Capítulo V

A casa do Cavaleiro em Corinde era uma edificação dos fins do século XVIII,
sem elegância e sem arte, pintada de amarelo, lisa e vasta, com quatorze
janelas de frente, quase ao meio de uma quinta chá, toda de terras lavradas.
Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada nobreza, ao pátio da
frente, ornado por dois tanques de mármore. Os jardins conservavam a
abundância esplêndida de rosas que os tornara famosos — e lhes merecera em
tempos do avó de André, o Desembargador Martinho, uma visita da Sra. D.
Maria II. E dentro todas as salas reluziam de asseio e ordem, pelos cuidados
da velha governanta, uma parenta pobre do Cavaleiro, a Sra. D. Jesuína Rolim.
Quando Gonçalo, que viera da Torre na égua, atravessou a antessala, ainda
reconheceu um dos painéis da parede, fumarento combate de galeões, que ele
uma tarde rasgara jogando o espadão com André. Sob esse painel, à borda do
canapé de palhinha, esperava melancolicamente um amanuense do Governo
Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E de uma porta remota, ao
fundo do corredor, André, avisado pelo criado, o fiel Mateus, gritou
alegremente:
— Ó Gonçalo, entra para cá, para o quarto! Saí da tina... Ainda estou em
ceroulas!
E em ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns. Depois,
enquanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das
malas — gravatas, peúgas de seda, garrafas de perfumes — conversaram do
calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...
— Um horror! — exclamava o Cavaleiro aquecendo um ferro de frisar à
lâmpada de álcool. — Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de caliça, de
poeirada. O Central infestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Túnis,
Lisboa!... Mas enfim, lá combatemos bravamente o bom combate!
Gonçalo sorria, do canto do divã onde se acomodara, entre uma pilha de
camisas de cor e outra de ceroulas com monograma flamante:
— E então, Andrezinho, tudo arranjado, hem?
O Cavaleiro, diante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas
grossas do bigode. E só depois de o ensopar em brilhantina, de acamar as
ondas da cabeleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a Gonçalo,
já inquieto, que a eleição ficara sólida...
— Mas imagina tu! Quando apareci em Lisboa, no Ministério do Reino,
encontrei o Círculo prometido ao Pita, ao Teotônio Pita, o grande homem da
Verdade...
O Fidalgo saltou, despenhando a ruma de camisas:
— E então?...
E então ele mostrara muito asperamente ao José Ernesto a inconveniência de
dispor do Círculo como de um charuto, sem o consultar, a ele, Governador
Civil — e dono do Círculo... E como o José Ernesto se arrebitava, aludia à
conveniência superior do Governo, ele logo, estendendo o dedo firme: —
"Pois Zezinho, flor, ou trago o Ramires por Vila-Clara, ou me demito, e arde
~ Espantos, escarcéus, berreiros — mas o José Ernesto cedera, e tudo findou
jantando ambos em Algés com o tio Reis Gomes, onde à noite, ao bluff as
senhoras lhe arrancaram quatorze mil reis.
— Em resumo, Gonçalinho, precisamos conservar os olhos atentos. O
José Ernesto é rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu génio...
Mas há os compromissos, as pressões... E agora a novidade pitoresca. Sabes
quem se propõe contra ti, pelos Regeneradores?... Adivinha... O Julinho!
— Que Julinho?... O Júlio das fotografias?
— O Júlio das fotografias.
— Diabo!
O Cavaleiro encolheu os ombros, com piedade:
— Arranja dez votos à porta da quinta, tira o retrato a todos os taverneiros
do Círculo em mangas de camisa, e continua a ser o Julinho... Não! só Lisboa
me inquieta, a canalha política de Lisboa!
Gonçalo torcia o bigode desconsolado:
— Imaginei tudo mais sólido, mais inabalável... Assim com todas essas
intrigas, ainda surde trapalhada... Ainda lá não vou!
O Cavaleiro, ao espelho, esticava o fraque — que experimentara abotoado,
depois repuxadamente aberto sobre o colete de fustão cor de azeitona, onde,
no trespasse largo, tufava a gravata de sedinha clara, prendida por uma safira.
Por fim, encharcando o lenço com essência de feno:
— Nós estamos bem aliados, bem consagrados, não é verdade? Então meu
caro Gonçalo, sossega, e almocemos regaladamente !... Creio que este fraque
do nosso Amieiro assenta com certa graça, hem?
— Magnífico! — afirmou Gonçalo.
— Bem. Então agora descemos ao jardim, para tu reveres os velhos
pousos e te florires com uma rosa de Corinde.
E logo no corredor, ornado de jarrões da Índia, de arcas de charão, enlaçando
o braço de Gonçalo, do seu recuperado Gonçalo: — Pois, meu filho, aqui
pisamos ambos de novo os nobres soalhos de Corinde, como há cinco anos...
E nada mudou, nem um criado, nem uma cortina! Agora, um destes dias,
preciso visitar a Torre.
Gonçalo acudiu ingenuamente:
— Oh! a Torre está muito mudada... Muito mudada!
E um embaraçado silêncio pesou — como se entre eles surgisse a imagem
entristecida da antiga quinta, no tempo dos amores e das esperanças, quando
André e Gracinha procuravam as últimas violetas de abril, sob o sorriso
tutelar de Miss Rhodes, rente aos húmidos muros da Mãe d''''Água. Ainda em
silêncio desceram a escada de caracol — por onde ambos outrora se
despenhavam cavalgando o corrimão. E embaixo, numa sala abobadada,
rodeada de bancos de madeira com as armas dos Cavaleiros nas espaldas,
André quedou diante da porta envidraçada do jardim, ondeou um gesto
desconsolado e lânguido:
— Eu também, agora, pouco apareço em Corinde. E compreendes bem
que não me retêm em Oliveira os cuidados da Administração... Mas este
casarão arrefeceu, alargou, desde a morte da mamã. Ando aqui como perdido.
E acredita, quando cá me demoro, são uns passeios tristonhos por esses
jardins, pela rua Grande... Ainda te lembras da rua Grande?... Vou
envelhecendo muito solitariamente, meu Gonçalo!
Gonçalo murmurou, por concordância, simpatia renovada:
— Eu também me aborreço na Torre...
— Mas tens outro génio!... E eu realmente sou um elegíaco.
Correu, com um esforço, o fecho perro da porta envidraçada. E limpando os
dedos ao lenço perfumado:
— Eu creio que Corinde, agora, só me encantava com grandes cerros
escalvados, grandes rochedos agrestes... As vezes, cá dentro da alma, necessito
o ermo de S. Bruno...
