Capítulo IV

O palacete dos Barrolos em Oliveira (conhecido desde o começo do século
pela Casa dos Cunhais) erguia a sua fidalga fachada de doze varandas no largo
de El-Rei, entre uma solitária viela que conduz ao Quartel e à rua das
Tecedeiras, velha rua mal empedrada, ladeirenta, oprimida pelo comprido
terraço do jardim, e pelo muro fronteiro da antiga cerca das Mónicas. E nessa
manhã, justamente quando Gonçalo, na caleche da Torre puxada pela parelha
do Torto, desembocava no largo de El-Rei, subia pela Tecedeiras, dobrando a
esquina dos Cunhais, num cavalo negro de fartas clinas, que feria as lajes com
soberba e garbo, o Governador Civil, o André Cavaleiro, de colete branco e
chapéu de palha. Num relance, do fundo da caleche, o Fidalgo ainda o
surpreendeu levantando os pestanudos olhos negros para as varandas de ferro
do palacete. E saltou, com um murro no joelho, rugindo surdamente — "que
biltre!" Ao apear no portão (um portão baixo, como esmagado pelo imenso
escudo de armas dos Sás) tão sufocada indignação o impelia que não reparou
nas efusões do porteiro, o velho Joaquim da Porta, e esqueceu dentro da
caleche os presentes para Gracinha, a caixa com o guarda-solinho e um cesto
de flores da Torre coberto de papel de seda. Depois em cima, na sala de
espera, onde José Barrolo correra, ao sentir nas lajes do largo silencioso o
estrépito do calhambeque, desabafou logo, arrebatadamente, atirando o
guarda-pó para uma cadeira de couro:

— Oh senhores! Que eu não possa vir à cidade sem encontrar de cara este
animal do Cavaleiro! E sempre no largo, em frente da casa! E sorte!... Esse
bigodeira não achará outro lugar para onde vá caracolar com a pileca?
José Barrolo, um jovem gordo, de cabelo ruivo e crespo, com um buço claro
numa face mais redonda e corada que uma bela maçã, acudiu, ingenuamente:
— Pileca?!.. Oh, menino, tem agora um cavalo lindo! Um cavalo lindo, que
comprou ao Marges!
— Pois bem! É um burro feio em cima de um cavalo bonito. Que fiquem
ambos na cavalariça. Ou que vão ambos pastar para as Devesas!
O Barrolo escancarou a boca larga e fresca, de soberbos dentes, num lento
pasmo. E de repente, com uma patada no soalho, vergado pela cinta, rompeu
numa risada que o sufocava, lhe inchava as veias:
— Essa é de arromba! Não, essa é para contar no Club... Um burro feio
em cima de um cavalo bonito! E ambos a pastarem!... Tu vens hoje rico,
menino! Olha que essa! Ambos a pastarem, com os focinhos na erva, o
Governador Civil e o cavalo... E de arromba!
Rebolava pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E Gonçalo,
adoçado por aquela ovação que celebrava a sua facécia:
— Bem. Dá cá esses ossos, ou antes esses untos. E como vai a família? A
Gracinha?... Oh! viva a linda flor!


Era ela, com a sua ligeireza airosa e menineira, os magníficos cabelos soltos
sobre um penteador de rendas, correndo alvoroçada para o irmão, que a
envolveu num abraço e em dois beijos sonoros. E imediatamente, recuando, a
declarou mais bonita, mais gorda:
— Positivamente estás mais gorda, até mais alta... É sobrinho?... Não?
nada, por ora?
Gracinha corou, com aquele seu lânguido sorriso que mais lhe humedecia e
lhe enternecia a doçura dos olhos esverdeados.
— Se ela não quer, ela não quer! — gritava o José Barrolo, gingando, com
as mãos enterradas nos bolsos do jaquetão que lhe desenhava as ancas roliças.
— A culpa não é cá do patrão... Mas ela não se decide!
O Fidalgo da Torre repreendeu a irmã:
— Pois é necessário um menino. Eu por mim não caso, não tenho jeito; e
lá se vão desta feita Barrolos e Ramires! A extinção dos Barrolos é uma
limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal. Portanto, Sra. D. Graça
Ramires, depressa, em nome da nação, um morgado! Um morgado muito
gordo, que eu pretendo que se chame Tructesindo!
Barrolo protestou, aterrado:
— O quê? Turtesinho? Não! para tal sorte não o fabrico eu!

Mas Gracinha deteve aqueles gracejos picantes, desejosa de saber da Torre, e
do Bento, e da Rosa cozinheira, e da horta, e dos pavões... Conversando,
penetraram na outra sala, guarnecida de contadores da índia, de pesados
cadeirões dourados de damasco azul, com três varandas sobre o largo de ElRei.
Barrolo enrolou um cigarro, reclamou a história do Relho, da grande
desordem. Também ele arranjara uma pega com o rendeiro da Ribeirinha, por
causa de um corte de pinhal. Essa do Relho, porém, fora tremenda...
E Gonçalo, enterrado ao canto do fundo canapé azul, desabotoando
preguiçosamente o jaquetão de chaviote claro:
— Não! foi muito simples. Já há meses esse Relho andava bêbado, sem
despegar... Uma noite berrou, ameaçou a Rosa, agarrou numa espingarda. Eu
desci, e num instante a Torre ficou desembaraçada de Relhos e de barulhos.
— Mas veio o Regedor, com cabos! — acudiu o Barrolo.
Gonçalo sacudiu os ombros, impaciente:
— Veio o Regedor? Veio depois, para legalizar! Já o homem abalara,
corrido. E como resultado arrendei a Torre ao Pereira, ao Pereira da Riosa...
Contou esse negócio excelente, tratado na varanda, ao almoço, entre dois
copos de vinho verde. Barrolo admirou a renda — gabou o rendeiro. Assim
Gonçalo descortinasse outro Pereira para a quinta de Treixedo, terra tão
generosa, tão mal amanhada!

À borda do canapé, coberta pelos belos cabelos que lavara nessa manhã e que
cheiravam a alecrim, Gracinha contemplava o irmão com ternura:
— E do estômago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titó?
— Oh! esse animal! — exclamou Gonçalo. — Há dias prometeu jantar na
Torre, até a Rosa assou um cabrito no espeto, magnífico... Depois falhou:
creio que teve uma orgia infame, com bichas de rabear. Ele vem esta semana a
Oliveira... E é verdade! vocês sabiam da intimidade do Titó com o Sanches
Lucena?
Historiou então, com exagero alegre, o encontro da Bica-Santa, o horror que
lhe causara a bela D. Ana, a descoberta inesperada dessa familiaridade do Titó
na Feitosa.
Barrolo recordou que uma tarde, antes do S. João, avistara o Titó, diante do
portão da Feitosa, a passear pela trela um cãozinho branco de regaço...
— Mas o que eu não compreendo, menino, é esse teu "horror" pela D.
Ana... Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olhões, um
peitoril...
— Cale essa boca impura, devasso! — gritou Gonçalo. — Pois aqui ao
lado da sua mulher, que é a flor das Graças, ousa louvar semelhante peça de
carne!

