Capítulo X

Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de
que sempre, através de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não
cessara de padecer humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito
simples, tão seguros para qualquer homem como o vôo para qualquer ave —
só para ele constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! A entrada
da vida escolhe com entusiasmo um confidente, um irmão, que traz para a
quieta intimidade da Torre — e logo esse homem se apodera ligeiramente do
coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo
tão corrente de penetrar na Vida Política — e logo o Acaso o força a que se
renda e se acolha à influência desse mesmo homem, agora Autoridade
poderosa, por ele durante todos esses anos de despeito tão detestada e
chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua convivência, a
porta dos Cunhais, confiado na seriedade, no rígido orgulho da irmã — e logo
a irmã se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde em que
se encontra com ele na sombra favorável de um caramanchão! Agora pensa
em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande beleza uma
grande fortuna — e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e
segreda: — "A mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de
amantes!" Decerto essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas
decidira acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua
sorte insegura — e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a
humilhação costumada. Realmente o Destino malhava sobre ele com rancor
desmedido!
— E por quê? — murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o
casaco. — Em vida tão curta, tanta deceção... Por quê? Pobre de mim!
Caiu no vasto leito como numa sepultura — enterrou a face no travesseiro
com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão
contrariada, tão sem socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha,
ainda nessa noite proclamado ao violão:
Velha Casa de Ramires
Honra e flor de Portugal!
Como a flor murchara! Que mesquinha honra! E que contraste o do
derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa Ireneia, com esses
grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha — todos eles, se História e
Lenda não mentiam, de vidas tão triunfais e sonoras! Não! nem sequer deles
herdara a qualidade por todos herdada através dos tempos — a valentia fácil.
O seu pai ainda fora o bom Ramires destemido — que na falada desordem da
romaria da Riosa avançava com um guarda-sol contra três clavinas
engatilhadas. Mas ele... Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia
livremente gemer — ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa
irremediável fraqueza da carne que, irremediavelmente, diante de um perigo,
uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir... A fugir de um Casco.
A fugir de um malandro de suíças louras que, numa estrada e depois numa
venda, o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho.
Ah vergonhosa carne, tão espantadiça!
E a Alma... Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também,
gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o
abandonava a qualquer influência, logo por ela levado como folha seca por
qualquer sopro. Porque a prima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe
aconselha por trás do leque que se interesse pela D. Ana — logo ele,
fumegando de esperança, ergue sobre o dinheiro e a beleza de D. Ana uma
presunçosa torre de ventura e luxo. E a Eleição? essa desgraçada Eleição?
Quem o empurrara para a Eleição, e para a reconciliação indecente com o
Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? O Gouveia, só com leves
argúcias, murmuradas por cima do cache-nez desde a loja do Ramos até a
esquina do Correio! Mas quê! mesmo dentro da sua Torre era governado pelo
Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e
gravatas! — Homem de tal natureza, por mais bem dotado na Inteligência, é
massa inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias e
contrárias. O João Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte
poderia fazer dele um beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar
ao pescoço, em vez de uma gravata de seda, uma coleira de couro! Que
miséria! E todavia o Homem só vale pela Vontade — só no exercício da
Vontade reside o gozo da Vida. Porque se a Vontade bem exercida encontra
em torno submissão — então é a delícia do domínio sereno; se encontra em
torno resistência — então é a delícia maior da luta interessante. Só não sai
gozo forte e viril da inércia que se deixa arrastar mudamente, num silêncio e
macieza de cera... Mas ele, ele, descendendo de tantos varões famosos pelo
Querer — não conservaria, escondida algures no seu Ser, dormente e quente
como uma brasa sob cinza, uma parcela dessa energia hereditária?... Talvez!
nunca porém nesse peco e encafuado viver de Santa Ireneia a fagulha
despertaria, ressaltaria em chama intensa e útil. Não! pobre dele! Mesmo nos
movimentos da Alma onde todo o homem realiza a liberdade pura — ele
sofreria sempre a opressão da Sorte inimiga!
Com outro suspiro mais se enterrou, se escondeu sob a roupa. Não
adormecia, a noite findava — já o relógio de charão, no corredor, batera
cavamente as quatro horas. E então, através das pálpebras cerradas, no
confuso cansaço de tantas tristezas revolvidas, Gonçalo percebeu, através da
treva do quarto, destacando palidamente da treva, faces lentas que passavam...
Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestrais, com cicatrizes de
ferozes ferros, umas ainda flamejando como no fragor de uma batalha, outras
sorrindo majestosamente como na pompa de uma gala — todas dilatadas pelo
uso soberbo de mandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda
do lençol, reconhecia nessas faces as verídicas feições de velhos Ramires, ou já
assim contempladas em denegridos retratos, ou por ele assim concebidas,
como concebera as de Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor
dos seus feitos.
Vagarosas, mais vivas, elas cresciam dentre a sombra que latejava espessa e
como povoada. E agora os corpos emergiam também, robustíssimos corpos
cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arneses de aço
lampejante, embuçados e fuscos mantos de revoltas pregas, cingidos por
faustosos gibões de brocado onde cintilavam as pedrarias de colares e cintos
— e armados todos, com as armas todas da História, desde a dava goda de
raiz de roble eriçada de puas até o espadim de sarau enlaçarotado de seda e
ouro.
Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade
maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós
históricos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa
de Santa Ireneia nove vezes secular — e formavam em torno do seu leito, do
leito em que ele nascera, como a Assembleia majestosa da sua raça ressurgida.
E até mesmo reconhecia alguns dos mais esforçados, que agora, com o
repassar constante do Poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo
fielmente o seu "fado", lhe andavam sempre na imaginação...
Aquele além, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o peitoral, era
certamente Gutierres Ramires, o d''Ultramar como quando corria da sua tenda
para a escalada de Jerusalém. No outro, tão velho e formoso, que estendia o
braço, ele adivinhava Egas Ramires, negando acolhida no seu puro solar a ElRei D. Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava
sacudindo o pendão real de Castela, quem, senão Diogo Ramires, o Trovador
ainda na alegria da radiosa manhã de Aljubarrota? Diante da incerta claridade
do espelho tremiam as fofas plumas escarlates do monão de Paio Ramires,
que se armava para salvar S. Luís Rei de França. Levemente balançado, como
pelas ondas humildes de um mar vencido, Rui Ramires sorria às naus inglesas
que perante aproa da sua Capitânia submissamente amainavam por Portugal.
E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pajem do Guião de El-Rei nos
campos fatais de Alcácer, sem elmo, rota a couraça, inclinava para ele a sua
face de donzel, com a doçura grave de um avô enternecido...
Então, por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu
que a sua Ascendência toda o amava — e da escuridão das tumbas dispersas
acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido,
arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos seus avós
ressurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua vida, sem
descanso, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que subitamente um
ferro faiscou na treva, com um abafado brado: — "Neto, doce neto, toma a
minha lança nunca partida!" E logo o punho de uma clara espada lhe roçou o
peito, com outra grave voz que o animava: — "Neto, doce neto, toma a
espada pura que lidou em Ourique. E depois uma acha de coriscante gume
bateu no travesseiro, ofertada com altiva certeza: — "Que não derribará essa
acha, que derribou as portas de Arzila.
Como sombras levadas num vento transcendente todos os avós formidáveis
perpassavam — e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e
provadas armas, todas, através de toda a História, enobrecidas nas arrancadas
contra a Moirama, nos trabalhados cercos de Castelos e Vilas, nas batalhas
formosas com o Castelhano soberbo... Era, em torno do leito, um heroico
reluzir e retinir de ferros. E todos soberbamente gritavam: — "Oh neto, toma
as nossas armas e vence a Sorte inimiga! Mas Gonçalo, espalhando os olhos
tristes pelas sombras ondeantes, volveu: — "Oh avós, de que me servem as
vossas armas — se me falta a vossa alma?..."
Acordou muito cedo, com a enredada lembrança de um pesadelo em que
falara a mortos — e, sem a preguiça que sempre o amolecia nos colchões,
enfiou um roupão, escancarou as vidraças. Que formosa manhã! uma manhã
dos fins de setembro, macia, lustrosa e fina; nem uma nuvem lhe
desmanchava o vasto, o imaculado azul; e o sol já pousava nos arvoredos, nos
outeiros distantes, com uma doçura outonal. Mas, apesar de lhe respirar
alentadamente o brilho e a pureza, Gonçalo permaneceu toldado de sombras,
das sombras da véspera, retardadas no seu espírito oprimido, como névoas em
vale muito fundo. E foi ainda com um suspiro, arrastando tristonhamente as
chinelas, que puxou o cordão da campainha. O Bento não tardou com a
infusa da água quente para a barba. E acostumado ao alegre acordar do
Fidalgo tanto estranhou aquele silencioso e enrugado mover pelo quarto, que
desejou saber se o Sr. Doutor passara mal a noite...
— Pessimamente!
Bento declarou logo, com vivacidade e reprovação — que certamente fizera
mal ao Sr. Doutor tanto cognac de moscatel. Cognac muito adocicado, muito
excitante... Bom para o Sr. D. António, homenzarrão pesado. Mas o Sr.
Doutor, assim nervoso, nunca devia tocar naquele cognac. Ou então, meio
cálice escasso.
Gonçalo ergueu a cabeça, na surpresa de encontrar logo ao começo do seu dia
e tão flagrante aquele domínio que todos sobre ele se arrogavam — e de que
tanto se lastimava, através de toda a amarga noite! Eis ai o Bento mandando
— marcando a sua ração de cognac! E justamente o Bento insistia:
— O Sr. Doutor bebeu mais de três cálices. Assim não convém... Eu
também tive culpa em não tirar a garrafa...
Então, perante despotismo tão declarado, o Fidalgo da Torre teve uma brusca
revolta:
— Homem, não dês tantas leis. Bebo o cognac que preciso e que quero!
Ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, experimentava a água na infusa:
— Esta água está morna! — exclamou logo. — Já me tenho fartado de
dizer! Para a barba, preciso sempre água a ferver.
O Bento, gravemente, mergulhou também o dedo na água:
— Pois esta água está quase a ferver... Nem para a barba se necessita água
mais quente.
Gonçalo encarou o Bento com furor. O quê! mais objeções, mais leis!
— Pois vá imediatamente buscar outra água! Quando eu peço água quente,
pretendo que venha em cachão. Irra! tanta sentença!... Eu não quero moral,
quero obediência!
O Bento considerou Gonçalo através de um espanto que lhe inchara a face.
Depois, lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando a
infusa. E já Gonçalo se arrependia da sua violência. Coitado, não era culpa do
Bento se a vida lhe andava a ele tão estragada e sacudida! Depois, em casa tão
antiga, não destoava a tradição dos antigos aios. E o Bento com perfeito rigor
lhes reproduzia a rabugice e a lealdade! Mas ascendência, e livre falar bem lhe
cabiam — bem os merecia por tão longa, tão provada dedicação...
O Bento, ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E
Gonçalo logo docemente, para o adoçar:
— Dia muito bonito, bem, Bento?
O velho rosnou, ainda amuado:
— Muito bonito.
Gonçalo ensaboava a face, rapidamente, na impaciência de reatar com o
Bento, de lhe restabelecer a supremacia amorável. E por fim mais doce, quase
humilde:
— Pois se achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavalo antes do
almoço. Que te parece? Talvez me faça bem aos nervos... Com efeito, aquele
cognac não me convém... Então, Bento, faz o favor, grita aí ao Joaquim que
me tenha a égua pronta imediatamente. Com certeza me acalma uma
galopada... E no banho agora a água bem esperta, bem quente. Também me
acalma a água quente. Por isso necessito sempre água bem quente, a ferver.
Mas tu, com essas tuas velhas ideias... Pois todos os médicos o declaram. Para
a saúde água quente, bem quente, a sessenta graus!
E depois do rápido banho, enquanto se vestia, abriu mais familiarmente ao
velho aio a intimidade das suas tristezas:
— Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente precisava para me calmar,
não era um passeio, era uma jornada... Trago a alma muito carregada, homem!
Depois estou farto desta eterna Vila-Clara, da eterna Oliveira. Muito
mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande, distração grande.
O Bento, já reconciliado, enternecido, lembrou que o Sr. Doutor brevemente,
em Lisboa, encontraria uma linda distração, nas Cortes.
— Eu sei lá se vou às Cortes, homem! Não sei nada, tudo falha... Qual
Lisboa!... O que eu necessito é uma viagem imensa, à Hungria, à Rússia, a
terras onde haja aventuras.
O Bento sorriu superiormente daquela imaginação. E apresentando ao Fidalgo
o jaquetão de velvetina cinzenta:
— Com efeito, na Rússia parece que não faltam aventuras. Anda tudo a
Chicote, diz o Século... Mas aventuras, Sr. Doutor, até a gente as encontra na
estrada... Olhe! o paizinho de V. Exa., que Deus haja, foi lá embaixo diante do
portão que teve a bulha com o Dr. Avelino da Riosa, e que lhe atirou a
chicotada, e que levou com o punhal no braço...
Gonçalo calçava as luvas de anta, mirando o espelho:
— Pobre papá, coitado, também teve pouca sorte... E por chicote. ó
Bento, dá cá àquele chicote de cavalo-marinho que tu ontem areaste. Parece
que é uma boa arma.
Ao sair o portão, o Fidalgo da Torre meteu a égua, sem destino, num passo
indolente, pela estrada costumada dos Bravais. Mas no Casal Novo, onde dois
pequenos jogavam a bola debaixo das carvalheiras, pensou em visitar o
Visconde de Rio-Manso. Certamente lhe consertaria os nervos a companhia
de tão sereno e generoso velho. E, se ele o convidasse a almoçar, gastaria os
seus cuidados visitando essa falada quinta da Varandinha e cortejando "o
botão de Rosa".
Gonçalo recordava apenas confusamente que o terraço da Varandinha
dominava uma estrada plantada de choupos, algures, entre o lugar da Cerda e
a espalhada aldeia de Canta-Pedra. E tomou o caminho velho que desce das
carvalheiras do Casal Novo, e penetra no vale, entre o cabeço de Avelã e as
ruínas do Mosteiro de Ribadais, no solo histórico onde Lopo de Baião
derrotara a mesnada de Lourenço Ramires... Ora enterrada entre valados, ora
entre toscos muros de pedra solta, a vereda seguia sem beleza, e cansativa;
mas as madressilvas nas sebes, por entre as amoras maduras, rescendiam; o
fresco silêncio recebia mais frescura e graça dos frémitos de asa que o
roçavam; e tanto era o radiante azul nos céus serenos que um pouco elo seu
rebrilho e serenidade se instilava na alma. Gonçalo, mais desanuviado, não se
apressava; na Igreja dos Bravais, quando ele passara ao Casal Novo, batiam
apenas as nove horas; e depois de costear um lameiro de erva magra parou a
acender pachorrentamente um charuto, rente da velha ponte de pedra que
galga o riacho das Donas. Quase seca pela estiagem, a água escura mal corria,
sob as folhas largas dos nenúfares, por entre os juncais que a atulhavam.
Adiante, à orla de um ervaçal, no abrigo de uma moita de álamos, reluziam as
pedras de um lavadouro. Na outra margem, dentro de um velho bote
encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam profundamente, com
dois molhos de alfazema esquecidos nos regaços. Gonçalo sorriu do idílio —
depois teve uma surpresa descobrindo, no cunhal da ponte, rudemente
entalhado, o seu Brasão de Armas, um Açor enorme, que alargava as garras
ferozes. Talvez aquelas terras outrora pertencessem à Casa — ou alguns do
seus avós benéficos construíra a ponte, sobre torrente então mais funda, para
segurança dos homens e dos gados. Quem sabe se o avô Tructesindo, em
memória piedosa de Lourenço Ramires, vencido e cativo nas margens daquela
ribeira!
O caminho, para além da ponte, alteava entre campos ceifados. As medas
lourejavam, pesadas e cheias, por aquele ano de fartura. Ao longe, dos
telhados baixos de um lugarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos no
radiante céu. E lentamente, como aqueles fumos distantes, Gonçalo sentia que
todas as suas melancolias lhe escapavam da alma, se perdiam também no azul
lustroso... Uma revoada de perdizes ergueu o vôo dentre o restolho. Gonçalo
galopou sobre elas, gritando, sacudindo o seu forte chicote de cavalo-marinho,
que zinia como uma fina lâmina.
Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois cavado
entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira — e ao fundo o sol
faiscava sobre a cal fresca de uma parede. Era uma casa térrea, com porta
baixa entre duas janelas envidraçadas, remendos novos no telhado e um
quinteiro que uma escura e intensa figueira assombreava. Numa esquina
pegava um muro baixo de pedra solta, continuado por uma sebe, onde adiante
uma velha cancela abria para a sombra de uma ramada. em frente, no vasto
terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma pilha de traves; passava uma
estrada, lisa e cuidada, que pareceu a Gonçalo a de Ramilde. Para além, até a
um distante pinheiral, desciam chás e lameiros.
Sentado num banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao muro,
um rapaz grosso, de barrete de lá verde, acariciava pensativamente o focinho
de um perdigueiro. Gonçalo parou:
— Tem a bondade... Sabe por acaso qual é o bom caminho para a quinta
do Sr. Visconde de Rio-Manso, a Varandinha?
O rapazote ergueu a face morena, de buço leve, remexendo vagamente no
carapuço.
— Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada até a pedreira, depois à
esquerda a seguir, sempre rente da várzea...
Mas nesse instante assomava à porta um latagão de suíças louras em mangas
de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonçalo, com um sobressalto,
reconheceu logo o caçador que o injuriara na estrada de Nacejas, o assobiara
na venda do Pintainho. O homem relanceou superiormente o Fidalgo.
Depois, com a mão encostada à ombreira, chasqueou o rapazote:
— Oh Manuel, que estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho
por aqui não é para asnos!
Gonçalo sentiu a palidez que o cobriu — e todo o sangue do coração, num
tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultraje, do mesmo
homem, sem provocação! Apertou os joelhos no selim para galopar. E a
tremer, num esforço que o engasgava:
— Você é muito atrevido! E já pela terceira vez! Eu não sou homem para
levantar desordens numa escada... Mas fique certo que o conheço, e que não
escapa sem lição.
Imediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou à estrada,
afrontando a égua, com as suíças erguidas, um riso de imenso desafio:
— Então cá estou! Venha agora a lição... E para diante é que você já não
passa, seu Ramires de merd...
Uma névoa turvou os olhos esgazeados do Fidalgo. E de repente, num
inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e
força, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou, atirou a fina égua num
galão terrível! E nem compreendeu! O cajado sarilhara! A égua empinava,
numa cabeçada furiosa! E Gonçalo entreviu a mão do homem, escura, imensa,
que empolgava a camba do freio.
Então, erguido nos estribos, por sobre a imensa mão, despediu uma
vergastada do chicote silvante de cavalo-marinho, colhendo o latagão na face,
de lado, num golpe tão vivo da aresta aguda que a orelha pendeu, despegada,
num borbotar de sangue. Com um berro o homem recuou, cambaleando.
Gonçalo galgou sobre ele, noutro arremesso, com outra fulgurante chicotada,
que o apanhou pela boca, lhe rasgou a boca, decerto lhe espedaçou dentes, o
atirou, urrando, para o chão. As patas da égua machucavam as grossas coxas
estendidas — e, debruçado, Gonçalo ainda vergastou, cortou
desesperadamente face, pescoço, até que o corpo jazeu mole e como morto,
com jorros de sangue escuro ensopando a camisa.
Um tiro atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim, avistou o
rapazote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas já hesitando
aterrado.
— Ah, cão!
Lançou a égua, com o chicote alto — o rapaz, espavorido, corria lentamente
através do terreiro, para saltar o valado, escapar para as várzeas ceifadas!
— Ah cão, ah cão! — berrava Gonçalo. Estonteado, o rapaz tropeçara
numa viga solta. Mas já se endireitava, largava, quando o Fidalgo o alcançou
com uma cutilada do chicote no pescoço, logo alagado de sangue. Estendendo
as mãos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a aresta de um pilar,
a cabeça mais sangue jorrou. Então Gonçalo, a arquejar, deteve a égua.
Ambos os homens jaziam imóveis! Santo Deus! Mortos? De ambos corria o
sangue sobre a terra seca. O Fidalgo da Torre sentia uma alegria brutal. Mas
um grito espantado soou do lado do quinteiro.
— Ai que mataram o meu rapaz!
Era um velho que corria da cancela, numa carreira agachada, rente com a sebe,
para a porta da casa. Tão certeiramente o Fidalgo arremessou a égua, para o
deter — que o velho esbarrou contra o peitoril que arfava coberto de suor e
de espuma. E perante o inquieto animal escarvando, e Gonçalo alçado nos
estribos, com a face chamejante, o chicote a descer — o velho, num terror,
desabou sobre os joelhos, gritou ansiadamente:
— Ai, não me faça mal, meu Fidalgo, por alma do seu pai Ramires.
Gonçalo ainda o manteve assim um momento, suplicante, a tremer, sob o
justiceiro faiscar dos seus alhos — e gozava soberbamente aquelas calosas
mãos que se erguiam para a sua misericórdia, invocavam o nome de Ramires,
de novo temido, repossuído do seu prestígio heroico. Depois, recuando a
égua:
— Esse malandro do rapazola desfechou a caçadeira!... Você também não
tem boa cara! Que ia você correndo para casa? Buscar outra espingarda?
O velho alargou desesperadamente os braços, oferecia o peito, em
testemunho da sua verdade:
— Oh meu Fidalgo, não tenho em casa nem um cajado!... Assim Deus me
ajude e me salve o rapaz!
Mas Gonçalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada de Ramilde,
bem poderia o velho correr ao casebre, agarrar outra caçadeira, desfechar
traiçoeiramente. E então com a presteza de espírito que a luta afiara concebeu
contra qualquer emboscada um ardil seguro E até num relance sorriu
recordando "traças de guerra", de D. Garcia Viegas, o Sabedor.
— Marche lá diante de mim, sempre a direito, pela estrada!
O velho tardou, sem se erguer, aterrado. E batia com as grossas mãos nas
coxas, numa ânsia que o engasgava:
— Oh meu Fidalgo, oh meu Fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem
acordo?...
— O rapaz está só atordoado, já se mexeu... E o outro malandro também...
Marche você!
E ao irresistível mando de Gonçalo, o velho, depois de sacudir
demoradamente as joelheiras, começou a avançar pela estrada, vergado diante
da égua, como um cativo, com os longos braços a bambolear, rosnando, num
rouco assombro: — Ai como elas se armam! Ai Santo nome de Deus, que
desgraça! — A espaços estacava, esgazeando para Gonçalo um olhar torvo
onde negrejava medo e ódio... Mas logo o comando forte o empurrava:
"Marche!..." E marchava. Adiante, onde se erguia um cruzeiro em memória do
abade Paguim, assassinado, Gonçalo reconheceu um largo atalho para a
estrada dos Bravais que chamavam o Caminho da Moleira. E para ai enfiou o
velho, que no pavor daquela azinhaga solitária, pensando que Gonçalo o
afastava de caminhos trilhados para o matar comodamente, rompeu a gemer:
Ai que isto é o fim da minha vida! Ai Nossa Senhora, que é o fim da minha
vida!" E não cessou de gemer, emaranhando os passos trôpegos, até que
desembocaram na estrada alta entre taludes escarpados, revestidos de giesta
brava. Então de repente, com outro terror, o homem bruscamente revirou,
atirando as mãos ao barrete:
— Oh meu senhor, o Fidalgo não me leva preso?...
— Marche! Corra! Que agora a égua trota!
A égua trotou — o velho correu, desengonçado, arquejando como um fole de
forja. Uma milha galgada, Gonçalo parou, farto do cativo, da lenta marcha. De
resto antes que o homem agora corresse a casa, e agarrasse uma arma, e
virasse para o alcançar, se desforrar — entraria ele, num galope solto, o portão
da Torre! Então bradou, com o sobrolho duro:
— Alto! Agora pode voltar para trás... Mas, antes: como se chama aquele
seu lugar?
— A Grainha, meu Fidalgo.
— E você como se chama, e o rapaz?
O velho, com a boca aberta, esperou, hesitou:
— Eu sou João, o meu rapaz Manuel... Manuel Domingues, meu Fidalgo.
— Você naturalmente mente. E o outro malandro, de suíças louras?
Dum fôlego, o velho gritou:
— Esse é o Ernesto de Nacejas, o valentão de Nacejas, que chamam o
Caça-abraços, e que tanto me desencaminhou o rapaz...
— Bem! Pois diga lá a esses dois marotos que me atacaram a pau e a tiro,
que não ficam quites somente com a sova, e que agora têm de se entender
com a Justiça... Ela lá irá! Largue!
Do meio da estrada, Gonçalo ainda vigiou o velho que abalara, forçando as
passadas derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela conhecida
estrada, galopou para a Torre.
E ia levado, galopando numa alegria tão fumegante, que o lançava em sonho e
devaneio. Era como a sensação sublime de galopar pelas alturas, num corcel
de lenda, crescido magnificamente, roçando as nuvens lustrosas... E por baixo,
nas cidades, os homens reconheciam nele um verdadeiro Ramires, dos antigos
na História, dos que derrubavam torres, dos que mudavam a configuração dos
Remos — e erguiam esse maravilhoso murmúrio que é o sulco dos fortes
passando! Com razão! com razão! Que ainda de manhã, ao sair da Torre, não
ousaria marchar para um rapazola decidido que brandisse um varapau... E
depois, de repente, na solidão daquela casa térrea, quando o bruto das suíças
louras lhe atira a sua injúria eis um não sei quê que se desprende dentro do seu
ser, e transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido, e lhe enrija cada
nervo de força destra, e lhe espalha na pele o desprezo e a dor, e lhe repassa
fundamente a alma de fortaleza indomável... E agora ali voltava, como um
varão novo, soberbamente virilizado, liberto enfim da sombra que tão
dolorosamente assombreara a sua vida, a sombra mole e torpe do seu medo!
Porque sentia que agora, se todos os valentões de Nacejas o afrontassem num
rijo erguer de cajados — esse não sei quê, lá dentro, no seu ser, de novo se
soltaria, e o arremessaria, com cada veia inchada, cada nervo retesado, para o
delicioso fragor da briga! Enfim era um homem! Quando em Vila-Clara o
Manuel Duarte, o Titó com o peito alto, contassem façanhas, já ele não
enrolaria encolhidamente o cigarro encolhido, mudo não somente pela
ausência desconsoladora das valentias, mas sobretudo pela humilhante
recordação das fraquezas. E galopava, galopava apertando furiosamente o
cabo do chicote, como para investidas mais belas. Para além dos Bravais, mais
galopou, ao avistar a Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua
Torre, agora mais sua, e que uma afinidade nova fundada em glória e força o
tornava mais senhor da sua Torre!
Como para acolher Gonçalo mais dignamente, o portão grande, sempre
cerrado, oferecia uma entrada triunfal com os dois pesados batentes
escancarados. Ele atirou a égua para o meio do pátio, bradando:
— Oh Joaquim! Oh Manuel! Eh lá! um de vocês!
O Joaquim surgiu da calavariça, de mangas arregaçadas, com uma esponja na
mão.
— Oh Joaquim, depressa! Aparelha o Rocilho, corre a um sitio na estrada
de Ramilde, a que chamam a Grainha... Tive agora lá uma grande desordem!
Creio que dei cabo de dois homens... Ficaram numa poça de sangue! Não
digas que vais da Torre, que te podem atacar! Mas sabe o que sucedeu, se
estão mortos!... Depressa, depressa!
O Joaquim, estonteado, remergulhou na cavalariça escura. E de cima de uma
das varandas do corredor, partiram exclamações assombradas:
— Oh Gonçalo, o que foi?! santo Deus! o que foi?!
Era o Barrolo. Sem desmontar, sem surpresa perante a aparição do Barrolo,
Gonçalo atirou logo para a varanda a história da bulha, tumultuosamente. Um
malandro que o insultara... Depois outro, que desfechou a caçadeira... E
ambos derribados sob as patas da égua, numa poça de sangue...
O Barrolo despegou da varanda — e noutro relance, investia pelo pátio, com
os curtos braços a boiar, enfiado. Mas então? mas então?... E Gonçalo,
desmontando, trémulo agora do cansaço e da emoção, esmiuçou mais lances...
Na estrada de Ramilde! Um valentão que o injuriou! A esse rasgara a boca,
decepara a orelha... Depois o outro, um rapazola, desfecha uma carabina... Ele
corre, tão vivamente o colhe com uma cutilada que o estira, para cima de uma
pedra, como morto...
— Uma cutilada?
— Com este chicote, Barrolo! Arma terrível!... Bem dizia o Titó!... Estou
perdido se não levo este chicote.
Esgazeado, Barrolo remirava o chicote. Sim, com efeito ainda manchado de
sangue. — Então Gonçalo atentou no chicote, no sangue... Sangue de gente!
Sangue fresco, que ele arrancara.... E por entre o seu orgulho, uma piedade
passou que o empalideceu:
— Que desgraça, vejam que desgraça!
Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nódoas de sangue, que
o salpicassem. Sim, santo Deus! sangue na polaina!... E imediatamente ansiou
por se despir, se lavar — galgou a escada, com o Barrolo que enxugava o suor,
balbuciava: — "Ora uma dessas! E de repente! Assim na estrada'' Mas no
corredor, subindo numa carreira da cozinha, apareceu Gracinha, pálida, com a
Rosa atrás, que enterrava os dedos entre o lenço e o cabelo num pavor mudo.
— Que foi, Gonçalo? Jesus, que foi?!
Então, encontrando Gracinha junto dele, na Torre, nesse momento magnífico
do seu orgulho, depois de tão rijo perigo vencido, Gonçalo esqueceu o André,
o Mirante, as sombrias humilhações, e no abraço em que a colheu, nos fortes
beijos que atirou à face querida, todo o seu amuo se fundiu em ternura. Com
ela ainda chegada ao coração, suspirou de leve, como uma criança cansada.
Depois apertando as duas pobres mãos trémulas, com um lento, enternecido
sorriso, enquanto os olhos se lhe umedeciam de confusa emoção, de confusa
alegria:
— Pois foi o diabo, filha! Uma desordem horrível, eu que sou tão pacato!
imagina tu...
E pelo corredor recomeçou para Gracinha, que arfava, e para a Rosa,
estarrecida, a história do encontro, e o sujo ultraje, o tiro que falhara e os
malandros lacerados a chicote, e o velho marchando como um cativo, a gemer
pela estrada de Ramilde. Apertando o peito, num desmaio, Gracinha
murmurou:
— Ai, Gonçalo! E se um dos homens estivesse morto!
O Barrolo, mais vermelho que uma peônia, berrou logo que tais malandros
mereciam ricamente a morte! E mesmo feridos, ainda necessitavam castigo
tremendo de África! O Gouveia! era necessário mandar a Vila-Clara, avisar o
Gouveia!... Mas largas passadas ávidas abalaram o soalho — e foi o Bento, que
se ergueu diante de Gonçalo, bracejando numa ânsia:
— Então, Sr. Doutor?... Diz que uma grande desordem!
E à porta do escritório, onde todos pararam, novamente atentos, a história
recomeçou, especialmente para o Bento, que a bebia, num lento riso de gosto,
crescendo, inchando, com os olhinhos húmidos a reluzir, como se também
triunfasse. Por fim, triunfou, com estrondo:
— Foi o chicote, Sr. Doutor! O que serviu ao Sr. Doutor foi o chicote que
eu lhe dei!
Era verdade. E Gonçalo, comovido, abraçou o velho aio, que numa excitação,
gritava para a Rosa, para Gracinha, para o Barrolo:
— O Sr. Doutor deu cabo deles!... Aquele chicote mata um homem!... Os
malvados estão mortos!... E foi o chicote! Foi o chicote que eu dei ao Sr.
Doutor!
Mas Gonçalo reclamava água quente para se lavar da poeira, do suor, do
sangue... E o Bento correu, berrando ainda pelo corredor! depois pelas
escadas da cozinha — "que fora o chicote! o chicote, que ele dera ao Sr.
Doutor!" Gonçalo entrara no quarto, acompanhado pelo Barrolo. E pousou o
chapéu sobre o mármore da cómoda, com um imenso ah consolado! Era o
consolo imenso de se encontrar, depois de tão violenta manhã, entre as doces
coisas costumadas, pisando o seu velho tapete azul, roçando o leito de paupreto em que nascera, respirando pelas vidraças abertas, onde as ramagens
familiares das faias se empurravam na aragem para o saudar. Com que gosto
se acercou do espelho de colunas douradas, se mirou e se remirou, como a um
Gonçalo novo e tão melhorado, que nos ombros reconhecia mais largueza, e
até no bigode um arquear mais crespo.
E foi ao arredar do espelho, topando com o Barrolo, que subitamente
despertou numa curiosidade imensa:
— Mas, ó Barrolo, como é que vos encontro esta manhã na Torre?
Resolução da véspera, ao chá. Gonçalo não aparecia, não escrevia... Gracinha
a matutar, inquieta. Ele também espantado daquele sumiço depois do cesto
dos pêssegos. De modo que ao chã, pensando também que a parelha
necessitava uma trotada, lembrara a Gracinha: — "Vamos nós amanhã à
Torre? no fáeton?"
— Além disso precisava falar contigo, Gonçalo... Tenho andado
aborrecido.
O Fidalgo juntou duas almofadas no divã, onde se enterrou:
— Como aborrecido?... Aborrecido por quê?...
Barrolo, com as mãos nos bolsos da rabona de flanela, que lhe cingia as ancas
gordas, considerou as flores do tapete, melancolicamente:
— É uma grande seca! A gente não pode confiar em ninguém... Nem ter
familiaridades!...
Num lampejo Gonçalo imaginou o Cavaleiro e Gracinha mostrando
estouvadamente nos Cunhais, como outrora entre os arvoredos da Torre, o
sentimento que os dominava. E pressentiu um desabafo, alguma queixa triste
do pobre Barrolo, amargurado por suspeitas, talvez por intimidades que
espreitara. Mas a emoção suprema da sua batalha sumira para uma sombra
inferior os cuidados que, ainda na véspera, o oprimiam; todas as dificuldades
da vida lhe apareciam agora, de repente, naquele frescor da sua coragem nova,
tão fáceis de abater como os desafios dos valentões; e não se assustou com as
confidências do cunhado, bem seguro de impor àquela alma submissa de
bacoco a confiança e a quietação. Até sorriu, com indolência:
— Então, Barrolinho? Sucedeu alguma peripécia?
— Recebi uma carta.
— Ah!
Gravemente Barrolo desabotoou o jaquetão, puxou do bolso interior uma
larga carteira, de couro verde e lustroso, com monograma de ouro. E foi a
carteira que ele mostrou a Gonçalo, com satisfação.
— Bonita, hem? Presente do André, coitado... Creio que até a mandou vir
de Paris. O monograma tem muito chic.
Gonçalo esperava, espantado. Enfim o bom Barrolo tirou da carteira uma
carta — já amarrotada, depois alisada. Era, num papel pautado, uma letra
miudinha que o Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com segurança:
— É das Lousadas.
E leu, vagarosamente, serenamente, com o cotovelo enterrado na almofada:
Exmo. Sr. José Barrolo. — V Exa., apesar de todos os seus amigos o
alcunharem de Zê Bacoco, mostrou agora muita esperteza, chamando de
novo para a sua intimidade e da sua digna esposa o gentil André Cavaleiro,
nosso Governador Civil. Com efeito a esposa de V Exa., a linda Gracinha,
que neste últimos tempos andava tão murcha e até desbotada (o que a todos
nos inquietava), imediatamente refloriu, e ganhou cores, desde que possui a
valiosa companhia da primeira autoridade do distrito. Portou-se pois V. Exa.
como marido zeloso, e desejoso da felicidade e boa saúde da sua interessante
esposa. Nem parece rasgo daquele que toda a Oliveira considera como o seu
mais ilustre pateta! Os nossos sinceros parabéns!"
Gonçalo guardou muito sossegadamente na algibeira aquela carta que, dias
antes, o lançaria em infinita amargura e fúria:
— É das Lousadas... E tu deste importância a semelhante baboseira?
O Barrolo repontou, com as bochechas abrasadas:
— Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anónimos... E depois
essa insolência a respeito de os amigos me chamarem Bacoco... Grande
infâmia, hem? Tu acreditas?... Eu não acredito! mas lança cizânia entre mim e
os rapazes... Nem voltei ao Club... Bacoco! Por quê? Porque eu sou simples,
sempre franco, disposto a arranchar... Não! Se os rapazes no Club me
chamam bacoco pelas costas, caramba, mostram ingratidão! Mas eu não
acredito! — Rebolou pelo quarto, desconsoladamente, as mãos cruzadas sobre
as gordas nádegas. Depois, estacando diante do divã, donde Gonçalo o
considerava, com piedade:
— Enquanto ao resto da carta é tão estúpido, tão atrapalhado que ao
princípio nem compreendi. Agora percebo... Querem dizer que a Gracinha e o
Cavaleiro têm namoro... E o que me parece que querem dizer! Ora vê tu que
disparate! Até a intimidade do Cavaleiro é mentira. O pobre rapaz, desde que
lá jantou, só apareceu três ou quatro vezes, à noite, para a manilha, com o
Mendonça... E agora abalou para Lisboa.
Então o Fidalgo saltou, de surpresa.
— O quê! o Cavaleiro foi para Lisboa?
— Pois partiu há três dias!
— Com demora?
— Com demora, com grande demora... Só volta no meado de outubro
para a Eleição.
— Ah!
Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro d''água quente, duas toalhas de
rendas, ainda numa excitação que o azafamava. Diante do espelho, lentamente
Barrolo reabotoava o jaquetão:
— Bem, até logo, Gonçalinho. Eu desço à cavalariça, visitar a parelha. Não
imaginas! desde Oliveira, sem descanso, uma trotada esplêndida. E nem um
pêlo suado! Tu guardas a carta?
— Guardo, para estudar a letra.
Apenas Barrolo correra a porta — o Fidalgo recomeçou com o Bento a
deliciosa história da briga, revivendo as surpresas e os rasgos, simulando os
arremessos da égua, arrebatando o chicote para representar as cutiladas
silvantes, que arrancavam febra e sangue... E de repente, em ceroulas:
— Oh Bento, traze o meu chapéu... Estou desconfiado que a bala roçou
pelo chapéu.
Ambos remiraram, esquadrinharam o chapéu. O Bento, no seu encarecimento
da façanha, achava a copa amolgada — até chamuscada.
— A bala passou de raspão, Sr. Doutor!
O Fidalgo negou, com a modéstia grave de um forte:
— Não! Nem de raspão!... Quando o malandro desfechou já o braço lhe
tremia... Devemos agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente não corri
grande perigo!
Depois de vestido, Gonçalo, passeando no quarto, releu a carta. Sim,
certamente das Lousadas. Mas agora essa maledicência, soprada com tão
sórdida maldade sobre as pobres bochechas do Barrolo, não causava dano —
antes servia, quase beneficamente, como a brasa de um ferro, para sarar um
dano. O pobre Barrolo apenas se impressionara com a revelação da sua
bacoquice, essa ingrata alcunha posta pelos rapazes amigos, em galhofas
ingratas do Club e debaixo dos Arcos. A outra insinuação terrível, Gracinha
reverdecendo ao calor amoroso do Cavaleiro, essa mal a compreendera,
escassamente a atendera num desdém distraído e cândido. Mas a carta que
assim silvava por sobre o bom Barrolo como flecha errada — acertava em
Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no seu impressionável pudor,
mostrando à pobre tonta como o seu nome e mesmo o seu coração já
arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira, mexeriquice das Lousadas!...
Certeza tão humilhadora não apagaria um sentimento — que se não apagava
com humilhações mais íntimas, tanto mais dolorosas. Mas estimularia a sua
reserva e o seu desconfiado recato: — e agora que André se afastara para
Lisboa, operaria nela, surdamente, solitariamente, sem que a presença
tentadora lhe desmanchasse a influência sossegadora e salutar. Assim o torpe
papel aproveitava a Gracinha como um aviso temeroso pregado na parede. E
rancorosamente preparada pelas duas fêmeas para desencadear nos Cunhais
escândalo e dor — talvez restabelecesse, na ameaçada casa, quietação e
gravidade. — Gonçalo esfregou as mãos pensando — que em tão ditosa
manhã talvez esse mal redundasse em bem!
— Oh Bento, onde está a Sra. D. Graça?
— A menina subiu agora há pouco para o seu quarto, Sr. Doutor.
Era o seu quarto de solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda se
conservava o seu leito de linda madeira embutida, um toucador ilustre que
pertencera à Rainha D. Maria Francisca de Saboia, e o sofá, as cadeiras de
casimira clara em que Gracinha bordara, num arrastado labor de anos, o Açor
negro dos Ramires. E sempre que voltava à Torre Gracinha gostava de
reviver, no seu quarto, as horas de solteira, remexendo as gavetas, folheando
velhos romances ingleses na estantezinha envidraçada, ou simplesmente da
varanda contemplando a querida quinta estendida até aos outeiros de
Valverde, a verde quinta, tão misturada à sua vida que cada árvore lhe
sussurrava, cada recanto de verdura era como um recanto do seu pensamento.
Gonçalo subiu bateu à porta cerrada com o antigo aviso: — "Licença para o
mano!" Ela correu da varanda, onde regava nos seus antigos vasos vidrados
plantas sempre renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E desabafando
logo do pensamento que a enchia:
— Oh Gonçalo! mas que felicidade nós virmos à Torre, justamente hoje,
que te sucedeu coisa tamanha!
— É verdade, Gracinha, grande sorte! E não me admirei nada de te ver...
Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor... Quem
estranhei foi o Barrolo! E no primeiro momento depois de desmontar,
pensava assim, vagamente: "mas que diabo faz aqui o Barrolo? Como diabo se
acha aqui o Barrolo?..." Curioso, hem? Foi talvez que, depois da desordem,
me senti remoçado, com um sangue novo, e me julguei no tempo em que
desejávamos uma guerra em Portugal, e nós cercados na Torre, sob o nosso
pendão, o nosso terço atirando bombardas aos espanhóis...
Ela ria, lembrada dessas imaginações heroicas. E com o vestido entalado entre
os joelhos recomeçou a lenta rega dos seus vasos — enquanto Gonçalo,
encostado à varanda, considerando a Torre, retomado pela ideia de uma
concordância mais íntima, que desde essa manhã se estabelecera entre ele e
aquele heroico resto da Honra de Santa Ireneia, como se a sua força, tanto
tempo quebrada, se soldasse enfim firmemente à força secular da sua raça.
— Oh Gonçalo! tu deves estar muito cansado! Depois dessa verdadeira
batalha...
— Não, cansado não... Mas com fome. Com fome, e com uma sede
esplêndida!
Ela pousou logo o regador, sacudindo as mãos alegremente:
— Pois o almoço não tarda!... Já andei a trabalhar na cozinha, com a Rosa,
numa pescada à espanhola... É uma receita nova do Barão das Marges.
— Então insossa, como ele.
— Não! até picante: foi o Sr. Vigário-Geral que lha ensinou.
E como diante do toucador da Rainha Maria Francisca, ela arranjava à pressa
os ganchos do cabelo, para aproveitar a solidão favorável, apressou com um
esforço a confidência que o comovia:
— E em Oliveira? Lá por Oliveira?
— Em Oliveira, nada... Muito calor!
Gonçalo, movendo os dedos lentos pela moldura do espelho, fino
entrelaçamento de açucenas e louros, murmurou:
— Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas. Continuam em
plena atividade...
Gracinha negou candidamente:
— As Lousadas? Não! Nem têm aparecido.
— Mas têm tecido!
E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem compreender,
Gonçalo arrancou vivamente da algibeira a carta que guardara, que agora lhe
pesava, como uma chapa de ferro:
— Olha, Gracinha. Mais vale desabafarmos! Aí tens o que elas há dias
escreveram ao teu marido...
Num relance Gracinha devorou as linhas terríveis. E com ondas de sangue
nas faces apertando as mãos numa aflição, um desespero, em que o papel
amarfanhou:
— Oh Gonçalo! pois...
Gonçalo acudiu:
— Não! o Barrolo não se importou! até se riu! E eu também, quando ele
me entregou esse papelucho... E a prova de que ambos o consideramos uma
mexeriquice insensata é que eu to mostro tão francamente.
Ela esmagava a carta nas mãos juntas e trémulas, pálida agora e emudecida
pelo espanto, retendo grandes lágrimas que rebrilhavam. E Gonçalo
comovido, com gravidade, com ternura:
— Mas tu, Gracinha, sabes o que são terras pequenas. Sobretudo Oliveira!
Precisas muito cuidado, muita reserva... Ai de mim! De mim vem a culpa.
Reatei relações que nunca se deviam reatar... Bem me tenho arrependido! E
acredita! por causa dessa situação tão falsa e tão perigosa, que eu criei,
levianamente, por ambição tola, passei aqui na Torre dias amargurados... Até
nem me atrevia voltar a Oliveira. Hoje, não sei porquê, depois desta aventura,
parece que tudo se esbateu, se afundou para uma grande sombra... Enfim já
não me arde tão em brasa no coração... Por isso desabafo assim, serenamente.
Ela desatou num solto, doloroso, choro em que a sua fraca alma se desfazia.
Com redobrada ternura Gonçalo abraçou os pobres ombros vergados que os
soluços espedaçavam. E foi com ela toda refugiada no seu peito, que ainda a
aconselhou, docemente:
— Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos,
que continue morto. Pelo menos que por fora, em cada gesto teu, pareça bem
morto! Sou eu que to peço, pelo nosso nome!...
Dentre os braços do irmão, ela gemeu com infinita humildade:
— Mas ele até foi embora!... Nem quis estar mais em Oliveira!
Gonçalo acariciou a acabrunhada cabeça que de novo se escondera contra o
seu peito, contra ele se apertava, como procurando a fresca misericordiosa
que dentro sentia brotar:
— Bem sei. E isso me mostra que tens sido forte... Mas precisas muita
reserva, muita vigilância, Gracinha!... E agora sossega. Não falemos mais,
nunca mais, neste incidente... Porque foi apenas um acidente. E que eu
provoquei, ai de mim, por leviandade, por ilusão. Passou, está esquecido!
Sossega, descansa. E quando desceres traz os olhos bem secos.
Lentamente a desprendera dos braços, onde ela se arraigava como ao abrigo
mais certo e à consolação mais desejada. E saia, engasgado pela emoção,
recalcando também as lágrimas... Um gemido tímido, suplicante, ainda o
reteve:
— Gonçalo! mas tu pensas...
Ele voltou, de novo a abraçou, a beijou na testa lentamente:
— Eu penso que tu, agora bem avisada, bem aconselhada, vais mostrar
muita dignidade, muita firmeza.
Rapidamente abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente
iluminada por uma claraboia baça, limpava as pálpebras, quando esbarrou com
o Barrolo, que procurava Gracinha, para apressar o almoço.
— A Gracinha já desce! — atabalhoou o Fidalgo. — Está a lavar as mãos!
Já desce!... Mas antes do almoço vamos à cavalariça. Devemos uma visita à
égua, a essa querida égua que me salvou!
— É verdade, caramba! — concordou logo Barrolo revirando nos degraus,
com entusiasmo. — Precisamos visitar a égua... Grande, briosa, hem! Mas
aposto que ficou mais suada que as minhas... Imagina! uma trotada daquelas,
desde Oliveira, e nem um pêlo molhado! Grandes éguas! Também, o que eu
as olho, o que as trato!
Na cavalariça, ambos afagaram a égua. Barrolo lembrou que se mimoseasse
com uma ração larga de cenoura. Depois — para que Gracinha, com vagar, se
calmasse — o Fidalgo arrastou o Barrolo ao pomar e à horta...
— Tu não vens à Torre há perto de seis meses, Barrolinho! Precisas ver,
admirar progressos. Anda agora por aqui a mão forte do Pereira da Riosa...
— Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome,
Gonçalinho!
— Também eu!
Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida e
em festa — e Gracinha, à beira do divã, percorria pensativamente a velha
Gazeta do Porto. Apesar de muito banhados, os seus belos olhos
conservavam um ardor; e para o justificar, e o seu modo abatido, logo se
lastimou, corando, de uma enxaqueca. Eram as emoções, o perigo de
Gonçalo...
— Também eu tenho dor de cabeça! — declarou o Barrolo, rondando a
mesa. — Mas a minha vem da fome... Oh, filhos, é que estou desde as sete da
manhã com uma chávena de café e um ovo quente!
Gonçalo repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta envidraçada,
esbaforido, escancarando a boca num riso imenso, foi o Joaquim, o jovem da
cavalariça que voltava da Grainha.
Gonçalo atirou os braços, sôfrego:
— Então?! então?!
— Pois lá estive, meu Fidalgo! — exclamou o Joaquim com o peito a
estalar de importância. — E vai por lá um povoléu, todos já sabem! Uma
rapariga dos Bravais espreitou tudo, de dentro do quinteiro... Depois correu,
badalou... Mas o velho, o tal Domingues que mora. na casa, e o filho,
abalaram ambos. E o rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se caiu, sem
sentidos, foi com o susto. O Ernesto de Nacejas, esse sim, santo nome de
Deus, apanhou. Lá o levaram em braços para casa de um compadre ali ao pé,
na Arribada. Parece que fica sem orelha, e que fica sem boca!... Pois por todos
aqueles sítios era o ai-jesus das raprigas!... E logo lá o carregaram para o
hospital de Vila-Clara, que na casa do compadre não pode sarar. Um povoléu,
e todos dão a razão ao Fidalgo. O tal Domingues era malandro. E o Ernesto,
esse ninguém o podia enxergar! Mas todos lhe tinham medo... O Fidalgo fez
uma limpeza!
Gonçalo resplandecia. Ah! Ainda bem! que não passara dano mais forte, que
beleza perdida do D. Juan de Nacejas!
— E então o povo por lá, a falar, a olhar para o sítio?
— Pois o povo não se arreda! E a mostrar o sangue, no chão, e as pedras
por onde se atirou a égua do Fidalgo... E agora até contam que foi uma
espera, e que desfecharam três tiros ao Fidalgo, e que depois adiante no pinhal
ainda saltaram três homens mascarados que o Fidalgo escangalhou...
— Eis a lenda que se forma! — declarou Gonçalo.
O Bento aparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo afagou
risonhamente o ombro do Joaquim. E embaixo a Rosa que abrisse, para o
almoço da família, duas garrafas de vinho do Porto, velho. Depois com a mão
nas costas da cadeira murmurou gravemente: — Pensemos um momento em
Deus, que me tirou hoje de um grande perigo!
Barrolo pendeu a cabeça, reverente. Gracinha, através de um leve suspiro,
pensou uma leve oração. E desdobravam os guardanapos; Gonçalo aclamava
a travessa de pescada à espanhola — quando o pequeno da Críspola
empurrou ainda a porta envidraçada "com um telegrama, que viera da Vila!"
Uma inquietação deteve os garfos. A manhã correra com tantas agitações e
espantos! Mas já um sorriso de gosto, de triunfo, se espalhara na fina face de
Gonçalo:
— Não é nada... É do Castanheiro, por causa dos capítulos do Romance
que eu lhe mandei... Coitado! Bom rapaz!
E, recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegrama, que os seus olhos
afagavam: — "Capítulos romance recebidos. Leitura feita amigos.
Entusiasmo! Verdadeira obra-prima! Abraço!..."
Barrolo, com a boca cheia, bateu as palmas. E Gonçalo, sem reparar na
travessa da pescada que Bento lhe apresentava, mas enchendo o copo de
vinho verde, com uma vaga tremura, um sorriso ditoso que não se dissipava:
— Enfim, boa manhã... Grande manhã!
Gonçalo, apesar das insistências de Gracinha e do Barrolo, não os
acompanhou para Oliveira no desejo de acabar, durante essa semana, o
derradeiro Capítulo da Novela, e depois cerrar o preguiçoso passeio de visitas
aos influentes Eleitorais do Círculo. Assim rematava a Obra de Arte e a obra
de Política, e cumpria, Deus louvado, a tarefa desse verão fecundo!
Logo nessa noite retomou o manuscrito da Novela e na margem larga lançou
à data uma nota: "Hoje, na freguesia da Grainha, tive uma briga terrível com
dois homens que me assaltaram a pau e tiro, e que castiguei severamente..."
Depois, com facilidade atacou o lance de tanto sabor medieval, em que
Tructesindo Ramires, correndo no rasto do Bastardo, penetrava, ao espalhado
e fumarento clarão dos archotes, no arraial de D. Pedro de Castro.
Com grave amizade acolhia o velho homem de guerra aquele seu primo de
Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando os
Castros combateram um grande poder de Mouros em Enxarez de Sandornim.
Depois, na vasta tenda, reluzente de armas, tapizada de peles de leão e de
urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de dor represa, a morte do seu filho
Lourenço, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado a punhalada pelo Bastardo
de Baião, diante das muralhas de Santa Ireneia, com o sol no céu alto a olhar a
traição! Indignado, o velho Castro esmurraçou a mesa, onde um rosário de
ouro se misturava a grossas peças de xadrez; jurou pela vida de Cristo que, em
sessenta anos de armas e surpresas, nunca soubera de feito mais vil! E,
agarrando a mão do senhor de Santa Ireneia, ardentemente lhe ofereceu, para
a empresa da santa vingança, a sua hoste inteira — trezentas e trinta lanças,
vasta e rija peonagem.
— Por Santa Maria! Formosa arrancada! — bradou Mendo de Briteiros
com as vermelhas barbas a flamejar de gosto.
Mas D. Garcia Viegas, o Sabedor entendia que para colherem o Bastardo vivo,
como convinha a uma vingança vagarosa e bem gozada, mais utilmente
serviria uma calada e curta fila de Cavaleiros, com alguns homens de pé...
— Porquê, D. Garcia?
— Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da peonada
e carriagem correra, com a mira em Coimbra, para se acolher à força da Hoste
Real. Nessa noite, com o seu esfalfado bando de lanças, pernoitara certamente
no solar de Landim. E com o luzir da alva, para encurtar, certamente
retomava a galopada pelo velho caminho de Miradáes, que trepa e foge através
das lombas do Caramulo. Ora ele, Garcia Viegas, conhecia para diante do
Poço da Esquecida, certo passo, onde poucos Cavaleiros, e alguns besteiros,
bem postados por entre o bravio, apanhariam Lopo de Baião como lobo em
fojo...
Tructesindo, incerto e pensativo, metia os dedos lentos pelos fios da barba. O
velho Castro duvidava, preferindo que se pusesse batalha ao Bastardo em
campo bem liso onde se avantajassem tantas lanças já aprestadas, que depois
correriam em alegre levada a assolar as terras de Baião. Então Garcia Viegas
rogou aos seus primos de Espanha e de Portugal que saíssem ao terreiro,
diante da tenda, com fartura de tochas para bem se iluminarem. E aí, no meio
dos Cavaleiros curiosos, à claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o
joelho, riscou sobre a terra, com a ponta de uma adaga, o roteiro da sua
caçada para lhe comprovar a beleza... Dalém castelo Landim, largaria com a
alva o Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam eles, com vinte
Cavaleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores de ambas as
mesnadas gozassem a lide. Além, se postariam, alapados no matagal, besteiros
e peões de frecha. Por trás, deste lado, para entaipar o Bastardo, o senhor D.
Pedro de Castro, se com tão gostosa ajuda ele honrasse o Senhor de Santa
Ireneia. Adiante, acolá, para colher pela gorja o vilão, o senhor D. Tructesindo
que era o pai e Deus mandava fosse o vingador. E ali, na estreitura o
derrubariam e o sangrariam como um porco — e como o sangue era vil, a um
tiro de besta encontrariam água farta para lavar as mãos, a água do pego das
Bichas!...
— Famosa traça! — murmurou Tructesindo convencido.
E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavaleiros de
Espanha:
— Vida de Cristo, que se o meu tio-avô Gutierres tivera por Coudel aqui o
Sr. D. Garcia, não lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei-menino,
na grande carreira, para Santo Estêvão de Gurivaz!... Entendido, pois, primo e
amigo! E a cavalo, para a monteria, mal reponte a lua!
E recolheram as tendas — que já nas fogueiras lourejavam os cabritos da ceia,
e os uchões acarretavam, dentre os carros da sarga, os pesados odres de vinho
de Tordesilhas.
Com a ceia no arraial (grave e sem ruído, porque um luto velava o coração dos
hóspedes) Gonçalo terminou, nessa noite, o seu capítulo IV, lançando à
margem outra nota: — "Meia-noite... Dia cheio. Batalhei, trabalhei ." —
Depois no seu quarto, enquanto se despia, traçou todo o alvoroto da briga
curta em que o Bastardo como lobo em fojo ficaria cativo, à mercê vingadora
dos de Santa Ireneia... Mas de manhã, antes do almoço, ao abancar com gosto
para o trabalho — recebeu dois telegramas, que o desviaram deliciosamente
da ardente correria contra o Bastardo de Baião.
Eram dois telegramas de Oliveira, um do Barão das Marges, outro do capitão
Mendonça — ambos com parabéns ao Fidalgo "por assim escapar de tão
terrível espera, destroçando os valentões de Nacejas". O Barão das Marges
acrescentava: — "Bravíssimo! É de herói!"
Gonçalo, enternecido, mostrou os telegramas ao Bento. A nova da sua
façanha, pois, já se espalhara, impressionara Oliveira.
— Foi o Sr. José Barrolo que contou! — acudiu o Bento. — E o Sr. Dr.
verá! o Sr. Dr. verá... Até no Porto se vão assombrar!
Ao bater meio-dia, rompeu pelo corredor, com estrondo, o imenso Titó,
acompanhado pelo João Gouveia que chegara na véspera à tarde da Costa,
soubera da aventura na Assembleia, corria à Torre, como amigo para o
abraço, antes de comparecer, como Autoridade, para o auto. Então Gonçalo,
ainda nos braços do Gouveia, pediu generosamente "que se não procedesse
contra os bandidos..." O Administrador recusou, decidido e seco,
proclamando o princípio da Ordem, e necessidade de um escarmento rijo,
para que Portugal não recuasse aos tempos bárbaros do João Brandão de
Midões. Ele e Titó almoçaram na Torre — e Titó, à sobremesa, lembrou
galhofeiramente a conveniência de um brinde, e bramou ele o brinde,
comparando Gonçalo ao elefante, "sempre bom, que tanto aguenta, e de
repente, zás, esmaga o mundo!"
Depois João Gouveia acendendo um grande charuto reclamou a
representação verídica da desordem, com os pulos, os gritos, para ele se
compenetrar como autoridade. Então através da varanda, reviveu a história
heroica, simulando com o chicote sobre o divã (que terminou por esgaçar) os
golpes que arremessara imitando os tombos meio desmaiados do valentão de
Nacejas, quando já o sangue o alagava. O Administrador e o Titó visitaram na
cavalariça a égua histórica; e no pátio, Gonçalo ainda lhes mostrou as duas
polainas de couro secando ao sol, lavadas do sangue que as salpicara.
Diante do portão João Gouveia bateu gravemente no ombro do Fidalgo:
— Gonçalo, você deve aparecer esta noite na Assembleia...
Apareceu — e foi acolhido como o vencedor de uma batalha ilustre. No
bilhar, por proposta do velho Ribas, flamejou um grande punch — e o
Comendador Barros, afogueado, teimava que no domingo se celebrasse em S.
Francisco um Te-Deum de graças, de que ele custearia as despesas, com
orgulho, caramba! À saída, acompanhado pelo Titó, pelo Gouveia, pelo
Manuel Duarte, por outros sócios, encontraram o Videirinha — que não
pertencia à Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo para lhe lançar
duas trovas do Fado, improvisadas nessa tarde, em que o exaltava acima dos
outros Ramires, da História e da Lenda!
O rancho quedou no chafariz. O violão gemeu, com amor. E o cantar do
Videirinha, elevado da alma, varou a muda ramagem das olaias:
Os Ramires doutras eras
Venciam com grandes lanças,
Este vence com um chicote,
Vede que estranhas mudanças!
É que os Ramires famosos,
Da passada geração,
Tinham a força nas armas
E este a tem no coração!
A tão requebrado conceito — os amigos romperam em vivas a Gonçalo, à
Casa de Ramires. E o Fidalgo recolhendo à Torre, comovido, pensava:
— É curioso! Esta gente toda parece gostar de mim!...
Mas que emoção quando, de manhã cedo, o Bento o acordou com um
telegrama de Lisboa! Era do Cavaleiro — que "soubera pelos jornais atentado,
lhe mandava entusiástico abraço pela felicidade e pela valentia!" Gonçalo
berrou, sentado na cama:
— Caramba! então os jornais em Lisboa já falam, Bento! o caso anda
celebrado!
Certamente celebrado! — porque durante o delicioso dia, o jovem do
Telégrafo, esbaforido sobre a perna manca, não cessou de empurrar o portão
da Torre, com outros telegramas, todos de Lisboa, da Condessa de Chelas; de
Duarte Lourençal; dos Marqueses de Coja felicitando; da tia Louredo com
"parabéns ao destemido sobrinho"; da Marquesa de Esposende "esperando
que o caro primo tivesse agradecido a Deus!"... E o último do Castanheiro,
com exclamações: — Magnifico! Digno de Tructesindo! — Gonçalo, pela
Livraria, erguia os braços, estonteado:
— Santo nome de Deus! mas que terão dito os jornais?
E, por entre os Telegramas, acudiam os cavalheiros dos arredores, os
influentes — o Dr. Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao
Cabralismo; o velho Pacheco Valadares de Sá, que não se espantara do seu
nobre primo, porque sangue de Ramires, como sangue de Sás, sempre ferve; o
Padre Vicente da Finta, que, com os seus parabéns, ofereceu um cestinho de
cachos do seu famoso moscatel tinto; e por fim o Visconde de Rio-Manso,
que agarrado a Gonçalo, soluçou, no enternecimento quase ufano de que a
briga assim rompesse, na estrada, quando "o querido amigo, o amigo da sua
Rosa" se encaminhava para a Varandinha. Gonçalo, afogueado, banhado de
riso, abraçava, recontava pacientemente a façanha, acompanhava até o portão
aqueles cavalheiros, que, ao montar as éguas, ao entrar nas caleches, sorriam
para a velha Torre, escura e rígida, na doce claridade da tarde de setembro,
como saudando, depois do herói, o secular fundamento do seu heroísmo.
E o Fidalgo, galgando as escadas para a Livraria, de novo murmurava,
estonteado:
— Que terão dito os jornais de Lisboa?
Nem dormiu, na ansiedade de os devorar. Quando o Bento, em alvoroço,
rompeu pelo quarto com o correio — Gonçalo saltou, arrojou o lençol, como
se abafasse. E logo no Século, sofregamente percorrido, encontrou o
telegrama de Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a imensa
coragem do Fidalgo da Torre, que com um simples chicote... O Bento quase
arrebatou o Século das mãos trémulas do Fidalgo, para correr à cozinha,
bramar à Rosa a notícia gloriosa!
De tarde, Gonçalo correu à Vila-Clara, à Assembleia, para devorar os outros
jornais de Lisboa, os do Porto. Todos contavam, todos celebravam! A Gazeta
do Porto, atribuindo o atentado a Política, ultrajava furiosamente o Governo.
O Liberal Portuense, porém, relacionava "com certas vinganças dos
republicanos de Oliveira o pavoroso atentado que quase causara a morte de
um dos maiores Fidalgos de Portugal e de Espanha e de um dos mais pujantes
talentos da nova geração!" Os jornais de Lisboa glorificavam sobretudo "a
coragem esplêndida do Sr. Gonçalo Ramires". E o mais ardente era a Manhã,
num verboso artigo (decerto escrito pelo Castanheiro), recordando as heroicas
tradições da Casa ilustre, esboçando as belezas do Castelo de Santa Ireneia e
terminando por afirmar que, "agora, se esperava com redobrada ansiedade a
aparição da novela de Gonçalo Ramires, fundada sobre um feito do seu avô
Tructesindo no século XII, e prometida para o primeiro número dos Anais de
Literatura e de História, a nova Revista do nosso querido amigo Lúcio
Castanheiro, esse benemérito restaurador da Consciência heroica de Portugal!"
— As mãos de Gonçalo, ao desdobrar os jornais, tremiam. E o João Gouveia,
também sôfrego, devorando também os artigos, por sobre o ombro do
Fidalgo, murmurava, impressionado:
— Você, Gonçalinho, vai ter uma votação tremenda! Depois nessa noite,
recolhendo à Torre, Gonçalo encontrou uma carta que o perturbou. Era de
Maria Mendonça, num papel perfumado, com o mesmo perfume que tão
docemente espalhava D. Ana pelo adro de Santa Maria de Craquede: — "Só
esta manhã soubemos o grande perigo que passou, e ficamos ambas muito
comovidas. Mas ao mesmo tempo eu (e não só eu) muito vaidosa da
magnífica coragem do primo. É de um verdadeiro Ramires! Eu não vou aí
abraçá-lo (com risco de me comprometer e fazer invejas) porque um dos
meus pequenos, o Neco, anda muito constipado. Felizmente não é coisa de
cuidado... Mas aqui todos, até os pequenos, ansiamos por ver o herói, e não
creio que houvesse nada de extraordinário, nem de um lado nem de outro, em
que o primo por aqui aparecesse além de amanhã (quinta-feira) pelas três
horas. Dávamos um passeio na quinta, e até se merendava, à boa e velha
moda dos nossos avós. Está dito? Muitos cumprimentos, muitos, da Anica, e
o primo creia-me, etc." — Gonçalo sorriu, pensativamente, considerando a
carta, recebendo o aroma. Nunca a prima Maria lhe empurrara, tão
claramente, a D. Ana para os braços... E como D. Ana se deixava empurrar,
pronta, e de olhos cerrados... Ah, se fosse somente para a alcova! Mas ai! era
também para a Igreja. E de novo sentia aquele vozeirão de Titó, nos degraus
da portinha verde com a lua cheia por cima dos olmos negros: ''Essa criatura
teve um amante, e tu sabes que eu nunca minto!"
Então tomou lentamente a pena, respondeu a D. Maria Mendonça: —
"Querida prima — Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e os seus
entusiasmos. Não exageremos! Eu não fiz mais que correr a chicote uns
valentões que me assaltaram a tiro. É façanha fácil para quem tenha, como eu,
um chicote excelente. Enquanto à visita à Feitosa, que me seria tão agradável,
não a posso realizar com fundo pesar meu, nem na quinta-feira, nem mesmo
por todo este mês... Ando ocupadíssimo com o meu livro, a minha Eleição, a
minha mudança para Lisboa. A era dos cuidados sérios soou severamente para
mim — cerrando a doce era dos passeios e dos sonhos. Peço que apresente à
Sra. D. Ana os meus profundos respeitos. E com muitas amizades para si, e
bons desejos pelo restabelecimento desse querido Neco, espero me creia
sempre seu dedicado e grato primo, etc."
Fechou vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete de armas sobre o lacre
verde, pensava:
— Assim aquele maroto do Titó me rouba duzentos contos!...
Durante toda essa macia semana dos fins de setembro, Gonçalo trabalhou no
Capítulo final da sua Novela.
Era enfim a madrugada vingadora em que os Cavaleiros de Santa Ireneia,
reforçados pelas mais nobres lanças da mesnada dos Castros, surpreendiam,
no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o Sabedor, o bando de
Baião, na sua açodada corrida sobre Coimbra... Briga curta e falsa, sem destro
e brioso terçar de armas, mais semelhante a montaria contra um lobo do que a
arremetida contra um Filho-de-Algo. E assim a desejara Tructesindo, com
ruidosa aprovação de D. Pedro de Castro, porque não se cuidava de combater
um inimigo, mas de colher um matador.
Antes do luzir da alva, o Bastardo abalara do castelo de Landim, em dura
pressa e com tão descuidada segurança, que nem almogávar nem coudel lhe
atalaiavam os trilhos. As cotovias cantavam quando ele, em áspero trote,
penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e urze, que
chamam a Racha do Mouro, desde que Mafoma a fendeu para que escapassem
às adagas cristãs de El-Rei Fernando, o Magno, o Alcaide mouro de Coimbra
e a monja que ele arrebatara à garupa. E apenas pela esguia greta enfiara a
derradeira lança da fila — eis que da outra embocadura do vale surge o
cerrado troço dos Cavaleiros de Santa Ireneia, que Tructesindo guia, com a
viseira erguida, sem broquel, sacudindo apenas uma ascuma de monte como
se folgadamente andasse em caçada. Da selva arredada que os encobria,
rompem por trás as lanças dos Castros, restadas e cerrando a brecha mais
densamente que as puas de uma levadiça. Do recosto dos cerros rola, como
represa solta, uma rude e escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo
terrível! Ainda arranca furiosamente a espada, que redemoinhando o coroa de
coriscos. Ainda com um fero grito arremete contra Tructesindo... Mas
bruscamente, dentre um escuro magote de fundeiros baleares, parte ondeando
uma corda de cânave, que o laça pela gargalheira, o arranca num brusco sacão
da sela mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se
entala e se parte rente ao punho dourado. E enquanto os Cavaleiros de Baião
aguentam assombradamente o denso cerco de lanças, que os envolvera — um
rolo de peões, em dura grita, como mastins sobre um cerdo, arrastam o
Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel e adaga, lhe
despedaçam o brial de lã roxa, lhe quebram os fechos do elmo, para lhe
cuspirem na face, nas barbas cor de ouro, tão belas e de tanto orgulho!
Depois a mesma bruta matula o iça, amarrado, para sobre o dorso de uma
possante mula de carga, o estende entre dois esguios caixotes de virotões,
como rês apanhada ao recolher da montaria. E servos da carriagem ficam
guardando o Cavaleiro soberbo, o Claro-Sol que iluminava a casa de Baião,
agora entaipado entre dois caixotes de pau, com cordas nos pés, e cordas nas
mãos, e nelas espetado um triste ramo de cardo — emblema da sua traição.
No entanto os seus quinze Cavaleiros juncavam o chão, esmagados sob o
furioso cerco de lanças que os investira — uns hirtos, como adormecidos,
dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes
retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigais. Os
escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chuço para a boca de uma
barroca, sem resgate ou mercê, como alcateia imunda de roubadores de gado,
acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros leoneses. Todo o
vale cheirava a sangue como um pátio de magarefes. Para reconhecer os
companheiros do Bastardo, uma turma de Cavaleiros desafivelava os gorjais,
as viseiras, arrancando furtivamente as medalhas de prata, os bentos,
saquinhos de relíquias, que todos traziam como bem-tementes. Numa face, de
fina barba negra, que uma espuma sangrenta manchava, Mendo de Briteiros
reconheceu seu primo Soeiro de Lugilde com quem, pela fogueira de S. João,
folgara tão docemente e bailara no castelo de Unhelo — e vergado sobre a
alta sela rezou, pela pobre alma sem confissão, uma devota Ave-Maria. Fuscas,
tristonhas nuvens, abafavam a manhã de agosto. E afastados à entrada do
vale, sob a ramagem de um velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro,
e Garcia Viegas, o Sabedor, decidiam que morte lenta, e bem dorida e viltosa,
se daria ao Bastardo, vilão de tão negra vilta.
Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforço de quem
empurra um arado por terra pedreira — gastara Gonçalo essa doce semana de
setembro. E no sábado, cedo, na Livraria, com os cabelos ainda molhados do
banho de chuva, esfregava as mãos diante da banca — porque certamente
com duas horas de atento trabalho findaria antes do almoço a sua Novela, a
sua Obra! E todavia esse final quase o repelia, com o seu sujo horror. O tio
Duarte no seu Poemeto apenas o esboçara, com esquiva indecisão, como
nobre Lírico que perante uma visão de bruta ferocidade solta um lamento,
resguarda a Lira, e desvia para sendas mais doces. E, ao tomar a pena,
Gonçalo, também, realmente lamentava que o seu avô Tructesindo não
matasse outrora o Bastardo, no fragor da briga, com uma dessas cutiladas
maravilhosas, e tão doces de celebrar, que racham o Cavaleiro e depois
racham o ginete, e para sempre retinem na História.
Mas não! Sob a folhagem do azinheiro, os três Cavaleiros combinavam com
lentidão uma vingança terrifica. Tructesindo desejara logo recolher a Santa
Ireneia, alçar uma forca diante das barbacãs, no chão em que o seu filho rolara
morto, e nela enforcar, depois de bem açoitado, como vilão, o vilão que o
matara. O velho D. Pedro de Castro, porém, aconselhava despacho mais
curto, e também gostoso. Para que rodear por Santa Ireneia, desbaratar esse
dia de agosto na arrancada que os levava a Montemor, a socorro das Infantas
de Portugal? Que se estendesse o Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pés
de D. Tructesindo, como porco pelo Natal, e que um cavalariço lhe
chamuscasse as barbas, e depois outro, com facalhão de ucharia, o sangrasse
no pescoço, pachorrentamente.
— Que vos parece, Sr. D. Garcia?
O Sabedor desafivelara o casco de ferro, limpava nas rugas o suor e a poeira
da lide:
— Senhores e amigos! Temos melhor, e perto também, sem delongas de
cavalgada, logo adiante destes cerros, no Pego das Bichas... E nem torcemos
caminho, que de lá, por Tordezelo e Santa Maria da Varge, endireitamos a
Montemor, tão direitos como voa o corvo... Confiai em mim, Tructesindo!
Confiai em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal morte e tão vil, que de
outra igual se não possa contar desde que Portugal foi condado.
— Mais vil que forca, para Cavaleiro, meu velho Garcia?
— Lá vereis, senhores e amigos, lá vereis!
— Seja! Mandai dar às buzinas.
Ao comando de Afonso Gomes, o Alferes, as buzinas soaram. Um troço de
besteiros e de estafeiros leoneses rodearam a mula que carregava o Bastardo
amarrado e entalado entre dois caixotes. E, acaudilhada por D. Garcia, a curta
hoste meteu para o Pego das Bichas, em desbando com os senhores de lança
espalhados, como em marcha de folgança e paz (?), e todos numa rija falada
recordando, entre gabos e risos, as proezas da lide.
As duas léguas de Tordezelo e do seu castelo formoso, se escondia entre os
cerros o Pego das Bichas. Era um lugar de eterno silêncio e de eterna tristeza.
Em esmerados versos lhe marcara o tio Duarte a desolada asperidão:
Nem trilo de ave em balançado ramo!
Nem fresca flor junto de fresco arroio!
Só rocha, matagal, ribas soturnas,
E no meio o Pego, tenebroso e morto!...
E quando os primeiros Cavaleiros, galgada a lomba de um cerro, o avistaram,
na melancolia da manhã nevoenta, emudeceram da larga falada, repuxaram os
freios, assustados perante tão áspero ermo, tão propício a Bruxas, a
Avantesmas e a Almas penadas. Diante do escalavrado barranco, por onde os
ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira, aberta com charcos
lamacentos, quase chupados pela estiagem, luzindo pardamente, por entre
grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo, a meio tiro de besta,
negrejava o Pego, lagoa estreita, lisa, sem uma ruga n''água, duramente negra,
com manchas mais negras, como lâmina de estanho onde alastrasse a
ferrugem do tempo e do abandono. Em torno subiam os cerros, eriçados de
mato bravio e alto, sulcados por trilhos de saibro vermelho como por fios de
sangue que escorresse, e rasgado no alto por penedias lustrosas, mais brancas
que ossadas. Tão pesado era o silêncio, tão pesada a soledade, que o velho D.
Pedro de Castro, homem de tanta jornada, se espantou:
— Feia paragem! E voto a Cristo, a Santa Maria, que nunca antes de nós,
nela entrou homem remido pelo batismo.
— Pois, Sr. D. Pedro de Castro! — acudiu o Sabedor já por aqui se moveu
muita lança, e luzida, e ainda em tempos do Conde D. Soeiro, e do vosso Rei
D. Fernando, se erguia naquela beira d''água, uma castelania famosa! Vede
além! — E mostrava na ponta do Pego, frente ao barranco, dois rijos pilares
de pedra, que emergiam da água negra, e que chuva e vento poliram como
mármores finos. Um passadiço de traves, sobre estacas limosas e meio
apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares. E a meio desse rude
esteio pendia uma argola de ferro.
No entanto já o tropel da peonagem se espalhara pela ribanceira. D. Garcia
Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel dos besteiros de
Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de Tructesindo, risonho e gozando a
surpresa, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens descessem o
Bastardo da mula, o estirassem no chão, o despissem, todo nu, como sua mãe
barregã o soltara à negra vida...
Tructesindo encarou o Sabedor, franzindo as sobrancelhas hirsutas:
— Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o vilão, e sujar
essa água inocente!...
E alguns Cavaleiros, em redor, murmuraram também contra morte tão quieta
e sem malícia. Mas os miúdos olhos de D. Garcia giravam, lampejavam de
triunfo e gosto:
— Sossegai, sossegai! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus
me consente algumas traças. Não! Nem enforcado, nem degolado, nem
afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e devagar, pelas grandes
sanguessugas que enchem toda essa água negra!
D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote:
— Vida de Cristo! Que ter numa hoste o Sr. D. Garcia, é ter juntamente,
para marchas e conselho, enrolados num só, Aníbal e Aristóteles!
Um rumor de admiração correu pela hoste:
— Boa traça, boa traça!
E Tructesindo, radiante, bradava:
— Andar, andar, besteiros! E vós, senhores, recuai para a lomba do cerro,
como para palanque, que vai ser grande a vista! Já seis besteiros
descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com molhos
de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rês, toda a rude turma se
abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a cervilheira,
o saio, as grevas, os sapatões de ferro, depois a grossa roupa de linho
encardido. Agarrado pelos compridos cabelos, filado pelos pés, onde se
cravavam agudas unhas no furor de o manter, com os braços esmagados sob
outros grossos braços retesos, o possante Bastardo ainda se estorcia, urrando,
cuspindo contra as faces confusas da matulagem um cuspo avermelhado, que
espumava!
Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido,
branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso urrar
esmorecia, arquejado e rouquenho. E um após outro se erguiam os besteiros,
esfalfados, bufando, limpando o suor do esforço.
No entanto os Cavaleiros de Espanha, de Santa Ireneia, desmontavam
cravando o couto das lanças entre o tojo e as pedras. Todos os recostos dos
outeiros se cobriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde de justa.
Sobre uma rocha mais lisa, que dois magros espinheiros toldavam de folha
rala, um pajem estendera peles de ovelha para o Sr. D. Pedro de Castro, para o
senhor de Santa Ireneia. Mas só o velho Castelão se acomodou, para uma
repousada delonga desafivelando o seu corselete de ferro tauxiado de ouro.
Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho
da sua alta espada, os olhos fundos avidamente cravados na tenebrosa lagoa
que, com morte tão fera e tão suja, vingaria seu filho... E pela borda do Pego,
peões, e alguns Cavaleiros de Espanha, remexiam com virotões, com os
coutos das ascumas, a água lodosa, na curiosidade das negras bichas
escondidas, que o povoam.
Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de peões
amontoada em torno ao Bastardo se arredou: e o forte corpo apareceu, nu e
branco, sobre a terra negra, com um denso pêlo ruivo nos peitos, a sua
virilidade afogada noutra mata de pêlo ruivo, e todo ligado por cordas de
cânave que o inteiriçavam. Naquela rigidez de fardo, nem as costelas arfavam
— apenas os olhos refulgiam, ensanguentados, horrendamente esbugalhados
pelo espanto e pelo furor. Alguns Cavaleiros correram a mirar a aviltada
nudez do homem famoso de Baião. O senhor dos Paços de Argelim mofou,
com estrondo:
— Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de ferida!...
Leonel de Samora raspou o sapato de ferro pelo ombro do malfadado:
— Vede este Claro-Sol, tão claro, que se apaga agora, em água tão negra!
O Bastardo cerrava duramente as pálpebras — donde duas grossas lágrimas
escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregão ressoou pela
ribanceira:
— Justiça! Justiça!
Era o Adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lança, atroava os
cerros:
— Justiça! justiça que manda fazer o senhor de Treixedo e de Santa
Ireneia, num perro matador!... Justiça num perro, filho de perra, que matou
vilmente, e assim morra vilmente por ela!...
Três vezes pregoou por diante da hoste apinhada nos cerros. Depois quedou,
saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro, como julgadores
no seu Estrado de julgamento.
— Aviai, aviai! — bradava o Senhor de Santa Ireneia.
Imediatamente, a um comando do Sabedor, seis besteiros, com as pernas
embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo como se
ergue um morto enrolado no seu lençol, e com ele entraram na água, até o
mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos de cordas, correram pelo
limoso passadiço de traves. Com um alarido de aguenta! endireita! alça! num
desesperado esforço o robusto corpo branco foi mergulhado n''água até as
virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois nele atado com um longo calabre
que, passando pela argola de ferro, o suspendia, sem escorregar, tão seguro e
colado como um rolo de vela que se amarra ao mastro. Rapidamente os
besteiros fugiram d''água, desentrapando logo as pernas, que palpavam,
raspavam no horror das bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo
passadiço, numa fila que se empurrava. No Pego ficava Lopo de Baião bem
arranjado para a vistosa morte lenta, com a água que já o afogava até as
pernas, com cordas que o enroscavam até o pescoço, como a um escravo no
poste; e uma espessa mecha dos cabelos louros laçada na argola de ferro,
repuxando a face clara, para que todos nela gozassem largamente a humilhada
agonia do Claro-Sol.
Então o atento da hoste, esperando espalhada pelos recostos dos cerros, mais
entristeceu o enevoado silêncio do ermo. A água jazia sem um arrepio, com as
suas manchas, negras como uma lâmina de estanho enferrujado. Entre as
cristas das rochas, arqueiros postados pelo Sabedor atalaiavam, para além, os
descampados. Um alto vôo de gralha atravessou grasnando. Depois um bafo
lento agitou as flâmulas das lanças cravadas no tojo denso.
Para despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns peões atiravam pedras à
água lodosa. Já alguns Cavaleiros espanhóis rosnavam impacientes com a
delonga, naquela cova abafada. Outros, descendo agachados à borda da lagoa,
para mostrar que as faladas bichas nunca acudiriam, mergulhavam lentamente,
n''água negra, as mãos descalçadas, que depois sacudiam, rindo e mofando do
Sabedor... Mas de repente um estremeção sacudiu o corpo do Bastardo; os
seus rijos músculos, no furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre
as cordas, como cobras que se arqueiam; dos beiços arreganhados romperam,
em rugidos, em grunhidos, ultrajes e ameaças contra Tructesindo covarde, e
contra toda a raça de Ramires, que ele emprazava, dentro do ano, para as
labaredas do Inferno! Indignado, um Cavaleiro de Santa Ireneia agarrou uma
besta de garrunche, a que retesou a corda.
Mas D. Garcia deteve o arremesso:
— Por Deus, amigo! Não roubeis às sanguessugas nem uma pinga daquele
sangue fresco!... Vede como vêm! vede como vêm!
Na água espessa, em torno às coxas mergulhadas do Bastardo, um frémito
corria, grossas bolhas empolavam — e delas, molemente, uma bicha surdiu,
depois outra e outra, luzidias e negras, que ondulavam, se colavam à branca
pele do ventre, donde pendiam, chupando, logo engrossadas, mais lustrosas
como lento sangue que já escorria. O Bastardo emudecera — e os seus dentes
batiam estridentemente. Enojados, até rudes peões desviaram a face cuspindo
para as urzes. Outros, porém, chasqueavam, assuavam as bichas, gritando: —
a ele, donzelas! a ele! E o gentil Çamora de Cendufe clamava rindo contra tão
insossa morte! Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo de
almorreimas. Nem era sentença de Rico-homem — mas receita de herbanista
mouro!
— Pois que mais quereis, meu Leonel? — acudiu alegremente o Sabedor,
resplandecendo. — Morte é esta para se contar em livros! E não tereis este
inverno serão à lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que não
volte a história deste Pego, e deste feito! Olhai nosso primo Tructesindo
Ramires! Formosos tratos presenciou decerto em tão longo lidar de armas!... E
como goza! tão atento! tão maravilhado!
Na encosta do outeiro, junto do seu balsão, que o Alferes cravara entre duas
pedras, e como ele tão quedo, o velho Ramires não despregava os olhos do
corpo do Bastardo, com deleite bravio, num fulgor sombrio. Nunca ele
esperara vingança tão magnífica! O homem que atara seu filho com cordas, o
arrastara numas andas, o retalhara a punhal diante das barbacãs da sua Honra
— agora, vilmente nu, amarrado também como cerdo, pendurado de um pilar,
emergido numa água suja, e chupado por sanguessugas, diante de duas
mesnadas, das melhores de Espanha, que miravam, que mofavam! Aquele
sangue, o sangue da raça detestada, não o bebia a terra revolta numa tarde de
batalha, escorrendo de ferida honrada, através de rija armadura — mas, gota a
gota, escuramente e molemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que
surdiam famintas do lodo e no lodo recaíam fartas, para sobre o lodo bolçar o
orgulhoso sangue que as enfartara. Num charco, onde ele o mergulhara,
viscosas bichas bebiam sossegadamente o Cavaleiro de Baião! Onde houvera
homizio de solares fundado em desforra mais doce?
E a fera alma do velho acompanhava, com inexorável gozo, as sanguessugas
subindo, espalhadamente alastrando por aquele corpo bem amarrado, como
seguro rebanho pela encosta da colina onde pasta. O ventre já desaparecia sob
uma camada viscosa e negra, que latejava, reluzia na humidade morna do
sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ânsia, donde sangue se esfiava,
numa franja lenta. O denso pêlo ruivo do peito, como a espessura de uma
selva, detivera muitas, que ondulavam, com um rasto de lodo. Um montão
enovelado sangrava um braço. As mais fartas, já inchadas, mais reluzentes,
despegavam, tombavam molemente; mas logo outras, famintas, se aferravam.
Das chagas abandonadas o sangue escorria delgado, represo nas cordas, donde
pingava como uma chuva rala. Na escura água boiavam gordas postemas de
sangue esperdiçado. E assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda
rugia, através ultrajes imundos, ameaças de mortes, de incêndios, contra a raça
dos Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quase estalavam, a
boca horrendamente escancarada e ávida, rompia aos roucos urros,
implorando água, água! No seu furor as unhas, que uma volta de amarras lhe
colara contra as fortes coxas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na fenda
esfarrapada, ensopadas de sangue.
E o furioso tumulto esmorecia num longo gemer cansado — até que parecia
adormecido nos grossos nós das cordas, as barbas reluzindo sob o suor que as
alagara como sob um grosso orvalho, e entre elas a espantada lividez de um
sorriso delirado.
No entanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se
embotara a curiosidade bravia daquele suplício novo. E se acercava a hora da
ração de meridiana. O Adail de Santa Ireneia, depois o Almocadém Espanhol,
mandaram soar os anafins. Então todo o áspero ermo se animou com uma
faina de arraial. O almazém das duas mesnadas parara por detrás dos morros,
numa curta almargem de erva, onde um regato claro se arrastava nos seixos,
por entre as raízes de amieiros chorões. Numa pressa esfaimada, saltando
sobre as pedras, os peões corriam para a fila dos machos de carga, recebiam
dos uchões e estafeiros a fatia de carne, a grossa metade de um pão escuro; e,
espalhados pela sombra do arvoredo, comiam com silenciosa lentidão,
bebendo da água do regato pelas concas de pau. Depois preguiçavam,
estirados na relva — ou trepavam em bando pela outra encosta dos morros,
através do mato, na esperança de atravessar com um virote alguma caça
erradia. Na ribanceira, diante da lagoa, os Cavaleiros, sentados sobre grossas
mantas, comiam também, em roda dos alforjes abertos, cortando com os
punhais nacos de gordura nas grossas viandas de porco, empinando, em
longos tragos, as bojudas cabaças de vinho.
Convidado por D. Pedro de Castro, o velho Sabedor descansava, partilhando
de uma larga escudela de barro, cheia de bolo papal, de um bolo de mel e flor
de farinha, onde ambos enterravam lentamente os dedos, que depois
limpavam ao forro dos morriões. Só o velho Tructesindo não comia, não
repousava, hirto e mudo diante do seu pendão, entre os seus dois mastins,
naquele fero dever de acompanhar, sem que lhe escapasse um arrepio, um
gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo. Debalde o Castelão,
estendendo para ele um pichel de prata, gabava o seu vinho de Tordesilhas,
fresco como nenhum de Aquilat ou de Provins, para a sede de tão rija
arrancada. O velho Rico-homem nem atendera: — e D. Pedro de Castro,
depois de atirar dois pães aos alões fiéis, recomeçou discorrendo com Garcia
Viegas sobre aquele teimoso amor do Bastardo por Violante Ramires que
arrastara a tantos homizios e furores.
— Ditosos nós, Sr. D. Garcia! Nós a quem a idade e o quebranto e a
fartura já arredam dessas tentações... Que a mulher, como me ensinava certo
físico quando eu andava com os Mouros, é vento que consola e cheira bem,
mas tudo enrodilha e esbandalha. Vede como os meus por elas penaram! Só
meu pai, com aquela desvairança de zelos, em que matou a cutelo minha doce
madre Estevaninha. E ela tão santa, e filha do Imperador! A tudo, tudo leva, a
tonta ardência! Até a morrer, como este, sugado por bichas, diante de uma
hoste que merenda e mofa. E por Deus, quanto tarda em morrer, Sr. D.
Garcia!
— Morrendo está, Sr. D. Pedro de Castro. E já com o demo ao lado para o
levar!
O Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensanguentadas todo ele era uma
ascorosa avantesma escarlate e negra com as viscosas pastas de bichas que o
cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada ferida escorriam,
mais copiosos que os regos de umidade por um muro denegrido.
O desesperado arquejar cessara, e a ânsia contra as cordas, e todo o furor.
Mole e inerte como um fardo, apenas a espaços esbugalhava horrendamente
os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a
face abatia, lívida e flácida, com o beiço pendurado, escancarando a boca em
cova negra, de onde se escoava uma baba ensanguentada. E das pálpebras
novamente cerradas, intumescidas, um muco gotejava, também como de
lágrimas engrossadas com sangue.
A peonagem, no entanto, voltando da ração, reatulhava a ribanceira, pasmava,
com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda sugavam. Já os
pajens recolhiam mantéis e alforjes. D. Pedro de Castro descera do cabeço
com o Sabedor até a borda da água lodosa, onde quase mergulhava os sapatos
de ferro, para contemplar, mais de cerca, o agonizante de tão rara agonia! E
alguns senhores, estafados com a delonga, afivelando os gibanetes,
murmuravam: — "Está morto! Está acabado!"
Então Garcia Viegas gritou ao Coudel dos Besteiros:
— Ermigues, ide ver se ainda resta alento naquela postema.
O Coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado de nojo palpou a lívida
carne, acercou da boca, toda aberta, a lâmina clara da adaga que
desembainhara.
— Morto! morto! — gritou.
Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava,
engelhado, chupado, esvaziado. O sangue já não manava, havia coalhado em
postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, reluzindo. E outras
ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra tapava um
olho. O Claro-Sol não era mais que uma imundície que se decompunha. Só a
madeixa dos cabelos louros, repuxada, presa na argola, reluzia com um
lampejo de chama, como rastro deixado pela ardente alma que fugira.
Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avançou para o
senhor de Santa Ireneia, bradou:
— Justiça está feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu!
Então o velho Rico-homem, atirando o braço, o cabeludo punho, com
possante ameaça, bradou, num rouco brado que rolou por penhascos e cerros:
— Morto está! E assim morra de morte infame quem traidoramente me
acara a mim e aos da minha raça!
Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, através do mato, e com
um largo aceno ao Alferes do Pendão:
— Afonso Gomes, mandai dar às buzinas. E a cavalo, se vos praz, Sr. D.
Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...
O Castelão ondeou risonhamente o guante:
— Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vós. A
cavalo pois se vos praz! Que nos promete aqui o Sr. D. Garcia vermos ainda,
com sol muito alto, os muros de Montemor.
Já a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzéis de armas puxavam para a
ribanceira os ginetes folgados que a vasta água escura assustava. E, com os
dois balsões tendidos, o Açor negro, as Treze Arruelas, a fila da cavalgada
atirou o trote pelo barranco empinado, donde as pedras soltas rolavam. No
alto, alguns Cavaleiros ainda se torciam nas selas para silenciosamente
remirarem o homem de Baião, que lá ficava, amarrado ao pilar, na solidão do
Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos besteiros e fundibulários de Santa
Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com chufas, sujas injúrias ao "perro
matador". A meio da escarpa, um besteiro, virando, retesou furiosamente a
besta. A comprida garruncha apenas varou a água. Outra logo ziniu, e uma
bala de funda, e uma seta barbada — que se espetou na ilharga do Bastardo,
sobre um negro novelo de bichas. O Coudel berrou: "cerra! anda!" A récua
das azêmolas de carga avançava, sob o estalar dos látegos; os rapazes da
carriagem apanhavam grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os
servos carreteiros marcharam, nos seus curtos saios de couro cru, balançando
um chuço curto: — e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que
chapou na face do Bastardo sobre as finas barbas de ouro.