Gonçalo sorria daquele apetite ascético, murmurando com preciosidade,
através da bigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E no
terraço, junto à balaustrada de pedra enramada de hera, galhofou, louvando o
areado alinho, o reluzente viço do jardim:
— Com efeito, para um discípulo de S. Bruno, que escândalo todo este
asseio! Mas para um pecador como eu, que delícia!... O jardim da Torre anda
um chavascal.
— A prima Jesuína gosta de flores. Tu não conheces a prima Jesuína? Uma
velha parenta da mamã, que governa agora a casa. Coitada! e com um
escrúpulo, com um amor... Se não fosse a santa criatura, os porcos fossavam
nos canteiros... O meu filho, onde não há saia, não há ordem!
Desceram a escadaria redonda, por entre os vasos de louça azul que
transbordavam de gerânios, de sécias, de canas-da-índia. Gonçalo recordou a
véspera de S. João em que rolara por aqueles degraus, num trambolhão
tremendo, com os braços carregados de foguetes. E lentamente, através do
jardim, evocavam memórias da camaradagem antiga. Lá se conservava o
trapézio, dos tempos em que ambos cultivavam a religião heroica da força, da
ginástica, do banho frio... Naquele banco, sob a magnólia, lera uma tarde
André o primeiro canto do seu Poema, o Carairo de Arzila. E o alvo? O alvo
onde se exerciam à pistola, para os futuros duelos, inevitáveis na campanha
que ambos meditavam contra o velho Sindicato Constitucional?... — Oh! toda
essa parte do muro, que pegava com o lavadouro, fora derrubada depois da
morte da mamã, para alargar a estufa...
— De resto o alvo era inútil! — acrescentou o Cavaleiro. — Eu logo por
esse tempo entrei também no Sindicato... E agora entras tu, pela porta que eu
te abro!
Então Gonçalo, que colhera e esmagara entre os dedos, para lhe sorver o
perfume, folhas de lúcia-lima — acudiu com uma franqueza, que aquele
desenterrar de recordações tornava mais penetrante e sentida:
— E eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu afianças a
eleição, com segurança? Não surgirá dificuldade, Andrezinho?... Esse Pita é
um hábil!
O Cavaleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do colete:
— Da habilidade dos Pitas se ri a força dos Cavaleiros...
Por três degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de arvoredo e
sombra, onde desabrochava desde maio, com esplendor, o tão celebrado
bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que deleitara uma Rainha.
Aquele fácil desdém pelo Pita confirmava a segurança da Eleição. Gonçalo,
caminhando respeitosamente como num Museu, regou de louvores
deslumbrados as rosas do Cavaleiro:
— Uma beleza, André, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes... Aquelas
repolhudas, além, que luxo! E estas amarelas? deliciosas!... Olha este encanto!
o ruborzinho a surdir, a raiar, do fundo das pétalas brancas... Oh, que
escarlate! Oh, que divino escarlate!
O Cavaleiro cruzara os braços, com gracejadora melancolia:
— Pois vê tu! Tal é a minha solidão social e sentimental que, com todas
estas rosas abertas, não tenho a quem mandar um ramo!... Estou reduzido a
florir as Lousadas!
Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do
Fidalgo:
— As Lousadas! Oh que desavergonhadas!
André atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, num inquieto reparo de
curiosidade:
— Por quê?... Desavergonhadas, por quê?
— Por quê? Porque o são! Pela sua natureza, e pela vontade de Deus!...
São desavergonhadas como estas rosas são vermelhas.
E o Cavaleiro, tranquilizado:
— Ah, genericamente... Com efeito têm imensa peçonha. Por isso eu as
cubro de rosas. E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com elas
um chá respeitoso!
— Pois não as amansas — rosnou o Fidalgo.
Mas o Mateus aparecera nos degraus de tijolo com o guardanapo na mão, a
calva rebrilhando ao sol. Era o almoço. O Cavaleiro colheu para Gonçalo uma
"rosa triunfal" — e para si um "botão inocente". E, enflorados, subiam para o
terraço entre o brilho e o perfume de outras roseiras — quando o Cavaleiro
parou com uma ideia:
— A que horas vais tu para Oliveira, Gonçalinho?
O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?... Não tencionava aparecer em Oliveira, toda
essa semana...
— Por quê? É urgente que vá a Oliveira?
— Pois certamente, filho! Amanhã mesmo precisamos conversar com o
Barrolo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!... O meu querido
Gonçalo, não podemos adormecer. Não é pelo Júlio, é pelo Pita!
— Bem! bem! — acudiu logo Gonçalo, assustado.
— Parto para Oliveira.
— Porque então — continuava André — vamos ambos logo, a cavalo. É
um bonito passeio pelos Freixos, sempre com sombra... Tens talvez de
mandar à Torre, por causa de roupa...
Não! Gonçalo, para evitar a importunidade de malas, conservava nos Cunhais
um bragal inteiro, desde a chinela até a casaca. E entrava em Oliveira como o
filósofo Bias em Atenas — com uma simples bengala e paciência infinita...
— Delicioso! — declarou André. — Fazemos então logo a nossa entrada
oficial em Oliveira. É o começo da campanha.
O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos risinhos perversos das
Lousadas, de toda a cidade, perante uma entrada tão aparatosamente fraternal.
E, quando o Cavaleiro recomendou ao Mateus que mandasse aprontar o
Rossilho e a égua do Fidalgo para as quatro horas e meia, Gonçalo exagerou o
seu receio do calor, da poeira. Antes partissem às sete, pela fresca! (Assim
esperava penetrar em Oliveira despercebidamente, esbatido no crepúsculo.)
Mas André protestou:
— Não, é uma seca, chegamos à noite. Precisamos entrar com solenidade,
à hora da música no Terreiro... Às cinco, hem?
E Gonçalo, vergando os ombros sob a Fatalidade:
— Pois sim, às cinco.
Na sala de jantar, esteirada, com denegridos painéis de flores e frutas sobre
um papel vermelho imitando damasco, André ocupou a veneranda cadeira de
braços do avô Martinho. O brilho das pratas, a frescura das rosas numa
floreira de Saxe revelavam os desvelos da prima Jesuína — que, com dor de
entranhas nessa manhã, não se vestira, almoçava no quarto. Gonçalo louvou
aquela elegante ordem, tão rara numa casa de solteirão, lamentando a falta de
uma prima Jesuína na Torre... E André sorria deliciadamente, desdobrando o
guardanapo, com a esperança que Gonçalo contasse aos Barrolos o
confortável luxo de Corinde. Depois, picando com o garfo uma azeitona:
— Pois é verdade, meu querido Gonçalo, lá estive nessa grande Capital,
depois um dia em Sintra...
O Mateus entreabriu a porta para recordar a S. Exa. o amanuense do Governo
Civil, que esperava.