Gracinha rindo, sem ciúmes, compreendia "a admiração do José". Realmente,
a Ana Lucena, que vistosa, que bela!...
— Sim — concedeu Gonçalo — , bela como uma bela égua... Mas aquela
voz gorda, papuda... E a luneta, os modos... E "o cavalheiro pode fumar, o
cavalheiro está enganado..." Oh! senhores, pavorosa!
Barrolo gingava, diante do sofá, com as mãos nos bolsos da rabona:
— Uvas verdes, Sr. D. Gonçalo, uvas verdes!
O Fidalgo dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes:
— Nem que ela se me oferecesse, de joelhos, em camisa, com os duzentos
contos do Sanches numa salva de ouro!
Sorrindo, vermelha como uma peónia, com um "oh" escandalizado, Gracinha
bateu no ombro de Gonçalo — que puxou por ela, galhofeiramente:
— Venha lá essa bochecha, e outra beijoca, para purificar! Com efeito, só
pensar na D. Ana arrasta a gente às imagens brutais... Dizias então do
estômago... Sim, filha, combalido. E há dias mais pesado, desde o tal cabrito
no espeto e da companhia beberrona do Manuel Duarte. Tu tens cá água de
Vidago?... Então, Barrolinho, sê angélico. Manda trazer já uma garrafinha bem
fresca. E olha! pergunta se subiram um açafate e uma caixa de papelão que eu
deixei na caleche? Que ponham no meu quarto. E não desembrulhes, que é surpresa...
Escuta! Que me levem água bem quente. Preciso mudar toda a
roupa... Estava uma poeirada por esse caminho!
E quando o Barrolo abalou, a rebolar e a assobiar, Gonçalo, esfregando as
mãos:
— Pois vocês ambos estão esplêndidos! E na harmonia que convém. Tu
positivamente mais forte, mais cheia. Até pensei que fosse sobrinho. E o
Barrolo mais delgado, mais leve...
— Oh, agora o José passeia, monta a cavalo, já não adormece tanto depois
de jantar...
— E a outra família? A tia Arminda, o rancho Mendonça? Bem?... Padre
Soeiro, que é feito desse santo?
— Teve um ataquezito de reumatismo, muito ligeiro. Agora bom, sempre
no Paço do Bispo, na Biblioteca... Parece que se entretém a fazer um livro
sobre os Bispos.
— Bem sei, a História da Sé de Oliveira... Pois eu também tenho trabalhado muito, Gracinha!
Ando a escrever um Romance.

— Ah!
— Um Romance pequeno, uma Novela, para os Anais de Literatura e de
História, uma Revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro... É
sobre um facto histórico da nossa gente... Sobre um avô nosso, muito antigo,
Tructesindo.

— Tem graça, que fez ele?
— Horrores. Mas é pitoresco... E depois o Paço de Santa Ireneia, no
século XII, em todo o seu esplendor! Enfim uma bela reconstrução do velho
Portugal e sobretudo dos velhos Ramires. Hás de gostar... Não há amores,
tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma das nossas antepassadas, uma
D. Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu chic, bem?... E tu
compreendes, como eu desejo tentar a Política, preciso primeiramente
aparecer, espalhar o meu nome...


Gracinha sorria docemente para o irmão, no costumado enlevo:
— E agora tens alguma ideia? A tia Arminda lá continua sempre com a
teima que devias entrar na Diplomacia. Ainda há dias... "Ai, o Gonçalinho,
assim galante, e com aquele nome, só numa grande embaixada!"
Gonçalo despegara lentamente do vasto canapé, reabotoando o jaquetão claro:
— Com efeito ando com uma ideia, há dias... Talvez me viesse de um
romance inglês, muito interessante, e que te recomendo, sobre as antigas
Minas de Ofir, King Solomon''s Mines... Ando com ideias de ir para a África.
— Oh Gonçalo, credo! Para a África?

O escudeiro entrara com duas garrafas de água de Vidago, ambas
desarrolhadas, numa salva.

Precipitadamente, para aproveitar o "piquezinho",
Gonçalo encheu um copo enorme de cristal lavrado. Ah! que delícia de água!
— E como o Barrolo voltava, anunciando que cumprira as ordens de S. Exa.:


— Bem! então logo conversamos ao almoço, Gracinha! Agora lavar,
mudar de roupa, que não paro com estas infames comichões...

Barrolo acompanhou o cunhado ao quarto, um dos mais espaçosos e alegres
do Palacete, forrado de cretones cor de canário com uma varanda para o
jardim, e duas janelas de peitoril sobre a rua das Tecedeiras e os velhos
arvoredos do convento das Mónicas. Gonçalo impaciente despiu logo o
casaco, sacudiu para longe o colete:

— Pois tu estás esplêndido, Barrolo! Deves ter perdido três ou quatro
quilos. São naturalmente os quilos que Gracinha ganhou... Vocês, se assim se
equilibram, ficam perfeitos.

Diante do espelho Barrolo acariciava a cinta, com um risinho deleado:

— Realmente, parece que adelgacei... Até sinto nas calças...


Gonçalo abrira o gavetão da rica cómoda de ferragens douradas, onde
conservava sempre roupa (até duas casacas), para evitar o transporte de malas
entre os Cunhais e a Torre. E ria, aconselhava o bom Barrolo a "adelgaçar"
sem descanso, para beleza da futura raça Barrólica — quando embaixo, na
silenciosa rua das Tecedeiras, as patas de um cavalo de luxo feriram as lajes
em cadência lenta.

Logo desconfiado, Gonçalo correu à janela, ainda com a camisa que
desdobrava. E era ele! Era o André Cavaleiro, que descia ladeando, sopeando
a rédea, para escarvar com garbo e fragor a rampa mal empedrada. Gonçalo
virou para o Barrolo a face chamejante de furor:

— Isto é uma provocação! Se este descarado deste Cavaleiro passa outra
vez na maldita pileca, por debaixo das janelas, apanha comum balde d''água
suja!...


Barrolo, inquieto, espreitou:


— Naturalmente vai para casa das Lousadas... Anda agora muito íntimo
das Lousadas... Sempre por aqui o vejo... E é para as Lousadas.
— Que seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, não há outro caminho
para casa das Lousadas? Duas vezes em meia hora! Grande insolente! Tem
uma chapada d''água de sabão, pela grenha e pela bigodeira, tão certo como eu
ser Ramires, filho do meu pai Ramires!

Barrolo beliscava a pele do pescoço, constrangido perante aqueles rancores
ruidosos que desmanchavam o seu sossego. Já, por imposição de Gonçalo,
rompera desconsoladamente com o Cavaleiro.

E agora antevia sempre uma bulha, um escândalo que o indisporia com os amigos do Cavaleiro, lhe vedaria
o Club e as doçuras da Arcada, lhe tornaria Oliveira mais enfadonha que a sua
quinta da Ribeirinha ou da Murtosa, solidões detestadas. Não se conteve,
arriscou o costumado reparo:

— Ó Gonçalinho, olha que também todo esse espalhafato só por causa da
Política...

Gonçalo quase quebrou o jarro, na fúria com que o pousou sobre o mármore
do lavatório:

— Política! Aí vens tu com a Política! Por Política não se atira água suja
aos Governadores Civis. Que ele não é Político, é só malandro! Além disso..

Mas terminou por encolher os ombros, emudecer, diante do pobre bacoco de
bochechas pasmadas, que, naquelas rondas do Cavaleiro pelos Cunhais, só
notava o "lindo cavalo" ou "o caminho mais curto para as Lousadas!..."

— Bem! — resumiu. — Agora larga, que me quero vestir... Do bigodeira
me encarrego eu.
— Então, até logo... Mas se ele passar nada de asneiras, bem?
— Só justiça, aos baldes!
E bateu com a porta nas costas resignadas do bom Barrolo, que, pelo
corredor, suspirando, lamentava o assomado génio do Gonçalinho, as cóleras
desproporcionadas em que o lançava "a Política".

Enquanto se ensaboava com veemência, depois se vestia numa pressa irada,
Gonçalo ruminou aquele intolerável escândalo. Fatalmente, apenas se apeava
em Oliveira, encontrava o homem da grande guedelha, caracolando por sob as
janelas do palacete, na pileca de grandes clinas! E o que o desolava era
perceber no coração de Gracinha, pobre coração meigo e sem fortaleza, uma
teimosa raiz de ternura pelo Cavaleiro, bem enterrada, ainda vivaz, fácil de
reflorir... E nenhum outro sentimento forte que a defendesse, naquela
ociosidade de Oliveira nem superioridade do marido, nem encanto de um
filho no seu berço. Só a amparava o orgulho, certo respeito religioso pelo
nome de Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e mexeriqueira. A
sua salvação seria o abandono da cidade, o encerrado retiro numa das quintas
do Barrolo, a Ribeirinha, sobretudo a Murtosa, com a linda mata, os musgosos
muros de convento, a aldeia em redor para ela se ocupar como castelã
benéfica. Mas quê! Nunca o Barrolo consentiria em perder o seu voltarete no
Club, e a cavaqueira da tabacaria "Elegante", e as chalaças do major Ribas!
Afogueado pelo calor, pela emoção, Gonçalo abriu a varanda. Embaixo, no
curto terraço ladrilhado, orlado de vasos de louça, precedendo o jardim,
Gracinha, ainda soltos os cabelos por cima do penteador, conversava com
outra senhora, muito alta, muito magra, de chapéu marujo enfeitado de
papoulas, que segurava entre os braços um repolhudo molho de rosas.

