Capítulo IX

À porta da cozinha, sacudindo um sobrescrito já amarrotado, Gonçalo ralhava
com a Rosa cozinheira:
— Oh Rosa! pois tanto lhe recomendei que não escrevesse à mana
Graça?... Que teimosa! Então não arranjávamos a pequena, sem essas lamúrias
para Oliveira? Graças a Deus, a Torre é larga bastante para mais uma
criancinha!
É que morrera a Críspola — a desgraçada viúva, vizinha da Torre, que com
um rancho miúdo de dois pequenos, três raparigas, definhava no catre desde a
Páscoa. E agora Gonçalo, que mantivera o casebre em fartura, andava
acomodando as pobres crianças — já por cuidado dele muito asseadamente
vestidas de luto. A rapariga mais velha (também Críspola), sempre encafuada
na cozinha da Torre, passava regularmente a "ajudante da Rosa", com soldada.
Um dos rapazes, de doze anos, espigado e esperto, também Gonçalo o
empregava na Torre como andarilho, para os recados, com fardeta de botões
amarelos. O outro, mole e ranhoso, mas com o jeito e o amor de carpinteirar,
já Gonçalo, sob o patrocínio da tia Louredo, o colocara em Lisboa, na Oficina
de S. José. de uma das outras raparigas se encarregava a mãe de Manuel
Duarte, amorável senhora que habitava uma quinta formosa junto a Treixedo,
e adorava Gonçalo de quem se considerava "vassala". Mas para a mais
novinha e a mais fraquinha não se arranjava amparo sólido. A Rosa lembrara
então — "que certamente a Sra. D. Maria da Graça recolheria a criaturinha..."
Gonçalo rosnara com secura: — "Oh! por uma côdea mais de pão não se
necessita incomodar a cidade de Oliveira!" Rosa, porém, enlevada na obra,
desejando para pequerrucha tão franzina e loira o agasalho de uma senhora,
escrevera a Gracinha, pela esmerada letra do Bento, uma verbosa carta com o
pedido, e toda a história lamentosa da Críspola, e louvores devotos à caridade
do Sr. Doutor. E era a resposta de Gracinha, demorada mas enternecida, com
a recomendação "de lhe mandarem logo a pobre criança" — que impacientava
o Fidalgo.
Porque, desde a tarde abominável do Mirante, estranhamente se apoderara
dele uma repugnância quase pudica em comunicar com os Cunhais! Era como
se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes cor-de-rosa
empestassem o jardim, o Palacete, o largo d''El-Rei, toda a cidade de Oliveira,
e ele agora, por asseio moral, recuasse perante essa região empestada onde o
seu coração e o seu orgulho sufocavam... Logo depois da sua fuga recebera do
bom Barrolo uma carta espantada: — "Que telha foi essa? porque não
esperaste? Eu, quando voltei à noite da quinta do Marges, até fiquei com
cuidado. E não imaginas como a Gracinha anda nervosa! Soubemos da
partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Já hoje comemos os pêssegos,
mas não compreendemos!...
Gonçalo respondeu secamente num bilhete: "Negócios". Depois recordou
que deixara na gaveta do seu quarto o manuscrito da Novela; e mandou um
jovem da quinta, de madrugada, com um recado quase secreto ao Padre
Soeira, "para que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar
aos senhores..." Entre a Torre e os Cunhais só desejava separação e silêncio.
E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a Vila-Clara, no
terror de que a vergonha do seu nome já andasse rosnada pelo estanco do
Simões ou pelo armazém do Ramos) não cessou de vibrar numa cólera
espalhada que a todos varava... Cólera contra a irmã que, calcando pudor,
altivez de raça, receio dos escárnios de Oliveira, tão fácil e estouvadamente
como se calcam as flores desbotadas de um tapete, correra ao Mirante, ao
macho da bigodeira, apenas ele lhe acenara com o lenço almiscarado! Cólera
contra o Barrolo, o bochechudo bacoco, que empregava os seus bacocos dias
celebrando o Cavaleiro, arrastando o Cavaleiro para o largo d''El-Rei,
escolhendo na adega os vinhos mais finos para que o Cavaleiro aquecesse o
sangue, ajeitando as almofadas de todos os canapés para que o Cavaleiro
saboreasse estiradamente o seu charuto e a graça presente de Gracinha! Enfim
cólera contra si, que, pela baixa cobiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a
única muralha segura entre a irmã e o homem da marrafa luzente — que era a
sua inimizade, aquela escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tão
rijamente reforçada e recaiada!... Ah! todos três horrendamente culpados!