— Pois que espere! — gritou S. Exa..
Gonçalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse, com fome...
— Pois que almoce! — gritou S. Exa..
Aquele seco desprezo de André pelo pobre empregado, esquecido no banco
de entrada, com a sua pasta sobre os joelhos — constrangia o Fidalgo. E
espetando também uma azeitona:
— Dizias então, Sintra...
— Sem sabor — resumiu André. — Poeirada horrenda, femeaço
medíocre... E já me esquecia. Sabes quem lá encontrei, na estrada de Colares?
O Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos Anais, de chapéu alto. Ergueu logo
os braços ao céu, desolado: — "E então esse Gonçalo Mendes Ramires não
me manda o romance?" Parece que o primeiro número da Revista sai em
dezembro, e ele precisa o original em começos de outubro... Lá me suplicou
que te sacudisse, que te recordasse a glória dos Ramires. E tu devias acabar a
Novela... Até convém que, antes de entrares na Câmara, apareça um trabalho
teu, um trabalho sério, de erudição forte, bem português...
— Pois convém! — concordou vivamente Gonçalo.
— E à Novela só falta o Capítulo quarto. Mas esse justamente demanda
mais preparação, mais pesquisas... Para o acabar precisava o espírito bem
sossegado, a certeza desta infernal eleição... Não é o animal do Júlio que me
inquieta. Mas a canalha intrigante de Lisboa... Que te parece?
Cavaleiro riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas:
— Que me parece, Gonçalinho? Que estás como uma criança pequena,
aflita, com medo que te não chegue o prato de arroz-doce. Sossega, menino,
apanhas o teu arroz-doce!... Mas, com efeito, encontrei o José Ernesto muito
teimoso. Já existiam compromissos antigos com o Pita. A Verdade tem sido
furiosamente ministerial... E esse Pita, agora quando souber que lhe tapei Vila
Clara, arde em furor contra mim. O que me é soberanamente indiferente;
colerazinhas ou piadinhas do Pita não me tiram o apetite... Mas o José
Ernesto admira o Pita, necessita do Pita, está empenhado em pagar ao Pita
com um Círculo... Ainda no último dia me disse na Secretaria, até lhe achei
graça: — "Eu vejo que os deputados por Vila-Clara morrem; ora se, por esse
bom costume, o teu Ramires morrerem breve, então entra o Pita".
Gonçalo recuou a cadeira:
— Se eu morrer!... Que animal!
— Oh, se morreres para o Círculo! — atalhou o Cavaleiro rindo. — Por
exemplo, se nos zangássemos, se amanhã entre nós surgisse uma dissidência...
Enfim, o impossível!
O Mateus entrava com a terrina do caldo de galinha, que rescendia.
— A ele! — exclamou André. — E não se fale mais de Círculos, nem de
Pitas, nem de Júlios, nem da negregada Política!... Conta antes o enredo da tua
Novela... Histórica, hem?... Meia-idade? D. João V?... Eu, se tentasse agora um
Romance, escolhia uma época deliciosa, Portugal sob os Filipes...
Os três quartos, depois das seis, batiam no relógio sempre adiantado da igreja
de S. Cristóvão, em Oliveira, quando André Cavaleiro e Gonçalo, descendo da
rua Velha, penetraram no Terreiro da Louça (agora largo do Conselheiro
Costa Barroso).
Todos os domingos, tocando num coreto que o Conselheiro, quando
presidente da Câmara, mandara construir sobre o velho Pelourinho demolido,
a charanga do Regimento ou a filarmónica Lealdade tornavam aquele largo o
centro mais sociável da quieta e caseira cidade. Nessa tarde porém, como
começara no Convento de Santa Brígida o bazar patrocinado pelo Bispo, as
senhoras rareavam nos bancos de pedra e nas cadeiras do Asilo espalhadas
por sob as acácias. As Lousadas faltavam no seu pouso reservado,
superiormente escolhido para espiarem todo o Ferreiro, as casas que o cerram
do lado de S. Cristóvão e do lado das Trinas, a rua Velha e a rua das Velas, a
barraca da limonada, e até outro retiro pudicamente disfarçado por uma
caniçada de heras. E o único rancho conhecido, D. Maria Mendonça, a
Baronesa das Marges, as duas Alboins, conversavam com as costas para o
Terreiro, junto da grade de ferro que o limita sobre a antiga muralha — donde
se dominam campos, a cerca do Seminário Novo, todo o pinhal da Estevinha
e as voltas lustrosas da ribeira de Crede.
Mas entre os cavalheiros que trilhavam vagarosamente a aleia do largo
denominada o "Picadeiro", gozando a Marcha do Profeta, o espanto reviveu
(apesar de todos conhecerem a reconciliação famosa do Governo Civil)
quando os dois amigos apareceram, ambos de chapéus de palha, ambos de
polainas altas, ao passo solene das duas éguas — a de Gonçalo airosa e baia de
cauda curta à inglesa, a do Cavaleiro pesada e preta, de pescoço arqueado, a
cauda farta rojando as lajes. Melo Alboim, o Barão das Marges, o Dr.
Delegado, pararam numa fila pasmada, a que se juntou um dos Vila-Velhas,
depois o morgado Pestana, depois o gordo major Ribas com a farda
desabotoada, rebolando e galhofando sobre "aquela amigação..." O Tabelião
Guedes, o Guedes popa, derrubou a cadeira no alvoroço com que se ergueu,
indignado mas respeitoso, descobrindo a calva numa cortesia imensa em que
o chapéu branco lhe tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que saía do
retiro encaniçado de hera e se abotoava, embasbacou, com os óculos na ponta
do nariz alçado, os dedos esquecidos nos botões das calças.
No entanto os dois amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas que
o palacete de D. Arminda Vilegas domina, com o pesado brasão dos Vilegas
na cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas por cortinas de
damasco amarelo. Na varanda de esquina, o Barrolo e José Mendonça
fumavam, sentados em mochos de palhinha. E ao sentir as patas lentas das
éguas, ao avistar tão inesperadamente o cunhado — o bom Barrolo quase se
despenhou da varanda:
-Ó Gonçalo! Ó Gonçalo!... Vais lá para casa?
E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:
— Nós já vamos! Jantamos cá esta tarde... A Gracinha está lá em cima,
com a tia Arminda. Vamos já também! É um momento!
O Cavaleiro acenou risonhamente ao capitão Mendonça. Já Barrolo
mergulhara com entusiasmo para dentro dos damascos amarelos. E os dois
amigos, deixando pelo Terreiro aquele sulco de espanto, penetraram na rua
das Velas onde um polícia se perfilou com a mão no bonnet — o que foi
agradável ao Fidalgo da Torre.
