Capítulo XI

Quando Gonçalo, estafado e já todo o ardor bruxuleando, retocou este
derradeiro traço da afronta — a sineta no corredor repicava para o almoço.
Enfim! Deus louvado! eis finda essa eterna Torre de Ramires! Quatro meses,
quatro penosos meses desde junho, trabalhara na sombria ressurreição dos
seus avós bárbaros. Com uma grossa e carregada letra, traçou no fundo da tira
Finis. E datou, com a hora, que era de meio-dia e quatorze minutos.
Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o
contentamento esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma
aversão por aquele remoto mundo Afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao
menos o consolasse a certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o
ser moral desses avós bravios... Mas quê! bem receava que sob desconcertadas
armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas
almas de nenhuma realidade histórica!... Até duvidava que sanguessugas
recobrissem, trepando de um charco, o corpo de um homem, e o sugassem
das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!... Enfim, o
Castanheiro louvara os primeiros Capítulos. A Multidão ama, nas Novelas, os
grandes furores, o sangue pingando; e em breve os Anais espalhariam, por
todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara mesnadas, arrasara
castelos, saqueara comarcas por orgulho de pendão, e afrontara
arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. O seu verão, pois, fora
fecundo. E para o coroar, eis agora a Eleição, que o libertava das melancolias
do seu buraco rural...
Para não retardar as visitas ainda devidas aos influentes, e também para
espairecer, logo depois do almoço montou a cavalo — apesar do calor, que
desde a véspera, e naquele meado de outubro, esmagava a aldeia com o
refulgente peso de uma canícula de agosto. Na volta da estrada dos Bravais
um homem gordo, de calça branca enxovalhada, que se apressava, bufando,
sob o seu guarda-sol de paninho vermelho, deteve o Fidalgo com uma
cortesia imensa. Era o Godinho, amanuense da Administração. Levava um
ofício urgente ao Regedor dos Bravais, e agora corria à Torre de mandado do
Sr. Administrador...
Gonçalo recuou a égua para a sombra de uma carvalha:
— Então que temos, amigo Godinho?
O Sr. Administrador anunciava a S. Exa. que o maroto do Ernesto, o valentão
de Nacejas, em tratamento no Hospital de Oliveira, melhorara
consideravelmente. Já lhe repegara a orelha, a boca soldava... E, como se
procedeu à querela, o patife passava da enfermaria para a cadeia...
Gonçalo protestou logo, com uma palmada no selim:
— Não senhor! Faça o obséquio de dizer ao Sr. João Gouveia que não
quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dose tremenda,
estamos quites.
— Mas Sr. Gonçalo Mendes...
— Pelo amor de Deus, amigo Godinho! Não quero, e não quero...
Explique bem ao Sr. João Gouveia... Detesto vinganças. Não estão nos meus
hábitos, nem nos hábitos da minha família. Nunca houve um Ramires que se
vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Enfim explique bem ao Sr. João
Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembleia... Bem basta ao homem
ficar desfeado. Não consinto que o apoquentem mais!... Detesto ferocidades.
— Mas...
— Esta é a minha decisão, Godinho!
— Lá darei o recado de V. Exa..
— Obrigado. E adeus!... Que calor, bem!
— De rachar, Sr. Gonçalo Mendes; de rachar!
Gonçalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre valentão de Nacejas,
ainda moído, com a orelha mal soldada, baixasse à sórdida enxovia de VilaClara,
para dormir sobre uma tábua. Pensou mesmo em galopar para VilaClara, reter o
zelo legal do João Gouveia. Mas perto, adiante do lavadouro, era
a casa de um Influente, o João Firmino, carpinteiro e o seu compadre. E para
lá trotou, apeando ao portal do quinteiro. O compadre Firmino largara cedo
para a Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar do Sr. Esteves. E foi a
comadre Firmina que correu da cozinha, obesa e luzidia, com dois pequenos
dependurados das saias e mais sujos que esfregões. O Fidalgo beijou
ternamente as duas faces ramelosas:
— E que rico cheiro a pão fresco, ó comadre! Foi a fornada, bem? Pois
então grande abraço ao Firmino. E que se não esqueça! A Eleição vem para o
outro domingo. Lá conto como voto dele. E olhe que não é pelo voto, é pela
amizade.
A comadre arreganhava os dentes magníficos num regalado e gordo riso: —
"Ai o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino já jurara, até ao Sr. Regedor,
que para o Fidalgo era todo o sítio a votar, e quem não fosse a amor ia a pau".
O Fidalgo apertou a mão da comadre — que do degrau do quinteiro, com os
dois pequenos enrodilhados nas saias, e o gordo riso mais embevecido, seguiu
a poeira da égua como o sulco de um Rei benéfico.