Era a "prima" Maria Mendonça, mulher de José Mendonça, condiscípulo do
Barrolo em Amarante, agora capitão do Regimento de Cavalaria estacionado
em Oliveira. Filha de um certo D. António, senhor (hoje Visconde) dos Paços
de Severim, devorada pela preocupação de parentescos fidalgos, de origens
fidalgas, ligava sempre sorrateiramente o vago solar de Severim a todas as
casas nobres de Portugal — sobretudo, mais gulosamente, à grande Casa de
Ramires; e, desde que o regimento se aquartelara em Oliveira, tratara logo
Gracinha por "tu" e Gonçalo por "primo", com a intimidade especial, que
convém a sangues superiores. Todavia mantinha amizades muito seguidas e
ativas com brasileiras ricas de Oliveira — até com a viúva Pinho, dona da loja
de panos, que (segundo se murmurava) lhe fornecia os dois filhos ainda
pequenos de calções e de jalecas. Também convivia intimamente, já na cidade,
já na Feitosa, com D. Ana Lucena. Gonçalo gostava da sua graça, da sua
agudeza, da vivacidade maliciosa que a agitava numa linda crepitação de galho,
ardendo com alegria. E quando, ao rumor da janela perra, ela levantou os
olhos luzidios e espertos, foi em ambos uma surpresa carinhosa:

— Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janela...
— E para mim, primo Gonçalo, que o não via desde a sua volta de
Lisboa!... Pois está mais lindo, assim de bigode...
— Dizem que estou lindíssimo, absolutamente irresistível! Até aconselho à
prima Maria que se não aproxime muito de mim, para se não incendiar.
Ela deixou pender desoladamente nos braços o seu pesado molho de rosas:

— Ai Jesus, então estou perdida, que ainda agora prometi à prima Graça
jantar cá esta tarde!... Oh Gracinha, por quem és, põe um biombo entre os
dois!
Gonçalo gritou, pendurado da varanda, já deliciado com os chistes da prima
Maria:
— Não! enfio eu um abat-jour pela cabeça para atenuar o meu brilho!... E
o maridinho, os pequenos? Como vai o nobre rancho?
— Vivendo, com algum pão e muita graça de Deus... Então até logo,
primo Gonçalo! E seja misericordioso!
E ainda ele ria, encantado — já a prima Maria, depois de cochichar e de estalar
dois beijos apressados na face de Gracinha, desaparecera pela porta
envidraçada da sala com a sua elegância esgalgada. Gracinha, lentamente,
subiu os três degraus de mármore do jardim. Da varanda, Gonçalo ainda
avistou através da ramaria leve, entre as sebes de buxo, o penteador branco, os
fartos cabelos caídos, reluzindo no sol como uma cascata de azeviche. Depois
o negro brilho, as claras rendas, desapareceram sob os loureiros da rua que
conduzia ao Mirante.

Mas Gonçalo não se arredou de entre as janelas, limando vagamente as unhas,
espreitando pelas cortinas, numa desconfiança, quase num terror que o
Cavaleiro de novo surgisse na pileca — agora que Gracinha se embrenhara
para os lados desse cómodo Mirante, construção do século XVIII, imitando
um Templozinho do Amor, que rematava o longo terraço do jardim e
dominava a rua das Tecedeiras.

Mas a calçada permanecia silenciosa, sob as
derramadas sombras de arvoredo do Palacete e do Convento. E por fim
decidiu descer, envergonhado da espionagem — certo que a irmã não se
mostraria ao Cavaleiro na varandinha do Mirante, assim com os cabelos em
desalinho, por cima de um penteador.

E cerrava a porta, quando se encontrou diante dos braços do Padre Soeiro,
que o prenderam pela cinta com afago e respeito.

— Oh! meu ingratíssimo Padre Soeiro! — exclamava Gonçalo, batendo
ternamente nas gordas costas do capelão. — Então que feia ação foi esta?
Mais de um mês sem aparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Soeiro já não
há Gonçalinho, há só Gracinha...

Enternecido, quase com uma lágrima a bailar nos mansos olhos miúdos, que
mais negrejavam entre a frescura rósea da face roliça e a cabecinha branca
como algodão — Padre Soeiro sorria, fechando as mãos sobre o peito da
batina de alpaca, donde surgia a ponta de um lenço de quadrados vermelhos.
E não lhe escasseara certamente o desejo de ir à Torre. Mas aquele
trabalhinho na Biblioteca do Paço do Bispo... Depois o seu reumatismozito...
Enfim a Sra. D. Graça sempre esperando S. Exa., um dia, outro dia...

— Bem, bem! — acudiu alegremente Gonçalo, contanto que o coração
não se esquecesse da Torre...

— Ah! esse! — murmurou Padre Soeiro com comovida gravidade.
E pelo corredor de paredes azuis, adornadas com gravuras coloridas das
batalhas de Napoleão, Gonçalo resumiu as novidades da Torre:

— Como o Padre Soeiro sabe, rebentou aquele escândalo do Relho... E
ainda bem, porque concluí um negócio esplêndido. Imagine! Arrendei há dias
a quinta ao Pereira Brasileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto cento e
cinquenta mil réis...

O capelão suspendeu a pitada, que colhera numa caixa de prata dourada,
pasmado para o Fidalgo:


— Ora aí está como as coisas se inventam! Pois por cá constou que V Exa.
tratara com o José Casco, o José Casco dos Bravais. Até no domingo, ao
almoço, a Sra. D. Graça...

— Sim — interrompeu o Fidalgo com uma fugidia cor na face fina.
— Efetivamente o Casco veio à Torre, conversamos. Primeiramente quis,
depois não quis. Aquelas coisas do Casco! Enfim, uma maçada... Não ficou
nada
E ainda ele ria, encantado — já a prima Maria, depois de cochichar e de estalar
dois beijos apressados na face de Gracinha, desaparecera pela porta
envidraçada da sala com a sua elegância esgalgada. Gracinha, lentamente,
subiu os três degraus de mármore do jardim. Da varanda, Gonçalo ainda
avistou através da ramaria leve, entre as sebes de buxo,o penteador branco, os
fartos cabelos caídos, reluzindo no sol como uma cascata de azeviche.

Depois o negro brilho, as claras rendas, desapareceram sob os loureiros da rua que
conduzia ao Mirante. Mas Gonçalo não se arredou de entre as janelas,
limando vagamente as unhas, espreitando pelas cortinas, numa desconfiança,
quase num terror que o Cavaleiro de novo surgisse na pileca — agora que
Gracinha se embrenhara para os lados desse cómodo Mirante, construção do
século XVIII, imitando um Templozinho do Amor, que rematava o longo
terraço do jardim e dominava a rua das Tecedeiras.

Mas a calçada permanecia silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do Palacete e do
Convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da espionagem — certo
que a irmã não se mostraria ao Cavaleiro na varandinha do Mirante, assim
com os cabelos em desalinho, por cima de um penteador.


E cerrava a porta, quando se encontrou diante dos braços do Padre Soeiro,
que o prenderam pela cinta com afago e respeito.


— Oh! meu ingratíssimo Padre Soeiro! — exclamava Gonçalo, batendo
ternamente nas gordas costas do capelão. — Então que feia ação foi esta?
Mais de um mês sem aparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Soeiro já não
há Gonçalinho, há só Gracinha...

Enternecido, quase com uma lágrima a bailar nos mansos olhos miúdos, que
mais negrejavam entre a frescura rósea da face roliça e a cabecinha branca
como algodão — Padre Soeiro sorria, fechando as mãos sobre o peito da
batina de alpaca, donde surgia a ponta de um lenço de quadrados vermelhos.
E não lhe escasseara certamente o desejo de ir à Torre. Mas aquele
trabalhinho na Biblioteca do Paço do Bispo... Depois o seu reumatismozito...
Enfim a Sra. D. Graça sempre esperando S. Exa., um dia, outro dia...

— Bem, bem! — acudiu alegremente Gonçalo, contanto que o coração
não se esquecesse da Torre...

