Capítulo I

Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho,
o Fidalgo da Torre, em chinelos, com uma quinzena de linho envergada
sobre a camisa de chita cor-de-rosa, trabalhava.

Gonçalo Mendes Ramires (que naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia,
e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila-Clara, e mesmo na cidade,
em Oliveira, todos conheciam pelo "Fidalgo da Torre") trabalhava numa
Novela Histórica,

A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos Anais de Literatura
e de História, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo
camarada de Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, em casa das Severinas.

A livraria, clara e larga, escaiolada de azul, com pesadas estantes de
pau-preto onde repousavam no pó e na gravidade das lombadas de carneira,
grossos fólios de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas,
uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada, de
varanda, frescamente perfumada pela madressilva que se enroscava nas grades.

Diante dessa varanda, na claridade forte. pousava a mesa — mesa imensa de
pés torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e
atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da História genealógica todo o
Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as
obras de Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarelos.

E daí, da sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das
tiras de papel almaço, roçando pela testa a rama de pena de pato, avistava
sempre a inspiradora da sua Novela —— a Torre, a antiquíssima Torre, quadrada
e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca de
hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a
miradoura bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivência do Paço
acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires
desdeos meados do século X.

Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o
morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo Fidalgo
de Portugal.

Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência,
por linha varonil e sempre pura, até aos vagos Senhores que entre
Douro e Minho mantinham castelo e terra murada quando os barões
francos desceram,com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão.

E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e
sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquele agigantado
Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou
em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion,
filha de Bermudo, o Gotoso, Rei de Leão.

Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente,
como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia —
resistente como ele às fortunas e aos tempos.

E depois, em cada lance forte da História de Portugal.
sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo
heroísmo, pela lealdade, pelos nobres espíritos.

Um dos mais esforçados da linhagem,Lourenço, por alcunha o Cortador,
colaço dê Afonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber
a pranchada de Cavaleiro. velara as armas na Sé
de Zamora), aparece logo na batalha de Ourique, onde também avista Jesus
Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados.

No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de Santiago, arromba a golpes de acha
um postigo da Couraça, rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as
duas mãos. e surde na quadrela da torre albarrã,com os dois pulsos a
esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre: — "D. Payo Peres, Tavira
é nossa! Real, Real por Portugal!" O velho Egas Ramires, fechado na sua
Torre, com a levadiça erguida, as barbacãs eriçadas de frecheiros, nega
acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Teles que corriam o Norte em
folgares e caçadas — para que a presença da adúltera não macule a pureza
extrema do seu solar!

Em Aljubarrota, Diogo Ramires o Trovador desbarata um troço de besteiros,
mata o adiantado-mor de Galiza, e por ele, não por outro, cai derribado
pendão real de Castela, em que ao fim da lide seu irmão de armas, D. Antão
de Almada, se embrulhou para o levar, dançando e cantando, ao Mestre de Avis.

Sob os muros de Arzila combatem magnificamente dois Ramires,
o idoso Soeiro e o seu neto Fernão, e diante do cadáver do velho,
trespassado por quatro virotes, estirado no pátio da Alcáçova ao
lado do corpo do Conde de Marialva — — Afonso V arma
juntamente Cavaleiros o Príncipe seu filho e Fernão Ramires, murmurando
entre lágrimas: "Deus vos queira tão bons como esses que aí jazem... "Mas eis
que Portugal se faz aos mares! E raras são então as armadas e os combates de
Oriente em que se não esforce um Ramires — ficando na lenda trágicomarítima
aquele nobre capitão do golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, no
naufrágio da Santa Bárbara, reveste a sua pesada armadura, e no castelo de
proa, hirto, se afunda em silêncio com a nau que se afunda, encostado à sua
grande espada.

Em Alcácer-Quibir, onde dois Ramires sempre ao lado de ElRei encontram morte soberba,
o mais novo, Paulo Ramires, pajem do Guião, nem leso nem ferido, mas não querendo
mais vida pois que El-Rei não vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha de armas,
e gritando; — "Vai-te, alma, que já tardas, servir a do teu senhor!" —entra na chusma
mourisca e para sempre desaparece.