Depois, uma tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio por Vila-Clara. E
reconheceu que na Assembleia, no estanco do Simões, na loja do Ramos, os
amores de Gracinha eram certamente tão ignorados como se passassem nas
profundidades da Tartária. Imediatamente a sua alma doce, agora sossegada,
se abandonou à doçura de tecer desculpas sutis para todos os culpados
daquela queda triste... Gracinha, coitada, sem filhos, com tão molengo e
insosso marido, alheia a todos os interesses da inteligência, indolente mesmo
para uma costura ou bordado cedera, que mulher não cederia? à crédula e
primitiva paixão que lhe brotara na alma, nela se enraizara, lhe dera as suas
únicas alegrias do mundo e (influência ainda mais poderosa!) lhe arrancara as
suas únicas lágrimas! O Barrolo, coitado, era o Bacoco — e como o
"pilriteiro" da cantiga, incapaz de mais nobres frutos, só produzia os "pilritos"
da sua Bacoquice. E ele, coitado dele, pobre, ignorado, irresistivelmente se
rendera à fatal Lei de Acrescentamento, que o levara, como a todos leva na
ânsia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual que se
abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os umbrais... Ah realmente
todos bem pouco culpados diante de Deus que nos criou tão variáveis, tão
frágeis, tão dependentes de forças por nós ainda menos governadas do que o
Vento ou do que o Sol!
Não, irremissivelmente culpado — só o outro, o malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conduta com Gracinha, desde estudante,
mostrara sempre um egoísmo atrevido, só punível como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcaça posta aos corvos.
Enquanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um namoro bucólico
sob os arvoredos da Torre — namorara. Quando considerou que uma mulher
e filhos lhe atravancariam a vida ligeira — traíra. Logo que a antiga bemamada
pertenceu a outro homem — recomeçara o cerco lânguido para colher,
sem os encargos da paternidade, as emoções do sentimento. E apenas esse
marido lhe entreabre a sua porta — não se demora, fende brutalmente sobre a
presa! Ah como o avô Tructesindo trataria vilão de tal vilania! Certamente o
assava numa rugidora fogueira diante das barbacãs — ou, nas masmorras da
Alcáçova, lhe entupia as goelas falsas com bom chumbo derretido...
Pois ele, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavaleiro nas ruas de Oliveira, carregar o chapéu sobre a testa e passar! A
menor diminuição nessa intimidade tão desastradamente reatada — seria
como a revelação da torpeza ainda abafada nas paredes do Mirante! Toda
Oliveira cochicharia, riria. — "Olha o Fidalgo da Torre! Mete o Cavaleiro nos
Cunhais com a irmã, e logo, passadas semanas, rompe de novo com o
Cavaleiro! Houve escândalo, e gordo!" — Que delícia para as Lousadas! Não,
ao contrário! agora devia ostentar pelo Cavaleiro uma fraternidade tão larga e
tão ruidosa — que, pela sua largueza e o seu ruído, inteiramente tapasse e
abafasse o sujo enredo que por trás latejava. Fingimento torturante — e
imposto pela honra do nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais
densos arvoredos do jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante! — e por
fora, ao sol, nas praças de Oliveira, ele sempre com o braço carinhosamente
enlaçado no braço do Cavaleiro!
Os dias rolavam — e no espírito de Gonçalo não se estabelecia serenidade. E
sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade vistosa com
o Cavaleiro — tanto pelo cuidado do seu nome, como pela conveniência da
sua Eleição. Toda a sua altivez por vezes se revoltava: — "Que me importa a
Eleição! Que valor tem uma encardida cadeira em S. Bento? Mas logo a seca
Realidade o emudecia. A Eleição era a única fenda por onde ele lograria
escapar do seu buraco rural; e, se rompesse com o Cavaleiro, esse vilão,
vezeiro a vilanias, imediatamente, com o apoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Vila-Clara... Desgraçadamente ele era um
desses seres vergados que dependem. E a triste dependência de onde
provinha? Da pobreza — dessa escassa renda de duas quintas, abastança para
um simples, mas pobreza para ele, com a sua educação, os seus gostos, os seus
deveres de fidalguia, o seu espírito da sociabilidade.
E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro
pensamento — à D. Ana Lucena, aos seus duzentos contos... Até que uma
manhã encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora: — casar com
a D. Ana! — porque não? Ela claramente lhe mostrara inclinação, quase
consentimento... porque não casaria com a D. Ana?
Sim! o pai carniceiro, o irmão assassino... Mas também ele, entre tantos avós
até os Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro; e a ocupação dos
Ramires, através dos séculos heroicos, consistira realmente em assassinar. De
resto o carniceiro e o assassino, ambos mortos, sombras remotas, pertenciam
a uma Lenda que se apagava. D. Ana, pelo casamento, subira da Populaça
para a Burguesia. Ele não a encontrava no talho do pai, nem no valhacouto do
irmão — mas na quinta da Feitosa, já Rica-dona, com procurador, com
capelão, com lacaios, como uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a
hesitação era pueril — desde que esses duzentos contos, de dinheiro muito
limpo, de bom dinheiro rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa
e séria. Com esse puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria
para dominar na Política a refalsada mão do Cavaleiro... E depois que vida
nobre e completa! A sua velha Torre restituída ao esplendor sóbrio doutras
eras; uma lavoura de luxo no histórico torrão de Treixedo; as viagens fecundas
às terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos não lhes
amargava o gozo, como em tantos casamentos ricos, com a sua fealdade, os
seus agudos ossos, ou a sua pele relentada... Não! Depois do brilho social do
dia não o esperava na alcova um mostrengo — mas Vénus.
E assim, lentamente trabalhado por estas tentações, mandou uma tarde um
bilhete à prima Maria, à Feitoso, pedindo — para se encontrarem, sós, nalgum
passeio dos arredores, porque desejava ter com ela uma conversazinha séria e
íntima..." Mas três imensos dias se arrastaram — e não apareceu a almejada
carta da Feitoso. Gonçalo concluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a
natureza da conversazinha e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se
recusava. Atravessou então uma desolada semana, remoendo a melancolia de
uma vida que sentia oca e toda feita de incertezas. O orgulho, um pudor
complicado, não lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto donde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cúpula do Mirante com o
seu gordo Cupido: — e quase o arrepiava a ideia de beijar a irmã na face que o
outro babujara! Sobre a Eleição descera um silêncio de abóbada — e outra
repugnância, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavaleiro. João Gouveia
gozava as suas férias na costa, de sapatos brancos, apanhando conchinhas na
praia. E Vila-Clara não se tolerava nesse meado ardente de setembro — com
o Titó no Alentejo onde o levara uma doença do velho morgado de
Cidadelhe, o Manuel Duarte na quinta da mãe dirigindo as vindimas, e a
Assembleia deserta e adormecida sob o inumerável sussurro das moscas...
Para se ocupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto de Arte,
retomou a sua Novela. Mas sem fervor, sem veia ágil. Agora era a sanhuda
arrancada de Tructesindo e dos seus Cavaleiros, correndo sobre o Bastardo de
Baião. Lance dificultoso — reclamando fragor, um rebrilhante colorido
medieval. E ele tão mole e tão apagado!... Felizmente, no seu Poemeto, o tio
Duarte recheara esse violento trecho de bem apinceladas paisagens, de
interessantes rasgos de guerra.
Logo na ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrépita ponte cujos rotos barrotes e tabuões carcomidos entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acauteladamente a
desmantelara para deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de Santa
Ireneia avançou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos em
demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as derradeiras mulas
de carga choutaram na terra de além-ribeira já a tarde se adoçava, e nas poças
d''água, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda de ouro pálido, outras
apenas rosadas. Imediatamente Dom Garcia Viegas, o Sobedor, aconselhou
que a mesnada se dividisse: — a peonagem e a carga avançando para
Montemor, esgueirada e calada, para esquivar recontros; os senhores de lança
e os besteiros de cavalo arrancando em dura carreira para colher o Bastardo.
Todos louvaram o ardil do Sabedor; e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de
arqueiros e fundibulários, largou, soltas as rédeas, através de terras ermas,
depois por entre barrocais, até aos Três-Caminhos, desolada chã onde se
ergue solitariamente aquele carvalho velhíssimo que outrora, antes de
exorcizado por S. Froalengo, abrigava no sábado mais negro de janeiro, ao
clarão de archotes enxofrados a Grande Ronda de todas as bruxas de
Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada; e, alçado nos
estribos, farejava as três sendas que se trifurcam e se encovam entre ásperos,
lôbregos cerros de bravio e de tojo. Passara aí o Bastardo malvado?... Ah! por
certo passara e toda a sua maldade — porque no respaldo de uma fraga, junto
a três cabras magras retouçando o mato, jazia, com os braços abertos, um
pobre pastorinho morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro
não soprasse novas da gente de Baião — uma bruta seta lhe atravessara o
peito escamado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhara o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suão que rolava de
entremontes, não apareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em tal
solidão, nem choça ou palhoça donde vilão ou velha alapada espreitassem à
levada do bando... Então, ao mando do Alferes Afonso Gomes, três
almograves despediram pelos três caminhos à descoberta — enquanto os
Cavaleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões para limpar nas faces
barbudas o suor que os alagava, ou aproximavam os ginetes de um sumido fio
d''água que à orla da chã se arrastava entre ralo caniçal. Tructesindo não se
arredou de sob a ramaria do carvalho de S. Froalengo, imóvel sobre o murzelo
imóvel, todo cerrado no ferro da sua negra armadura, as mãos juntas sobre a
sela e o elmo pesadamente inclinado como em mágoa e oração. E ao lado,
com as coleiras eriçadas de pregos, as sangrentas línguas penduradas,
arquejavam, estirados, os seu dois mastins.
Já no entanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha quando o almograve
que metera pela senda de Nascente reapareceu num rolo de poeira, atirando
logo o alarde de longe, com a escuma alta. A hora escassa de carreira avistara
num cabeço uma hoste acampada, em arraial seguro, rodeado de estaca e
vala!...
— Que pendão?
— As treze arruelas.
— Deus louvado! — gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando.