— Ah! esse! — murmurou Padre Soeiro com comovida gravidade.
E pelo corredor de paredes azuis, adornadas com gravuras coloridas das
batalhas de Napoleão, Gonçalo resumiu as novidades da Torre:

— Como o Padre Soeiro sabe, rebentou aquele escândalo do Relho... E
ainda bem, porque concluí um negócio esplêndido. Imagine! Arrendei há dias
a quinta ao Pereira Brasileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto cento e
cinquenta mil réis...

O capelão suspendeu a pitada, que colhera numa caixa de prata dourada,
pasmado para o Fidalgo:
— Ora aí está como as coisas se inventam! Pois por cá constou que V Exa.
tratara com o José Casco, o José Casco dos Bravais. Até no domingo, ao
almoço, a Sra. D. Graça...

— Sim — interrompeu o Fidalgo com uma fugidia cor na face fina.
— Efetivamente o Casco veio à Torre, conversamos. Primeiramente quis,
depois não quis. Aquelas coisas do Casco! Enfim, uma maçada... Não ficou
nada decidido. E quando o Pereira, uma bela manhã, me apareceu com a
proposta, eu, inteiramente desligado, aceitei, e com que alvoroço!... Imagine!
Um aumento soberbo de renda, o Pereira como rendeiro... O Padre Soeiro
conhece bem o Pereira..

— Homem entendido — concordou o capelão coçando embaraçadamente
o queixo. — Não há dúvida. E homem de bem... Depois não havendo palavra
dada ao Cas...


— Pois o Pereira para a semana vem à cidade — atalhou apressadamente
Gonçalo. — O Padre Soeiro previne o Tabelião Guedes, e assinamos essa
bela escritura. São as condições costumadas. Creio que há uma reserva a
respeito da hortaliça e do porco... Enfim o Padre Soeiro deve receber carta do
Pereira.

E imediatamente, descendo a escada, passando o lenço perfumado pelo
bigode, gracejou com o capelão sobre o famoso Fado dos Ramires em que ele
colaborava com o Videirinha. Oh! Padre Soeiro fornecera lendas sublimes!
Mas aquela de Santa Aldonça, realmente, fora ataviada com exageração...
Quatro Reis a levarem a Santa aos ombros!

— São Reis demais, Padre Soeiro!

O bom capelão protestou, logo interessado e sério, no amor daquela obra que
glorificava a Casa:
— Ora essa! Com perdão de V. Exa.... Perfeitissimamente exato. Lá o
conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas Damas da Corte do Céu, livro
precioso, livro raríssimo, que o Sr. José Barrolo tem na Livraria. Não
especifica os Reis, mas diz quatro... "Aos ombros de quatro Reis e com
acompanhamento de muitos Condes." Mas o nosso José Videira declarou que
não podia meter os condes por causa da rima.
O Fidalgo ria, dependurando num cabide, ao fundo da escada, o chapéu de
palha com que descera:
— Por causa da rima, pobres condes... Mas o fado está lindo. Eu trago
uma cópia para a Gracinha cantar ao piano... E agora outra coisa, Padre
Soeiro. O que se conta por aí do Governador Civil, desse Sr. André
Cavaleiro?...
O capelão encolheu os ombros, desdobrando cautelosamente o seu vasto
lenço de quadrados vermelhos:
— Eu, como V. Exa. sabe, não entendo de Política. Depois também não
frequento os cafés, os sítios onde se questiona Política... Mas parece que
gostam.

No corredor um escudeiro gordo, de opulentas suíças ruivas, que Gonçalo
não conhecia, badalou a sineta do almoço. Gonçalo reparou, avisou o homem
que a Sra. D. Maria da Graça andava para o fundo do jardim...
— Entrou agora, Sr. D. Gonçalo! — acudiu o escudeiro. — E até manda
perguntar se V. Exa. deseja para o almoço vinho verde de Amarante, de
Vidainhos.
Sim, com certeza, vinho de Vidainhos. Depois sorrindo:
— Oh Padre Soeiro, previna este escudeiro novo que eu não tenho Dom.
Sou simplesmente Gonçalo, graças a Deus!
O capelão murmurou que todavia, em documentos da Primeira Dinastia,
apareciam Ramires com Dom. E, como Gonçalo parara diante do reposteiro
corrido da sala, logo o bom velho se curvou, com as suas escrupulosas,
reverentes cerimónias, para o Fidalgo passar.

— Então, Padre Soeiro, por quem é!
Mas ele, com apegado respeito:
— Depois de V. Exa., meu senhor...
Gonçalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o capelão:
— Padre Soeiro, já nos documentos da Primeira Dinastia se estabeleceu
que os Santos nunca andam atrás dos Pecadores!

— V. Exa. manda, e sempre com que graça!
Depois dos anos de Gracinha, uma tarde, pelas três horas, Gonçalo,
recolhendo com Padre Soeiro de uma visita à Biblioteca do Paço do Bispo,
sentiu logo da antecâmara o vozeirão do Titó, que rolava na sala azul em
trovão lento. Franziu vivamente o reposteiro — e sacudiu o punho para o
imenso homem que enchia um dos cadeirões dourados, estirando por sobre as
flores do tapete umas botas novas de grossas tachas reluzentes:

— Oh infame!... Então noutro dia assim me larga, sem escrúpulo, depois
de eu lhe preparar um cabrito estupendo, assado num espeto de cerejeira? E
para quê?... Para uma orgia reles, com bolinhos de bacalhau e bichinhas de
rabear!
Titó não desmanchou a sua conchegada beatitude:
— Impossibilíssimo. De tarde encontrei o João Gouveia no Chafariz. E só
então nos lembramos de que eram os anos da D. Casimira. Dia sagrado!
Aquelas ceias de Vila-Clara, as tresnoitadas "pândegas" com violão,
impressionavam sempre Barrolo, que as apetecia. E com o olho aguçado, do
canto da mesa onde esfarelava cuidadosamente pacotes de tabaco dentro de
uma terrina do Japão:
— Quem é a D. Casimira? Vocês em Vila-Clara descobrem uns tipos...
Conta lá!

— Um monstro! — declarou Gonçalo. Uma matronaça bojuda como uma
pipa, com um pêlo nojento no queixo. Vive ao pé do Cemitério, num cacifro
que tresanda a petróleo, onde este senhor e as autoridades vão jogar o quino, e
derriçar com umas sirigaitas de casabeque vermelho e de farripas... Nem se
pode decentemente contar diante do Sr. Padre Soeiro!


O capelão, que sem rumor se esbatera numa sombra discreta, entre os
franjados cetins de uma cortina e um pesado contador da Índia, moveu os
ombros num consentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades
do Pecado. E, com pachorra, o Titó emendava o esboço burlesco do Fidalgo:

— A D. Casimira é gorda, mas muito asseada. Até me pediu para eu lhe
comprar hoje, na cidade, uma bacia nova de assento. A casa não cheira a
petróleo e fica por trás do convento de Santa Teresa. As sirigaitas são
simplesmente as sobrinhas, duas raparigas alegres que gostam de rir e de
troçar... E o Sr. Padre Soeiro podia, sem medo...

— Bem, bem! — atalhou Gonçalo. — Gente deliciosa! Deixemos a D.
Casimira, que tem bacia nova para os seus semicúpios... Vamos à outra
infâmia do Sr. António Vilalobos!
Mas Barrolo insistia, curioso:
— Não, não, conta lá, Titó... Noite de anos, patuscada rija, hem?

— Ceia pacata — contou o Titó com a seriedade que lhe merecia a festa
das suas amigas. — A D. Casimira tinha uma bela frangalhada com ervilhas. O
João Gouveia trouxe do Gago uma travessa de bolos de bacalhau que
calharam... Depois, fogo de vistas na horta. O Videirinha tocou, as pequenas
cantaram... Não se passou mal.

Gonçalo esperava — irresistivelmente interessado pela ceia das Casimiras:
— Acabou, bem?... Agora a outra infâmia, mais grave! Então o Sr. António
Vilalobos é íntimo do Sanches Lucena, frequenta todas as semanas a Feitosa,
toma chá e torradas com a bela D. Ana, e esconde tenebrosamente dos seus
amigos estes privilégios gloriosos?...