O Cavaleiro acompanhou Gonçalo ao largo de El-Rei. Diante do Palacete um
homem de boina vermelha remoía no seu realejo o coro nupcial da Lúcia,
espiando as janelas desertas. O Joaquim da Porta correu do pátio a segurar a
égua do Fidalgo. Com um mudo sorriso o tocador estendera a boina. E depois
de lhe atirar um punhado de cobre — Gonçalo hesitou, murmurou enfim,
com embaraço e corando:
— Não queres entrar e descansar, André?...
— Não, obrigado... Então amanhã às duas, no Governo Civil, com o
Barrolo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus, minha flor!
Demos um belo passeio e espantamos os povos!
E S. Exa., envolvendo o Palacete num demorado olhar, desceu pela rua das
Tecedeiras.
No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonçalo acabava de se
lavar, de se escovar, quando Barrolo se precipitou pelo corredor, esbofado,
sôfrego — e atrás dele Gracinha, ofegante também, desapertando
nervosamente as fitas escarlates do chapéu. Desde a tarde em que Barrolo
"presenciara com os olhos bem acordados!" a palestra de Gonçalo e de André
na varanda do Governo Civil — fervera nele e em Gracinha uma impaciência
desesperada por penetrar os motivos, a encoberta história daquela
reconciliação surpreendente. Depois a fuga de Gonçalo na caleche para a
Torre, sem parar nos Cunhais; a repentina jornada do Cavaleiro a Lisboa; o
silêncio que sobre aquele caso se abatera mais pesado que uma tampa de ferro
— quase os aterrou. Gracinha à noite, no Oratório, murmurava através das
rezas distraídas: — "Oh, minha rica Nossa Senhora, que será?" — Barrolo
não ousara correr à Torre; mas até sonhava com a varanda do Governo Civil,
que lhe aparecia enorme, crescendo, atravancando Oliveira, roçando já as
janelas dos Cunhais de onde ele a repelia com o cabo de uma vassoura... E eis
agora Gonçalo e André que entram na cidade a cavalo, muito serenamente,
ambos de chapéu de palha, como companheiros constantes recolhendo de um
passeio!
Logo à porta do quarto, Barrolo atirou os braços, rompeu aos brados:
— Então que tem sido tudo isto?... Não se fala noutra coisa!... Tu com o
André!
Gracinha, arfando, tão vermelha como as fitas do chapéu, só balbuciava:
— E nem vens, nem escreves... Nós com tanto cuidado...
E mesmo rente da porta aberta, sem se sentarem, o Fidalgo aclarou o
"Mistério" , com a toalha ainda nas mãos:
— Uma coisa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena
morreu, como vocês sabem. Ficou vago o círculo de Vila-Clara. E um círculo
por onde só pode sair um homem da terra, com propriedade, com influência.
O governo imediatamente me mandou perguntar, pelo telégrafo, se eu me
desejava propor... Ora eu, no fundo, estou de bem com os Históricos, sou
amigo do José Ernesto... Estimava entrar na Câmara... Aceitei.
O Barrolo esmagou a coxa com uma palmada triunfal:
— Então era certo, caramba!
O Fidalgo continuava, enxugando interminavelmente as mãos:
— Aceitei, está claro, com condições; e muito fortes. Mas aceitei... Neste
caso, como vocês sabem, convém que o candidato se entenda com o
Governador Civil. Eu, ao princípio, não queria renovar relações. Instado
porém, muito instado de Lisboa, e por considerações superiores de Política,
consenti nesse sacrifício. Nas dificuldades em que se encontra o país todos
devem fazer sacrifícios. Eu fiz esse... O André, de resto, foi muito amável,
muito afetuoso. De sorte que estamos outra vez amigos. Amigos políticos:
mas muito bem, muito lealmente... Almocei hoje com ele em Corinde, viemos
juntos pelos Freixos. Uma tarde linda!... Enfim renasceu a antiga harmonia. E
a eleição está segura.
— Venham de lá esses ossos! — berrou o Barrolo, transportado.
Gracinha terminara por se sentar à borda do leito, com o chapéu no regaço,
enlevada para o irmão, num silencioso enternecimento em que os seus doces
olhos se humedeciam e riam. O Fidalgo, que se desprendera do abraço do
Barrolo, dobrava a toalha com um vagar distraído:
— A eleição está segura, mas precisamos trabalhar. Tu, Barrolo, tens de
conversar também com o Cavaleiro. Já combinei. Amanhã no Governo Civil,
às duas horas. É necessário que vocês se entendam por causa dos votos da
Murtosa...
— Pronto, menino! o que vocês quiserem! Votos, dinheiro...
E Gonçalo, borrifando vagamente o jaquetão com água-de-colónia que
pingava no soalho:
— Desde o momento em que eu me reconciliei com o André, tudo
acabou. Tu, Barrolo, imediatamente te reconcilias também...
Barrolo quase saltou, no seu deslumbramento:
— Pois está claro! E ainda bem, que eu gosto imensamente do Cavaleiro!
Até sempre teimava com Gracinha... "Oh senhores, esta tolice, por causa da
Política!..."
— Bem! — concluiu o Fidalgo. — A Política nos separou, a Política nos
reúne... E o que se chama a inconstância dos Tempos e dos Impérios.
E agarrou Gracinha pelos ombros, com um beijo brincalhão, estalado em cada
face:
— A tia Arminda? Boa, da escaldadela? Já voltou às façanhas de Leandro o
Belo?
Gracinha resplandecia, com o lento sorriso que se não desfizera, a envolvia
toda em claridade e doçura:
— A tia Arminda está melhor, já anda. Perguntou por ti... Mas, ó Gonçalo,
tu decerto queres jantar!
— Não, almocei tremendamente em Corinde... Vocês, como jantaram à
hora antiga da tia Arminda, ceiam, hem? Então logo ceio... Agora apenas uma
chávena de chá, muito forte!
Gracinha correu, no alvoroço de servir o herói querido. E pela escada,
descendo com Barrolo que o contemplava, o Fidalgo da Torre lamentou os
seus sacrifícios:
— É verdade, menino, é uma maçada... Mas que diabo! todos devemos
concorrer para tirar o país do atoleiro!
Barrolo, maravilhado, murmurava:
— E sem dizeres nada... Assim à capucha! Assim à capucha!...
— E agora outra coisa, Barrolo. Amanhã, no Governo Civil, deves
convidar o André a jantar...
— Com certeza! — gritou o Barrolo. — Jantar de estrondo?
— Não, homem! Jantar muito quieto, muito íntimo. Unicamente o André
e o João Gouveia. Telegrafas ao João Gouveia. Também podes convidar os
Mendonças... Mas jantar muito discreto, só para conversarmos, para firmar a
reconciliação de um modo mais sociável, mais elegante.
