Capítulo VII

Gonçalo recolhia para o almoço depois de um passeio no pomar percorrendo
a Gazeta do Porto, quando avistou no banco de pedra, rente à porta da
cozinha, onde a Rosa mudava o painço na gaiola do seu canário, o Casco, o
José Casco dos Bravais, que esperava, pensativo e abatido, como chapéu sobre
os joelhos. Vivamente, para se esquivar, remergulhou no jornal. Mas percebeu
a esgalgada magreza do homem, que surdia da sombra da latada, avançava na
claridade faiscante do pátio, hesitando, como assustado... E, animado pela
vizinhança da Rosa, parou, forçando um sorriso — enquanto o Casco
enrolava nas mãos trémulas a aba dura do chapéu, balbuciava:
— Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra...
— Ah! é você, Casco! Homem, não o conheci... E então?
Dobrou o jornal, tranquilizado — gozando mesmo a submissão daquele
valente que tanto o apavorara, erguido e negro como um pinheiro, na solidão
do pinheiral. E o Casco, engasgado, repuxava, esticava o pescoço de dentro
dos grossos colarinhos bordados — até que atirou toda a alma numa súplica
soluçada, retendo as lágrimas que marejavam:
— Ai, meu Fidalgo, perdoe por quem é! Perdoe, que eu nem lhe sei pedir
perdão!...
Gonçalo atalhou o homem, com generosidade e doçura. Ele bem o avisara!
Nada se emenda, a gritar, com o pau alçado...
— E olhe, Casco! Quando você me saiu ao pinhal eu levava um revólver
na algibeira... Trago sempre um revólver. Desde que uma noite em Coimbra,
no Choupal, dois bêbados me assaltaram, ando sempre à cautela com o
revólver... Pense você agora que desgraça se tiro o revólver, se desfecho!...
Que desgraça, hem?... Felizmente, num relance, pensei que me perdia, que o
matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para não desfechar o revólver... Enfim
tudo passou. E eu não sou homem de rancores, já esqueci. Contanto que
você, agora sossegado e no seu juízo, esqueça também.
O Casco amassava as abas do chapéu, com a cabeça derrubada. E sem a
erguer, sem ousar, rouco dos soluços que o entalavam: — Pois agora é que eu
me lembro, meu Fidalgo! Agora é que me ralo por aquela doidice! Agora!
depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo pequeno!...
Gonçalo sorriu, encolheu os ombros:
— Que tolice, Casco!... Pois a sua mulher aparece aí numa noite d''água... E
o pequenito doente, coitadito, com febre... Como vai ele, o Manelzinho?
O Casco murmurou do fundo da sua humildade:
— Louvado seja Deus, meu senhor, muito sãozinho, muito rijinho.
— Ainda bem... Ponha o chapéu. Ponha o chapéu, homem! E adeus!...
Você não tem que agradecer, Casco... E olhe! Traga cá um dia o pequeno. Eu
gostei do pequeno. É espertinho.
Mas o Casco não se arredava, pregado às lajes. Por fim, num soluço que
rebentou:
— É que eu não sei como hei de dizer, meu Fidalgo... Lá o dia de cadeia,
acabou! Tenho génio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco paguei,
graças ao Fidalgo... Mas depois quando saí, quando soube que a mulher viera
de noite à Torre, e que o Fidalgo até a embrulhara numa capa, e que não
deixara sair o pequeno...
Estacou, afogado pela emoção. E como Gonçalo, também comovido, lhe
batia risonhamente no ombro, "para acabar, não se falar mais nessas
bagatelas..." — o Casco rompeu, numa grande voz dolorosa e quebrada:
— Mas é que o Fidalgo não sabe o que é para mim aquele pequeno!...
Desde que Deus mo mandou tem sido uma paixão cá por dentro que até
parece mentira!... Olhe que na noite que passei na cadeia da vila não dormi... E
Deus me perdoe, não pensei na mulher, nem na pobre da velha, nem na
pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se foi a gemer:
— "ai o meu querido filhinho! ai o meu querido filhinho'' Depois quando a
mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo ficara com ele na Torre, e o
deitara na melhor cama, e mandara recado ao médico... E depois quando
soube pelo Sr. Bento que o Fidalgo de noite subia a ver se ele estava bem
coberto, e lhe entalava a roupa, coitadinho...
E arrebatadamente, num choro solto, gritando: — "Ai meu Fidalgo! meu
Fidalgo!..." — o Casco agarrou as mãos de Gonçalo, que beijava, rebeijava,
alagava de grossas lágrimas.
— Então, Casco! Que tolice!... Deixe homem!
Pálido, Gonçalo sacudia aquela gratidão furiosa — até que ambos se
encararam, o Fidalgo com as pestanas molhadas e trémulas, o lavrador dos
Bravais soluçando, numa confusão. E foi ele por fim que, recalcando um
derradeiro soluço, se recobrou, desafogou da ideia que o trouxera, que decerto
fundamente o trabalhara, e que agora lhe enrijava a face e o gesto numa
determinação que nunca vergaria:
— Meu Fidalgo, eu não sei falar, não sei dizer... Mas se de hoje em diante,
seja para que for, o Fidalgo necessitar da vida de um homem, tem aqui a
minha!
Gonçalo estendeu a mão ao lavrador, muito simplesmente como um Ramires
de outrora recebendo a preitesia de um vassalo:
— Obrigado, José Casco.
— Entendido, meu Fidalgo, e que Deus nosso Senhor o abençoe!
Gonçalo, perturbado, galgou pela escadinha da varanda — enquanto o Casco
atravessava o pátio vagarosamente, com a cabeça bem erguida, como homem
que devera e que pagara.
E em cima, na Livraria, Gonçalo pensava com espanto: "Aí está como neste
mundo 1 sentimental se ganham dedicações gratuitamente Porque enfim!
Quem não impediria que uma criancinha com febre afrontasse de noite uma
estrada negra, sob a chuva e o vendaval? Quem a não deitaria, não lhe
adoçaria um grog, não lhe entalaria os cobertores para a conservar bem
abafada? E por esse grog e por essa cama — corre o pai, tremendo e
chorando, a oferecer a sua vida! Ah! como era fácil ser Rei — e ser Rei
popular!
E esta certeza mais o animava a obedecer às recomendações do Cavaleiro — a
começar imediatamente as suas visitas aos Influentes eleitorais, essas
aduladoras visitas que assegurariam à Eleição uma unanimidade arrogante.