— Sem contar — gritou o Barrolo deliciosamente divertido — que lhe
passeia à trela os cãezinhos felpudos!

— Sem contar que lhe passeia à trela os cãezinhos felpudos! — ecoou
cavamente Gonçalo. — Responda, meu ilustre amigo!

O Titó remexeu o vasto corpo dentro do cadeirão, recolheu as botas de tachas
luzentes, afagou lentamente a face barbuda, que uma vermelhidão aquecera. E
depois de encarar Gonçalo, intensamente, com um esforço de sagacidade que
mais o afogueou:

— Tu já alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu conhecia o
Sanches Lucena? Nunca me perguntaste...

O Fidalgo protestou. Não! Mas constantemente na Assembleia, no Gago, na
Torre, eles berravam, em questões de Política, o nome do Sanches Lucena!
Nada mais natural, até mais prudente, do que aludir o Sr. Titó à sua intimidade
ilustre! Ao menos para evitar que ele, ou os amigos, diante do Sr. Titó que
comia as torradas da Feitosa, tratassem o Sanches Lucena como um trapo!

O Titó despegou do cadeirão. E afundando as mãos nos bolsos da quinzena
de alpaca, sacudindo desinteressadamente os ombros:
— Cada um tem sobre o Sanches a sua opinião... Eu apenas o conheço há
quatro ou cinco meses, mas acho que é sério, que sabe as coisas... Agora, lá
nas Câmaras...

Gonçalo, indignado, bradava que se não discutiam os méritos do Sr. Sanches
Lucena — mas os segredos do Sr. Titó Vilalobos! E o escudeiro novo,
avançando as suíças ruivas por uma fenda do reposteiro, anunciou que o Sr.
Administrador de Vila-Clara procurava S. Exa....

Barrolo largou logo a terrina de tabaco:


— O Sr. João Gouveia! Que entre! Bravo! Temos cá toda a rapaziada de
Vila-Clara!
E Titó, da janela onde se refugiara, lançou o vozeirão, mais troante, abafando
a importuna conversa do Sanches e da Feitosa:

— Viemos ambos! Por sinal numa traquitana infame... Até se nos
desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. Não se perdeu
tempo, que há agora lá um vinhinho branco que é daqui da ponta fina!...

Beliscava a orelha. Aconselhava ruidosamente Barrolo e Gonçalo a passarem
na Vendinha, para provar a pinga celeste.

Até aqui o Sr. Padre Soeiro lhe atiçava uma caneca valente, apesar do Pecado!
Mas João Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco vermelho
na testa, do chapéu e do calor — e abotoado na sobrecasaca preta, de calças
pretas, de luvas pretas. Sem fôlego, apertou silenciosamente pela sala as mãos
amigas que o acolhiam. E desabou sobre o canapé, implorando ao amigo
Barrolo a caridade de uma bebidinha fresca!

— Estive para entrar no café Mônaco. Mas refleti que nesta grandiosa casa
dos Barrolos as bebidas são de mais confiança.
— Ainda bem! Você que quer? Orchata? Sangria? Limonada?
— Sangria

E, limpando o pescoço e a testa, amaldiçoou o indecente calor de Oliveira:
— Mas há gente que gosta! Lá o meu chefe, o Sr. Governador Civil,
escolhe sempre a hora do calor para passear a cavalo. Ainda hoje... Na
repartição até o meio-dia; depois, cavalo à porta; e larga até a estrada de
Ramilde, que é uma África... Não sei como lhe não fervem os miolos!

— Oh! — acudiu Gonçalo — é muito simples. Se ele os não tem!
O Administrador saudou gravemente:

— Já cá faltava com a sua ferroadazinha o Sr. Gonçalo Mendes Ramires!
Não comecemos, não comecemos... Este seu cunhado, Barrolo, é bicho
indomesticável! Sempre reponta!

O bom Barrolo gaguejou, constrangido, que Gonçalinho em Política não
dispensava a piada...

— Pois olhe! — declarou o Administrador, sacudindo o dedo para
Gonçalo. — Esse Sr. André Cavaleiro, que não tem miolos, ainda esta manhã
na Repartição gabou com imensa simpatia os miolos do Sr. Gonçalo Mendes
Ramires!...

E Gonçalo, muito sério:
— Também não faltava mais nada! Para esse Governador Civil ser
perfeitamente absurdo só lhe restava que me considerasse um asno!
— Perdão! — gritou o Administrador, que se erguera, desabotoando logo
a sobrecasaca, para comodidade da contenda.
Barrolo acudiu, aflito, carregando nos ombros do Gouveia — para o sossegar
e o repor no canapé:

— Não, meninos, não! Política, não! E então essa maçada do Cavaleiro...
Vamos ao que importa. Você janta connosco, João Gouveia?
— Não, obrigado. Já prometi jantar com o Cavaleiro. Temos lá o Inácio
Vilhena. Vai ler um artigo que escreveu para o Boletim de Guimarães sobre
umas fôrmas de fabricar ossos de mártires, descobertas nas obras do convento
de S. Bento. Estou com curiosidade... E a Sra. D. Graça, bem? Quem eu não
avistava havia meses era o Sr. Padre Soeiro. Nunca aparece agora pela Torre!...
Mas sempre rijo, sempre viçoso. Oh, Sr. Padre Soeiro, qual é o seu segredo
para toda essa meninice?

Do seu canto, o capelão sorriu timidamente. O segredo? Poupar a Vida —
não a consumindo nem com ambições nem com deceções. Ora para ele,
louvado Deus, a vida corria muito simples e muito pequenina. E fora o seu
reumatismo...

Depois, corando de acanhamento, através das sentenças evangélicas que lhe
escapavam:
— Mas mesmo o reumatismo não é mal perdido. Deus, que o manda, sabe
porque o manda... Sofrer edifica. Porque enfim o que nós sofremos nos leva a
pensar no que os outros sofrem...
— Pois olhe — volveu com alegre incredulidade o Administrador — , eu,
quando tenho os meus ataques de garganta, não penso na garganta dos outros!

Penso só na minha que me dá bastante preocupação. E agora a vou regalar
naquela bela sangria...
O escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos de
sangria onde boiavam rodelinhas de limão. E todos se tentaram, todos
beberam, até Padre Soeiro, para mostrar ao Sr. António Vilalobos que não
desdenhava o vinho, dádiva amável de Deus — pois como ensina Tibulo com
verdade, apesar de gentílico, vinus facit dites animos, mollia corda dat, enrija a
alma e adoça o coração.
João Gouveia, depois de um suspiro consolado, pousou na bandeja o copo
que esvaziara de um trago e interpelou Gonçalo:
— Vamos a saber! Então noutro dia que história fantástica foi essa de uma
festa na Torre, com senhoras, com a D. Ana Lucena?... Eu não acreditei
quando o pequeno do Gago me encontrou, me deu o recado. Depois...
Mas dentre as cortinas da janela, onde acabava a sangria, Titó novamente
ribombou, interpelando também o Fidalgo:
— Ó sô Gonçalo! E o que me contou há pouco o Barrolo?... Que andavas
com ideias de abalar para a África?
Ao espanto de João Gouveia quase se misturou terror. Para a África?... O quê?
Com um emprego para a África?...

— Não! plantar cocos! plantar cacau! plantar café! — exclamava o Barrolo,
com divertidas palmadas na coxa.
Pois Titó aprovava a ideia! Também ele, se arranjasse um capital, dez ou
quinze contos, tentava a África, a traficar com o preto... E também se fosse
mais pequeno, mais seco. Que homens do seu corpanzil, necessitando muito
comezaina e muita vinhaça, não aguentam a África, rebentam!

— O Gonçalo sim! É chupado, é rijo; não carrega na aguardente; está na
conta para Africanista... E sempre te digo! Carreira bem mais decente que essa
outra porque tens mania, de deputado! Para quê? Para palmilhar na Arcada,
para bajular Conselheiros.