E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche, encontrou o
mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. "O quê! para o Fidalgo!
Isso tudo! E nem que fosse contra o Governo!" — Na tasca do Manuel da
Adega, um rancho de trabalhadores bebia, já ruidoso, com as jaquetas atiradas
para cima dos bancos; o Fidalgo bebeu com eles, galhofando, gozando
sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais velho, um avejão escuro, sem
dentes, e a face mais engelhada que uma ameixa seca, esmurrou com
entusiasmo o balcão: — "Isto, rapazes, é Fidalgo que, quando um pobre de
Cristo escalavra a perna, lhe empresta a égua, e vai ele ao lado mais de uma
légua a pé, como foi como Solha! Rapazes! isto é Fidalgo para a gente ter
gosto!" As saúdes atroaram a venda. E quando Gonçalo montou, todos o
cercavam como vassalos ardentes, que a um aceno correriam a votar — ou a
matar!
Em casa do Tomás Pedra, a avó Ana Preta, uma velha entrevada, muito velha
e trémula, rompeu a choramingar por o seu Tomás andar para o Olival
quando o Fidalgo o visitava. "Que aquilo era como visita de santo!"
— Ora essa, tia Pedra! Pecador, grande pecador!
Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do lenço, pela
face toda chupada de grelhas e peluda, a tia Ana bateu no joelho agudo:
— Não senhor! não senhor! que quem mostrou aquela caridade pelo filho
do Casco merece estar em altar!
O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mãos ásperas e
rugosas como raízes, acendia o cigarro à brasa das lareiras, conversando, com
intimidade, das moléstias e dos derriços. Depois, no calor e pó da estrada,
pensava: — "É curioso! parece haver amizade, nesta gente!"
Às quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher à Torre pela estrada
mais fresca da Bica Santa. E passara o lugarejo do Cerdal, quando na volta
aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quase esbarrou com o Dr.
Júlio, também a cavalo, também no seu giro, de quinzena de alpaca, alagado
em suor, debaixo de um guarda-sol de seda verde. Ambos detiveram as éguas,
se saudaram amavelmente.
— Muito gosto no ver, Sr. Dr. Júlio...
— Igualmente, com muita honra, Sr. Gonçalo Ramires...
— Então também na tarefa?...
O Dr. Júlio encolheu os ombros:
— Que quer V. Exa.? Se me meteram nesta! E sabe V. Exa. como isto
acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro domingo, votar em V. Exa..
O Fidalgo riu. Ambos se debruçaram, para se apertarem as mãos com alegria,
com estima.
— Que calor este, Sr. Dr. Júlio!
— Horroroso, Sr. Gonçalo Ramires... E que maçada!
Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos Eleitores — "os
grandes e os miúdos". E dois dias antes da Eleição, numa sexta-feira à tarde,
com um tempo já macio e fresco, partiu para Oliveira — onde chegara, na
véspera, o André Cavaleiro, depois da sua tão longa, tão falada demora em
Lisboa.
Nos Cunhais, apenas saltara da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo bom
João da Porta — "que as Sras. Lousadas estavam em cima, de visita, com a
Sra. D. Graça...
— Há muito?
— Já lá estão pegadas há meia hora boa, meu senhor.
Gonçalo enfiou sorrateiramente para o seu quarto, pensando: — "Que
desavergonhadas! Chegou o André, vêm logo cocar!" E já se lavara, mudara o
fato cinzento — quando o Barrolo apareceu, esbaforido, desusadamente
radiante, de sobrecasaca, de chapéu alto, com as bochechas acesas,
alvoroçadamente radiantes:
— Eh, seu Barrolo, que janota!
— Parece bruxedo! — gritou o Barrolo, depois de um abraço, que repetiu,
com desacostumado fervor. — Estava agora mesmo para te mandar um
telegrama, que viesses...
— Para quê?
O Barrolo gaguejou, com um riso reprimido que o iluminava, o inchava:
— Para quê? Para nada... Quero dizer, para a Eleição! Pois a Eleição é
além de amanhã, menino! O Cavaleiro chegou ontem. Agora volto eu do
Governo Civil. Estive no Paço com o Sr. Bispo, depois passei pelo Governo
Civil... Ótimo, o André! Aparou o bigode, parece mais novo. E traz
novidades... Traz grandes novidades!
E o Barrolo esfregava as mãos, num tão faiscante alvoroço, com tanto riso
escapando dos olhos e da face reluzente, que o Fidalgo o encarou curioso,
impressionado:
— Ouve lá, Barrolinho! Tu tens alguma coisa boa para me anunciar?
Barrolo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente fecha uma
porta. Ele? Não! Não sabia nada! Só a Eleição! Na Murtosa votação
tremenda...
— Ah! pensei — murmurou Gonçalo. — E a Gracinha?
— A Gracinha também não!
— Também não quê, homem? Como está? Simplesmente como está?
— Ah! está com as Lousadas. Há mais de meia hora, aquelas bêbedas!...
Naturalmente por causa do Bazar do Asilo Novo... Esta maçada dos Bazares...
E ouve lá, Gonçalinho! Tu ficas até domingo?
— Não, volto amanhã para a Torre.
— Oh!...
— Pois dia de Eleição, homem! devo estar em casa, no meu centro, no
meio das minhas freguesias...
— É pena — murmurou o Barrolo. — Logo se sabia juntamente com a
Eleição... Eu dava um jantar tremendo...
— Logo se sabia, o quê?
O Barrolo emudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brasas
gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando:
— Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande bródio,
grande foguetório. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho.
Então Gonçalo risonhamente prendeu o Barrolo pelos ombros:
— Diz lá, Barrolinho. Diz lá. Tu tens uma coisa boa para contar ao teu
cunhado.
O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Ele não
sabia nada. O André não lhe contara nada!
— Bem — concluiu o Fidalgo, certo de um amável mistério, que pairava.
— Então descemos. E se essas carraças das Lousadas ainda estiverem lá
pegadas, manda dizer pelo escudeiro à sala, bem alto, à Gracinha, que cheguei,
que lhe desejo falar imediatamente no meu quarto; com esses monstros não
há considerações.
O Barrolo balbuciou, hesitando:
— O Sr. Bispo gosta delas... Muito amável comigo, ainda há pouco, o Sr.
Bispo.
Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando. Já se
libertara das Lousadas. Era uma antiga canção patriótica da Vendeia, que
outrora, na Torre, ela e Gonçalo entoavam com emoção, quando os inflamava
o amor Fidalgo e romântico dos Bourbons e dos Stuarts:
Monsieur de Charette a dit à ceux d''Ancenes
"Mes amis!..."
Monsieur de Charette a dit...
Gonçalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a estrofe,
com o braço erguido como uma bandeira:
"Mes amis!
Le Rai va rammener les Fleurs de Lys!
Gracinha saltou do mocho, numa surpresa.
— Não te esperávamos! Imaginei que passavas a Eleição na Torre... E por
lá?
— Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho
imenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores.
Barrolo, que não sossegava pela sala, rompeu para eles, com o mesmo riso
sufocado:
— Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que
chegou, numa curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma
grande nova para lhe contar... Eu não sei nada, a não ser a Eleição! Pois não é
verdade, Gracinha?
Gonçalo, muito sério, prendeu o queixo da irmã:
— Sabes tu, diz lá.
Ela sorriu, corada... Não, não sabia nada, só a Eleição.
— Diz lá!
— Não sei... São tolices do José.
Mas então, perante aquele sorriso fraco, rendido, que confessava — o Barrolo
não se conteve, desafogou como um morteiro estoura: — Pois bem! sim! com
efeito! — Grande novidade! Mas o André, que a trouxera de Lisboa,
fresquinha a saltar, queria ele, só ele, causar a surpresa a Gonçalo...
— De modo que eu não posso! Jurei ao André. A Gracinha sabe, que eu já
lhe contei ontem... Mas também não pode, também jurou. Só o André. Ele
vem logo tomar chá, e rebenta a bomba... Que é uma bomba! e graúda!
Gonçalo, roído de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os
ombros:
— Bem, já sei, é uma herança! Tens quinze tostões de alvíssaras, Barrolo.
Mas durante o jantar e depois na sala tomando café, enquanto Gracinha
recomeçara as velhas canções patrióticas, agora as jacobitas, em louvor dos
Stuarts — Gonçalo ansiou pela aparição do Cavaleiro. Nem receava que a esse
encontro se misturasse amargura, despeito sufocado. Todo o seu furor contra
o Cavaleiro, aceso na dolorosa tarde do Mirante, revolvido na Torre durante
torturados dias, logo se dissipara lentamente depois da sua tocante conversa
com a irmã, na manhã histórica da briga da Grainha. Gracinha então, com
grandes lágrimas de pureza e de verdade, jurara reserva, retraimento. Gonçalo,
abandonando Oliveira, mostrava também uma resistência louvável contra o
sentimento ou a vaidade que o transviara. Demais ele não podia romper
novamente com o Cavaleiro, andando ainda nos mexericos e espantos de
Oliveira aquela reconciliação ruidosa que chamara o Cavaleiro à intimidade
dos Cunhais. E por fim de que valiam furores ou mágoas? Nenhum rugir ou
gemer seu anulariam o mal que se consumara no Mirante — se porventura se
consumara. E assim toda a cólera contra o André se dissipara naquela sua leve
e doce alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais
carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em céu de estio...
Mas quando, perto das nove horas, o Cavaleiro penetrou na sala, vagaroso e
magnífico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma gravata vermelha
entufando estridentemente no largo peito que entufava, Gonçalo sentiu uma
renovada aversão por toda aquela petulância recheada de falsidade — e apenas
pôde bater molemente, desenxabidamente, nas costas do velho amigo, que o
apertava num abraço de aparatosa ternura. E enquanto André, torcendo as
luvas claras, languidamente enterrado na poltrona que o Barrolo lhe achegou
com carinho, contava de Lisboa e de Cascais, tão alegre, e partidas de bridge e
da Parada e d''El-Rei — Gonçalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre
coração a bater contra a persiana mal fechada, a bruta súplica murmurada
através daqueles bigodes atrevidos, e emudecera, como empedernido,
esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas
Gracinha conservava uma serenidade atenta, sem nenhum dos seus
chamejantes rubores, dos seus desgraçados enleios de modo e gesto, apenas
levemente seca, de uma secura preparada e posta. Depois André aludira muito
desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da Eleição, "porque o tio
Reis Gomes, o José Ernesto, esses cruéis amigos, lhe andavam atirando para
os ombros todo o trabalho da Nova Reforma Administrativa".
Entre ele e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma
funda légua de fosso, onde rolara, se afundara todo aquele romance do verão,
sem que na face de ambos restasse um afogueado vestígio do seu ardor. E
Gonçalo, insensivelmente contente pela aparência, terminou por abandonar a
cadeira onde se empedernira, acendeu o charuto na vela do piano, perguntou
pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavaleiro) ansiavam pela chegada
de Gonçalo.
Lá encontrei também o Castanheiro... Entusiasmado com o teu Romance.
Parece que nem no Herculano, nem no Rebelo existe nada tão forte, como
reconstrução histórica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo épico ao
do Flaubert, na Salanimbô. Enfim, entusiasmado! E nós, está claro, ardendo
porque apareça a sublime obra.
O Fidalgo corou profundamente, murmurando: — "Que tolice!" Depois
roçou pela poltrona em que se enterrava o André, afagou suavemente o largo
ombro do André:
— Pois, tens feito cá muita falta, meu velho! Há dias passei em Corinde,
tive saudades...
Então o Barrolo, que não sossegava, vermelho, a estourar rebolando pela sala,
espiando ora o Cavaleiro, ora o Gonçalo, com um riso mudo e ávido, não se
conteve mais, gritou:
— Bem, basta de prólogos... Vamos lá agora à grande surpresa, André! Eu
tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas enfim, jurei e calei! Agora não
posso... Vamos lá. E tu, Gonçalinho, vai preparando os quinze tostões.
Gonçalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria,
desprendidamente:
— Com efeito! Parece que tens uma bela novidade.
O Cavaleiro alargou lentamente os braços, sempre enterrado na vasta
poltrona, sem pressa:
— Oh! é a coisa mais simples, mais natural... A Sra. D. Graça já sabe, não é
verdade?... Não há motivo para surpresa... Tão legitima, tão natural!
Gonçalo exclamou, já impaciente:
— Mas enfim, venha lá, diz.
O Cavaleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que só agora se pensasse
na realizar, coisa tão devida, tão adequada. Pois não lhe parecia à Sra. D.
Graça?
Gonçalo, numa brasa, berrou:
— Mas quê? que diabo?
O Cavaleiro, que se despegara vagarosamente da poltrona, puxou os punhos,
e diante de Gonçalo, no silêncio atento, alteando o peito, grave, quase oficial,
começou:
— O meu tio Reis Gomes, e o José Ernesto, tiveram uma ideia muito
natural, que comunicaram a El-Rei, e que El-Rei aprovou... Que aprovou
mesmo ao ponto de a apetecer, de se assenhorear dela, de desejar que fosse só
sua. E hoje é só de El-Rei. El-Rei pois pensou, como nós pensamos, que um
dos primeiros Fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia ter um
título que consagrasse bem a antiguidade ilustre da Casa, e consagrasse
também o mérito superior de quem hoje a representa... Por isso, meu querido
Gonçalo, já te posso anunciar, e quase em nome de El-Rei, que vais ser
Marquês de Treixedo.
— Bravo! bravo! — bramou o Barrolo, com palmas delirantes. — Saltem
para cá os quinze tostões, Sr. Marquês de Treixedo!
Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonçalo. Num relance sentiu que o
Título era um dom do Cavaleiro, não ao chefe da Casa de Ramires, mas ao
irmão complacente de Gracinha Ramires... E sobretudo sentia a incoerência
de que, ao chefe de uma Casa dez vezes secular, mãe de Dinastias, edificadora
do Reino, com mais de trinta dos seus varões mortos sob a armadura, se
atirasse agora um oco título, através do Diário do Governo, como a um
tendeiro enriquecido que subsidiou eleições. Todavia saudou o Cavaleiro, que
esperava a efusão, os abraços: — Oh! Marquês de Treixedo! certamente muito
elegante, muito amável... Depois, esfregando as mãos, com um sorriso de
graça e de espanto... Mas, meu caro André, com que autoridade me faz El-Rei
Marquês de Treixedo?
O Cavaleiro levantou vivamente a cabeça numa ofendida surpresa:
— Com que autoridade? Simplesmente com a autoridade que tem sobre
nós todos, como Rei de Portugal que ainda é, Deus louvado!
E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça ou pompa, com o mesmo
sorriso de suave gracejo:
— Perdão, Andrezinho. Ainda não havia Reis de Portugal, nem sequer
Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo! Eu aprovo os
grandes dons entre os grandes Fidalgos; mas cumpre aos mais antigos
começarem. El-Rei tem uma quinta ao pé de Beja, creio eu, o Roncão. Pois
diz tu a El-Rei, que eu tenho imenso gosto no fazer, a ele, Marquês do
Roncão.
O Barrolo embasbacara, sem compreender, com as bochechas descaídas e
murchas. Da beira do canapé, Gracinha, toda corada, faiscava de gosto, por
aquele lindo orgulho que tão bem condizia com o seu, mais lhe fundia a alma
com a alma do irmão amado. E André Cavaleiro, furioso, mas vergando os
ombros com irónica submissão, apenas murmurou: — "Bem, perfeitamente!...
Cada um se entende ao seu modo..."
O escudeiro entrava com a bandeja do chá.
E no domingo foi a Eleição.
Ainda com uma desconfiança, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou
atravessar esse dia muito solitariamente, quase escondido, e no sábado,
enquanto todos os amigos de Vila-Clara, mesmo os de Oliveira, o
consideravam estabelecido nos Cunhais, e em comunicação azafamada com o
Governo Civil, montou a cavalo ao escurecer, e trotou sorrateiramente para
Santa Ireneia.
Mas o Barrolo (ainda abalado com "aquele despautério do Gonçalo, que era
uma ofensa para o Cavaleiro! até para El-Rei!") ficara com a missão de
telegrafar para a Torre as notícias sucessivas das Assembleias, à maneira que
elas acudissem ao Governo Civil. E, com ruidoso zelo, logo depois da missa,
estabeleceu entre os Cunhais e o velho Convento de S. Domingos um serviço
de criados formigando sem repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por
Padre Soeiro, copiava com amor, numa letra muito redonda, os telegramas
mandados pelo Cavaleiro, que juntava a lápis alguma nota amável — "Tudo
Otimamente! — Vitória cresce. — Parabéns a V Exas."
Pela estrada de Vila-Clara à Torre, incessantemente, o jovem do Telégrafo se
esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela Livraria, berrando:
"outro telegrama, Sr. Doutor". Gonçalo, nervoso, com um imenso bule de chá
sobre a banca, a bandeja já alastrada de cigarros meio fumados, lia o telegrama
ao Bento. O Bento, com vivas pelo corredor, corria a bramar o telegrama à
Rosa.
E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar — já
conhecia o seu triunfo esplêndido. E o que o impressionava, relendo os
telegramas, era o entusiasmo carinhoso daqueles influentes, povos que ele mal
rogava, e que convertiam o ato da Eleição quase num ato de Amor. Toda a
freguesia dos Bravais marchara para a Igreja, cerrada como uma hoste, como
José Casco na frente erguendo uma enorme bandeira, entre dois tambores que
estouravam. O Visconde de Rio-Manso entrara no adro da Igreja de Ramilde
na sua vitória, com a neta toda vestida de branco, seguido por uma vistosa fila
de char-à-bancs, onde se apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta
todos os casais se esvaziavam, as mulheres carregadas de ouro, os rapazes de
flor na orelha, correndo à Eleição do Fidalgo entre o repenicar das violas,
como à romaria de um Santo. E diante da taberna do Pintainho, em face à
Igreja, a gente da Veleda, da Riosa, do Cercal erguera um arco de buxo, com
dístico vermelho, sobre paninho: — "Viva o nosso Ramires, flor dos
homens!"
Depois, enquanto jantava, um jovem da quinta voltou de Vila-Clara,
alvoroçado, contando o delírio, as filarmónicas pelas ruas, a Assembleia toda
embandeirada, e na casa da Câmara, sobre a porta, um transparente com o
retrato de Gonçalo, que uma multidão aclamava.
Gonçalo apressou o café. Por timidez, receoso dos vivórios, não ousava
correr a Vila-Clara — a espreitar. Mas acendeu o charuto, passou à varanda,
para respirar a doce noite de festa, que andava tão cheia de clarões e rumores
no seu louvor. E ao abrir a porta envidraçada quase recuou, com outro
espanto. A Torre iluminara! Das suas fundas frestas, através das negras reixas
de ferro, saía um clarão; e muito alta, sobre as velhas ameias, refulgia uma
serena coroa de lumes! Era uma surpresa, preparada, com delicioso mistério,
pelo Bento, pela Rosa, pelos rapazes da quinta que agora, todos, no escuro,
por baixo da varanda, contemplavam a sua obra, iluminando o céu sereno.
Gonçalo percebeu os passos abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente
da borda da varanda:
— O, Bento! Ó, Rosa!... Está aí alguém?
Um risinho esfuziou. A jaqueta branca do Bento surdiu da sombra.
— O Sr. Dr. queria alguma coisa?
— Não, homem! Queria agradecer... Foram vocês, hem? Está linda a
iluminação! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado, rapazes!
De longe deve fazer um efeito soberbo.
Mas o Bento ainda se não contentava com aquelas lamparinas frouxas. A
Torre, para sobressair, necessitava chamas fortes de gás. O Sr. Dr. nem
imaginava a altura, depois em cima, a imensidão do eirado.
Então. de repente, Gonçalo sentiu um desejo de subir a esse imenso eirado da
Torre. Não entrara na Torre desde estudante — e sempre ela lhe desagradara
por dentro, tão escura, de tão duro granito, com a sua nudez, silêncio e
frialdade de jazigo, e logo no pavimento térreo os negros alçapões chapeados
de ferro que levavam as masmorras. Mas agora as luzes nas frestas aqueciam,
reviviam aquela derradeira ossada. Honra de Ordonho Mendes. E de entre as
suas ameias, mais alto que da varanda, lhe parecia interessante respirar aquela
rumorosa simpatia esparsa, que em torno, pelas freguesias rolava, subindo
para ele, através da noite, como um incenso. Enfiou um paletó. desceu à
cozinha. O Bento. o Joaquim da Horta, divertidos, agarraram grandes
lanternas. E com eles atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna,
de funda ombreira, começou a trepar a esguia escadaria de pedra, que tanta
sola de ferro polira e puíra.
Já desde séculos se perdera a memória do lugar que ocupava aquela torre nas
complicadas fortificações da Honra e Senhorio de Santa Ireneia. Não era
decerto (segundo Padre Soeiro) a nobre torre albarrã, nem a de Alcáçova,
onde se guardava o tesouro, o cartório, os sacos tão preciosos das especiarias
do Oriente — e talvez, obscura e sem nome, apenas defendesse algum ângulo
de muralha, para os lados em que o Castelo enfrontava com as terras
semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas, sobrevivente às outras mais altivas,
compreendida nas construções do Paço formoso que se erguera dentre o
sombrio Castelo Afonsino, e que dominava Santa Ireneia durante a dinastia de
Avis, ligada ainda por claras arcarias de um terraço ao Palácio de gosto
italiano, em que Vicente Ramires converteu o Paço manuelino depois da sua
campanha de Castela; isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que
lentamente se edificara depois do incêndio do Palácio em tempo de El-Rei D.
José, e a derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens
do Terço dos Ramires — ela ligava as idades e como que mantinha, nas suas
pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamara
vagamente a "Torre de D. Ramires". E Gonçalo, ainda sob a impressão dos
avós e dos tempos que ressuscitara na sua Novela, admirou com um respeito
novo a sua vastidão, a sua força, os seus empinados escalões, os seus muros
tão espessos. que as frestas esguias na espessura se alongavam como
corredores, escassamente iluminadas pelas tigelinhas de azeite, com que o
Bento as despertara. Em cada um dos três sobrados parou, penetrando
curiosamente. quase com uma intimidade, nas salas nuas e sonoras, de vasto
lajedo, de tenebrosa abóbada, com os assentos de pedra, estranho buraco ao
meio, redondo como o de um poço e ainda pelas paredes riscadas de sulcos de
fumos, os anéis dos tocheiros. Depois em cima, no imenso eirado que a fieira
de lamparinas, cingindo as ameias, enchia de claridade, Gonçalo, erguendo a
gola do paletó na aragem mais fina, teve a dilatada sensação de dominar toda a
Província, e de possuir sobre ela uma supremacia paternal, só pela soberana
altura e velhice da sua torre, mais que a Província e que o Reino. Lentamente
caminhou em roda das ameias, até o miradouro. a que um candeeiro de
petróleo, sobre uma cadeira de palhinha posta em frente à fresta, estragava o
entono feudal. No céu macio, mas levemente enevoado, raras estrelas luziam,
sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura dos
arvoredos se fundiam em escuridão. Mas na sombra e silêncio, por vezes
além, para o lado dos Bravais, lampejavam foguetes remotos. Um clarão
amarelado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a Finta, era
decerto um rancho com archotes festivos. Na alta Igreja da Veleda tremeluzia
uma iluminação vaga, rala. Outras luzes, incertas através do arvoredo,
riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria de Craquede. Da terra
escura subia, por vezes, um errante som de tambores. E lumes, fachos,
abafados rufos, eram dez freguesias celebrando amoravelmente o Fidalgo da
Torre, que lhes recebia o amor e o preito no eirado da sua torre, envolto em
silêncio e sombra.