Ao outro dia, no Governo Civil, Barrolo e o Cavaleiro apertaram as mãos
com tanta singeleza, como se ambos, ainda na véspera, andassem jogando o
bilhar e caturrando no club da rua das Pegas. De resto conversaram
sumariamente sobre a Eleição. Apenas o Cavaleiro aludira com indolência aos
votos da Murtosa — o bom Barrolo quase se engasgou, na ânsia de os
oferecer:
— E o que vocês quiserem... Votos, dinheiro, o que vocês quiserem!...
Vocês digam! Eu vou para a Murtosa, e é comezaina, e pipa de vinho aberta, e
a freguesia inteira a votar no meio de foguetório...
O Cavaleiro, rindo, amansou aquele fervor faustoso:
— Não, meu caro Barrolo, não! Nós preparamos uma eleição muito
sóbria, muito sossegada. Vila-Clara elege Gonçalo Mendes Ramires deputado,
naturalmente, como o seu melhor homem. Não há combate, o Julinho é uma
sombra. Portanto...
O Barrolo persistia, radiante, gingando:
— Perdão, André, perdão! Lá isso vinhaça, e vivório, e foguetório, e
festança magna...
Mas Gonçalo, embaraçado, ansioso por suster a garrulice do Barrolo, as
palmadas carinhosas com que ele se atufava na intimidade do Cavaleiro,
apontou para a mesa de S. Exa..
— Tu tens que fazer, André. Vejo aí uma papelada pavorosa... Não
roubemos mais tempo ao chefe ilustre do Distrito! Ao trabalho!
Trabalhar, meu irmão, que o trabalho E André, é virtude, é valor!...
Agarrara o chapéu, acenando ao cunhado. Então Barrolo, com as bochechas a
estalar de gosto, balbuciou o convite que firmaria a reconciliação de um modo
sociável e elegante:
— Cavaleiro, para conversarmos melhor, se você nos quiser dar o gosto de
vir jantar... Quinta-feira, às seis e meia... Nós, quando cá está o Gonçalo,
jantamos sempre mais tarde.
O Cavaleiro, que corara, agradeceu com discreta cerimónia:
— É para mim um imenso prazer, uma imensa honra...
E à porta da antessala onde os acompanhara, segurando o pesado reposteiro
de baeta escarlate com as Armas Reais bordadas — suplicou ao Barrolo que
pusesse os seus respeitos aos pés da Sra. D. Graça...
Barrolo, descendo a larga escadaria de pedra, limpava a testa, o pescoço,
humedecidos pela emoção. E no pátio desabafou:
— Muito simpático este André! Rapaz franco, de quem sempre gostei...
Realmente estava morto que acabassem estas histórias... E mesmo lá para os
Cunhais, para a companhia, para o cavaco, que bela aquisição!
Quinta-feira de manhã depois do almoço, no terraço do jardim onde tomavam
café, Gonçalo recomendou ao Barrolo que "para acentuar mais
completamente a intimidade simples do jantar, não pusesse casaca..."
— E tu, Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre...
Gracinha sorriu, indecisamente, continuando a folhear um Almanach de
lembranças estendida numa cadeira de verga, com um gatinho branco no
regaço.
Depois do alvoroço e pasmo de domingo, ela aparentava agora um
desinteresse silencioso pela reconciliação que ainda abalava Oliveira, pela
Eleição, pelo jantar. Mas nesses dias não sossegara — tão impaciente e
sensível que o bom Barrolo incessantemente lhe aconselhava o grande
remédio da mamã contra os nervos, "flores de alecrim, cozidas em vinho
branco".
Gonçalo percebia claramente a perturbação em que a lançava aquela entrada
triunfal de André, do antigo André, na sua casa de casada, nos Cunhais. E
para se tranquilizar evocava (como na estrada do cemitério em Vila-Clara) a
seriedade de Gracinha, o seu rígido e puro pensar, a altivez da sua almazinha
heroica. Nessa manhã mesmo, todo no fresco e sôfrego cuidado da sua
Eleição, só receava que Gracinha, por embaraço ou cautela, acolhesse
secamente o Cavaleiro, o esfriasse no seu renovado fervor pela Casa de
Ramires, no seu patrocinato Político. E insistiu, gracejando:
— Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que
sorria aos hóspedes...
Ela murmurou, mergulhada no seu Almanach:
— Sim, realmente, com este calor...
Mas Barrolo bateu uma palmada na coxa. Que pena! que pena não terem
Oliveira, "para o brinde de reconciliação", um famoso vinho do Porto, da
garrafeira da mamã, preciosíssimo, velhíssimo, do tempo de D. João II...
— D. João II? — rosnou Gonçalo. — Está estragado!
Barrolo hesitou:
— D. João II ou D. João VI... Um desses Reis. Enfim, um vinho único, do
século passado! Só restam à mamã oito ou dez garrafas... E hoje, era dia para
uma, bem?
O Fidalgo deu um sorvo lento ao café:
— O André, antigamente, também gostava muito de ovos queimados...
Bruscamente Gracinha fechou o Almanach — e, com uma fuga e um silêncio
que emudeceram Gonçalo, sacudiu do colo o gato dorminhoco, atravessou o
terraço, desapareceu entre os teixos altos do jardim.
Mas à tarde, quando o Fidalgo ocupou o seu lugar na mesa oval, junto da
prima Maria Mendonça — logo notou, entre duas compoteiras, uma travessa
de ovos queimados. Apesar de jantar tão íntimo serviam, com a louça da
China, os famosos talheres dourados da baixela do tio Melchior. E duas jarras
de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarelos, cores heráldicas dos
Ramires.
D. Maria, que não encontrara o querido primo desde os anos de Gracinha,
murmurou com um sorriso, uma grave cortesia, naquele cerimonioso silêncio
em que se desdobravam os guardanapos:
— Ainda lhe não dei os parabéns, primo Gonçalo...
Ele acudiu, mexendo nervosamente nos copos:
— Chut! prima, chut! Hoje aqui, já está decidido, não se alude sequer à
Política... Está muito calor para Política.
Ela suspirou de leve, como desfalecida: Ai, o calor... Que horrível calor! Desde
que entrara nos Cunhais com aquele vestido preto que "era o seu pálio rico —
ainda não cessara de invejar a frescura do vestido branco de Gracinha...
— Que bem que lhe fica! Está hoje linda!