Sob os Filipes, os Ramires, amuados, bebem e caçam nas suas terras. Reaparecendo com
os Braganças, um Ramires, Vicente, governador das Armas de Entre-Douro e Minho por D.
João IV, mete a Castela, destroça os Espanhóis do Conde de Venavente,e toma Fuente
Guinal, a cujo furioso saque preside da varanda de um convento de
Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia.

Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça... Álvaro Ramires, valido de D.
Pedro II, brigão façanhudo, atordoa Lisboa com arruaças, furta a mulher de
um Vedor da Fazenda que mandara matar a pauladas por pretos, incendeia em
Sevilha depois de perder cem dobrões uma casa de tavolagem, e termina por
comandar uma urca de piratas na frota de Murad o Maltrapilho.

No reinado do Sr. D. João V Nuno Ramires brilha na Corte, ferra as suas mulas de prata,
e arruína a casa celebrando sumptuosas festas de Igreja, em que canta no coro
vestido com o hábito de Irmão Terceiro de S. Francisco.

Outro Ramires, Cristóvão, presidente da Mesa de Consciência e Ordem, alcovita os amores de
El-Rei D. José I com a filha do Prior de Sacavém.

Pedro Ramires, Provedor e Feitor-Mor das Alfândegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade,
a sua chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o Arcebispo de Tessalónica.

Inácio Ramires acompanha D. João VI ao Brasil como Reposteiro-Mor, negocia em negros, volta
com um baú carregado de peças de ouro que lhe rouba um Administrador antigo frade capuchinho,
e morre no seu solar da cornada de um boi.

O avô de Gonçalo, Damião, doutor liberal dado às Musas, desembarca com D. Pedro no Mindelo, compõe as
empoladas proclamações do Partido, funda um jornal, o Anti-Frade, e depois
das Guerras Civis arrasta uma existência reumática em Santa Ireneia,embrulhado no seu capotão de briche,
traduzindo para vernáculo, com um léxicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus.

O pai de Gonçalo, ora Regenerador, ora Histórico, vivia em Lisboa no
Hotel Universal,gastando as solas pelas escadarias do Banco Hipotecário e
pelo lajedo da Arcada, até que um Ministro do Reino, cuja concubina, corista de S. Carlos,
ele fascinara, o nomeou (para o afastar da Capital) Governador Civil de
Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro ano.

E nesse ano justamente se estreou nas Letras Gonçalo Mendes Ramires.
Um seu companheiro de casa, José Lúcio Castanheiro, algarvio muito magro,
muito macilento, de enormes óculos azuis, a quem Simão Craveiro chamava o
"Castanheiro Patriotinheiro", fundara um Semanário, a Pátria — "com o
alevantado intento (afirmava sonoramente o Prospeto) de despertar, não só na
juventude Académica. mas em todo o país, do cabo Sileiro ao cabo de Santa
Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de
Portugal!"

Devorado por essa ideia. "a sua ideia", sentindo nela uma carreira,
quase uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de
Apóstolo, clamava pelos botequins da Sofia, pelos claustros da Universidade,
pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros — "a necessidade,
caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da aluvião do
estrangeirismo!" — Como o Semanário apareceu regularmente durante três
domingos. e publicou realmente estudos recheados de grifos e citações sobre
as Capelas das Batalha, a Tomada de Ormuz, a Embaixada de Tristão da
Cunha, começou logo a ser considerado uma aurora. ainda pálida mas segura,
de Renascimento Nacional.


E alguns bons espíritos da Academia, sobretudoos companheiros de casa do
Castanheiro, os três que se ocupavam das coisas do saber e da inteligência
(porque dos três restantes um era homem de cacete e forças, o outro guitarrista,
e o outro "premiado"), passaram. aquecidos por aquela chama patriótica, a
esquadrinhar na Biblioteca, nos grossos tomos nunca dantes visitados de Fernão Lopes,
de Rui de Pina, de Azurara, proezas e lendas — "só portuguesas. Só nossas; (como suplicava
o Castanheiro), que refizessem à nação abatida uma consciência da sua heroicidade!"
Assim crescia o "Cenáculo Patriótico da casa das Severinas.

E foi então que Gonçalo Mendes Ramires, jovem muito afável, esbelto e loiro, de uma brancura sã de
porcelana. com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempre elegante e apurado
na batina e no verniz dos sapatos — apresentou ao Castanheiro, num domingo depois do almoço,
onze tiras de papel intituladas D. Guiomar.