O Bento descera, com o Joaquim, para reforçar as lamparinas nas frestas dos
muros, onde elas esmoreciam na espessura. E Gonçalo sozinho, acabando o
charuto, recomeçou a rolda, lento, em torno às ameias, perdido num
pensamento que já o agitara estranhamente, através daquele sobressaltado
domingo... Era pois popular! Por todas essas aldeias, estendidas à sombra
longa da Torre, o Fidalgo da Torre era pois popular! E esta certeza não o
penetrava de alegria, nem de orgulho — antes o enchia agora, naquela
serenidade da noite, de confusão, de arrependimento! Ah! se adivinhasse — se
ele adivinhasse!... Como caminharia, com a cabeça bem levantada, com os
braços bem estendidos, sozinho, em confiança risonha para todas essas
simpatias que o esperavam, tão certas, tão dadas. Mas não! Sempre se julgara
cercado da indiferença daquelas aldeias, onde ele, apesar do antiquíssimo
nome, era o costumado jovem, que volta de Coimbra e vive silenciosamente
da sua renda, passeando na sua égua. A essas indiferenças tão naturais nunca
ele imaginara arrancar o punhado de votos, o punhado de papelinhos que
necessitava para entrar na Política, onde ele conquistaria pela destreza o que
os velhos Ramires recebiam por herança — fortuna e poder. Por isso se
agarrara tão avidamente à mão do Cavaleiro, à mão do Sr. Governador Civil
— para que S. Exa., o bom amigo, o mostrasse, o impusesse como o homem
necessário, o querido do Governo, o melhor entre os bons, a quem as
freguesias deviam oferecer num domingo o punhado de votos. E na
impaciência desse favor abafara a memória de amargos agravos; diante de
Oliveira pasmada abraçara o homem detestado desde anos, que andava
chasqueando e demolindo, por praças e jornais facilitara a ressurreição de
sentimentos que para sempre deviam jazer enterrados; e envolvera o ser que
mais amava, a sua pobre e fraca irmãzinha, em confusão e miséria moral...
Torpezas e danos — e para quê? Para surripiar um punhado de votos que dez
freguesias lhe trariam correndo, gratuitamente, efusivamente, entre vivas e
foguetes, se ele acenasse e lhos pedisse...
Ah! eis aí... Fora a desconfiança, essa encolhida desconfiança de si mesmo —
que desde o colégio, através da vida, lhe estragara a vida. Era a mesma
desgraçada desconfiança, que ainda semanas antes, diante de uma sombra, um
pau erguido, uma risada numa taberna, o forçava a abalar, a fugir, arrepiado e
praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia, numa volta de estrada,
avança, ergue o chicote — e descobre a sua força! E agora, penetra por entre
o povo, agarrado timidamente à mão poderosa, por se imaginar impopular —
e descobre a sua popularidade imensa. Que vida enganada, e tanto a sujara —
por não saber!
O Bento não aparecia, ainda azafamado em iluminar condignamente as reixas
da Torre. Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as mãos nas algibeiras do
paletó, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as estrelas. A névoa
adelgaçara quase sumida — lumes mais vivos palpitavam no céu mais
profundo. De lumes e céus descia essa sensação de infinidade, de eternidade,
que penetra, como uma surpresa, nas almas desacostumadas da sua
contemplação. Na alma de Gonçalo passou, muito fugidiamente, o espanto
dessas eternas imensidades sob que se agita, tão vaidosa da sua agitação, a
rasteira, a sombria poeira humana. Longe, algum derradeiro foguete ainda
lampejava, logo apagado na escuridão serena. As luzinhas sobre a capela de
Veleda, sobre o arco de Santa Maria de Craquede, esmoreciam, já ralas. Todo
o remoto rumor de musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos
adormecidos. O dia de triunfo findava, breve como os luminares e os
foguetes. — E Gonçalo, parado, rente do miradouro, considerava agora o
valor desse triunfo porque tanto almejara, porque tanto sabujara. Deputado!
Deputado por Vila-Clara, como o Sanches Lucena. E perante esse resultado,
tão miúdo, tão trivial — todo o seu esforço tão desesperado, tão sem
escrúpulos, lhe parecia ainda menos imoral que risível. Deputado! Para quê?