Era um vestido liso de crepom branco, que aclarava, remoçava a sua graça
quase virginal. E nunca realmente tanto prendera, assim clara e fina, com os
verdes olhos refulgindo como esmeraldas lavadas, uma ondulação mais
lustrosa nos pesados cabelos, um macio rubor transparente, todo um fresco
brilho de flor regada, de flor revivida, apesar do acanhamento que lhe
imobilizava os dedos ao erguer a colher de prata dourada. E ao lado,
superiormente robusto e largo, com o petilho arqueado como uma couraça e
cravejado de duas safiras, uma rosa branca desabrochada na lapela, André
Cavaleiro, que recusara a sopa (oh, no verão nunca comia sopa!), dominava a
mesa, levemente comovido também, passando sobre o reluzente bigode um
lenço tão perfumado que afogava o perfume dos cravos. Mas foi ele que
encadeou a animação com risonhos queixumes sobre o calor — o escandaloso
calor de Oliveira... Ah! que Purgatório abrasado — depois dos seus dois dias
de Paraíso, na frescura deliciosa de Sintra!
D. Maria Mendonça adoçou os espertos olhos para o Sr. Governador Civil. —
E então Sintra? Animada? Muitos ranchos à tarde, em Seteais? Encontrara a
Condessa de Cheias — a prima Chelas?...
Sim, na Pena, na sua visita à Rainha, Cavaleiro conversara durante um
momento com a Sra. Condessa de Chelas...
— Ah! E a Rainha?...
— Oh, sempre encantadora...
A Sra. Condessa de Chelas, essa, um pouco magra. Mas tão amável, tão
inteligente, tão verdadeiramente grande dame — não é verdade? E, como se
inclinara para Gracinha, com uma doçura infinita no simples mover da cabeça
— ela, perturbada, mais vermelha, balbuciou que não conhecia a Condessa de
Cheias... — D. Maria Mendonça acusou logo a inércia dos primos Barrolos,
sempre encafurnados nos Cunhais, sem nunca se aventurarem a Lisboa no
inverno, para conviver, para conhecer os parentes...
— E a culpa é do primo José, que detesta Lisboa... Oh, não! Barrolo não
detestava Lisboa! Se pudesse acarretar para Lisboa as suas comodidades, o seu
quarto, a sua cocheira, a boa água do pomar, a rica varanda sobre o jardim —
até se regalava!
— Mas entalado naqueles quartinhos do Bragança... E depois a má
comida, o barulho... A Gracinha em Lisboa nunca dorme... E a maçada das
manhãs?... Não há nada que fazer em Lisboa, de manhã!
O Cavaleiro sorria para o Barrolo, como enlevado na sua graça e razão.
Depois confessou que ele, apesar de habitar também (mercê do Estado!) um
palacete confortável, e gozar também uma água excelente, a finíssima água do
Poço de S. Domingos. lamentava que os deveres de Política, a disciplina de
Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua esperança era a queda do
Ministério, para se libertar, passar três meses divinos cm Itália...
Do outro lado de Gracinha, João Gouveia (sempre acanhado e mudo diante
de senhoras) exclamou, num impulso de amizade, de convicção:
— Pois, Andrezinho, vai perdendo a esperança! O S. Fulgêncio não arreia!
Ainda cá te apanhamos uns três ou quatro anos!
E insistiu, debruçado sobre Gracinha, num esforço de amabilidade que o
esbraseava:
— O S. Fulgêncio não arreia. Ainda cá temos o nosso André mais três ou
quatro anos.
André protestava, com um requebro, as espessas pestanas quase cerradas:
— Oh, meu João! não me queiras mal, não me queiras mal!...
E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que importa
em hoste poderosa uma lança ferrugenta?) esses meses de Itália no inverno já
os sonhara, já os preparava... — E a Sra. D. Graça não permitia que ele a
servisse de um pouco de vinho branco?
Barrolo estendeu o braço, com efusão:
— Oh Cavaleiro! eu tenho empenho em que você prove esse vinho com
cuidado... E da minha propriedade do Corvelo... Faço muito gosto nele. Mas
prove com atenção!
S. Exa. provou com devoção, como se comungasse. E com uma cortesia
compenetrada para Barrolo que reluzia de gosto:
— Uma delícia! uma verdadeira delícia!
— Hem? Não é verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvelo a
todos os vinhos franceses, os mais finos... Até ali o nosso amigo Padre Soeiro,
que é um Santo, o aprecia!
Silencioso, esbatido por trás de uma das altas jarras de cravos, Padre Soeiro
corou, sorriu:
— Com muita água, infelizmente, Sr. José Barrolo... O gosto pede, mas o
reumatismo não consente.
Pois José Mendonça, que não temia reumatismos, atacava sempre bravamente
aquele bendito Corvelo...
— Que lhe parece a você, João Gouveia?
Oh! João Gouveia já o conhecia, louvado Deus! E certamente nunca
encontrara em Portugal, como vinho branco, nenhum comparável pela
frescura, pelo aroma, pela seiva...
— E cá lhe vou atiçando com fervor, Barrolo amigo! Esta bela garrafa de
cristal vai de vencida!
Barrolo exultava. O seu desgosto era que Gonçalo nunca honrasse "aquele
néctar". — Não! Gonçalo não tolerava vinhos brancos...
— E então hoje estou com uma destas sedes que só me satisfaz vinho
verde, assim um pouco espumante, e com gelo... Que este de Vidainhos
também é do Barrolo. Oh, eu não desprezo os vinhos da família... Este
Vidainhos sinceramente o considero sublime.
Então Cavaleiro desejou provar esse sublime vinho verde da quinta de
Vidainhos, em Amarante. O escudeiro, a um aceno entusiasmado do Barrolo,
apresentou a S. Exa. um copo esguio, especial para aquele vinho que
espumava. Mas o Cavaleiro, acariciando o fresco copo sem o erguer, repisou a
ideia de férias, de viagens, como acentuando o seu cansaço e fastio de
Oliveira. — E sabia a Sra. D. Graça para onde ele seguiria, depois da Itália,
nesse inverno, se por caridade de Deus o Ministério caísse?... Para a Ásia
Menor.
— E era uma viagem para que eu, com certeza, tentava o nosso Gonçalo...
Tão fácil, agora, com os caminhos de ferro!... De Veneza a Constantinopla um
mero passeio. Depois, de Constantinopla a Esmirna, um dia, dois dias, num
vapor excelente. E daí numa boa caravana, por Trípoli, pela antiga Sidónia,
penetrávamos em Galileia... Galileia! Hem, Gonçalo? Que beleza!
Padre Soeiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente — que em Galileia
o Sr. Gonçalo Ramires pisaria terra que outrora, por pouco, pertencera à sua
Casa:
— Um dos antepassados de V. Exa., Gutierres Ramires, companheiro de
Tancredo na primeira Cruzada, recusou o ducado de Galileia e de AlémJordão...