Nelas se contava a velhíssima história da castelã, que, enquanto
longe nas guerras do Ultramar o castelão barbudo e cingido de ferro atira a
acha de armas às portas de Jerusalém, recebe ela na sua câmara, com os braços
nus, por noite de maio e de lua, o pajem de anelados cabelos...

Depois ruge o inverno, o castelão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro.
Pelo vílico do Castelo, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a
traição, a mácula no seu nome tão puro, honrado em todas as Espanhas!

E ai do pajem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Já no patim da
Alcáçova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre
dois cepos cobertos de panos de dó...

E no final choroso da D. Guiomar; como em todas essas histórias do Romanceiro de Amor,
também brotavam rente às duas sepulturas, escavadas no ermo, duas roseiras brancas a
que o vento enlaçava os aromas e as rosas.

De sorte que (como notou José Lúcio Castanheiro, coçando pensativamente o queixo)
não ressaltava nesta D. Guiomar nada que fosse "só português, só nosso, abrolhando
do solo e da raça!" Mas esses amores lamentosos passavam num solar de Riba-Coa: os
nomes dos Cavaleiros, Remarigues, Ordonho, Froilás, Gutierres tinham um
delicioso sabor godo: em cada tira ressoavam bravamente os genuínos:

"Bofé... Mentes pela gorja!... Pajem, o meu murzelo! e através de toda esta
vernaculidade circulava uma suficiente turba de cavalariços com saios alvadios,
beguinos sumidos na sombra das cogulas, ovençais sopesando fartas bolsas de
couro, uchões espostejando nédios lombos de cerdo... A Novela portanto
marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional.

— E depois — acrescentava o Castanheiro — este velhaco do Gonçalinho
surde com um estilo terso, másculo, de boa cor arcaica... De ótima cor arcaica!
Lembra até o Bobo, o Monge de Cister!... A Guiomar, realmente, é uma
castelã vaga, da Bretanha ou da Aquitânia.

Mas no vílico, mesmo no castelão, já transparecem portugueses, bons portugueses de fibra
e de alma, de entre Douro e Cávado... Sim senhor!

Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas crónicas, temos enfim
nas Letras um homem que sente bem o torrão, sente bem a raça!

D. Guiomar encheu três páginas da Pátria. Nesse domingo, para celebrar a sua
entrada na Literatura, Gonçalo Mendes Ramires pagou aos camaradas do
Cenáculo e a outros amigos uma ceia onde foi aclamado, logo depois do
frango com ervilhas, quando os jovens do Camolino, esbaforidos, renovavam
as garrafas de Colares, como "o nosso Walter Scott!"Ele, de resto, anunciara
já com simplicidade um romance em dois volumes, fundado nos anais da sua
Casa, num rude feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o
amigo e Alferes-Mor de D. Sancho I.

Por temperamento, por aquele saber especial de trajes e alfaias que revelara
na D. Guiomar, até pela antiguidade da sua linhagem, Gonçalinho parecia
gloriosamente votado a restaurar em Portugal o Romance Histórico. Possuía
uma missão e começou logo a passear pela Calçada, pensativo, com o gorro
sobre os olhos, como quem anda reconstruindo um mundo. No ato desse ano levou o R.

Quando regressou das férias para o Quarto Ano já não refervia na rua da
Matemática o Cenáculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro. formado,
vegetava em Vila Real de Santo António: com ele desaparecera a Pátria: e os
jovens zelosos que na Biblioteca esquadrinhavam as Crónicas de Fernão
Lopes e de Azurara, desamparados por aquele Apóstolo que os levantava.
recaíram nos romances de Georges Ohnet e retomaram à noite o taco nos
bilhares da Sofia. Gonçalo voltava também mudado, de luto pelo pai que
morrera em agosto, com a barba crescida, sempre afável e suave, porém mais
grave, averso a ceias e a noites errantes.

Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata branca,
um velho criado de Santa Ireneia, o Bento: — e os seus companheiros
preferidos foram três ou quatro rapazes que se preparavam para a
Política, folheavam atentamente o Diário das Câmaras,
conheciam alguns enredos da Corte,proclamavam a necessidade de
uma "Orientação positiva" e de um "largo fomento rural", consideravam
como leviandade reles e jacobina a irreverência da Academia pelos Dogmas. e,
mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam com
ardor sobre os dois chefes de Partido — o Braz Victorino, o homem novo dos
Regeneradores, e o velho Barão de São Fulgêncio, chefe clássico dos Históricos.