Para almoçar no Bragança, galgar de tipoia a ladeira de S. .Bento, e dentro do
sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate,
bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e distraidamente
acompanhar, em silêncio ou balando, o rebanho do S. Fulgêncio, por ter
desertado o rebanho idêntico do Braz Victorino. Sim, talvez um dia, com
rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e à senhora do chefe, e promessas e
risos através de Redações, e algum Discurso esbraseadamente berrado —
lograsse ser Ministro. E então? Seria ainda a tipoia pela calçada de S. Bento,
com o correio atrás na pileca branca, e a farda malfeita, nas tardes de
assinatura, e os recurvados sorrisos de amanuenses pelos escuros corredores
da Secretaria, e a lama escorrendo sobre ele de cada gazeta de oposição... Ah!
que peca, desinteressante vida, em comparação de outras cheias e soberbas
vidas, que tão magnificamente palpitavam sob o tremeluzir dessas mesmas
estrelas! Enquanto ele se encolhia no seu paletó, Deputado por Vila-Clara, e
no triunfo dessa miséria — Pensadores completavam a explicação do
Universo; Artistas realizavam obras de beleza eterna; Reformadores
aperfeiçoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas;
Fisiologistas diminuíam o velho sofrer humano; Inventores alargavam a
riqueza das raças; Aventureiros magníficos arrancavam mundos da sua
esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que
viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mãos incansadas
formas sempre mais belas ou mais justas da humanidade. Quem fora como
eles, que são os sobre-humanos! E tal ação tão suprema requeria o Génio, o
dom que, como a antiga chama, desce de Deus sobre um eleito? Não! Apenas
o claro entendimento das realidades humanas — e depois o forte querer.
E o Fidalgo da Torre, imóvel no eirado da Torre, entre o céu todo estrelado, e
a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de Vida superior — até
que enlevado, e como se a energia da longa raça, que pela Torre passara,
refluísse ao seu coração, imaginou a sua própria encaminhada enfim para uma
ação vasta e fecunda, em que soberbamente gozasse o gozo de verdadeiro
viver, e em torno de si criasse vida, e acrescentasse um lustre novo ao velho
lustre do seu nome, e riquezas puras o dourassem, e a sua terra inteira o bem
louvasse porque ele inteiro e num esforço pleno bem servira a sua terra...
O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna:
— O Sr. Doutor ainda se demora?
— Não. A festa acabou, Bento.
Nos começos de dezembro, com o primeiro número dos Anais, apareceu a
Torre de D. Ramires. E todos os jornais, mesmo os da oposição, louvaram
"esse estudo magistral (como afirmou a Tarde) que, revelando um erudito e
um artista, continuava, com uma arte mais moderna e colorida, a obra de
Herculano e de Rebelo, a reconstituição moral e social do velho Portugal
heroico". Depois das festas de Natal, que ele passou alegremente nos Cunhais,
ajudando Gracinha a cozinhar bolos de bacalhau por uma receita sublime do
Padre José Vicente, da Finta, os amigos de Oliveira, os rapazes do Club da
Arcada ofereceram ao Deputado por Vila-Clara, na sala da Câmara, adornada
de buxos e bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavaleiro, de grã-cruz, e
em que o Barão das Marges (que presidia) saudou "o prestigioso jovem que,
talvez em breve, nas cadeiras do Poder, levantasse do marasmo este brioso
país, com a pujança, a valentia, que são próprias da sua raça nobilíssima!"
No meado de janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonçalo partiu para
Lisboa; e através do inverno, em Lisboa, andou sempre nos Carnet-Mondain e
High-Life dos jornais, nas noticias de jantares, do raouts, de tiros aos pombos,
de Caçadas de El-Rei, tão notado nos movimentos mais simples da sua
elegância, que os Barrolos assinaram o Diário Ilustrado para saber quando ele
passeava na avenida. Em Vila-Clara, na Assembleia, o João Gouveia já
encolhia os ombros, rosnando: — "Desandou em janota!" — Mas nos fins de
abril uma notícia de repente alvoroçou Vila-Clara, espantou na quieta Oliveira
os rapazes do Club e da Arcada, perturbou tão inesperadamente Gracinha,
então em Amarante com o Barrolo, que nessa noite ambos abalaram para
Lisboa — e na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cozinha, lavada
em lágrimas, sem compreender, gemendo:
— Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o não torno mais a ver!
Gonçalo Mendes Ramires, silenciosamente, quase misteriosamente, arranjara a
concessão de um vasto prazo de Macheque, na Zambézia, hipotecara a sua
quinta histórica de Treixedo, e embarcava em começos de junho no paquete
Portugal, com o Bento, para a África.