Barrolo concordou, com alarido. Também não compreendia a teima de
Gonçalo em ser deputado! Que maçada! Eram logo as intrigas, e as desandas
nos jornais, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os eleitores.
— Eu, nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um título e
uma grã-cruz a tiracolo, como o Freixomil!
Gonçalo escutara, num silêncio risonho e superior, enrolando laboriosamente
um cigarro com o tabaco do Barrolo:
— Vocês não compreendem... Vocês não conhecem a organização de
Portugal. Perguntem aí ao Gouveia... Portugal é uma fazenda, uma bela
fazenda, possuída por uma parceria. Como vocês sabem há parcerias
comerciais e parcerias rurais. Esta de Lisboa é uma parceria política, que
governa a herdade chamada Portugal... Nós os Portugueses pertencemos
todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou
vivem nela a olhar, como o Barrolo, e que pagam; e uns trinta sujeitos em
cima, em Lisboa, que formam a parceria, que recebem e que governam. Ora
eu, por gosto, por necessidade, por hábito de família, desejo mandar na
fazenda. Mas, para entrar na parceria política, o cidadão português precisa
uma habilitação — ser deputado. Exatamente como, quando pretende entrar
na Magistratura, necessita uma habilitação — ser bacharel. Por isso procuro
começar como Deputado para acabar como parceiro e governar... Não é
verdade, João Gouveia?

O Administrador voltara à bandeja das sangrias, de que saboreava outro copo,
agora lentamente, aos goles.
— Sim, com efeito, essa é a carreira... Candidato, Deputado, Político,
Conselheiro, Ministro, Mandarim. É a carreira... E melhor que a de África. Por
fim na Arcada, em Lisboa, também cresce cacau e há mais sombra!
Barrolo no entanto abraçara o ombro possante do Titó, com quem mergulhou
no vão da janela, numa confraternidade de ideias, gracejando:

— Pois eu, sem ser dos tais parceiros, também mando nos bocados de
Portugal que mais me interessam porque me pertencem!... E sempre queria
ver que esse S. Fulgêncio, ou o Braz Victorino, ou lá os políticos do Terreiro
do Paço, se metessem a dispor nas minhas terras, na Ribeirinha ou na
Murtosa... Era a tiro!

Encostado à vidraça, Titó coçava a barba, impressionado:

— Pois sim, Barrolo! Mas você na Ribeirinha e na Murtosa tem de pagar as
contribuições que eles mandarem. E nesses concelhos tem de aguentar as
autoridades que eles nomearem. E goza para lá de estradas se eles lhas
fizerem. E vende o carro de pão e a pipa de vinho com mais ou menos
proveito, segundo as leis que eles votarem... E assim tudo. O Gonçalo não
deixa de acertar. É o diabo! Quem manda é quem lucra... Olhe! o maroto do
meu senhorio em Vila-Clara, agora para o S. Miguel, aumenta a renda da casa
em que eu moro, um cochicho que ninguém quer, porque mataram lá o
carrasco, que ainda lá aparece... E o Cavaleiro, esse, como parceiro, vive de
graça neste belo palácio de S. Domingos, com cocheira, com jardim, com
horta...

Barrolo atirou um chut, de mão espalmada, abafando o vozeirão do Titó, com
medo que as regalias do Cavaleiro, assim proclamadas, renovassem as fúrias
de Gonçalo. Mas o Fidalgo não percebera, atento ao João Gouveia, que,
enterrado no canapé depois da sangria, novamente contava o seu assombro,
ao encontrar no chafariz, em Vila-Clara, o rapazola do Gago com o recado da
grande festa na Torre:

— E cheguei a desconfiar que realmente você desse festa, quando bateram
as nove, depois as nove e meia, e o Titó sem chegar para a ceia da D.
Casimira!... Bem, pensei, também recebeu recado e abalou para a Torre! Por
fim, apenas ele apareceu, de carapuço e de jaqueta, percebi que fora troça do
Sr. D. Gonçalo...

Então o Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita:
— De carapuço e jaqueta? O Titó andava nessa noite de carapuço e de
jaqueta?...
Mas bruscamente Barrolo, da funda janela, lançou para dentro, para a sala, um
brado de pavor:

— Oh! rapazes! Santo Deus! Aí vêm as Lousadas! João Gouveia saltou do
canapé, como num perigo, reabotoando arrebatadamente a sobrecasaca;
Gonçalo, atarantado, esbarrou com o Titó e o Barrolo que recuavam, no
terror de serem apercebidos através dos vidros largos; até Padre Soeiro,
prudente, abandonou o seu recanto onde corria os óculos pela Gazeta do
Porto. E todos, dentre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma
cidadela, espreitavam o largo, que o sol das quatro horas dourava por sobre os
telhados musgosos da Cordoaria. Do lado da rua das Pegas, as duas Lousadas,
muito esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda
preta e vidrilhos, ambas com guarda-sóis de xadrezinho desbotado,
avançavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas.

As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gariulas como cigarras, desde
longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as
espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na
desditosa Cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido,
algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina,
chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus
quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem — e que a sua
solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com malícia estridente!
Delas surdiam todas as cartas anônimas que infestavam o Distrito; as pessoas
devotas consideravam como penitências essas visitas em que elas durante
horas galravam, abanando os braços escanifrados; e sempre por onde elas
passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e receio. Mas quem
ousaria rechaçar as duas manas Lousadas? Eram filhas do decrépito e
venerando general Lousada; eram parentas do Bispo; eram poderosas na
poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois de uma
castidade tão rígida, tão antiga e tão ressequida, e por elas tão
espaventosamente alardeada — que o Marcolino DO INDEPENDENTE as
alcunhara de Duas Mil Virgens.

— Não vêm para cá! — trovejou o Titó, com imenso alívio.
Com efeito no meio do largo, rente à grade que circunda o antigo relógio de
sol, as duas manas paradas erguiam o bico escuro, farejando e espiando a
Igrejinha de S. Mateus onde o sino lançara um repique de batizado.


— Oh, com os diabos, que é para cá!
As Lousadas, decididas, investiam contra o portão dos Cunhais! Então foi um
pânico! As gordas pernas do Barrolo, fugindo, abalaram, quase derrubaram
sobre os contadores os potes bojudos da Índia. Gonçalo bradava que se
escondessem no pomar. Desconcertado, o Gouveia rebuscava com desespero
o seu chapéu-coco. Só o Titó, que as abominava e a quem elas chamavam o
Polifemo, retirou com serenidade, abrigando o Padre Soeiro sob o seu braço
forte. E já o bando espavorido se arremessara sobre o reposteiro — quando
Gracinha apareceu, com um fresco vestido de sedinha cor de morango,
sorrindo, pasmada, para o tropel que rolava:

— Que foi? Que foi?...
Um clamor abafado envolveu a doce senhora ameaçada:
— As Lousadas!
— Oh!
Fugidiamente o Titó e João Gouveia apertaram a mão que ela lhes
abandonou, esmorecida. A sineta do portão tilintara, temerosa! E a fila
acavalada, onde Padre Soeiro rebolava a reboque, enfiou para a Livraria que o
Barrolo aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma inspiração:

— Esconde as sangrias!
Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou ela
para uma banqueta do corredor, num esforço desesperado, a pesada salva —
com que as Lousadas, se a descortinassem, edificariam por sobre a cidade, e
mais alta que a Torre de S. Mateus, uma história pavorosa de "vinhaça e
bebedeira". Depois, ofegando, relanceou no espelho o penteado. E direita
como numa arena, com a temeridade simples e risonha dos antigos Ramires,
esperou a arremetida das manas terríveis.

No outro domingo, depois do almoço, Gonçalo acompanhou a irmã à casa da
tia Arminda Vilegas, que na véspera, ao tomar (como costumava todos os
sábados) o seu banho aos pés, se escaldara e recolhera à cama, apavorada,
reclamando uma junta dos cinco cirurgiões de Oliveira. Depois acabou o
charuto sob as acácias do Terreiro da Louça, pensando na sua Novela
abandonada na Torre durante essas semanas, e no lance famoso do Capítulo
II que o tentava e que assustava-o o encontro de Lourenço Ramires com
Lopo de Baião, o Bastardo, no vale fatal de Canta-Pedra. E recolhia aos
Cunhais (porque prometera ao Barrolo uma trotada a cavalo, até o Pinhal de
Estevinha, para aproveitar a doçura do domingo enevoado) quando, na rua
das Velas, avistou o Tabelião Guedes, que saia da confeitaria das Matildes
com um grosso embrulho de pastéis. Ligeiramente, o Fidalgo atravessou logo
a rua — enquanto o Guedes, da borda do passeio, pesado e barrigudo, na
ponta dos botins miudinhos gaspeados de verniz, descobria, numa cortesia
imensa, a calva, emplumada ao meio pelo famoso tufo de cabelo grisalho que
lhe valera a alcunha de "Guedes Popa":

— Por quem é, meu caro Guedes, ponha o chapéu! Como está? Sempre
fero e jovem. Ainda bem!... Falou com o meu Padre Soeiro? O Pereira da
Riosa, por fim, só vem à cidade na quarta-feira...
Sim! Sim! O Sr. Padre Soeiro passara pelo cartório, para avisar e ele
apresentava os parabéns a S. Exa. pelo seu novo rendeiro...