Inclinado para os Regeneradores, porque a Regeneração lhe
representava tradicionalmente ideias de conservantismo,
de elegância culta e de generosidade.

Gonçalo frequentou então o Centro Regenerador da
Couraça. onde aconselhava à noite, tomando chá preto,
"o fortalecimento da autoridade da Coroa", e "uma forte expansão colonial!"

Depois, logo na primavera, desmanchou alegremente esta gravidade política: e ainda
tresnoitou, na taberna do Camolino, em bacalhoadas festivas, entre o estridor
das guitarras. Mas não aludiu mais ao seu grande romance em dois volumes: e
ou recuara ou se esquecera da sua missão de Arte Histórica.

Realmente só na Páscoa do Quinto Ano retomou a pena — para lançar, na Gazeta do Porto,
contra um seu patrício, o Dr. André Cavaleiro, que o Ministério do S.
Fulgêncio nomeara Governador Civil de Oliveira, duas correspondências
muito acerbas, de um rancor intenso e pessoal (a ponto de chasquear "a feroz
bigodeira negra de S. Exa.").

Assinara JUVENAL, como outrora o pai, quando publicava comunicados políticos de Oliveira
nessa mesma Gazeta do Porto, jornal amigo, onde um Vilar Mendes, seu remoto parente, redigia
a Revista Estrangeira.

Mas lera aos amigos no Centro — "os dois botes decisivos que atirariam o Sr. Cavaleiro
abaixo do seu Cavalo!"
E um desses jovens sérios, sobrinho do Bispo de Oliveira, não disfarçou o seu assombro:

— Oh Gonçalo, eu sempre pensei que você e o Cavaleiro eram íntimos! Se
bem me lembro quando você chegou a Coimbra, para os Preparatórios, viveu
na casa do Cavaleiro, na rua de S. João...Pois não há uma amizade tradicional,
quase histórica, entre Ramires e Cavaleiros?... Eu pouco conheço Oliveira,
nunca andei para os vossos sítios; mas até creio que Corinde, a quinta do
Cavaleiro, pega com Santa Ireneia!

E Gonçalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar secamente
que Corinde não pegava com Santa Ireneia: que entre as duas terras corria
muito justificadamente a ribeira do Coice: e que o Sr. André Cavaleiro, e
sobretudo Cavalo, era um animal detestável que pastava na outra margem! —
O sobrinho do Bispo saudou e exclamou:

— Sim senhor, boa piada! Um ano depois da Formatura, Gonçalo foi a Lisboa por
causa da hipoteca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo foro anual
de dez réis e meia galinha, devido ao abade de Praga, andava empecendo terrivelmente
nos Conselhos do Banco Hipotecário; — e também para conhecer mais
estreitamente o seu chefe, o Braz Victorino, mostrar lealdade e submissão
partidária, colher algum fino conselho de conduta Política. Ora uma noite,
voltando de jantar em casa da velha Marquesa de Louredo, a "tia Louredo",
que morava a Santa Clara, esbarrou no Rossio com José Lúcio Castanheiro,
então empregado no Ministério da Fazenda, na repartição dos Próprios
Nacionais.

Mais defecado, mais macilento, com uns óculos mais largos e mais
tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como em Coimbra, na chama da sua
Ideia — "a ressurreição do sentimento português!"

E agora, alargando a proporções condignas da Capital o plano da Pátria, labutava
devoradoramente na criação de uma revista quinzenal, de setenta páginas, com capa
azul, os Anais de Literatura e de História.

Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em torno das fontes
secas do Rossio, Castanheiro, que sobraçava um rolo de papel e um gordo fólio
encadernado em bezerro, depois de recordar as cavaqueiras geniais da rua da
Misericórdia, de maldizer a falta de intelectualidade de Vila Real de Santo António —
voltou sofregamente à sua Ideia, e suplicou a Gonçalo Mendes Ramires que lhe cedesse
para os Anais esse Romance que ele anunciara em Coimbra, sobre o seu avoengo
Tructesindo Ramires, Alferes-Mor de Sancho I.

Gonçalo, rindo, confessou que ainda não começara essa grande obra!


