pia da agua benta
Tinha elle o seu de môlho.

Batte-me quatro palmadas
No rechonchudo do traz,
E diz-lhe:-''Agora, sò diabo,
Venha p''ra ca, se é capaz.''

Havre de Graça-1824.