— Homem muito competente, o Pereira! Já há vinte anos que o conheço...
E olhe V. Exa. a propriedade do Conde de Monte-Agra! Ainda me lembro
dela, um chavascal; hoje que primor! Só a vinha que ele tem plantado! Homem
muito competente... E V. Exa. com demora?
— Dois ou três dias... Não se atura este calor de Oliveira. Hoje, felizmente,
refrescou. E que há de novo? Como vai a política? O amigo Guedes sempre
bom Regenerador, leal e ardente, bem?
Subitamente o Tabelião, com o seu embrulho de doces conchegado ao colete
de seda preta, agitou o braço gordo e curto, numa indignação que lhe
esbraseou de sangue o pescoço, as orelhas cabeludas, a face rapada, toda a
testa até as abas do chapéu branco orlado de fumo negro:
— E quem o não há de ser, Sr. Gonçalo Mendes Ramires? Quem o não há
de ser?... Pois este último escândalo!

Os risonhos olhos de Gonçalo logo se alargaram, sérios:
— Que escândalo?
O Tabelião recuou. Pois S. Exa. não sabia da última prepotência do
Governador Civil, do Sr. André Cavaleiro?
— O quê, caro amigo?...
O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e
inchou, para exclamar:
— A transferência do Noronha!... A transferência do desgraçado Noronha!
Mas uma senhora, também obesa, de buço carregado, toda a estalar em ricas e
rugidoras sedas de missa, arrastando severamente pela mão um menino que
rabujava, parou, fitou o Guedes porque o digno homem com o seu ventre, o
seu embrulho, a sua indignação, atravancava a entrada das Matildes.
Apressadamente, o Fidalgo levantou, para ela entrar, o fecho da porta
envidraçada. Depois, num alvoroço:
— O amigo Guedes naturalmente vai para casa. É o meu caminho.
Andamos e conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que Noronha?
— O Ricardo Noronha... V. Exa. conhece. O pagador das Obras Públicas!
— Ah! sim, sim... Então transferido? Transferido arbitrariamente?

Na rua das Brocas por onde desciam, no silêncio, e solidão das lojas cerradas,
a cólera do Guedes ressoou, mais solta:
— Infamemente, Sr. Gonçalo Mendes Ramires, infamissimamente! E para
Almodôvar, para os confins do Alentejo!... Para uma terra sem recursos, sem
distrações, sem famílias!...
Parara, com os doces contra o coração, os olhinhos esbugalhados para o
Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradíssimo!
E sem Política, absolutamente sem Política. Nem dos Históricos, nem dos
Regeneradores. Só da família, das três irmãs que sustentava, três flores... E
homem estimadíssimo na cidade, cheio de prendas! Um talento imenso para a
música!... Ah! o Sr. Gonçalo Ramires não sabia? Pois compunha ao piano
coisas lindas! Depois precioso para reuniões, para anos. Era ele quem
organizava sempre em Oliveira as representações de curiosos...
— Porque, como ensaiador, creia V. Exa. que não há outro, mesmo na
capital... Não há outro! E, zás, de repente, para Almodôvar, para o Inferno,
com as irmãs, com os tarecos! Só o piano!... Veja V. Exa. só o transporte do
piano!
Gonçalo resplandecia:
— É um belo escândalo. Ora, que felicidade esta de o ter encontrado, meu
caro Guedes!... E não se sabe o motivo?

De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o Tabelião
encolhia os ombros, com amargura. O motivo! Publicamente, como sempre
nestas prepotências, o motivo era a conveniência do serviço...
— Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o
verdadeiro motivo... O íntimo, o secreto, o medonho!


— Então?
Guedes relanceou a rua, com prudência. Uma velha atravessava, coxeando,
segurando uma bilha. E o Tabelião segredou cavamente, junto à face
deslumbrada do Fidalgo.
— É que o Sr. André Cavaleiro, esse infame, se encantara com a mais
velha das irmãs Noronhas, a D. Adelina, formosíssima rapariga, alta e morena,
uma estátua!... E repelido (porque a menina, cheia de juízo, uma pérola,
percebera a intenção vilíssima), em quem se vinga, por despeito, o Sr.
Governador Civil? No pagador! Para Almodôvar com as meninas, com os
tarecos!... Era o pagador quem pagava!

— É uma bela maroteira! — murmurou Gonçalo, banhado de gosto e riso.
— E note V. Exa.! — exclamava o Guedes, com a mão gorda a tremer por
cima do chapéu. — Note V. Exa. que o pobre Noronha, na sua inocência, tão
bom homem, gostando sempre de agradar aos seus chefes, ainda há semanas
dedicara ao Cavaleiro uma valsa linda!... A Mariposa, uma valsa linda!

Gonçalo não se conteve, esfregou as mãos num triunfo:

— Mas que preciosa maroteira!... E não se tem falado? Esse jornal de
oposição, o Clarim de Oliveira, nem uma denúncia, nem uma alusão?...
O Guedes pendeu a cabeça, descorçoado. O senhor Gonçalo Ramires
conhecia bem essa gente do Clarim... Estilo — e estilo brincado, opulento...
Mas para assoalhar, assim num caso gravíssimo como o do Noronha, a
verdade bem nua — pouco nervo, nenhuma valentia. E depois o Biscainho, o
redator principal, andava a passar sorrateiramente para os Históricos. Ah! O
Sr. Gonçalo Mendes Ramires não se inteirara? Pois esse torpíssimo Biscainho
bolinava. Decerto o Cavaleiro lhe acenara com posta... Além disso, como
provar a infâmia? Coisas íntimas, coisas de família. Não se podia apresentar a
declaração da D. Adelina, menina virtuosíssima — e com uns olhos!... Ah! se
fosse no tempo do Manuel Justino e da Aurora de Oliveira!... Esse era homem
para estampar logo na primeira página, em letra graúda: "Alerta! Que a
Autoridade superior do Distrito tentou levar a desonra ao seio da família
Noronha!..."
— Esse era um homem! Coitado, lá está no cemitério de S. Miguel... E
agora, Sr. Gonçalo Ramires, o despotismo campeia, desenfreado!
Bufava, arfava, esfalfado daquele fogoso desabafo. Dobraram calados a
esquina das Brocas para a bela rua, novamente calçada, da Princesa D. Amélia.

E logo na segunda porta, parando, tirando da algibeira o trinco, o Guedes, que
ainda resfolegava, ofereceu a S. Exa. para descansar.
— Não, não, obrigado, meu caro amigo. Tive imenso, imenso prazer, no
encontrar... Essa história do Noronha é tremenda!... Mas nada me espanta do
Sr. Governador Civil. Só me espanta que o não tenham corrido de Oliveira,
como ele merece, com pancada e assuada... Enfim, nem toda a gente boa jaz
no cemitério de S. Miguel... Até amanhã, meu Guedes. E obrigado!
Da rua da Princesa D. Amélia até o largo de El-Rei, Gonçalo correu com o
deslumbramento de quem descobrisse um tesouro e o levasse debaixo da
capa! E aí levava com efeito "o escândalo, o rico escândalo", que tanto
farejara, porque tanto almejara, para desmantelar o Sr. Governador Civil na
sua fiel cidade de Oliveira, que lhe levantava arcos de buxo! E, por uma mercê
de Deus, "o rico escândalo" demoliria também o homem no coração de
Gracinha, onde, apesar do antigo ultraje, ele permanecia como um bicho num
fruto, esfuracando e estragando... E não duvidava da eficácia do escândalo!
Toda a cidade se revoltaria contra a Autoridade femeeira, que oprime, desterra
um funcionário admirável — porque a irmã do pobre senhor se recusou à
baba dos seus beijos. E Gracinha?... Como resistiria Gracinha àquele
desengano — o seu antigo André abrasado pela menina Noronha e por ela
repelido com nojo e com mofa? Oh! o escândalo era soberbo! Só restava que
estalasse, bem ruidoso, sobre os telhados de Oliveira e sobre o peito de
Gracinha como trovão benéfico que limpa ares corrompidos. E desse trovão,
rolando por todo o Norte, se encarregava ele com delícia. Libertava a cidade
de um Governador detestável, Gracinha de um sonho errado. E assim, com
uma certeira penada, trabalhava pro patria et pro domo!
Nos Cunhais correu ao quarto do Barrolo, que se vestia trauteando o Fado
dos Ramires, e gritou através da porta com uma decisão flamejante:
— Não te posso acompanhar à Estevinha. Tenho que escrever
urgentemente. E não subas, não me perturbes. Necessito sossego!
Nem atendeu aos protestos desolados com que o Barrolo acudira ao corredor,
em ceroulas. Galgou a escada. No seu quarto, depois de despir rapidamente o
casaco, de excitar a testa com um borrifo d''água-de-colônia, abancou à mesa
— onde Gracinha colocava sempre entre flores, para ele trabalhar, o
monumental tinteiro de prata que pertencera ao tio Melchior. E sem
emperrar, sem rascunhar, num desses soltos fluxos de Prosa que brotam da
paixão, improvisou uma Correspondência rancorosa para a Gazeta do Porto
contra o Sr. Governador Civil. Logo o título fulminava — Monstruoso
atentado! Sem desvendar o nome da família Noronha, contava miudamente,
como um ato certo e por ele testemunhado, "a tentativa viloa e baixa da
primeira Autoridade do Distrito contra a pudicícia, a paz de coração, a honra
de uma doce rapariga de dezasseis primaveras!" Depois era a resistência
desdenhosa — "que a nobre criança opusera ao Don Juan administrativo,
cujos belos bigodes são o espanto dos povos!" Por fim vinha — "a desforra

torpe e sem nome que S. Exa. tomara sobre o zeloso empregado (que é
também um talentoso artista), obtendo deste nefasto Governo que fosse
transferido, ou antes arrojado, cruelmente exilado, com a família de três
delicadas senhoras, para os confins do Reino, para a mais árida e escassa das
nossas Províncias, por o não poder empacotar para a África no porão sórdido
de uma fragata!" Lançava ainda alguns rugidos sobre "a agonia política de
Portugal". Com pavor triste, recordava os piores tempos do Absolutismo, a
inocência soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Príncipe sendo a
expressão única da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria este
seu agente — "este grotesco Nero que, como outrora o outro, o grande, em
Roma, tentava levar a sedução ao seio das famílias melhores, e cometia esses
abusos de poder, motivados por lascívias de temperamento, que foram
sempre, em todos os séculos e todas as civilizações, a execração do justo!" —
E assinava Juvenal.

Eram quase seis horas quando desceu à sala, ligeiro e resplandecente.
Gracinha martelava o piano, estudando o Fado dos Ramires. E Barrolo (que
não se arriscara a um passeio solitário) folheava, estendido no canapé, uma
famosa História dos Crimes da Inquisição que começara ainda em solteiro.
— Estou a trabalhar desde as duas horas! — exclamou logo Gonçalo,
escancarando a janela. — Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz obra de
Justiça... Desta vez o Sr. André Cavaleiro vai abaixo do seu cavalo!


Barrolo fechou imediatamente o livro, com o cotovelo nas almofadas,
inquieto:
— Houve alguma coisa?
E Gonçalo, plantado diante dele, com um risinho suave, um risinho feroz,
remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves:
— Oh! quase nada. Uma bagatela. Apenas uma infâmia.. Mas para o nosso
Governador Civil infâmias são bagatelas.

Sob os dedos de Gracinha o Fado dos Ramires esmoreceu, apenas roçado,
num murmúrio incerto.
O Barrolo esperava, esgazeado:
— Desembucha!
E Gonçalo desabafou, com estrondo:
— Pois uma maroteira imensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha,
perseguido, espezinhado, expulso! Com a família.. Para o inferno, para o
Algarve!
— O Noronha pagador?
— O Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou!
E, regaladamente, desenrolou a história lamentável. O Sr. André Cavaleiro
namoradíssimo, todo em chamas pela irmã mais velha do Noronha.

E
atacando a rapariga com ramos, cartas, versos, estrupidos cada manhã por
diante da janela, a ladear na pileca! Até lhe soltara, ao que parece, uma velha
marafona, uma alcoviteira... E a rapariga, um anjo cheio de dignidade,
impassível. Nem se revoltava, apenas se ria. Era uma troça em casa das
Noronhas, ao chá, com a leitura da versalhada ardente em que ele a tratava de
"Ninfa, de estrela da tarde..." Enfim, uma sordidez funambulesca!
O pobre Fado dos Ramires debandou pelo teclado, num tumulto de gemidos
desconcertados e ásperos.
— E eu não ter ouvido nada! — murmurava o Barrolo, assombrado. —
Nem no Club, nem na Arcada...
— Pois, meu amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre
Noronha. Arremessado para o fundo do Alentejo, para um sítio doentio,
coalhado de pântanos. E a morte... E uma condenação à morte! A esta
aparição da Morte, surgindo dos pântanos,
Barrolo atirou uma palmada ao joelho, desconfiado:
— Mas quem diabo te contou tudo isso?
O Fidalgo da Torre encarou o cunhado com desdém, com piedade:
— Quem me contou!? E quem me contou que D. Sebastião morreu em
Alcácer-Quibir?... São os factos. É a História. Toda Oliveira sabe. Por acaso
ainda esta manhã o Guedes e eu conversamos sobre o caso. Mas eu já sabia!...

E tenho tido pena. Que diabo! Não há crime em se estar apaixonado como o
pobre André. Louco, perdido! Até a chorar na Repartição, diante do
Secretário-Geral. E a rapariga às gargalhadas!... Agora onde há crime, e
horrendo, é na perseguição ao irmão, ao pagador, empregado excelente, de
um talento raro... E o dever de todo o homem de bem, que preze a dignidade
da Administração e a dignidade dos costumes, é denunciar a infâmia... Eu,
pela minha parte, cumpri esse bom dever. E com certo brilho, louvado Deus!
— Que fizeste?
— Enterrei na ilharga do Sr. Governador Civil a minha boa pena de
Toledo, até à rama!
O Barrolo, impressionado, beliscava a pele do pescoço. O piano emudecera;
mas Gracinha não se movia do mocho, com os dedos entorpecidos nas teclas,
como esquecida diante da larga folha onde se enfileiravam, na letra apurada do
Videirinha, as quadras triunfais dos Ramires. E subitamente Gonçalo sentiu
naquela imobilidade sufocada o despeito que a trespassava. Sensibilizado, para
a libertar, lhe poupar algum soluço escapando irresistivelmente, correu ao
piano, bateu com carinho nos pobres ombros vergados que estremeceram:
— Tu não dás conta desse lindo fado, rapariga! Deixa, que eu te cantarolo
uma quadra, à boa moda do Videirinha... Mas primeiramente sê um anjo...
Grita ai no corredor que me tragam um copo d''água bem fresca do Poço Velho.

Ensaiou as teclas, entoou versos, ao acaso, num esforço esganiçado:


Ora na grande batalha,
Quatro Ramires valentes...

Gracinha desaparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor. Então o
bom Barrolo, que diante da sua terrina da Índia enrolava um cigarro com
pensativo cuidado, correu, desafogou, debruçado sobre Gonçalo, da certeza
que lentamente o invadira:
— Pois, menino, sempre te digo... Essa irmã do Noronha é um mulherão
soberbo! Mas o que eu não acredito é que ela se fizesse arisca. Com o
Cavaleiro, bonito rapaz, Governador Civil?... Não acredito. O Cavaleiro
saboreou!
E com as bochechas luzidias de admiração:
— Aquele velhaco! Para cavalos e para mulheres não há outro, em
Oliveira!