— Ah! — murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros óculos
sobre ele, duros e desconsolados. — Então você não persistiu?... Não
permaneceu fiel à Ideia?...

Encolheu os ombros, resignadamente, já acostumado, através da sua missão, a
estes desfalecimentos do Patriotismo. Nem consentiu que Gonçalo,
humilhado perante aquela Fé que se mantivera tão pura e servidora —
aludisse, como desculpa, ao inventário laborioso da Casa, depois da morte do
papá...

— Bem, bem! Acabou! Procrastinare lusitanum est. Trabalha agora no
verão... Para Portugueses, menino, o verão é o tempo das belas fortunas e dos
rijos feitos. No verão nasce Nuno Álvares no Bonjardim!

No verão se vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama à índia!... E no verão vai o nosso
Gonçalo escrever uma novelazinha sublime!... De resto os Anais só aparecem
em dezembro, caracteristicamente no primeiro de dezembro. E você em três
meses ressuscita um mundo. Sério, Gonçalo Mendes!... É um dever, um santo
dever, sobretudo para os novos, colaborar nos Anais. Portugal, menino, morre
por falta de sentimento nacional! Nós estamos imundamente morrendo do
mal de não ser Portugueses!

Parou — ondeou o braço magro, como a correia de um látego, num gesto que
açoitava o Rossio, a Cidade, toda a Nação. Sabia o amigo Gonçalinho o
segredo desta borracheira sinistra? É que, dos Portugueses, os piores
desprezavam a Pátria — e os melhores ignoravam a Pátria.

O remédio?... Revelar Portugal, vulgarizar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com
estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheçam — ao
menos como se conhece o Xarope Peitoral de James, hem? E que todos o
adotem — ao menos como se adotou o sabão do Congo, hem?

E conhecido, adotado, que todos o amem enfim, nos seus heróis, nos seus feitos, mesmo
nos seus defeitos, em todos os seus padrões, e até nas veras pedrinhas das suas calçadas!
Para esse fim, o maior a empreender neste apagado século da
nossa História, fundava ele os Anais. Para berrar! Para atroar Portugal, aos
bramidos sobre os telhados, com a noticia inesperada da sua grandeza! E aos
descendentes dos que outrora fizeram o Reino incumbia, mais que aos outros,
o cuidado piedoso de o refazer... Como? Reatando a tradição, caramba!

Assim, vocês! Por essa história de Portugal fora, vocês são uma enfiada de
Ramires de toda a beleza. Mesmo o desembargador, o que comeu numa ceia
de Natal dois leitões!... E apenas uma barriga.

Mas que barriga! Há nela uma pujança heroica que prova raça, a raça mais forte do que promete a força
humana, como diz Camões. Dois leitões, caramba! Até enternece!... E os
outros Ramires, o de Silves, o de Aljubarrota, os de Arsila, os da Índia!

E os cinco valentes, de quem você talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois
bem, ressuscitar estes varões, e mostrar neles a alma façanhuda, o querer
sublime que nada verga, é uma soberba lição aos novos... Tonifica, caramba!
Pela consciência que renova de termos sido tão grandes sacode este chocho
consentimento nosso em permanecermos pequenos!

É o que eu chamo reatar a tradição... E depois feito por você próprio, Ramires, que chic! Caramba, que
chic! É um Fidalgo, o maior Fidalgo de Portugal, que, para mostrar a
heroicidade da Pátria, abre simplesmente, sem sair do seu solar, os arquivos da
sua Casa, velha de mais de mil anos. É de rachar!...

E você não precisa fazer um grosso romance... Nem um romance muito desenvolvido está na índole
militante da revista. Basta um conto, de vinte ou trinta páginas... Está claro, os Anais por
agora não podem pagar.

Também, você não precisa! E que diabo! não se trata de pecúnia, mas de uma grande
renovação social...
E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonçalo em
Coimbra, ultimamente, frequentava o Centro Regenerador.

Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento! A pena agora, como a espada
outrora, edifica reinos... Pense você nisto! E adeus! que ainda hoje tenho de
copiar, para letra cristã, este estudo do Henriques sobre Ceilão...

Você não conhece o Henriques?... Não conhece.Ninguém conhece. Pois quando na
Europa, nessas grandes Academias da Europa, há uma dúvida sobre a História
ou a Literatura cingalesa, gritam para cá, para o Henriques!

Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo — e Gonçalo ainda o avistou, na
porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o braço esguio de Apóstolo
diante de um sujeito obeso, de vasto colete branco, que recuava, com espanto,
assim perturbado no quieto gozo do seu grosso charuto e da doce noite de
maio.

O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragança, impressionado, ruminando a
ideia do Patriota. Tudo nela o seduzia — e lhe convinha: a sua colaboração
numa revista considerável, de setenta páginas, em companhia de Escritores
doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros, até Conselheiros de Estado: a
antiguidade da sua raça, mais antiga que o Reino, popularizada por uma
história de heroica beleza, em que com tanto fulgor ressaltavam a bravura e a
soberba de alma dos Ramires; e enfim a seriedade académica do seu espírito, o
seu nobre gosto pelas investigações eruditas, aparecendo no momento em que
tentava a carreira do Parlamento e da Política!...

E o trabalho, a composição moral dos vetustos Ramires, a ressurreição arqueológica
do viver Afonsino, as cem tiras de almaço a atulhar de prosa forte — não o assustavam...
Não! porque felizmente já possuía a "sua obra" — e cortada em bom pano, alinhavada com
linha hábil.

O seu tio Duarte, irmão da sua mãe (uma senhorade Guimarães, da Casa das Balsas),
nos seus anos de ociosidade e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel
e o seu Alvará de Delegado, fora poeta — e publicara no Bardo, semanário de Guimarães,
um Poemeto em verso solto, o Castelo de Santa Ireneia, que assinara com duas iniciais D. B.

Esse castelo era o seu, o Paço antiquíssimo de que restava a negra torre entre
os limoeiros da horta.

E o Poemeto cantava, com romântico garbo, um lance
de altivez feudal em que se sublimara Tructesindo Ramires,
Alferes-Mor de Sancho I, durante as contendas de Afonso II
e das senhoras Infantas.

Esse volume do Bardo, encadernado em marroquim, com o brasão dos Ramires, o
açor negro em campo escarlate, ficara no Arquivo da Casa como um trecho da
Crónica heroica dos Ramires.

E muitas vezes em pequeno Gonçalo recitara,
ensinados pela mamã, os primeiros versos do Poema,
dê tão harmoniosa melancolia:

Na palidez da tarde, entre a folhagem
Que o outono amarelece...

Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonçalo Mendes
Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da Pátria e das ceias o
aclamavam "o nosso Walter Scott", compor um Romance moderno, de um
realismo épico, em dois robustos volumes, formando um estudo ricamente
colorido da Meia-Idade Portuguesa...

E agora lhe servia, e com deliciosa
facilidade, para essa Novela curta e sóbria, de trinta páginas, que convinha aos
Anais.

No seu quarto do Bragança abriu a varanda. E debruçado, acabando o
charuto, na dormente suavidade da noite de maio, perante a majestade
silenciosa do rio e da Lua, pensava regaladamente que nem teria a canseira de
esmiuçar as crónicas e os fólios maçudos...

Com efeito! toda a reconstrução Histórica a realizara, e solidamente,
com um saber destro, o tio Duarte.
O Paço acastelado de Santa Ireneia, com as fundas carcovas, a torre albarrã, a
alcáçova, a masmorra, o farol e o balsão: o velho Tructesindo, enorme, e os
seus flocos de cabelos e barbas ancestrais derramados sobre a loriga de malha;

os servos mouriscos, de surrões de couro, cavando os regueiros da horta; os
oblatos resmungando à lareira as Vidas dos Santos; os pajens jogando no
campo do tavolado — tudo ressurgia, com verídico realce, no Poemeto do tio
Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances: o truão açoitado; o festim e os
uchões que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires
para o Mosteiro de Lorvão...

Junto à fonte mourisca,
entre os olmeiros, A cavalgada pára...

O enredo todo com a sua paixão de grandeza bárbara, os recontros bravios
em que se saciam a punhal os rancores de raça, o heroico falar despedido de
lábios de ferro — lá estavam nos versos do titi, sonoros e bem balançados...

Monge, escuta! O solar de D. Ramires
Por si, e pedra a pedra se aluíra,
Se jamais um bastardo lhe pisasse,
Com sapato aviltado, as lajes puras!