— E D. Pedro de Castro, o Castelão, que entrou com os Leoneses e vem
pelas senhoras Infantas!
Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas já pela senda de
Poente recolhia outro almograve contando que entre cerros, num pinhal,
topara um bando de bufarinheiros genoveses, retardados desde alva, porque
um deles esmorecera com mal de febres. E então?... — Então, pela borda do
pinheiral apenas passara em todo o dia (no jurar dos genoveses) uma
companhia de truões voltando da feira de Graelos. Só restava pois o trilho do
meio, pedregoso e esbarrancado como o leito enxuto de uma torrente. E por
ele, a um brado de Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepúsculo
tristíssimo descia — e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno,
infindável, entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma
sebe, rasto de rês ou homem. Ao longe, mais ao longe, enfim, enxergaram a
campina árida, coberta de solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até a um
céu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente cor de cobre e
cor de sangue. Então Tructesindo deteve a abalada, rente de espinheiros que
se torciam nas lufadas mais rijas do suão:
— Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem esperança!...
Que pensais, Garcia Viegas?
Todo o bando se apinhara; e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes sob
as coberturas de malha. O Sabedor estendeu o braço:
— Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou de escapada essa campina
além, e meteu a Vale-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que é
bem afortalezada e parenta de Baião...
— E nós, pois, D. Garcia? — Nós, senhores e amigos, só nos resta
também pernoitar. Voltemos aos Três-Caminhos. E de lá, em boa avença, ao
arraial do Sr. D. Pedro de Castro, a pedir agasalho.. A par de tamanho senhor
encontraremos mais fartamente que nos nossos alforjes o que todos, cristãos e
brutos, vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos três
golpes rijos...
Todos bradaram com alvoroço: — ''Bem traçado! bem traçado"... — E de
novo, pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pesadamente para os TrêsCaminhos —
onde já dois corvos se encarniçavam sobre o corpo do pastorinho morto.
Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as
tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo ele fumegavam. O
Adail de Santa Ireneia arrancou da buzina três sons lentos anunciando Filhode-Algo.
Logo de dentro da estacada outras buzinas soaram, claras e acolhedoras. Então o
Adail galopou até o valado, a anunciar às atalaias
postadas nas barreiras, entre luzentes fogos de almenara, a mesnada amiga dos
Ramires. Tructesindo parara no córrego escuro, que o pinheiral cerrado mais
escurecia movendo e gemendo no vento. Dois Cavaleiros, de sobreveste negra
e capuz, logo correram pelo pendor do outeiro — bradando que o Sr. D.
Pedro de Castro esperava o nobre senhor de Santa Ireneia e muito se prazia
para todo seu regalo e serviço! Silenciosamente Tructesindo desmontou; e
com D. Garcia Viegas, e Leonel de Samora e Mendo de Briteiros e outros
parentes do solar, todos sem lança ou broquel, descalçados os guantes,
galgaram o cabeço até a estacada, cujas cancelas se escancararam, mostrando,
na claridade incerta dos fogaréus sombrios, magotes de peões — onde, por
entre os bacinetes de ferro, surgiam toucas amarelas de mancebas e gorros
enguizalhados de jograis. Apenas o velho assomou aos barrotes dois
infanções, sacudindo a espada, bradaram:
— Honra! honra! aos Ricos-homens de Portugal!
As trompas misturavam o clangor ríspido aos rufos lassos dos tambores. E
por entre a turba, que caladamente recuara em alas lentas, avançou, precedido
por quatro Cavaleiros que erguiam archotes acesos, o velho D. Pedro de
Castro, o Castelão, o homem das longas guerras e dos vastos senhorios. Um
corselete de anta com lavores de prata cingia o seu peito já curvado, como
consumido por tamanhas fadigas de lutar e tamanhas cobiças de reinar. Sem
elmo, sem armas, apoiava a mão cabeluda de rijas veias a um bastão de
marfim. E os olhos encovados faiscavam, com afável curiosidade, na
requeimada magreza da face, de nariz mais recurvo que o bico de um falcão,
repuxada a um lado por um fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda
e quase branca.
Diante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:
— Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...
Ao rematar este duro Capítulo, depois de três manhãs de trabalho, Gonçalo
arrojou a pena com um suspiro de cansaço. Ah! já lhe entrava a fartura dessa
interminável Novela, desenrolada como um novelo solto — sem que ele lhe
pudesse encurtar os fios, tão cerradamente os emaranhara no seu denso
Poema o tio Duarte que ele seguia gemendo! E depois nem o consolava a
certeza de construir obra forte. Esses Tructesindos, esses Bastardos, esses
Castros, esses Sabedores eram realmente varões Afonsinos, de sólida
substância histórica?... Talvez apenas ocos títeres, mal engonçados em erradas
armaduras, povoando inverídicos arraiais e castelos, sem um gesto ou dizer
que datassem das velhas idades!
E ao outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquela
sôfrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadiço de Baião. De
resto já remetera três Capítulos da Novela — já calmara as ânsias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou nessa semana, arrastada pelos
canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente sentindo que
a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar acrescia um aborrecimento de
dinheiro — uma letra de seiscentos mil réis, do derradeiro ano de Coimbra,
sempre reformada, sempre avolumada, e que agora o emprestador, um certo
Leite, de Oliveira, reclamava com dureza. O seu alfaiate de Lisboa também o
importunava com uma conta pavorosa, atulhando duas laudas. Mas sobretudo
o desolava a solidão da Torre. Todos os alegres amigos dispersos pela beiramar
ou nas quintas. A Eleição encalhada como uma barca no lodo. A irmã
decerto com o outro no Mirante. Até a prima Maria, desatendendo
ingratamente o seu tímido pedido de uma "conversazinha". E ele no seu
quente casarão, sem energia, imobilizado numa inércia crescente, como se
cordas o travassem, cada dia mais apertadas — e de homem se volvesse em
fardo.
Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavalo, espairecer num galope pelos
caminhos de Valverde — quando o pequeno da Críspola já estabelecido na
Torre como pajem, de fardeta de botões amarelos) bateu esbaforidamente à
porta. — Era uma senhora que parara ao portão, dentro de uma carruagem,
pedia ao Fidalgo para descer...
— Não disse o nome''?
— Não, senhor. E uma senhora magra, puxada a dois cavalos, com redes...
A prima Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide do corredor
um velho chapéu de palha! E embaixo foi como se contemplasse a Deusa da
Fortuna na sua roda ligeira.
— Oh prima Maria, que surpresa!... Que felicidade!
Debruçada da portinhola da carruagem (a caleche azul da Feitosa), D. Maria
Mendonça, com um chapéu novo enramalhetado de lilases, desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silêncio. Recebera a carta do primo muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, trôpego e bêbedo... Depois uns dias muito
atarefados em Oliveira com a Anica, que preparava para o inverno a casa da
rua das Velas.
— E finalmente, como devia uma visita em Vila-Clara à pobre Venância
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na
Torre... E então?
Gonçalo sorria, embaraçado:
— Então, nada de grave, mas... É que desejava conversar consigo... porque
não entra?
Abrira a portinhola. Ela preferia passear na estrada. E ambos se
encaminharam para o velho banco de pedra que os álamos abrigavam em
frente ao portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o lenço a ponta do banco.
— Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas é difícil, tão difícil!...
Talvez o melhor seja atacar a questão brutalmente.
— Ataque.
— Então lá vai!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar à
sua amiga D. Ana?
Pousada de leve à borda do banco, enrolando atentamente a seda preta do
guarda-solinho, Maria Mendonça tardou, murmurou:
— Não, acho que o primo não perde o seu tempo...
— Ah! acha?
Ela considerava Gonçalo, gozando a sua perturbação e ansiedade.
— Jesus, prima!... Diga alguma coisa mais!
— Mas que quer que lhe diga mais? Já lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a Anica
é bonita, é rica, é viúva...
Gonçalo arrancou do banco, erguendo os braços, em desolação. E, como D.
Maria também se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
álamos. Ele quase gemia, desconsolado:
— Ora, bonita, viúva, rica... Para conhecer esses grandes segredos não a
incomodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A prima
sabe, decerto já ambas conversaram... Seja franca. Ela tem por mim alguma
simpatia?
D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guarda-solinho o trilho
amarelado da relva:
— Pois está claro que tem...
— Bravo! Então, se daqui a um tempo, passados estes primeiros meses de
luto, eu me declarasse, me...
Ela dardejou a Gonçalo os espertos olhos:
— Santo Deus, como o primo por aí vai, a galope... Então é uma paixão?
Gonçalo tirou o seu velho chapéu de palha, passou lentamente os dedos pelos
cabelos. E num imenso e triste desabafo:
— Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me acomodar na vida! Pois
não lhe parece?
— Tanto me parece que lhe indiquei o bom pouso... E agora adeus, passa
das cinco horas. Não me quero demorar por causa dos criados.
Gonçalo protestou, suplicou:
— Mais um bocadinho!... E tão cedo! Só outra coisa, com franqueza. Ela é
boa rapariga?
D. Maria voltara, ao cabo do renque de álamos, recolhendo à caleche:
— Uma pontinha de génio, para animar a existência. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admirável! O primo não imagina como anda a
Feitosa. A ordem, o asseio, a regularidade, a disciplina... Ela olha por tudo, até
pela adega, até pela cocheira!
Gonçalo esfregou radiantemente as mãos:
— Pois se daqui a um ano se realizar o grande acontecimento hei de gritar
por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a Casa de Ramires!
— Por isso eu trabalho, para servir o brasão e o nome! — exclamou ela,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada aquela clara
confissão.
O trintanário trepara à almofada. E enquanto os cavalos folgados largavam,
aos corcovos, D. Maria ainda gritou:
— Sabe quem encontrei em Vila-Clara? O Titó!
— O Titó?...