— Fez pessimamente! — gritou Gonçalo, rindo. — Oh, esse avô
Gutierres andou pessimamente! Porque não existia agora, neste mundo,
disparate mais divertido do que eu Duque de Galileia! O Sr. Gonçalo Mendes
Ramires, Duque de Galileia e de Além-Jordão!... Era simplesmente de
rebentar!
Cavaleiro protestou, com simpatia:
— Ora essa! Por quê?
— Não acredite! — acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria
Mendonça. — O primo Gonçalo, com todas estas graças, no fundo, é
muitíssimo aristocrata... Mas terrivelmente aristocrata!
O Fidalgo da Torre pousou o copo de Vidainhos, depois de um trago
saboreado e fundo:
— Aristocrata... Está claro que sou aristocrata. Sentiria com efeito certo
desgosto em ter nascido, como uma erva, de outras ervas vagas. Gosto de
saber que nasci do meu pai Vicente, que nasceu do seu pai Damião, que
nasceu do seu pai Inácio, e assim sempre até não sei que Rei Suevo...
— Recesvinto! — informou respeitosamente Padre Soeiro.
— Pois até esse Recesvinto. O pior é que o sangue de todos esses pais não
difere realmente do sangue dos pais do Joaquim da Porta. E que depois do
Recesvinto, para trás, até Adão, não tenho mais pais!
E, enquanto todos riam, D. Maria Mendonça, debruçada para ele, por trás do
leque largamente aberto, murmurou:
— O primo está com esses desprezos... Pois eu sei de uma senhora que
tem a maior admiração pela Casa de Ramires e pelo seu representante.
Gonçalo enchia de novo o copo, com amor, atento à espuma;
— Bravo! "Mas convém distinguir", como diz o Manuel Duarte. Por quem
tem ela a verdadeira admiração, por mim ou pelo Suevo, pelo Recesvinto?
— Por ambos.
— Diabo!
Depois, pousando a garrafa, mais sério:
— Quem é?
Oh! ela não podia confessar. Não era ainda bastante velha para andar com
recadinhos de sentimento. Mas Gonçalo dispensava o nome — só desejava as
qualidades... Nova? Bonita?
— Bonita? — exclamou D. Maria. — É uma das mulheres mais formosas
de Portugal!
Espantado, Gonçalo lançou o nome:
— A D. Ana Lucena!
— Por quê?
— Porque mulher assim tão formosa, e vivendo nestes sítios, e tão
conhecida da prima que lhe faz confidências, só a D. Ana.
D. Maria, ajeitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de seda preta,
sorria:
— Talvez seja, talvez seja...
— Pois estou imensamente lisonjeado. Mas ainda distingo, como o Manuel
Duarte. Se, da parte dela, essa simpatia toda é para o bom fim, não! Não,
santo Deus, não!... Mas se é para o mau fim, então, prima, cumprirei
honradamente o meu dever, dentro das minhas forças...
D. Maria escondeu a face no leque, escandalizada. Depois, espreitando, com
os agudos olhos a faiscar:
— Oh primo, mas o bom fim é que convinha, porque a coisa é a mesma e
são duzentos contos a mais!
Gonçalo gritou de admiração:
— Oh! esta prima Maria! Não há em toda a Europa ninguém mais esperto!
Todos curiosamente ansiaram por saber a nova graça da Sra. D. Maria. Mas
Gonçalo deteve as curiosidades:
— Não se pode contar. É casamento.
Então José Mendonça recordou a novidade picante que desde a véspera
remexia Oliveira:
— Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?
Barrolo, depois o Gouveia, até Gracinha, todos o proclamaram "um horror".
Aquela perfeita rapariga, de pele tão cor-de-rosa, de cabelo tão cor de ouro,
amarrada ao Teixeira de Carredes, um patriarca carregado de netos... Que
desastre!
Pois ao Cavaleiro o casamento não parecia assim "desastrado". O Teixeira de
Carredes, além de muito fino, de muito inteligente, era um velho verdejante,
quase sem rugas — até bonito com aquele contraste do bigode escuro e da
grenha riçada e branca. E na Sra. D. Rosa, com todas as rosas da sua pele e
todo o ouro dos seus cabelos, dominava "um não sei quê" de amolentado e de
sorvado... Depois pouco esperta. E pouco cuidadosa — sempre mal penteada,
sempre mal pregada...
— Enfim, V. Exa. perdoem... Mas quem faz um casamento muito
desenxabido é o pobre Teixeira de Carredes.
D. Maria Mendonça considerava o Governador Civil com um espanto amável:
— Pois se o Sr. Cavaleiro não admira a Rosinha Alcoforado, não sei então
que rapariga admire dentro do seu Distrito...
Ele, logo, com galante rasgo:
— Mas, além de Exa., não admiro ninguém! Realmente eu governo, em
Portugal, o Distrito mais desprovido de beleza...
Todos protestaram. E a Maria Marges? E a pequena Reriz, da Riosa? E a
Melozinho Alboim, com aqueles olhos?... Mas o Cavaleiro não consentia, a
todas demolia com um sarcasmo leve, ou pela pele sem frescura, ou pelo pisar
desairoso, ou pelo provincianismo de gosto e modos, sempre pela carência
das belezas e graças que ornavam Gracinha — lançando assim
disfarçadamente, aos pés de Gracinha, um rolo de senhoras vencidas e
amarfanhadas. Ela percebera a subtil adulação, os seus olhos iluminaram com
um fulgor mais enternecido o rubor que a afogueava. Desejou repartir incenso
tão acumulado — lembrou timidamente outra beleza de que se orgulhava o
Distrito:
— A filha do Visconde de Rio-Manso, a Rosinha Rio-Manso... É linda!
O Cavaleiro triunfou com facilidade:
— Mas tem doze anos, minha senhora! Nem é rosinha, é botãozinho de
rosa!...
Quase humildemente, Gracinha recordou a Luísa Moreira, filha de um lojista,
muito admirada aos domingos na missa da Sé e no Terreiro da Louça:
— É uma bela rapariga... Sobretudo a figura...
Cavaleiro triunfou ainda, com requebrada segurança:
— Sim, mas os dentes tortos, Sra. D. Graça! Os dentes acavalados! V. Exa.
nunca reparou... Oh! uma boca muito desagradável! E, além dos dentes, o
irmão, o Evaristo, com aquela cara mais chata que a alma, e a caspa, e a
porcaria, e o jacobinismo... Não há mulher bonita com irmão tão feio!
Mendonça estendera o braço, com outra curiosidade que ocupava Oliveira:
— E por Evaristo!... Ele sempre funda o novo jornal republicano, o
Rebate?
O Sr. Governador Civil encolheu os ombros com uma ignorância superior e
risonha. Mas João Gouveia, vermelho e luzidio depois da sua garrafa de
Corvelo e da sua garrafa de Douro, afiançou que o Rebate aparecia em
novembro. Até ele conhecia o patriota que esportulava a "massa" . E a
campanha do Rebate começava com cinco artigos esmagadores sobre a
Tomada da Bastilha.
O espanto de Gonçalo era como o Republicanismo alastrara em Portugal —
até na velhota, na devota Oliveira...
— Quando eu andava em preparatórios existiam simplesmente dois
republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Retórica, e eu. Agora há
partido, há comité, há dois jornais... E há mesmo o Barão das Marges com a
Voz Pública na mão, debaixo da Arcada...
Mendonça não receava a República, gracejava:
— Ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dá tempo de comermos
estes belos ovos queimados.
— Deliciosos — murmurou o Cavaleiro.
— Sim — concordou Gonçalo — ainda temos tempo para os ovos... Mas
que rebente uma revolução em Espanha, ou que morra o Reizinho na sua
menoridade, que naturalmente morre...
— Credo! Coitadinho! Pobre mãe! — murmurou Gracinha sensibilizada.
Imediatamente o Cavaleiro a tranquilizou. porque morrer o Reizinho de
Espanha? Os republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males da
excelente criança. Mas ele conhecia a realidade — assegurava à Sra. D. Graça
que, felizmente para a Espanha, ainda reinaria um Afonso XIII e mesmo um
Afonso XIV. Enquanto aos nossos republicanos, esses... O meu Deus! mera
questão de guarda municipal! Portugal, nas suas massas profundas,
permanecia monárquico, de raiz. Apenas ao de cima, na burguesia e nas
escolas, flutuava uma escuma ligeira, e bastante suja, que se limpava facilmente
com um sabre...
— V. Exa., Sra. D. Graça, que é uma dona de casa perfeita, conhece esta
operação que se faz à panela do caldo... Escumar a panela. É com uma colher.
Aqui é com um sabre. Pois assim, com toda a simplicidade, se clarifica
Portugal. E foi isto que ainda ultimamente eu declarei a El-Rei.
Alteara a cabeça — o seu peitilho resplandecia, mais largo, como couraça
bastante rija para defender toda a Monarquia. E, no compenetrado silêncio
que se alargou, duas rolhas de champagne estalaram, por trás do biombo, na
copa.
Apenas o escudeiro, apressado, enchera as taças — o Fidalgo da Torre com
uma gravidade que o sorriso adoçava:
— André, à tua saúde. Não é ao Governador Civil, é ao amigo!
Todos os copos se ergueram num sussurro acariciador. João Gouveia agitou o
seu, com especial efusão, gritando: — "Andrezinho, meu velho!" S. Exa.
apenas tocou de leve no cálice de Gracinha. Padre Soeiro murmurou as
"graças". E Barrolo, atirando o guardanapo:
— Café aqui ou na sala?... Na sala estamos mais frescos.
Na sala grande, a sala dos veludos vermelhos, o lustre rebrilhava
solitariamente; pelas três janelas abertas penetrava a serenidade da noite
quente, o recolhido silêncio de Oliveira; e embaixo, no largo, alguns sujeitos,
mesmo duas senhoras de manta de lã branca pela cabeça, pasmavam para
aquela claridade de festa que jorrava dos Cunhais. O Cavaleiro e Gonçalo
acenderam os charutos na varanda, respirando a frescura escassa. E o
Cavaleiro, com beatitude:
— Pois sempre te digo, Gonçalinho, que se janta sublimemente em casa
do teu cunhado!...
Gonçalo desejou que, no domingo, ele jantasse na Torre. Ainda restavam
umas garrafas de Madeira do tempo do avô Damião — a que se daria, com
socorro do Gouveia e do Titó, um assalto heroico.
O Cavaleiro prometeu, já deliciado — tomando da pesada bandeja de prata,
que derreava o escudeiro, a sua chávena de café, sem açúcar.
— E tu, com efeito, Gonçalo, agora não deves arredar da Torre. O teu
papel é todo de presença na localidade. O Fidalgo da Torre está no meio das
suas terras, por onde vai ser eleito para as Cortes. É o teu papel...
O Barrolo, com um riso enlevado, surdiu entre os dois amigos, que enlaçou
ternamente pela cinta:
— E nós cá ficamos, ambos a trabalhar, o Cavaleiro e eu!...
Mas D. Maria, do canapé onde se enterrara, reclamou o primo Gonçalo "para
negócios". Junto de um console, João Gouveia e Padre Soeiro, remexendo o
seu café, concordavam na necessidade de um Governo forte. E Gracinha,
com o primo Mendonça, revolvia as músicas sobre a tampa do piano,
procurando o Fado dos Ramires. Mendonça tocava com corredio brilho,
compusera valsas, um hino ao coronel Trancoso, o herói de Machumba — e
mesmo o primeiro ato de uma ópera, A Pegureira. E como não descortinavam
o Fado com as quadras do Videirinha — foi justamente uma das suas valsas, a
Pérola, de uma cadência amorosa e cansada lembrando a valsa do Fausto, que
ele atacou, sem largar o charuto.
Então André Cavaleiro, que repenetrara vagarosamente na sala, repuxou o
colete, afagou o bigode, e avançando para Gracinha, com um modo meio
grave, meio folgazão:
— Se V. Exa. me quer dar a grande honra?...
Oferecia, abria os braços. E Gracinha, toda escarlate, cedeu, levada logo nos
largos passos deslizados que o Cavaleiro lançou sobre o tapete. Barrolo e João
Gouveia correram a afastar as poltronas, clareando um espaço, onde a valsa se
desenrolou com o suave sulco branco do vestido de Gracinha. Pequenina e
leve, toda ela se perdia, como se fundia, na força máscula do Cavaleiro, que a
arrebatava em giros lentos, com a face pendida, respirando os seus cabelos
magníficos.
Da borda do canapé, com os finos olhos a fuzilar, D. Maria Mendonça
pasmava:
— Mas que bem que valsa, que bem que valsa o Sr. Governador Civil!...
Ao lado Gonçalo torcia nervosamente o bigode, na surpresa daquela
familiaridade, assim renovada pelo Cavaleiro com tão serena confiança, por
Gracinha com tanto abandono... Eles torneavam, enlaçados. Dos lábios do
Cavaleiro escorregava um sorriso, um murmúrio. Gracinha arfava, os seus
sapatos de verniz reluziam sob a saia que se enrolava nas calças do Cavaleiro.
E Barrolo, em êxtase, quando eles o roçavam, atirava palmas carinhosas,
bradava:
— Bravo! Bravo! Lindamente... Bravíssimo!