Na realidade só lhe restava transpor as formas fluidas do Romantismo de
1846 para a sua prosa tersa e máscula (como confessava o Castanheiro), de
ótima cor arcaica, lembrando o Bobo. E era um plágio? Não! A quem, com

mais seguro direito do que a ele, Ramires, pertencia a memória dos Ramires
históricos? A ressurreição do velho Portugal, tão bela no Castelo de Santa
Ireneia, não era obra individual do tio Duarte — mas dos Herculanos, dos
Rebelos, das Academias, da erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje
esse Poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanário que perpassara, durante
cinco meses, há cinquenta anos, numa vila de Província?...!

Não hesitou mais, seduzido. E enquanto se despia, depois de beber aos goles
um copo d''água com bicarbonato de soda, já martelava a primeira linha do conto,
à maneira lapidária da Saíambô: — "Era nos Paços de Santa Ireneia, por uma noite
de inverno, na sala alta da Alcáçova...

Ao outro dia, procurou José Lúcio Castanheiro na repartição dos Próprios
Nacionais, à pressa — porque, depois de uma conferência no Banco
Hipotecário, ainda prometera acompanhar as primas Cheias a uma Exposição
de Bordados na livraria Gomes.E anunciou ao Patriota que, positivamente,
lhe assegurava para o primeiro número dos Anais a Novela, a que já decidira o
título — a Torre de D. Ramires:

— Que lhe parece? Deslumbrado, José Castanheiro atirou os magríssimos braços,
resguardados pelas mangas de alpaca, até a abóbada do esguio corredor em que
o recebera:

— Sublime!... A Torre de D. Ramires!... O grande feito de Tructesindo
Mendes Ramires contado por Gonçalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma
Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos anos depois,
na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito! Caramba, menino,
carambíssima! Isso é que é reatar a tradição!

Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonçalo mandou um criado da
quinta, com uma carroça, a Oliveira, á casa do seu cunhado José Barrolo,
casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica livraria clássica que o
Barrolo herdara do tio Deão da Sé todos os volumes da História genealógica

— "e (acrescentava numa carta) todos os cartapácios que por lá encontrares
com o título de Crónicas do Rei Fulano'' "~. Depois, do pó das suas estantes.
desenterrou as obras de Walter Scott. volumes desirmanados do Panorama, a
História de Herculano, o Bobo, o Monge de Cister. E assim abastecido, com
uma farta resma de tiras de almaço sobre a banca, começou a repassar o
Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transpor para a aspereza de uma
manhã de dezembro, como mais congénere com a rudeza feudal dos seus
avós, aquela luzida cavalgada de donas, monges e homens de armas que o tio
Duarte estendera, através de uma suave melancolia outonal, pelas veigas do
Mondego...


Na palidez da tarde. entre a folhagem
Que o outono amarelece...


Mas… como era então junho e a lua crescia. Gonçalo determinou por fim
aproveitar as sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia —
para levantar, logo à entrada da sua Novela. negro e imenso Paço de Santa
Ireneia, no silêncio de uma noite de agosto, sob o resplendor da lua cheia.

E já enchera desembaraçadamente, ajudado pelo Bardo, duas tiras, quando
uma desavença com o seu caseiro. o Manuel Relho. que amanhava a quinta
por oitocentos mil réis de renda, veio perturbar. na fresca e noviça inspiração
do seu trabalho, o Fidalgo da Torre.Desde o Natal o Relho, que durante anos
de compostura e ordem se emborrachava sempre aos domingos com alegria e
com pachorra, começara a tomar, três e quatro vezes por semana, bebedeiras
desabridas, escandalosas, em que espancava a mulher, atroava a quinta de
berros, e saltava para a estrada, esguedelhado, de varapau, desafiando a quieta
aldeia.

Por fim, uma noite em que Gonçalo, à banca, depois do chá,
laboriosamente escavava os fossos do Paço de Santa Ireneia — de repente a
Rosa cozinheira rompeu a gritar: "Aqui d''El-Rei contra o Relho!" E, através
dos seus brados e dos latidos dos cães, uma pedra, depois outra, bateram na
varanda venerável da livraria! Enfiado, Gonçalo Mendes Ramires pensou no
revólver... Mas justamente nessa tarde o criado, o Bento, descera aquela sua
velha e única arma à cozinha para a desenferrujar e arear! Então, atarantado,
correu ao quarto, que fechou à chave, empurrando contra a porta a cómoda
com tão desesperada ansiedade que frascos de cristal, um cofre de tartaruga,
até um crucifixo, tombaram e se partiram.