Logo ao fim do almoço, mesmo sobre a toalha, arredando os pratos, copiou a
lista desses Magnates — por um rascunho anotado que lhe fornecera o João
Gouveia. Era o Dr. Alexandrino; o velho Gramilde, de Ramilde; o Padre José
Vicente, da Finta; outros menores; e o Gouveia marcara com uma cruz, como
o mais poderoso e mais difícil, o Visconde de Rio-Manso, que dispunha da
imensa freguesia de Canta-Pedra. Gonçalo conhecia esses senhores, homens
de propriedade e de dinheiro (com todos outrora o papá andara endividado)
— mas nunca encontrara o Visconde de Rio-Manso, um velho brasileiro,
dono da quinta da Varandinha, onde vivia solitariamente com uma neta de
onze anos, essa linda Rosinha que chamavam "O botão de Rosa", a herdeira
mais rica de toda a Província. E logo nessa tarde, em Vila-Clara, reclamou ao
João Gouveia uma carta de apresentação para o Rio-Manso:
O Administrador hesitou:
— Você não precisa carta... Que diabo! Você é o Fidalgo da Torre! Chega,
entra, conversa... Além disso na Eleição passada o Rio-Manso ajudou os
Regeneradores; de modo que estamos um pouco secos. O Rio-Manso é um
casmurro... Mas com efeito, Gonçalinho, convém começar essa caça à
popularidade!
Nessa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a "caça à popularidade",
aceitou um convite do Comendador Romão Barros (do maçador, do burlesco
Barros) para o bródio faustoso com que ele celebrava, na sua quinta da
Roqueira, a festa de S. Romão. E essa semana inteira, depois outra, as gastou
assim por Vila-Clara, amimando eleitores — a ponto de comprar horrendas
camisas de chita na loja do Ramos, de encomendar um saco de café na
mercearia do Telo, de oferecer o braço no largo do Chafariz à nojenta mulher
do bebedíssimo Marques Rosendo, e de frequentar, de chapéu para a nuca, o
bilhar da rua das Pretas. João Gouveia não aprovava estes excessos —
aconselhando antes "boas visitas, com todo o chic, aos influentes sérios". Mas
Gonçalo bocejava, adiava, na insuperável preguiça de afrontar a maledicência
rabugenta do velho Gramilde ou a solenidade forense do Dr. Alexandrino.
Agosto findava; e por vezes, na Livraria, Gonçalo, coçando
desconsoladamente a cabeça, considerava as brancas tiras de almaço, o
Capítulo III da Torre de D. Ramires encalhado... Mas quê! não podia, com
aquele calor, com o afã da Eleição, remergulhar nas eras Afonsinas!
Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas
freguesias, não se descuidando das recomendações do Cavaleiro — enchendo
sempre o bolso de rebuçados de avenca para atirar às crianças. Mas, numa
carta ao querido André, já confessara que "a sua popularidade não crescia, não
enfunava..."
— "Não! positivamente, velho amigo, não tenho o dom! Sei apenas
palestrar familiarmente com os homens, cumprimentar pelo seu nome as
velhas às soleiras das portas, gracejar com a pequenada, e se encontro uma
boeirinha de saiazita rota dar cinco tostões à boeirinha para uma saiazita
nova... Ora todas estas coisas tão naturais sempre as fiz naturalmente, desde
rapaz, sem que me conquistassem influência sensível... Necessito portanto que
essa querida Autoridade me empurre com o seu braço possante e destro..."
Todavia já uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de Nacejas,
e depois, num domingo, cruzando às Ave-Marias na Bica-Santa o Adrião
Pinto do lugar da Levada, ambos lavradores considerados e remexedores de
eleições — lhes pedira os votos, desprendidamente e rindo. E quase se
assombrara da prontidão, do fervor, com que ambos se ofereceram. — "Para
o Fidalgo? Pois isso está entendido! Ainda que se votasse contra o Governo,
que é pai!" — E em Vila-Clara, com o Gouveia, Gonçalo deduzia destas
ofertas tão acaloradas "a inteligência política da gente do campo":
— Está claro que não é pelos meus lindos olhos! Mas sabem que eu sou
homem para falar, para lutar pelos interesses da terra... O Sanches Lucena não
passava de um Conselheiro muito rico e muito mudo! Esta gente quer
Deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por mim porque sou uma
inteligência.
E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:
— Homem! quem sabe? Você nunca experimentou, Gonçalo Mendes
Ramires. Talvez seja realmente pelos seus lindos olhos!
Num desses passeios, numa abrasada sexta-feira, com o sol ainda alto,
Gonçalo atravessava o lugarejo da Veleda, no caminho de Canta-Pedra. Ao
fim dos casebres que se apertam à orla da estrada alveja, muito caiada, num
terreiro em frente da Igreja, a taverna famosa "do Pintainho", onde os
caramanchões do quintal e a nomeada do coelho guisado atraem vasto povo
nos dias da feira da Veleda. Nessa manhã o Titó, depois de uma madrugada às
perdizes, em Valverde, aparecera na Torre para almoçar, urrando, de
esfomeado. Era sexta-feira — a Rosa preparara uma pescada com tomates,
depois um bacalhau assado, formidáveis. E Gonçalo, toda a tarde torturado
com sede, mais ressequido pela poeira da estrada, parou avidamente diante do
portão da venda, gritou pelo Pintainho.
— Oh meu Fidalgo!...
— Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem fresca,
que morro...
O Pintainho, velhote roliço de cabelo amarelo, não tardou com o copo
apetitoso e fundo onde boiava, na espumazinha do açúcar, uma rodela de
limão. E Gonçalo saboreava a sangria com inefável delícia — quando da
janela térrea da venda partiu um assobio lento, fino e trinado, como o dos
arneiros que animam as bestas a beber nos riachos. Gonçalo deteve o copo,
varado. A janela assomara um latagão airoso, de face clara e suíças louras, que,
com os punhos sobre o peitoril e a cabeça levantada, num descarado modo de
pimponice e desafio, o fitava atrevidamente. E num lampejo o Fidalgo
reconheceu aquele caçador que já uma tarde, no lugar de Nacejas, ao pé da
Fábrica de vidros, o mirara com arrogância, lhe raspara a espingarda pela
perna, e ainda depois, parado sob a varanda de uma rapariga de jaqué azul, lhe
acenara chasqueando enquanto ele descia a ladeira... Era esse! Como se não
percebesse o ultraje — Gonçalo bebeu apressadamente a sangria, atirou uma
placa ao pobre Pintainho enfiado, e picou a fina égua. Mas então da janela
rolou uma risadinha, cacarejada e troçante, que o colheu pelas costas como o
estalo de uma vergasta. Gonçalo soltou a galope. E adiante, sopeando a égua
no refúgio de uma azinhaga, pensava, ainda trémulo: — "Quem será o
desavergonhado?... E que lhe fiz, eu, Santo Deus? que lhe fiz, eu?..." Ao
mesmo tempo todo o seu ser se desesperava contra aquele desgraçado medo,
encolhimento da carne, arrepio da pele, que sempre, perante um perigo, uma
ameaça, um vulto surgindo de uma sombra, o estonteava, o impelia
furiosamente a abalar, a escapar! Porque à sua alma, Deus louvado, não faltava
arrojo! Mas era o corpo, o traiçoeiro corpo, que num arrepio, num espanto,
fugia, se safava, arrastando a alma — enquanto dentro a alma bravejava!
Entrou na Torre, mortificado, invejando a afoiteza dos seus jovens da quinta,
remoendo um rancor soturno contra aquele bruto de suíças louras, que
certamente denunciaria ao Cavaleiro e enterraria numa enxovia! — Mas, logo
no corredor, o Bento lhe debandou os pensamentos, aparecendo com uma
carta que "trouxera um jovem da Feitosa..."
— Da Feitosa?
— Sim senhor, da quinta do Sr. Sanches Lucena, que Deus haja. Diz que
vinha de mandado das senhoras...
— Das senhoras!... Que senhoras?
Sem tarja de luto, a carta não era da bela D. Ana... Mas era de D. Maria
Mendonça, que assinava — "prima muito amiga, Maria Severim". Num
relance a leu, colhido logo por esta surpresa nova, distraído da venda do
Pintainho e da afronta: — "Meu querido Primo. Estou há três dias aqui com a
minha amiga Anica, e como passou o mês inteiro do nojo e ela já pode sair (e
até precisa porque tem andado fraca) eu aproveito a ocasião para percorrer
estes arredores que dizem tão bonitos, e pouco conheço. Tencionamos no
domingo visitar Santa Maria de Craquede, onde estão os túmulos dos antigos
tios Ramires. Que impressão me vai fazer!... Mas, ao que parece, além dos
túmulos do claustro, há outros, ainda mais antigos, que foram arrombados no
tempo dos Franceses, e que ficam num subterrâneo, onde se não pode entrar
sem licença e sem que tragam a chave. Peço pois, querido Primo, que dê as
suas ordens para que no domingo possamos descer ao subterrâneo, que todos
afiançam muito interessante, porque ainda lá restam ossos e armas. Se na
Torre houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer este pedido... Mas
não se pode visitar um solteirão tão perigoso. Case depressa!... De Oliveira
boas notícias. Creia-me sempre, etc."
Gonçalo encarou o Bento — que esperava, interessado com aquele assombro
do Sr. Doutor:
— Tu sabes se em Santa Maria de Craquede há outros túmulos, num
subterrâneo?
O assombro então saltou para o Bento:
— Num subterrâneo?... Túmulos?
— Sim, homem! Além dos que estão no claustro parece que há outros,
mais antigos, debaixo da terra... Eu nunca vi, não me lembro. Também há que
anos não entro em Santa Maria de Craquede! Desde pequeno!... Tu não sabes?
O Bento encolheu os ombros.
— E a Rosa não saberá?
O Bento abanou a cabeça, duvidando.
— Também vocês nunca sabem nada! Bem! Amanhã cedo corre a Santa
Maria de Craquede e pergunta na Igreja, ao sacristão, se existe esse
subterrâneo. Se existir que o mostre no domingo a umas senhoras, à Sra. D.
Ana Lucena, e à Sra. D. Maria Mendonça, minha prima Maria... E que tenha
tudo varrido, tudo decente!
Mas, repassando a carta, reparou num Post-Scriptum em letra mais miudinha,
ao canto da folha: — "No domingo, não se esqueça, a visita será entre as
cinco e cinco e meia da tarde!"
Gonçalo pensou: — ''Será uma entrevista?" E na Livraria, atirando para uma
cadeira o chapéu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem clara, bem
marcada! E talvez nem existisse esse subterrâneo — e Maria Mendonça, com
a sua tortuosa esperteza, o inventasse, como natural motivo de lhe escrever,
de lhe anunciar que no domingo, às cinco e meia, a bela D. Ana e os seus
duzentos contos o esperavam em Santa Maria de Craquede. Mas então a
prima Maria não gracejara, em Oliveira? Gostava dele, realmente, essa D.
Ana?... E uma emoção, uma curiosidade voluptuosa atravessaram Gonçalo à
ideia de que tão formosa mulher o desejava. — Ah! mas certamente o
desejava para marido, porque se o apetecesse para amante não se socorria dos
serviços da D. Maria Mendonça — nem a prima Maria, apesar de tão sabuja
com as amigas ricas, os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira
de Comédia! E caramba! casar com a D. Ana — não!
E subitamente ansiou por conhecer a vida da D. Ana! Aturara ela tantos anos,
em severa fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na Feitosa, na solidão dos
grandes muros da Feitosa — porque nunca sobre ela esvoaçara um rumor, em
terriolas tão gulosas de rumores malignos. Mas em Lisboa?... Esses "amigos
estimabilíssimos" de que se ufanava o pobre Sanches, o D. João não sei quê, o
pomposo Arronches Manrique, o Filipe Lourençal com o seu cornetim?...
Algum decerto a atacara — talvez o D. João, por dever tradicional do nome.
E ela?... Quem o informaria sobre a história sentimental da D. Ana?
Depois, ao jantar, de repente pensou no Gouveia. Uma irmã do Gouveia,
casada em Lisboa com certo Cerqueira (arranjador de Mágicas e empregado
na Misericórdia), costumava mandar ao mano Administrador relatórios
íntimos sobre todas as pessoas conhecidas de Oliveira, de Vila-Clara, que se
demoravam em Lisboa — e que interessavam o mano ou por Política, ou por
mexeriquice. E decerto, pela irmã Cerqueira, o querido Gouveia conhecia
miudamente os anais da D. Ana, durante os seus invernos de Lisboa, nas
delícias da sua "roda fina".
Nessa noite, porém, o Administrador não aparecera na Assembleia. E
Gonçalo, desconsolado, recolhia à Torre — quando no largo do Chafariz o
encontrou com o Videirinha, ambos sentados num banco, sob as olaias
escuras.
— Chegou lindamente! — exclamou o Gouveia. — Estávamos mesmo a
marchar para a minha casa, tomar chá. Quer você, também?.. Você costuma
gostar das minhas torradinhas.
O Fidalgo aceitou — apesar de cansado. E logo pela Calçadinha, enlaçando o
braço do Administrador, contou que recebera uma carta de Lisboa, de um
amigo, com uma nova estupenda... O quê? — O casamento da D. Ana
Lucena.
O Gouveia parou, assombrado, atirando o coco para a nuca:
— Com quem?!
Gonçalo, que inventara a carta — inventou o noivo:
— Com um vago parente meu, ao que parece, um D. João Pedroso ou da
Pedrosa. Muitas vezes o Sanches Lucena me falou nele... Conviviam muito em
Lisboa...
Gouveia bateu com a ponta da bengala nas pedras:
— Não pode ser!... Que disparate! A D. Ana não ajustava casamento sete
semanas depois de lhe morrer o marido... Olhe que o Lucena morreu no
meado de julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar à sepultura!
— Sim, com efeito! — murmurou Gonçalo. E sorria, sob uma doce
baforada de vaidade — pensando que, sete semanas depois de viúva, ela, sem
resistir, calcando decência e luto, oferecia a ele uma entrevista nas ruínas de
Craquede.
A mentira de resto, apesar de disparatada, aproveitara — porque, depois de
subirem à saleta verde do Administrador, o espanto recomeçou. Videirinha
esfregava as mãos, divertido:
— Oh Sr. Dr., olhe que tinha graça!... Se a Sra. D. Ana, depois de apanhar
os duzentos contos do velhote, logo passadas semanas, zás, se engancha com
um rapazote novo...
Não, não!... Gonçalo agora, reparando, também considerava despropositada a
notícia do casamento, assim com o pobre Sanches ainda morno...
— Naturalmente entre ela e esse D. João havia namorico, olhadela... Por
isso imaginaram. Com efeito, alguém me contou, há tempos, que o tal D. João
se atirava valentemente, como cumpre a um D. João, e que ela...
— Mentira! — atalhou o Administrador, debruçado sobre a chaminé do
candeeiro, para acender o cigarro.
— Mentira! Sei perfeitamente, e por excelente canal... Enfim, sei pela
minha irmã! Nunca, em Lisboa, a D. Ana deu azo a que se rosnasse. Muito
séria, muitíssimo séria. Está claro, não faltou por lá maganão que lhe
arrastasse a asa lânguida... Talvez esse D. João, ou outro amigo do marido,
segundo a boa lei natural. Mas ela, nada! Nem olho de lado! Esposa romana,
meu amigo, e dos bons tempos romanos!
Gonçalo, enterrado no canapé, torcia lentamente o bigode, regalado,
recolhendo as revelações. E o Gouveia, no meio da sala, com um gesto
convencido e superior:
— Nem admira! Estas mulheres muito formosas são insensíveis. Belos
mármores, mas frios mármores... Não, Gonçalinho, lá para o sentimento, e
para a alma, e mesmo para o resto, venham as mulheres pequeninas,
magrinhas, escurinhas! Essas sim!... Mas os grandes mulherões brancos, do
género Vénus, só para vista, só para museu.
Videirinha arriscou uma dúvida:
— Uma senhora tão bonita como a Sra. D. Ana, e com aquele sangue,
assim casada com um velhote...
— Há mulheres que gostam de velhotes porque elas mesmas têm
sentimentos velhotes! — declarou o Gouveia, de dedo erguido, com imensa
autoridade e imensa filosofia.
Mas a curiosidade de Gonçalo não se contentava. E na Feitosa? Nunca se
rosnara de alguma aventura escondida? Parece que com o Dr. Júlio...
De novo o Fidalgo inventava. De novo Gouveia repeliu a "mentira":
— Nem na Feitosa, nem em Oliveira, nem em Lisboa... De resto, é o que
lhe digo, Gonçalo Mendes. Mulher de mármore!
Depois, saudando, em submissa admiração:
— Mas, como mármore... Vocês, meninos, não imaginam a beleza daquela
mulher decotada!
Gonçalo pasmou:
— E onde a viu você decotada?
— Onde a vi decotada? Em Lisboa, num baile do Paço... Até foi
justamente o Lucena que me arranjou o convite para o Paço. Lá me espanejei,
de calção... Uma sensaboria. E mesmo uma vergonha, toda aquela turba
acavalada por cima dos bufetes, aos berros, a agarrar furiosamente pedaços de
peru...
— Mas então, a D. Ana?
— Pois a D. Ana, uma beleza! Vocês não imaginam!... Santo nome de
Deus! Que ombros! que braços! que peito! E a brancura, a perfeição... De
endoidecer! Ao princípio, como havia muita gente, e ela estava para um canto,
acanhadota, não fez sensação. Mas depois lá a descobriram. E eram correrias,
magotes embasbacados... E "quem será?" E "que encanto!" Todo o mundo
perdidinho, até o Rei!
E um momento os três homens emudeceram na impressão do formoso corpo
evocado, que entre eles surgia, quase despido, inundando com o esplendor da
sua brancura a modesta sala mal iluminada. Por fim Videirinha acercou a
cadeira, em confidência, para fornecer também a sua informação:
— Pois, por mim, o que posso afirmar é que a Sra. D. Ana é uma mulher
muito asseada, muito lavada...
E como os outros se espantavam, rindo, de uma certeza tão íntima —
Videirinha contou que todas as semanas aparecia um jovem da Feitosa, na
botica do Pires, a comprar três e quatro garrafas de água-de-colónia
portuguesa, da receita do Pires.
— Até o Pires dizia sempre, a esfregar as mãos, que na Feitosa regavam as
terras com água-de-colónia. Depois é que soubemos pela criada... A Sra. D.
Ana toma todos os dias um grande banho, que não é só para lavar, mas para
prazer. Fica uma hora dentro da tina. Até lê o jornal dentro da tina. E em cada
banho, zás, meia garrafa de água-de-colónia... Já é luxo!
Então Gonçalo sentiu como um aborrecimento de todas aquelas revelações
do Administrador, do ajudante da Farmácia, sobre os decotes e as lavagens da
linda mulher que o esperava entre os túmulos dos Ramires seculares. Sacudiu
o jornal com que se abanava, exclamou:
— Bem! E passando a cantiga mais séria... Oh Gouveia, você que tem
sabido do Dr. Júlio? O homem trabalha na eleição?
A criada entrara com a bandeja do chá. E em torno da mesa, trincando as
torradas famosas, conversaram sobre a Eleição, sobre os informes dos
Regedores, sobre a reserva do Rio-Manso — e sobre o Dr. Júlio, que
Videirinha encontrara nos Bravais pedinchando votos pelas portas,
acompanhado por um jovem com a máquina fotográfica às costas.
Depois do chá, Gonçalo, cansado e já provido de "revelações", acendeu o
charuto para recolher à Torre.
— Você não acompanha, Videirinha?
— Hoje, Sr. Dr., não posso. Parto de madrugada para Oliveira, na
diligência.
— Que diabo vai você fazer a Oliveira?
— Por causa de uns sapatos de praia e de um fato de banho lá da minha
patroa, da D. Josefa Pires... Tenho de os trocar nos Emílios, levar as medidas.
Gonçalo ergueu os braços, desolado:
— Ora vejam este país! Um grande artista, como o Videirinha, a carregar
para Oliveira com os sapatos de banho da patroa Pires!... Oh Gouveia!
quando eu for Deputado precisamos arranjar um bom lugar para o Videirinha,
no Governo Civil. Um lugar fácil e com vagares, para ele não esquecer o
violão!
Videirinha corou de gosto e de esperança — correndo a despendurar do
cabide o chapéu do Fidalgo.
Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonçalo esvoaçaram logo, com
irresistida tentação, para D. Ana — para os seus decotes, para os lânguidos
banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que diabo!... Essa D. Ana
assim tão honesta, tão perfumada, tão esplendidamente bela, só apresentava,
mesmo como esposa, um feio senão — o papá carniceiro. E a voz também —
a voz que tanto o arrepiara na Bica-Santa... Mas o Mendonça assegurava que
aquele timbre rolante e gordo, na intimidade, se abatia, liso e quase doce...
Depois, meses de convivência habituam às vozes mais desagradáveis — e ele
mesmo, agora, nem percebia quanto o Manuel Duarte era fanhoso! Não!
mancha teimosa, realmente, só o pai carniceiro. Mas nesta Humanidade
nascida toda de um só homem, quem, entre os seus milhares de avós até
Adão, não tem algum avô carniceiro? Ele, bom Fidalgo, de uma casa de Reis
donde Dinastias irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia
com o Ramires carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira
geração, num talho ainda afreguesado, ou que apenas se esfumasse, através de
espessos séculos, entre os trigésimos avós — lá estava, com a faca, e o cepo, e
as postas de carne, e as nódoas de sangue no braço suado!...
E este pensamento não o abandonou até a Torre — nem ainda depois, à
janela do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos galos. Já mesmo
se deitara, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os seus passos
impacientes se embrenhavam para trás. para o escuro passado da sua Casa,
por entre a emaranhada História, procurando o carniceiro... Era já para além
dos confins do Império Visigodo, onde reinava com um globo de ouro na
mão o seu barbudo avô Recesvinto. Esfalfado, arquejando, transpusera as
cidades ocultas, povoadas de homens cultos — penetrara nas florestas que o
mastodonte ainda sulcava. Entre a húmida espessura já cruzara vagos Ramires,
que carregavam, grunhindo, reses mortas, molhos de lenha. Outros surgiam
de tocas fumarentas, arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao
neto que passava. Depois por tristes ermos, sob tristes silêncios, chegara a
uma lagoa enevoada. E à beira da água limosa, entre os canaviais, um homem
monstruoso, peludo como uma fera, agachado no lodo, partia a rijos golpes,
com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires. No
céu cinzento voava o Açor negro. E logo, dentre a neblina da lagoa, ele
acenava para Santa Maria de Craquede, para a formosa e perfumada D. Ana,
bradando por cima dos Impérios e dos Tempos: — "Achei o meu avô
carniceiro!"
No Domingo, Gonçalo acordou com uma "esperta ideia!" Não correria a
Santa Maria de Craquede com uma pontualidade sôfrega, às cinco horas (às
cinco horas marcadas no Post-Scriptum da prima Maria) — mostrando o seu
alvoroço em encontrar a tão bela e tão rica D. Ana Lucena! Mas às seis horas,
quando findasse a romaria das senhoras aos túmulos, apareceria ele
indolentemente, como se, recolhendo de um passeio pelas frescas cercanias, se
recordasse, parasse nas ruínas para conversar com a prima Maria.
Logo às quatro horas porém se começou a vestir com tantos esmeros, que o
Bento, cansado das gravatas que o Sr. Dr. experimentava e arremessava
amarfanhadas para o divã, não se conteve:
— Ponha a de sedinha branca, Sr. Dr.! Ponha a branca, que lhe fica
melhor! E refresca mais, com este calor.
Na escolha de um ramo para o casaco ainda requintou, juntando as cores
heráldicas dos Ramires, um cravo amarelo com um cravo branco. Ao portão,
apenas montara na égua, temeu que as senhoras (não o encontrando no
Claustro) encurtassem a visita, estugou o trote pelo atalho da Portela. Depois
adiante, ao desembocar na antiga estrada real, soltou num galope impaciente
que o branqueou de poeira.
Só retomou um passo indiferente, ao acercar da linha do Caminho de Ferro,
onde um carro de lenha e dois homens esperavam diante da cancela, que se
fechara para a lenta passagem de um comboio carregado de pipas. Um desses
homens, de alforje aos ombros, era o Mendigo — o vistoso Mendigo que
passeava por aquelas aldeias a rendosa majestade das suas barbaças de Deus
fluvial. Erguendo gravemente o chapéu de vastas abas, desejou ao Fidalgo a
companhia do nosso Senhor.
— Então hoje a ganhar a rica vida por Craquede?...
— Cá me arrasto às vezes para a passagem do comboio de Oliveira, meu
Fidalgo. Os passageiros gostam de me ver de pé no talude, correm sempre às
janelas...
Gonçalo, rindo, recordou que o encontro daquele ancião precedia sempre um
encontro seu com a bela D. Ana. — "Quem sabe? pensou. É talvez o
Destino! Os antigos pintavam assim o Destino, com longas barbas e longas
guedelhas, e o alforje às costas contendo as sortes humanas..." — E com
efeito ao cabo do pinheiral silencioso, que estiradas réstias de sol docemente
douravam — avistou a caleche da Feitosa, parada sob uma carvalha, com o
cocheiro fardado de negro dormitando na almofada. A estrada real de Oliveira
costeia aí o antigo adro do mosteiro de Craquede, queimado pelo fogo do céu,
naquela irada tempestade que chamam de S. Sebastião, e que aterrou Portugal
em 1616. Uma erva agora alfombra o chão, crescida e verde, entre os
poderosos troncos dos castanheiros velhíssimos. A Igrejinha nova alveja, bem
caiada, ao fundo da ramaria; e, ligada a ela por um muro esbrechado que densa
hera veste, tomando todo o lado nascente do Terreiro — sobe, enche ainda
magnificamente o céu lustroso a fachada da Igreja do vetusto Mosteiro,
suavemente amarelecida e brunida pelos tempos, com o seu imenso portal
sem portas, a rosácea desmantelada, e esvaziados os nichos de enterramento
onde outrora se estiraçavam as imagens dos fundadores, Fróilas Ramires e a
sua mulher Estevaninha, Condessa de Orgaz, por alcunha a Queixa-perra.
Duas casas térreas povoam o lado fronteiro do adro — uma limpa, com as
ombreiras das janelas pintadas de azul estridente, a outra deserta, quase sem
telhado, afogada na verdura de um quinteiro bravo, onde girassóis
resplandecem. Um pensativo silêncio envolvia o arvoredo, as altivas ruínas. E
nem o quebrava, antes serenamente o embalava, o sussurro de uma fonte, que
a estiagem adelgaçara em fio lento, e mal enchia o seu tanque de pedra,
toldado pela pálida e rala folhagem de um chorão muito alto.
O trintanário da Feitosa, ao enxergar o Fidalgo, saltou risonhamente da borda
do tanque onde picava tabaco, para segurar a égua. E Gonçalo, que desde
pequeno não penetrava nas ruínas de Craquede, seguia por um carreirinho
cortado na relva, atentamente, encantado com aquela romântica solidão de
lenda e verso, quando, sob o arco do portal, apareceram as duas senhoras
voltando do velho claustro. D. Maria Mendonça, com a sua sacudida
vivacidade, agitou logo o guarda-sol de xadrezinho, semelhante ao vestido,
cujas mangas, tufando desmedidamente nos ombros, lhe vincavam mais a
elegância esgalgada. E ao lado, na claridade, D. Ana era uma silenciosa e
esbelta forma negra, de lã negra e de escumilha negra, onde apenas
transparecia, suavizada sob o véu negro, a brancura esplêndida da sua face
sensual e séria.
Gonçalo correra, erguendo o chapéu de palha, balbuciando o seu "prazer por
aquele encontro... ''Mas já D. Maria o repreendia, sem lhe consentir a fábula do
"encontro":
— O primo não é nada amável, nada amável...
— Oh, prima''....
— Pois sabia que vínhamos, pela minha carta! E nem está à hora aprazada,
para fazer as honras, como devia...
Ele, rindo, com o seu desembaraço airoso, negou esse dever! Aquela casa não
era sua, mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia "fazer as honras" —
acolher tão doces romeiras com algum milagre amável...
— E então gostaram? V. Exa., Sra. D. Ana, gostou das ruínas?... Muito
interessantes, não é verdade?
Através do véu, com uma lentidão que a espessa renda negra tornava mais
grave, ela murmurou:
— Eu já conhecia... Vim cá uma tarde, com o pobre Sanches que Deus
haja.
— Ah...
Àquela evocação do pobre morto, Gonçalo sumira todo o sorriso, com polida
tristeza. Mas D. Maria Mendonça acudiu, atirando um dos seus magros gestos,
como para arredar a sombra importuna:
— Ai! não imagina o que gostei, primo! É de apetite todo o claustro...
Logo aquela espada enferrujada, chumbada por cima do túmulo.. Não há nada
que impressione como estas coisas antigas... Oh, primo, e pensar que estão ali
antepassados nossos!
O sorriso de Gonçalo de novo lampejou, alegre e acolhedor, como sempre
que D. Maria se empurrava com desesperada gula para dentro da Casa de
Ramires. E gracejou, afavelmente. Oh, antepassados... Simples punhados de
cinza vã! — Pois não era verdade, Sra. D. Ana?... Realmente! quem conceberia
que a prima Maria, tão viva, tão sociável, tão engraçada, descendesse de uma
poeira tristonha guardada dentro de uma pia de pedra? Não! não se podia ligar
tanto ser a tanto não ser... — E como D. Ana sorria, numa vaga
concordância, encostando as duas mãos fortes e muito apertadas na peliça
negra ao alto cabo de aljôfar da sombrinha, ele atalhou com interesse:
— V. Exa. está talvez cansada, Sra. D. Ana?
— Não, não estou cansada... Ainda vamos mesmo entrar na capela, um
bocadinho... Eu nunca me canso.
E pareceu a Gonçalo que a voz da formosa criatura não rolava do papo, tão
grossa e gorda — mas que se afinara, adoçada e velada pelo luto de escumilha
e lã, como esses grossos e rolantes rumores que a noite e o arvoredo
adelgaçam. Mas D. Maria confessou o seu imenso cansaço! Nada a esfalfava
como visitar curiosidades... E além disso a emoção, a ideia de heróis tão
antigos!
— Se nos sentássemos naquele banco, hem? É muito cedo para
recolhermos, não é verdade, Anica? E está tão agradável neste sossego, nesta
frescura...
Era um banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em
torno a relva crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros malmequeres
e botões-de-ouro que o sol de agosto poupara. Um aromazinho fino, de
algum jasmineiro emaranhado na hera, errava, adocicava a serena tarde. E na
rama de um álamo, em frente do portão da Capela duas vezes um melro
cantara. Gonçalo sacudiu todo o banco cuidadosamente com o lenço. E
sentado na ponta, junto de D. Maria, louvou também a frescura, o
recolhimento daquele cantinho de Craquede... E ele que nunca se aproveitara
de refúgio tão santo, e quase seu, nem mesmo para um almoço bucólico! Pois
agora certamente voltaria a fumar um charuto, revolver ideias de paz sob a
paz das carvalheiras, na vizinhança dos vovós mortos... Depois, com uma
curiosidade:
— É verdade, prima! E o subterrâneo?
Oh! não existia subterrâneo!... Sim, existia — mas entulhado, sem sepulturas,
sem antiguidades. E o sacristão logo lhes afiançara que "não valia a pena
sujarem as saias..."
— É verdade, oh Anica, deste alguma coisa ao sacristão?
— Oh filha, dei cinco tostões... Não sei se foi bastante.
Gonçalo assegurou que se pagara sumptuosamente ao sacristão. E, se previsse
tamanha generosidade da Sra. D. Ana, agarrava ele um molho de chaves, até
enfiava uma opa preta, para mostrar e para embolsar...
— Pois é o que devia ter feito! — exclamou D. Maria, com um corisco nos
espertos olhos. — E decerto se lhe davam os cinco tostões! Porque sempre
seria mais instrutivo que o homenzinho, que mascava, não sabia nada!...
Semelhante morcão! E eu com tanta curiosidade por aquele túmulo aberto,
com a tampa rachada... O mono só soube resmungar que "eram histórias
muito antigas lá do Fidalgo da Torre..."
Gonçalo ria:
— Pois essa história por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo Fado
dos Ramires, o fado do Videirinha.
D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos céus, revoltada com
aquela indiferença pelas tradições heroicas da Casa. Conhecer somente os seus
Anais desde que eles andavam repicados num fado!... O primo Gonçalo não
se envergonhava?
— Mas porquê, prima, por quê? O fado do Videirinha está fundado em
documentos autênticos que o Padre Soeiro estudou. Todo o recheio histórico
foi fornecido pelo Padre Soeiro. O Videirinha só pôs as rimas. Além disso,
antigamente, prima, a História era perpetuada em verso e cantada ao som da
lira... Enfim quer saber esse caso do túmulo aberto, segundo as quadras do
Videirinha? Eu sempre conto! Mas só para a Sra. D. Ana, que não sofre desses
escrúpulos...
— Não! — acudiu D. Maria. — Se o Videirinha tem essa autoridade
histórica então conte também para mim, que sou da Casa!
Gonçalo, por gracejo, tossiu, passou o lenço pelos beiços:
— Pois eis o caso! Nesse túmulo habitava, naturalmente morto, um dos
meus avós... Não me lembro o nome, Gutierres ou Lopo. Creio que
Gutierres... Enfim, lá jazia quando foi da batalha das Navas de Tolosa... A
prima Maria conhece a batalha das Navas, os cinco Reis mouros, etc. Como o
tal Gutierres soube da batalha não contam os versos do Videirinha. Mas,
apenas lá dentro lhe cheirou a carnificina, arromba o túmulo, sai por este pátio
como um desesperado, desenterra o seu cavalo que fora enterrado no adro
onde agora crescem estes carvalhos, monta nele todo armado, e Cavaleiro
morto sobre cavalo morto, larga a galope através da Espanha, chega às Navas,
arranca a espada, e destroça os mouros... Que lhe parece, Sra. D. Ana?
Dedicara a história a D. Ana, procurando nos seus belos olhos a atenção e o
interesse. E ela, que a furto, através do decoro melancólico a que se esforçava,
adoçara o sorriso, atraída e levada, murmurou apenas: — "Tem graça!" — D.
Maria, porém, quase esvoaçou sobre o banco de pedra, num êxtase: —
"Lindo! Lindo! Que poesia!... Oh! uma lenda de todo o apetite!" — E, para
que Gonçalo desenrolasse ainda a graça do seu dizer, outras maravilhas da sua
Crónica:
— Conte, primo, conte... E voltou para Craquede esse tio Ramires?
— Quem, prima, o Gutierres?... Ou fosse ele tolo! Apenas se apanhou livre
da maçada da sepultura não apareceu mais em Santa Maria de Craquede. O
túmulo vazio, como está, e ele por Espanha numa pândega heroica!... Imagine!
um defunto que por milagre se safa do seu jazigo, daquela postura eterna, tão
apertada, tão esticada!...
Subitamente emudeceu, lembrando o Sanches Lucena, também esticado no
seu caixote de chumbo, sob o seu vistoso jazigo de Oliveira... — D. Ana
baixara a face, mais sumida no véu, esfuracando a erva com a ponta da
sombrinha. E a esperta D. Maria, para desfazer a sombra impertinente que de
novo os roçara, rompeu noutra curiosidade, que ainda se encadeava na
nobreza dos Ramires:
— É verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar. O primo ainda tem
muitos parentes em França... Talvez também não saiba?
Sim! Gonçalo, casualmente, conhecia essa história dos seus parentes de França
— apesar de que o Videirinha os não cantara no fado!
— Então conte! Mas que seja história alegre!
Oh, não era prodigiosamente divertida! Um avô Ramires, Garcia Ramires,
acompanhara nas suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o filho de El-Rei
D. João I... A prima Maria sabia — o Infante D. Pedro, o que correu as Sete
Partidas do mundo... Pois o Infante D. Pedro e os seus Fidalgos, de volta da
Palestina, pousaram um ano inteiro na Flandres, com o Duque de Borgonha.
Até se celebraram então festas maravilhosas, com um banquete que durou
sete dias, e que anda nos compêndios da História de França. Onde há danças
há amores. Ao avô Ramires sobravam imaginação e arrojo... Fora ele que
diante de Jerusalém, no Vale de Josafá, lembrara que se erguesse um sinal para
que o Infante e os seus companheiros de romagem se reconhecessem no
grande Dia de Juízo. Depois, naturalmente, belo mocetão de barba negra e
cerrada à Portuguesa... Enfim casara com uma irmã do Duque de Cleves, uma
tremenda Senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais tarde,
através dessas ligações, uma avó Ramires, já viúva, casou também em França
com o Conde de Tancarville. Esses Tancarvilles, Grão-Mestres de França,
possuíam o mais formidável castelo da Europa, e...
D. Maria bateu as palmas, rindo:
— Bravo! lindamente! Sim, senhor!... Então oprimo que se gaba de não
saber nada de fidalguias... Olhe como conhece pelo miúdo a história desses
grandes casamentos! Hem, Anica?... É uma Crónica viva!
Gonçalo vergou os ombros, confessou que se ocupara de toda essa heráldica
história por um motivo bem rasteiro — por miséria!...
— Por miséria?
— Sim, prima Maria, por penúria de moeda, de cobres.
— Conte! conte! Olhe, a Anica está ansiosa...
— Quer saber, Sra. D. Ana?... Pois foi em Coimbra, no meu segundo ano
de Coimbra. Os companheiros e eu chegamos a não juntar entre todos um
vintém. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro de carrascão e as
três azeitonas do dever... Um deles então, rapaz muito engraçado, de Melgaço,
surdiu com a ideia estupenda de que eu escrevesse aos meus parentes de
França, a esses Cleves, a esses Tancarvilles, senhores decerto imensamente
ricos, e solicitasse, com desembaraço, um emprestimozinho de trezentos
francos.
D. Ana não conteve um riso, sinceramente divertido:
— Ai! tem muita graça!
— Mas não teve resultado, minha senhora... Já não existem Cleves, nem
Tancarvilles! Todas essas grandes famílias feudais findaram, se fundiram
noutras casas, até na Casa de França. E o meu Padre Soeiro, apesar de todo o
seu saber genealógico, nunca conseguiu descobrir quem as representava com
bastante afinidade para me emprestar, a mim parente pobre de Portugal, esses
trezentos francos.
Aquela penúria de Gonçalo, de tamanho Fidalgo, quase enternecera D. Ana:
— Ora estarem assim sem vintém! Quem soubesse... Mas tem graça! Essas
histórias de Coimbra têm sempre muita graça. O D. João da Pedrosa, em
Lisboa, também contava muitas...
D. Maria Mendonça, porém, através dessa facécia de estudantes, descortinara
outra prova inesperada da grandeza dos Ramires. E imediatamente a estendeu
diante de D. Ana com habilidade:
— Ora vejam!... Todas essas grandes casas de França, tão ricas, tão
poderosas, acabaram, desapareceram. E cá no nosso Portugalzinho ainda dura
a Casa de Ramires!
Gonçalo acudiu:
— Acaba agora, prima!... Não olhe para mim assim espantada. Acaba
agora... Pois se eu não caso!
Então D. Maria recuou o magro peito — como se esse casamento do primo
dependesse de doces influências, que convinha se trocassem bem
chegadamente, sem Marias Mendonças de permeio no estreito banco com
grandes mangas bufantes tolhendo as correntes de eflúvio. E sorria, quase
languidamente:
— Ora não casa... Mas porquê, primo, por quê?
— Porque não tenho jeito, prima. O casamento é uma arte muito delicada
que necessita vocação, génio especial. As Fadas não me concederam esse
génio. E se me dedicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a
estragava.
D. Ana, como se outra ideia a ocupasse, puxara lentamente do cinto o relógio
preso por uma fita de cabelo. E D. Maria insistia, recusava os motivos do
Fidalgo:
— São tolices. O primo que gosta tanto de crianças...
— Gosto, gosto muito de crianças, até de criancinhas de mama. As
crianças são os únicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece.
Os outros anjos, os de asas, nunca aparecem. Os santos, depois de santos,
ficam na Bem-aventurança a preguiçar, ninguém mais os enxerga. E, para
concebermos uma ideia das coisas do céu, só temos realmente as criancinhas...
Sim, com efeito, prima, gosto muito de crianças. Mas também gosto de flores,
e não sou jardineiro, nem tenho jeito para a jardinagem.
E D. Maria com uma faísca no olhar prometedor:
— Sossegue, que ainda vem a aprender!
Depois, para D. Ana, que se esquecera na contemplação do relógio:
— Achas que vão sendo horas? Então, se queres, entramos na Capela...
Oh primo, veja se está aberta.
Gonçalo correu, empurrou a porta da Capela. Depois acompanhou as duas
senhoras pela pequenina nave soalhada, entre delgados pilares recobertos de
uma cal áspera e crua — que recamava também as paredes lisas, apenas
guarnecidas, na sua rígida nudez, por litografias de Santos dentro de caixilhos
de pinho. Diante do altar as senhoras ajoelharam — a prima Maria enterrando
a face nas mãos juntas como num vaso de Piedade. Gonçalo dobrou o joelho
de leve, engrolou uma Ave-Maria.
Depois voltou para o adro, acendeu um cigarro. E, pisando lentamente a
relva, considerava quanto a viuvez melhorara D. Ana. Sob o negrume do luto,
como numa penumbra que esfuma a grosseira deselegância das coisas, todos
os seus defeitos se fundiam — os defeitos que tanto o horripilavam na tarde
da Bica Santa, o rolar gordo da voz, o peito empinado, a ostentação de
burguesa ricaça pinguemente repimpada na vida. Até já nem dizia — "o
cavalheiro!" E ali, no adro melancólico de Craquede, certamente parecia
interessante e desejável.
As senhoras desciam os dois degraus da Capela. Um melro esvoaçou na
ramagem dos álamos. E Gonçalo encontrou o lampejo dos olhos sérios de D.
Ana, que o procuravam.
— Peço perdão de não lhes ter oferecido água benta à saída, mas a concha
está seca...
— Jesus, primo, que Igreja tão feia!
D. Ana arriscou, com timidez:
— Depois das ruínas e dos túmulos, até parece pouco religiosa.
A observação impressionou Gonçalo, como muito fina. E junto dela,
demorando os passos com agrado, sentia, esparzido pelos seus movimentos,
pelo roçar do vestido, um aroma também fino, que não era o da horrenda
água-de-colônia da botica do Pires. Em silêncio, sob a ramagem das carvalhas,
caminharam para a caleche, onde o cocheiro se aprumara, bem estilado,
tirando o chapéu. Gonçalo notou que ele rapara o bigode. E a parelha reluzia,
atrelada com esmero.
— E então, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sítios?
— Sim, primo, mais uns quinze dias... A Anica é tão amável, quis que eu
trouxesse os pequenos. O que eles se têm divertido na quinta, não imagina!
D. Ana murmurou, sempre séria:
— São muito engraçados, fazem muita companhia... Eu também gosto
muito de crianças.
— Ai, a Anica adora crianças! — acudiu D. Maria com fervor. — O que
ela atura os pequenos! Até joga com eles o mafarrico.
Perto da caleche, Gonçalo pensou que outra volta pelo adro, mais lenta, com a
D. Ana e o seu fino aroma, seria doce, naquele sossego da tarde que findava,
tingida de tão lindas cores de rosa sobre os pinheirais escurecidos. Mas já o
trintanário se acercava segurando a sua égua. E D. Maria, depois de admirar e
acariciar a égua, chamou o primo discretamente — para saber a distância da
Feitosa a Treixedo, a outra quinta histórica dos Ramires.
— A Treixedo, prima?... Cinco léguas fartas, com maus caminhos.
E imediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro:
— Mas na estrada ultimamente andaram obras. E é muito bonito sitio,
num alto, com um resto de muralhas... Treixedo era um castelo enorme... Na
quinta há uma lagoa entre arvoredo antigo... Oh! sítio delicioso para um
picnic!
D. Maria hesitou:
— É um pouco longe, veremos, talvez.
E como D. Ana esperava em silêncio — Gonçalo abriu a portinhola, tomou
ao trintanário as rédeas da égua. D. Maria Mendonça, no seu contentamento
por tão proveitosa tarde, sacudiu ardentemente a mão do primo jurando "que
ia apaixonada por Craquede!" D. Ana mal roçou os dedos de Gonçalo,
acanhada e corando.
Sozinho, com a rédea da égua enfiada no braço, Gonçalo sorria. Na verdade,
nessa tarde, D. Ana não lhe desagradara. Outros modos, outra singeleza grave,
outra doçura na sua possante beleza de Vênus rural...
E aquela observação sobre a Capela, "pouco religiosa" depois das ruínas
seculares do claustro, era uma observação fina. Quem sabe? Talvez sob carne
tão sensual se escondesse uma natureza delicada. Talvez a influência doutro
homem, que não o estupidíssimo Sanches, desenvolvesse na filha esplêndida
do carniceiro qualidades de muito encanto... Oh, evidentemente, a observação
sobre os túmulos e a sua religiosidade emanando da Lenda e da História — era fina.
E então também o tomou a curiosidade de visitar esse claustro onde não
entrara desde pequeno — quando ainda a Torre conservava as suas
carruagens montadas e a romântica Miss Rhodes escolhia sempre o passeio de
Craquede para as tardes pensativas de outono. Puxou a égua, transpôs o
portal, atravessou o espaço descoberto que fora a nave — atulhado de caliça,
de cacos, de pedras despegadas da abóbada e afogadas nas ervas bravas. E
pela brecha de um muro a que ainda se amparava um pedaço de altar —
penetrou na silenciosa crasta Afonsina. Só dela restam duas arcadas em
ângulo, atarracadas sobre rudes pilares, lajeadas de poderosas lajes puídas que
nessa manhã o sacristão cuidadosamente varrera. E contra o muro, onde rijas
nervuras desenham outros arcos, avultam os sete imensos túmulos dos
antiquíssimos Ramires, denegridos, lisos, sem um lavor, como toscas arcas de
granito, alguns pesadamente encravados no lajedo, outros pousando sobre
bolas que os séculos lascaram. Gonçalo seguia um carreiro de tijolo, rente aos
arcos, recordando quando ele outrora e Gracinha pulavam ruidosamente por
sobre essas campas, enquanto no pátio do claustro, entre as pilastras
tombadas e a verdura das ruínas, a boa Miss Rhodes, agachada, procurava
florinhas silvestres. Na abóbada, sobre o mais vasto túmulo, lá negrejava
chumbada a espada, a famosa espada, com a sua corrente de ferro pendendo
do punho, a folha roída pela ferrugem das longas idades. Sobre outro lá ardia
a lâmpada, a estranha lâmpada mourisca, que não se apagara desde a tarde
remota em que algum monge, com uma tocha de saimento, silenciosamente a
acendera... Quando se acendera ela, a eterna lâmpada? Que Ramires jazeriam
nesses cofres de granito, a que o tempo raspara as inscrições e as datas, para
que nelas toda a História se sumisse, e mais escuramente se volvessem em leve
pó sem nome aqueles homens de orgulho e de força?... Depois na ponta do
claustro era o túmulo aberto, e ao lado, derrubada em dois pedaços, a tampa
que o esqueleto de Lopo Ramires arrombara para correr às Navas de Tolosa e
bater os cinco Reis mouros. Gonçalo espreitou para dentro, curiosamente. A
um canto da funda arca alvejava um montão de ossos, limpos e bem
arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa heroica, esses poucos
ossos, já despegados do seu esqueleto?... O crepúsculo cerrara, e com ele uma
melancólica sombra que se adensava sobre as abóbadas da crasta, cobria de
tristeza morta aquela jazida de mortos. Então Gonçalo sentiu a desolada
solidão que o envolvia, o separava da vida, ali desgarrado, e sem socorro entre
a poeira e a alma errante dos seus avós temerosos! E de repente estremeceu,
no arrepiado medo de que outra tampa estalasse com fragor e através da fenda
surgissem lívidos dedos sem carne! Repuxou desesperadamente a égua pelo
muro desmantelado, nas ruínas da nave saltou para o selim, e varou num trote
o portal, galgou o adro com ânsia — só sossegou ao avistar, ao fim do pinhal,
a cancela do Caminho de Ferro aberta, e uma velha que a passava tangendo o
seu burro carregado de erva.