— Chegou do Alentejo, vem jantar consigo. Eu não o trouxe na carruagem
por decência, para o não comprometer...
E a caleche rolou — entre os risos e os doces acenos com que ambos se
alagavam, naquela nova concordância mais calorosa de uma conspiração
sentimental.
Gonçalo largou logo alegremente para Vila-Clara, ao encontro do Titó. E já o
alvoroçava a ideia de colher do Titó, íntimo da Feitosa, informações sobre a
D. Ana, o seu génio, os seus modos. A prima Maria, por amor dos Ramires
(sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonças!), idealizava a noiva. Mas o
Titó, o homem mais verídico do Reino, amando a Verdade com a antiga
devoção de Epaminondas, apresentaria D. Ana sem um enfeite nem um
desenfeite. E o Titó... Ah! sob o seu vozeirão troante, a sua indolência bovina,
o Titó possuía um espírito muito atento, muito penetrante.
Logo à Portela os dois amigos se encontraram. E, apesar de separação tão
curta, o abraço foi estrondoso.
— Ó sõ Gonçalão!...
— Ó Titozinho querido! tens feito cá uma falta enorme!... e o teu irmão?
— O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapácio e muita fêmea para
velho de sessenta anos. E ele lá o avisara: — "Mano João, mano João! olhe
que assim sempre agarrado aos papéis velhos e às cachopas novas, o mano
rebenta!" — E por cá? Essa eleição?
— A eleição agora para outubro, nos começos de outubro... De resto,
sensaboria universal. Gouveia na costa, Manuel Duarte na vindima... Eu
secadote, murchote, sem veia, até sem apetite.
— Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.
— Bem sei, já me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre...
Ela está na Feitosa com a D. Ana.
Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na Feitosa,
com a tentação de desabafar, logo ali na estrada, sobre o inesperado romance
que desabrochara. Mas não ousou! Era um angustiado acanhamento, como a
vergonha de cobiçar assim todos os restos do pobre Lucena — o Círculo e a
viúva.
Então, conversando do Alentejo e do mano João (que contara muitas
antigualhas maçadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da Portela à
Torre, com tenção de estirar o passeio até aos Bravais. Mas, na Torre,
Gonçalo desejou avisar a Rosa dos dois convivas inesperados, senhores de tão
poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio lento d''água se
atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo a Rosa acudiu,
limpando as mãos ao avental. O quê! dois convidados! Mesmo quatro, e mais
valentes, que graças a Deus nosso Senhor o jantarinho sobrava! Ainda de
tarde comprara a uma mulher da Costa um cesto de sardinhas, graúdas e
gordas que regalavam!... O Titó reclamou logo uma fritada tremenda de
sardinha e ovos. E os dois amigos atravessavam o pátio — quando Gonçalo
reparou no Bento, escarranchado no banco da latada, diante de uma tigela, e
areando com entusiasmo um castão de prata lavrada, que emergia de dentro
de uma toalha enrolada como de uma bainha.
— Que castão é esse, Bento? assim embrulhado?
O Bento lentamente sacou da toalha torcida um chicote, escuro e comprido,
com três arestas afiadas como as de um florete.
— Nem o Sr. Dr. sabia! Estava no sótão. Agora de tarde andava lá a
escarafunchar por causa de uma ninhada de gatos, e detrás de um baú dou
com umas esporas de prateleira e com este arrocho...
Gonçalo estudou o maciço castão de prata, sacudiu a fina vara que zinia:
— Esplêndido chicote... Ó Titó, bem?... Afiado como um cutelo. E antigo,
muito antigo, com as minhas armas... De que diabo é feito? baleia?
— De cavalo-marinho... Uma arma terrível. Mata um homem... O mano
João tem um, mas com castão de metal... Mata um homem!
— Bem — rematou Gonçalo. — Limpa e põe no meu quarto, Bento!
Passa a ser o meu chicote de guerra!
Á porta do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de quinzena de
cotim deitada aos ombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira tomava
enfim a lavra da Torre. E Gonçalo gracejou, mostrando ao Titó o lavrador
famoso. Eis o homem! eis o grande homem que se preparava a tornar a Torre
uma falada maravilha de seara, vinha e horta! O Pereira coçava a barba rala:
— E também a enterrar bom dinheiro! Enfim um gosto sempre valeu mais
que um vintém! E o Fidalgo, como patrão, merece terra em que os olhos se
esqueçam de regalados!...
— Oh, Sr. Pereira! — ribombou o Titó. — Então não se esqueça de cuidar
dos melões. É uma vergonha! Nunca na Torre se comeu um bom melão!
— Pois para o ano, assim Deus nos conserve, já V. Exa. comerá na Torre
um bom melão!
Gonçalo abraçou ainda o esperto lavrador — e apressou para a estrada,
decidido a desenrolar toda a confidência ao Titó, na solidão favorável do
arvoredo dos Bravais. Mas, apenas recomeçaram a caminhada, o mesmo
enleio o travou — quase temendo agora as informações do Titó, homem tão
severo, de Moral tão escarpada. E todo o demorado passeio pelos Bravais o
findaram, sem que Gonçalo desafogasse. O crepúsculo descera, mole e
quente, quando recolheram — conversando sobre a pesca do sável no
Guadiana.
Em frente do portão da Torre Videirinha esperava, dedilhando o violão na
penumbra dos álamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma aragem,
jantaram na varanda, com dois candeeiros acesos. Logo ao desdobrar o
guardanapo o Titõ, vermelho e espraiado sobre a cadeira, declarou "que graças
ao Senhor da Saúde, a sede era boa!" Ele e Gonçalo praticaram as usadas
façanhas de garfo e de copo. Quando o Bento serviu o café uma imensa e
lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta escura, por trás dos outeiros de
Valverde. Gonçalo, enterrado numa cadeira de vime, acendeu o charuto com
beatitude. Todos os tédios e incertezas dessas semanas se despegavam da sua
alma como cinza apagada, brevemente varrida. E foi sentindo menos a doçura
da noite, que um sabor melhor à vida desanuviada, que exclamou:
— Pois, senhores, agora, está uma delícia!...
Videirinha, depois de um curto cigarro, retomara o violão. Através da quinta,
pedaços de muros caiados, algum trilho de rua mais descoberto, a água do
Tanque-Grande, rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e a quietação
do arvoredo, da claridade, da noite penetravam na alma com adormecedora
carícia. Titó e Gonçalo saboreavam o famoso cognac de Moscatel, preciosa
antigualha da Torre, silenciosamente enlevados no Videirinha — que recuara
para o fundo da varanda, se envolvera em sombra. Nunca o bom cantador
ferira as cordas com inspiração mais enternecida. Até os campos, o céu
inclinado, a lua cheia sobre as colinas escutavam os queixumes do fado da
Anosa. E no escuro, sob a varanda, o pigarro da Rosa, os passos abafados dos
criados, algum sumido riso de rapariga, o bater das orelhas de um perdigueiro
— eram como a presença de um povo suavemente atraído pelo descante
formoso.
Assim a noite se alongou, a lua subiu com solitário fulgor. Titó, pesado do
bródio, adormecera. E como sempre, para findar, Videirinha atacou
ardentemente o Fado dos Ramires:
Quem te verá sem que estremeça,
Torre de Santa Ireneia,
Assim tão negra e calada,
Por noites de lua cheia...
E lançou então uma quadra nova, que trabalhara nessa semana com amor
sobre uma erudita nota do bom Padre Soeiro. Era a glória magnífica de Paio
Ramires, Mestre do Templo — a quem o Papa Inocêncio, e a Rainha Branca
de Castela, e todos os Príncipes da Cristandade suplicam que se arme, e corra
em dura pressa, e liberte S. Luís Rei de França, cativo nas terras de Egipto...
Que só em Paio Ramires
Põe agora o mundo a esperança...
Que junte os seus Cavaleiros
E que salve o Rei de França!
E por este avô e tal façanha até Gonçalo se interessou — acompanhando o
canto, num trémulo esganiçado, de braço erguido:
Ai, que junte os seus Cavaleiros
E que salve o Rei de França!...
Ao rolar mais forte do coro Titó descerrou as pálpebras, arrancou do canapé
o corpanzil imenso — e declarou que marchava para Vila-Clara:
— Estou derreado! Sempre em jornada e sem dormir, desde ontem às
quatro da manhã que larguei de Cidadelhe... Caramba, dava agora, como
aquele Rei grego, um cruzado por um burro!
Então Gonçalo, animado pelo cognac, também se ergueu com uma resolução
quase alegre:
— O Titó, antes de saíres anda cá dentro que quero falar contigo a
respeito de um caso!
Agarrara um dos candeeiros, penetrou na sala de jantar onde errava o cheiro
de magnólias morrendo num vaso. E aí, sem preparação, com os olhos bem
decididos, bem cravados no Titó — que o seguira arrastadamente, ainda se
espreguiçava:
— O Titó, ouve lá e sê franco. Tu ias muito à Feitosa... Que te parece
aquela D. Ana?
Titó, que despertara como ao rebentar de um morteiro, considerou Gonçalo
com assombro:
— Ora essa! Mas a que propósito?...
Gonçalo atalhou, na pressa de colher rapidamente uma certeza:
— Olha! Eu para ti não tenho segredos. Nestas últimas semanas houve ai
umas conversas, uns encontros... Enfim, para resumir, se daqui a tempos eu
pensasse em casar com a D. Ana, creio que ela, pelo seu lado, não recusava.
Tu ias à Feitosa. Tu sabes... Que tal rapariga é ela?
Titó cruzara os braços violentamente:
— Pois tu vais casar com a D. Ana?
— Homem, não vou casar. Não sigo esta noite para a Igreja. por agora
quero só informações... E de quem as posso ter, mais francas e mais seguras,
do que de ti, que és meu amigo e que a conheces?
Titó não descruzara os braços levantando para o Fidalgo da Torre a face
honesta e severa:
Pois tu pensas em casar com a D. Ana, tu, Gonçalo Mendes Ramires?...
Gonçalo atirou um gesto de impaciência e fartura:
Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio Ramires...
O Titó quase berrou, na sua indignação:
— Qual fidalguia! É que um homem de bem, como tu, não pensa em casar
com uma criatura como ela!... Fidalguia?... Sim! Mas fidalguia de alma e de
coração!
Gonçalo emudeceu, trespassado. Depois, com uma serenidade a que se
forçara, argumentou, deduziu:
— Bem! tu então sabes outras coisas... Eu por mim sei que ela é bonita e
rica; sei também que é séria, porque nunca sobre ela se rosnou nem aqui nem
em Lisboa; são qualidades para se casar com uma mulher... Tu agora afianças
que se não pode casar com ela. Portanto sabes outras coisas... Diz.
Foi então o Titó que emudeceu, imóvel diante do Fidalgo como se o laço de
uma corda o colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um esforço
enorme:
— Tu não me chamaste para eu depor como testemunha... Em principio,
sem explicações, perguntas se podes casar com essa mulher. E eu, sem
explicações, em principio, declaro que não... Que diabo queres mais?
Gonçalo exclamou, revoltado:
— Que quero? Pelo amor de Deus, Titó... Supõe tu que estou doidamente
apaixonado pela D. Ana, ou que tenho um interesse imenso em casar com
ela... Que não estou, nem tenho; mas supõe! Nesse caso não se desvia um
amigo de um ato em que ele está tão fundamente empenhado, sem lhe
apresentar uma razão, uma prova...
Assim apertado Titó baixou a cabeça, que coçou com desespero. Depois
acovardadamente, para escapar, adiou a contenda:
— Olha, Gonçalo, eu estou muito estafado. Tu não vais a esta hora para a
Igreja; e ela menos, que o outro marido ainda não arrefeceu na cova. Então
amanhã conversamos.
Atirou duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando pelo
Videirinha:
— São que horas, Videira! Toca a abalar, que não dormi desde Cidadelhe.
Videirinha, que preparava com esmero um grog frio, esvaziou
atabalhoadamente o copo, recolheu o violão precioso. E Gonçalo não os
deteve, esfregando silenciosamente as mãos, amuado com aquela recusa do
Titó tão desamiga e teimosa. Como sombras atravessaram uma sala onde
dormia, esquecida desde os Ramires do século XVIII, uma espineta de charão.
No patamar da escada que conduzia à portinha verde, Gonçalo, para os
iluminar, erguera um castiçal. Titó acendeu um cigarro à vela. A sua mão
cabeluda tremia.
— Então entendido... Apareço amanhã, Gonçalo.
— Quando quiseres, Titó.
E no seco assentimento do Fidalgo transparecia tanto despeito — que Titó
hesitou nos estreitos degraus que atulhava. Por fim desceu pesadamente.
Videirinha, já na estrada, considerava o céu, a luminosa serenidade:
— Que linda noite, Sr. Doutor!
— Linda, Videirinha... E obrigado. Você hoje tocou divinamente!
Gonçalo entrara na sala dos retratos, pousara apenas o castiçal — quando, por
baixo da varanda aberta, o vozeirão do Titó retumbou:
— Ó Gonçalo, desce cá abaixo.
O Fidalgo rolou pelos degraus com sofreguidão. Para além dos álamos, no
luar da estrada, Videirinha afinava o violão. E apenas a face do Fidalgo surdiu
na claridade da porta, o Titó, que esperava com o chapéu para a nuca,
desabafou:
— Oh Gonçalo, tu ficaste amuado... É tolice! E entre nós não quero
sombras. Então lá vai! Tu não podes casar com essa mulher porque ela teve
um amante. Não sei se antes ou depois desse teve outro. Não há criatura mais
manhosa, nem mais disfarçada. Não me venhas agora com perguntas. Mas fica
certo que ela teve um amante. Sou eu que to afirmo: e tu sabes que eu nunca
minto!
Bruscamente meteu à estrada, com os possantes ombros vergados. Gonçalo
não se movera de sobre os degraus de pedra, diante dos mudos álamos, como
ele imóveis. Uma palavra passara, irreparável, no macio silêncio da noite e da
lua — e eis o alto sonho que ele construíra sobre a D. Ana e a sua beleza e os
seus duzentos contos despenhado no lodo! Lentamente subiu, repenetrou na
sala. Por cima da chama alta da vela, num painel fusco, uma face acordara,
uma seca, amarelada face, de altivos bigodes negros, que se inclinava, atenta
como reparando. E longe, Videirinha espalhava pelos campos adormecidos os
ingénuos versos celebrando a glória tamanha da Casa ilustre:
Que só em Paio Ramires
Põe agora o mundo esperança...
Que junte os seus Cavaleiros
E que salve o Rei de França!