Depois gritos e latidos findaram no pátio — mas Gonçalo não se arredou
nessa noite daquele refúgio bem defendido, fumando cigarros, ruminando
um furor sentimental contra o Relho, a quem tanto perdoara, sempre tão afavelmente
tratara, e que apedrejava as vidraças da Torre! Cedo, de manhã convocou o Regedor;
a Rosa, ainda trémula, mostrou no braço as marcas roxas dos dedos do Relho; e
o homem, cujo arrendamento findava em outubro, foi despedido da quinta
com a mulher, a arca e o catre.

Imediatamente apareceu um lavrador dos Bravais, o José Casco,
respeitado em toda a freguesia pela sua seriedade e
força espantosa, propondo ao Fidalgo arrendar a Torre.

Gonçalo Mendes Ramires, porém, já desde a morte do pai, decidira elevar
a renda a novecentos e cinquenta mil réis: — e o Casco desceu as escadas,
de cabeça descaída. Voltou logo ao outro dia, repercorreu miudamente toda a quinta,
esfarelou a terra entre os dedos, esquadrinhou o curral e a adega, contou as oliveiras
e as cepas: e num esforço, em que lhe arfaram todas as costelas, ofereceu
novecentos e dez mil réis! Gonçalo não cedia, certo da sua equidade.

O José Casco voltou ainda com a mulher; depois, num domingo, com a mulher e um
compadre — e era um coçar lento do queixo rapado, umas voltas
desconfiadas em torno da eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da
tulha, que tornavam aquela manhã de junho intoleravelmente longa ao
Fidalgo, sentado num banco de pedra do jardim, debaixo de uma mimosa,
com a Gazeta do Porto.

Quando o Casco, pálido, lhe veio oferecer novecentos e trinta mil réis —
Gonçalo Mendes Ramires arremessou o jornal, declarou que ia ele, pela sua conta,
amanhar a propriedade, mostrar o que era um torrão rico, tratado pelo saber moderno,
com fosfato, com máquinas!

O homem de Bravais, então, arrancou um fundo suspiro, aceitou os novecentos
e cinquenta mil réis.

À maneira antiga o Fidalgo apertou a mão ao lavrador —
que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esponjando na
testa, nas cordoveias rijas do pescoço, o suor ansiado que o alagava.

Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gonçalo
estancou — não foi mais que um fio arrastado e turvo.

Quando nessa tarde se acomodou à banca, para contar a sala de armas do Paço
de Santa Ireneia por uma noite de lua —— só conseguiu converter servilmente
numa prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem relevo que os modernizasse,
desse majestade senhorial ou beleza saudosa àqueles maciços muros, onde o luar,
deslizando através das reixas, salpicava centelhas pelas pontas das lanças altas,
e pela cimeira dos morriões...E desde as quatro horas, no calor e silêncio do
domingo de junho, labutava. empurrando a pena como lento arado em chão
pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e
mole, ora num rebuliço, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinelos de
marroquim, ora imóvel e abandonado à esterilidade que o travava, com os
olhos esquecidos na Torre, na sua dificílima Torre, negra entre os limoeiros e
o azul, toda envolta no piar e esvoaçar das andorinhas.

Por fim, descorçoado. arrojou a pena que tão desastrosarnente emperrara. E
fechando na gaveta, com uma pancada, o volume precioso do Bordo:

— Irra! Estou perfeitamente entupido! É este calor! E depois aquele
animal do Casco, toda a manhã!...

Ainda releu, coçando sombriamente a nuca. a derradeira linha rabiscada e suja:

— "... Na sala altaneira e larga, onde os largos e pálidos raios da lua..."
Larga, largos!... E os pálidos raios, os eternos pálidos raios!... Também este
maldito castelo, tão complicado!... E este D. Tructesindo, que eu não apanho,
tão antigo!... Enfim, um horror!

Atirou, num repelão, a cadeira de couro; cravou. com furor, um charuto nos
dentes; e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, num tédio
imenso da sua obra, daqueles confusos e enredados Paços de Santa Ireneia, e
dos seus avós, enormes, ressoantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos.