Capítulo III

Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou
com aferro e proveito. E nessa manhã, depois de repicar a sineta no corredor,
duas vezes o Bento empurrara a porta da livraria, avisando o Sr. Doutor "que
o almocinho, assim à espera, certamente se estragava". Mas de sobre a tira de
almaço Gonçalo rosnava "já vou!" — sem despegar a pena, que corria como
quilha leve em água mansa, na pressa amorosa de terminar, antes do almoço, o
seu Capítulo I.

Ah! e que canseira lhe custara, durante esses dias, esse copioso Capítulo, tão
difícil, com o imenso Castelo de Santa Ireneia a erguer; e toda uma idade
esfumada da História de Portugal a condensar em contornos robustos; e a
mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que faltasse uma ração nos alforjes,
ou uma garruncha nos caixotes, sobre o dorso das mulas! Mas felizmente, na
véspera, já movera para fora do Castelo o troço de Lourenço Ramires, em
socorro de Montemor, com um vistoso coriscar de capelos e lanças em torno
ao pendão tendido.

E agora, nesse remate do Capítulo, era noite, e o sino de recolher tangera, e a
almenara luzira na Torre Albarrã, e Tructesindo Ramires descera à sala térrea
da alcáçova para cear — quando fora, diante da cárcova, com três toques
fortes anunciando filho de algo, uma buzina apressada soou. E, sem que o
vílico tomasse permissão do senhor, o alçapão da levadiça rangeu nas
correntes de ferro, ribombou cavamente nos apoios de pedra.

Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Pais, amigo de Afonso II e mordomo da
sua Cúria, casado com a filha mais velha de Tructesindo, D. Teresa — aquela
que, pelo ondeante e alvo pescoço, pelo pisar mais leve que um vôo, os
Ramires chamavam a Garça Real. O Senhor de Santa Ireneia correra ao patim
para acolher, num abraço, o genro amado — "membrudo Cavaleiro, com os
cabelos ruivos, a alvíssima pele da raça germânica dos visigodos..." E, de mãos
enlaçadas, ambos penetraram nessa sala de abóbada, iluminada por tochas que
toscos anéis de ferro seguravam, chumbados aos muros.

Ao meio pousava a maciça mesa de carvalho, rodeada de escanhos até o topo,
onde se erguia, diante de um áspero mantel de linho coberto de pratos de
estanho e de pichéis luzidios, a cadeira senhorial com o Açor grossamente
lavrado nas altas espaldas, e delas suspensa, pelo cinturão tauxiado de prata, a
espada de Tructesindo. Por trás negrejava a funda lareira apagada, toda
entulhada de ramos de pinheiro, com a prateleira guarnecida de conchas, entre
bocais de sanguessugas, sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por
Gutierres Ramires, o de Ultramar Rente a um esteio da chaminé, um falcão,
ainda emplumado, dormitava na sua alcândora; e ao lado, sobre as lajes, numa
camada de juncos, dois alões enormes dormiam também, com o focinho nas
patas, as orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um
pipo de vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face
sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, à claridade do candil que
por cima fumegava, um pergaminho desenrolado... Assim Gonçalo adornara a
soturna sala Afonsina com alfaias tiradas do tio Duarte, de Walter Scott, de
narrativas do Panorama. Mas que esforço!... E mesmo, depois de colocar
sobre os joelhos do monge um fólio impresso em Mogúncia por Ulrick ZelI,
desmanchara toda essa linha tão erudita, ao recordar, com um murro na mesa,
que ainda a Imprensa se não inventara em tempos do seu avô Tructesindo, e
que ao monge letrado apenas competia "um pergaminho de amarelada
escrita..."

E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira até o arco da porta
cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba espalhada
sobre os braços cruzados, escutava Mendo Pais, que, na confiança de parente
e amigo, jornadeara sem homens da sua mercê, cingindo apenas por cima do
brial de lã cinzenta uma espada curta e um punhal sarraceno. Açodado e
coberto de pó correra Mendo Pais desde Coimbra para suplicar ao sogro em
nome do Rei e dos preitos jurados, que se não bandeasse com os de leão e
com as senhoras Infantas. E já desenrolara perante o velho todos os
fundamentos invocados contra elas pelos doutos Notários da Cúria — as
resoluções do Concilio de Toledo! a bula do Apóstolo de Roma, Alexandre! o
velho foro dos Visigodos!... De resto, que injúria fizera às senhoras Infantas
seu real irmão, para assim chamarem hostes Leonesas a terras de Portugal?
Nenhuma! Nem Regedoria nem renda dos castelos e vilas da doação de D.

Sancho lhes negava o senhor D. Afonso. O Rei de Portugal só queria que
nenhum palmo de chão português, baldio ou murado, jazesse fora do seu
senhorio real. Escasso e ávido, El-Rei D. Monso?... Mas não entregara ele à
senhora D. Sancha oito mil morabitinos de ouro? E a gratidão da irmã fora o
Leonês passando a raia e logo caídos os castelos formosos de Ulgoso, de
Contrasta, de Urros e de Lanhoselo! O mais velho da casa dos Sousas,
Gonçalo Mendes, não se encontrara ao lado dos Cavaleiros da Cruz na
jornada das Navas, mas lá andava em recado das Infantas, como mouro,
talando terra portuguesa desde Aguiar até Miranda! E já pelos cerros de Além
Douro aparecera o pendão renegado das treze arruelas — e por trás,
farejando, a alcateia dos Castros! Carregada ameaça, e de armas cristãs,
oprimindo o Reino — quando ainda Moabitas e Agarenos corriam à rédea
solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de Santa Ireneia, que tão
rijamente ajudara a fazer o Reino, não o deveria decerto desfazer arrancando
dele os pedaços melhores para monges e para donas rebeldes! — Assim, com
arremessados passos, exclamara Mendo Pais, tão acalorado do esforço e da
emoção, que duas vezes encheu de vinho uma conca de pau e de um trago a
despejou. Depois, limpando a boca às costas da mão trémula:

— Ide por certo a Montemor, senhor Tructesindo Ramires! Mas em
recado de paz e boa avença, persuadir vossa senhora D. Sancha e as Senhoras
Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam pelo seu pai e o seu
Rei!

O enorme senhor de Santa Ireneia parara, pousando no genro os olhos duros,
sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como sarças em manhã de
geada:

— Irei a Montemor, Mendo Pais, mas levar o meu sangue e o dos meus
para que justiça logre quem justiça tem.

Então Mendo Pais, amargurado, perante a heroica teima:
— Maior dó, maior dó! Será bom sangue de Ricos-homens vertido por
más desforras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos
espera Lopo de Baião, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem
lanças!

Tructesindo ergueu a vasta face — com um riso tão soberbo e claro que os
alões rosnaram torvamente, e, acordando, o falcão esticou a asa lenta:

— Boa nova e de boa esperança! E, dizei, senhor Mordomo-Mor da Cúria,
tão de feição e certa assim ma trazeis para me intimidar?
— Para vos intimidar?... Nem o Senhor Arcanjo S. Miguel vos intimidaria
descendo do céu com toda a sua hoste e a sua espada de lume! De sobra o
Rei, Senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E já que nesta lide
não sereis por mim bem ajudado, quero, ao menos, que sejais bem avisado.

O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes:

— Bem, bem, a cear, pois! À ceia, Frei Múnio!... E vós, Mendo Pais, deixai
receios.
— Se deixo! Não vos pode vir dano que me anseie de cem lanças, de
duzentas, que vos surjam a caminho.
E, enquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da mesa —
Mendo Pais juntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o cinturão da
espada:

— Só um cuidado me pesa. E é que, nesta jornada, senhor meu sogro, ides
ficar de mal com o Reino e com o Rei.
— Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e como Rei, mas de bem
com a honra e comigo!

Este grito de fidelidade, tão altivo, não ressoava no poemeto do tio Duarte. E
quando o achou, com inesperada inspiração, o Fidalgo da Torre, atirando a
pena, esfregou as mãos, exclamou, enlevado:
— Caramba! Aqui há talento!
Rematou logo o Capítulo. Estava esfalfado, à banca do trabalho desde as nove
horas, a reviver intensamente, e em jejum, as energias magníficas dos seus
fortes avós! Numerou as tiras — fechou na gaveta à chave o volume do
Bardo. Depois à janela, com o colete desabotoado, ainda lançou o brado
genial num grave e rouco tom, como o lançaria Tructesindo: — ... "de mal

com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo E sentia nele
realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram no século XII, de
sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e
alegremente desbaratando, para a manter, bens, contentamento e vida!

O Bento, que espalhara outro repique desesperado, escancarou a porta da
livraria:
— E o Pereira... Está lá embaixo no pátio o Pereira que quer falar ao Sr.
Doutor.

Gonçalo Mendes franziu a testa, com impaciência, assim repuxado daquelas
alturas onde respirava os nobres espíritos da sua raça:

— Que maçada!... O Pereira... Que Pereira?
— O Pereira; o Manuel Pereira, da Riosa; o Pereira Brasileiro.
Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado Brasileiro por ter herdado
vinte contos de um tio, regatão no Pará. Comprara então terras, trazia
arrendada a Cortiga, a falada propriedade dos condes de Monte-Agra,
envergava aos domingos uma sobrecasaca de pano fino, e dispunha de
sessenta votos na Freguesia.

— Ah! Diz ao Pereira que suba, que conversamos enquanto almoço... E
põe outro talher.

A sala de jantar da Torre, que abria por três portas envidraçadas para uma
funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do avô Damião (o tradutor
de Valerius Flaccus), dois formosos panos de Arras representando a
Expedição dos Argonautas. Louças da Índia e do Japão, desirmanadas e
preciosas, recheavam um imenso armário de mogno. E sobre o mármore dos
aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das pratas famosas dos Ramires
que o Bento constantemente areava e polia com amor. Mas Gonçalo,
sobretudo de verão, sempre almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca,
bem esteirada, revestida até meio muro por finos azulejos do século XVIII, e
oferecendo a um canto, para as preguiças do charuto, um profundo canapé de
palhinha com almofadas de damasco.


Quando lá entrou, com os jornais da manhã que não abrira, o Pereira
esperava, encostado a um grosso guarda-sol de paninho escarlate,
considerando pensativamente a quinta que, dali, se abrangia até os álamos da
ribeira do Coice e aos outeiros suaves de Valverde. Era um velho esgalgado e
rijo, todo ossos, com um carão moreno, de olhos miudinhos e azulados, e
uma barbicha rala, já branca, entre dois enormes colarinhos presos por botões
de ouro. Homem de propriedade, acostumado à Cidade e ao trato das
Autoridades, estendeu largamente a mão ao Fidalgo da Torre, e aceitou, sem
embaraço, a cadeira que ele lhe empurrara para a mesa — onde dominavam,
com os seus ricos lavores, duas altas infusas de cristal antigo, uma cheia de
açucenas e a outra de vinho verde.

— Então, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo? Não o vejo
desde abril!
— É verdade, meu Fidalgo, desde o sábado em que caiu a grande
trovoada, na véspera da eleição! — confirmou o Pereira afagando o cabo do
guarda-sol que conservara entre os joelhos.
Gonçalo, numa esfaimada pressa do almoço, repicou a campainha de prata.
Depois rindo:
— E os seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lá foram para o
eterno Sanches Lucena, direitinhos, como os rios vão para o mar!

O Pereira também riu, com um riso agradado que lhe descobria os maus
dentes. Pois o círculo era uma propriedade do Sr. Sanches Lucena! Cavalheiro
de fortuna, homem de bem, conhecedor, serviçal... E então, quando lhe
calhava como em abril o apoio do Governo, nem Nosso Senhor Jesus Cristo
que voltasse à Terra e se propusesse por Vila-Clara desalojava o patrão da
Feitosa!

O Bento, vagaroso, de jaqueta de lustrina preta sobre o avental
resplandecente, entrava com um prato de ovos estrelados, quando o Fidalgo,
que desdobrara o guardanapo, o amarrotou, arremessou com nojo:

— Este guardanapo já serviu! Eu estou farto de gritar. Não me importa
guardanapo roto, ou com passagens, ou com remendos... Mas branquinho,
fresquinho cada manhã, a cheirar a alfazema!

E reparando no Pereira, que discretamente arredava a cadeira:
— O quê! Você não almoça, Pereira?..

Não, agradecia muito ao Fidalgo, mas nessa tarde comia as sopas com o genro
nos Bravais, que era festa pelos anos do netinho.

— Bravo! Parabéns, Pereira amigo! Dê lá um beijo meu ao netinho... Mas
então ao menos um copo de vinho verde.
— Entre as comidas, meu Fidalgo, nem água nem vinho.
Gonçalo farejara, arredara os ovos. E reclamou o "jantar da família", sempre
muito farto e saboroso na Torre, e começando por essas pesadas sopas de
pão, presunto e legumes, que ele desde criança adorava e chamava as
palanganas. Depois, barrando de manteiga uma bolacha:

— Pois francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena não faz honra ao
círculo! Homem excelente, decerto, respeitável, obsequiador... Mas mudo,
Pereira! Inteiramente mudo!
O lavrador roçou vagarosamente pelas ventas cabeludas o lenço vermelho,
enrolado em bola:

— Sabe as coisas, pensa com acerto...
— Sim! mas pensamento e acerto não lhe saem de dentro do crânio!
Depois está muito velho, Pereira! Que idade terá ele? Sessenta?
— Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O avô durou
até os cem anos. E ainda o conheci na loja...
— Como, na loja?
Então o Pereira, enrolando mais o lenço, estranhou que o Fidalgo não
soubesse a história do Sanches Lucena. Pois o avô, o Manuel Sanches, era um
linheiro do Porto, da rua das Hortas. E casado também com uma jovem
muito vistosa, muito farfalhuda...

— Bem! — atalhou o Fidalgo. — Isso é honroso para o Sanches Lucena.
Gente que engordou, que trepou... E eu concordo, Pereira, o círculo deve
mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena, que tenha nele terra,
raízes, interesses, nome... Mas é preciso que seja também homem com talento,
com arrojo. Um deputado, que, nas grandes questões, nas crises, se erga,
transporte a Câmara!... E depois, Pereira amigo, em Política quem mais grita
mais arranja. Olhe a estrada da Riosa! Ainda em papel, a lápis vermelho... E, se
o Sanches Lucena fosse homem de berrar em S. Bento, já o Pereira trazia por
lá os seus carros a chiar.
O Pereira abanou a cabeça, com tristeza:


— Aí talvez o Fidalgo acerte... Para essa estradinha da Riosa sempre faltou
quem gritasse. Aí talvez o Fidalgo acerte


Mas o Fidalgo emudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro de uma caçoila
nova, com raminhos de hortelã. E então o Pereira, acercando mais a cadeira,
cruzou no rebordo da mesa as mãos, que meio século de trabalho na terra
tornara negras e duras como raízes — e declarou que se atrevera a incomodar
o Fidalgo, àquelas horas do almocinho, porque nessa semana começava um
corte de madeiras para os lados de Sandim, e desejava, antes que surgissem
outros arranjos, conversar com S. Exa. sobre o arrendamento da Torre...

Gonçalo reteve a colher, num pasmo risonho:
— Você queria arrendar a Torre, Pereira?
— Queria conversar com V. Exa.. Como o Relho está despedido...
— Mas eu já tratei como Casco, o José Casco dos Bravais! Ficamos meio
apalavrados, há dias... Há mais de uma semana.

O Pereira coçou arrastadamente a barba rala. Pois era pena, grande pena... Ele
só no sábado se inteirara da desavença com o Relho. E, se o Fidalgo não
ressalvava o segredo, por quanto ficara o arrendamento?

— Não ressalvo, não, homem! Novecentos e cinquenta mil réis.
O Pereira tirou da algibeira do colete a caixa de tartaruga, e sorveu
detidamente uma pitada, com o carão pendido para a esteira. Pois maior pena,
mesmo para o Fidalgo. Enfim! depois de palavra trocada... Mas era pena,
porque ele gostava da propriedade; já pelo S. João pensara em se aproximar
do Fidalgo; e apesar dos tempos correrem escassos, não andaria longe de
oferecer um conto e cinquenta, mesmo um conto cento e cinquenta!

Gonçalo esqueceu a sopa, numa emoção que lhe afogueou a face fina, perante
um tal acréscimo de renda — e a excelência de tal rendeiro, homem abastado,
com metal no banco, e o mais fino amanhador de terras de todas as cercanias!
— Isso é sério, ó Pereira?

O velho lavrador pousou a caixa de rapé sobre a toalha, com decisão:
— Meu Fidalgo, eu não era homem que entrasse na Torre para gozar com
V Exa.! Proposta a valer, escritura a fazer... Mas se o arrendamento está
tratado...
Recolheu a caixa, apoiava a mão larga na mesa para se erguer, quando
Gonçalo acudiu, nervoso, empurrando o prato:

— Escute, homem!... Eu não contei por miúdo o caso do Casco. Você
compreende, sabe como essas coisas passam... O Casco veio, conversamos; eu
pedi novecentos e cinquenta mil réis e porco pelo Natal. Primeiramente
concordou, que sim; logo adiante emendou, que não... Voltou com o
compadre; depois, com a mulher e o compadre, e o afilhado, e o cão! Depois
só. Andou aí pela quinta, a medir, a cheirar a terra; acho até que a provou.

Aquelas rabulices do Casco!... Por fim, uma tarde, lá gemeu, lá aceitou os
novecentos e cinquenta mil réis, sem porco. Cedi do porco. Aperto de mão,
copo de vinho. Ficou de aparecer para combinar, tratar da escritura. Não o
avistei mais, há quase duas semanas! Naturalmente já virou, já se arrependeu...
Para resumir, não tenho com o Casco contrato firme. Foi uma conversa em
que apenas estabelecemos, como base, a renda de novecentos e cinquenta. E
eu, que detesto coisas vagas, já andava pensando em encontrar melhor
homem!

Mas o Pereira coçava o queixo, desconfiado. Ele, em negócios, gostava de
lisura. Sempre se entendera bem com o Casco. Nem por um condado se
atravessaria nos arranjos do Casco, homem violento, assomado. De modo que
desejava as coisas claras, para não surgir desgosto rijo. Não se lavrara
escritura, bem! Mas ficara, ou não, palavra dada entre o Fidalgo e o Casco?

Gonçalo Mendes Ramires, que findara apressadamente a sopa e enchia um
copo de vinho verde para se acalmar, fitou o lavrador, quase severamente:

— Homem, essa pergunta!... Pois se eu tivesse confirmado ao Casco
decisivamente a palavra de Gonçalo Ramires, estava agora aqui a tratar, ou
sequer a conversar consigo, Pereira, sobre o arrendamento da Torre?

O Pereira baixou a cabeça. Também era verdade!... Pois, nesse caso, ele abria a
sua tenção, claramente. E, como conhecia a propriedade, e apurara o seu
cálculo — oferecia ao Fidalgo um conto cento e cinquenta mil réis, sem
porco. Mas não dava para a família nem leite, nem hortaliça, nem fruta. O
Fidalgo, homem só, pouco se aproveitava

A Torre, porém, casa antiga,
enxameava de gentes e de aderentes. Todos apanhavam, todos abusavam...
Enfim, esse era o seu princípio. E de resto, para a mesa do Fidalgo e mesmo
dos criados, bastavam o pomar e a horta de regalo... Que horta e pomar
necessitavam trato mais jeitoso; mas ele, por amor do Fidalgo, e gosto seu,
por lá passaria e tudo luziria... E quanto às outras condições, aceitava as do
antigo arrendamento. E escritura assinada para a outra semana, no sábado...
Estava feito?

Gonçalo, depois de um momento em que pestanejou nervosa e tremulamente,
estendeu a mão aberta ao Pereira:
— Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada!
— E o nosso Senhor lhe ponha virtude — concluiu o Pereira, firmado no
imenso guarda-sol para se erguer. — Então no sábado, em Oliveira, para a
escritura... Assina V. Exa. ou o Sr. Padre Soeiro?

Mas o Fidalgo calculava:
— Não, homem, não pode ser! No sábado, com efeito, estou em Oliveira,
mas são os anos da mana Maria da Graça...
O Pereira destapou de novo os maus dentes, num riso de estima:

— Ah! e como vai a Sra. D. Maria da Graça? Há que idades a não vejo!
Desde o ano passado, na procissão de Passos, em Oliveira... Muito boa
senhora! Muito dada! E o Sr. José Barrolo? Pessoa excelente também, a valer,
o Sr. José Barrolo... E que terra a dele, a Ribeirinha! A melhor propriedade
destas vinte léguas em redor. Linda propriedade! A do André Cavaleiro que
lhe está pegada, a Biscaia, não se lhe compara — e como cardo ao pé de
couve.

O Fidalgo da Torre descascava um pêssego, sorrindo:
— Do André Cavaleiro nada presta, Pereira! Nem tenra nem alma!
O lavrador pareceu surpreendido. Ele imaginava que o Fidalgo e o Cavaleiro
continuavam chegados e amigos... Não em Política! Mas particularmente,
como cavalheiros...

— O quê? Eu e o Cavaleiro? Nem como cavalheiro nem como político.
Que ele nem é cavalheiro nem político. É apenas cavalo, e ressabiado.
O Pereira ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo:
— Então está entendido, no sábado, na cidade. E, se não faz transtorno ao
Fidalgo, passamos pelo Tabelião Guedes, e fica o feito arrumado. O Fidalgo,
naturalmente, vai para casa da senhora sua mana...
— Sempre. Apareça você às três horas. Lá conversamos com o Padre
Soeiro!

— Também há que idades não encontro o Sr. Padre Soeiro!
— Oh! esse ingrato, agora, raramente aparece na Torre. Sempre em
Oliveira, com a mana Graça, que é a menina dos seus encantos... Então nem
um cálice de vinho do Porto, Pereira?... Bem, até sábado. Não esqueça o
beijinho para o neto.
— Cá me vai no coração, meu Fidalgo... Ora essa! Pois consentia eu que
V. Exa. se levantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela cozinha
para debicar com a tia Rosa. Já desde o tempo do paizinho de V. Exa., que
Deus haja, conheço bem a Torre!... E sempre me esperancei de trazer nesta
quinta uma lavoura ao meu gosto, de consolar!

Durante o café, esquecido dos jornais, Gonçalo gozou a excelência daquele
negócio. Duzentos mil réis mais de renda. E a Torre tratada pelo Pereira, com
aquele amor da terra e saber de lavra que transformara o chavascal do MonteAgra
numa maravilha de seara,
vinha e horta!...
Além disso, homem abastado,
capaz de um adiantamento. E eis aí mais uma evidência do valor da Torre,
esse afinco do Pereira na arrendar, ele tão apertado, tão seguro... Quase se
arrependia de lhe não ter arrancado um conto e duzentos. Enfim, a manhã
fora fecunda! E, realmente, nenhum acordo firmado o colava ao Casco. Entre
eles apenas se esboçara uma conversa, sobre um arrendamento possível da
Torre, a debater depois miudamente, numa base nova de novecentos e
cinquenta mil réis... E que insensatez se ele, por escrupuloso respeito dessa
conversa esboçada, recusasse o Pereira, retivesse o Casco, lavrador de rotina
— dos que raspam a terra para comer, e a deixam cada ano deperecendo, mais
cansada e chupada!...

— Bento, traz charutos! E o Joaquim que tenha a égua selada das cinco
para as cinco e meia. Sempre vou à Feitosa... Hoje é o dia!

Acendeu um charuto, voltou à livraria. E, imediatamente, releu o final
magnífico: "De mal com o Reino e como Rei, mas de bem com a honra e
comigo!" — Ah! como ali gritava a alma inteira do velho português, no seu
amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira de almaço entre os dedos,
junto da varanda, considerou um momento a Torre, as poeirentas frestas
engradadas de ferro, as resistentes ameias, ainda inteiras, onde agora adejava
um bando de pombas... Quantas manhãs, às frescas horas da alva, o velho
Tructesindo se encostara àquelas ameias, então novas e brancas! Toda a terra
em redor, semeada ou bravia, decerto pertencia ao poderoso Rico-homem. E
o Pereira, nesse tempo colono ou servo, só abordava ao seu Senhor de joelhos
e tremendo! Mas não lhe pagava um conto cento e cinquenta mil réis de
sonora moeda do Reino. Também, que diabo, o vovô Tructesindo não
precisava... Quando as sacos rareavam nas arcas, e as acostados rosnavam por
tardança de soldo, o leal Rico-homem, para se prover, tinha as tulhas e as
adegas dos Concelhos mal defendidos — ou então, numa volta de estrada, o
ovençal voltando de recolher as rendas reais, o bufarinheiro genovês com os
machos ajoujados de trouxas. Por baixo da Torre (como lhe contara o papá)
ainda negrejava a masmorra feudal, meio atulhada, mas com restos de
correntes chumbadas aos pilares, e na abóbada a argola de onde pendia a polé,
e no lajedo os buracos em que se escorava o potro. E, nessa surda e húmida
cova, ovençal, bufarinheiro, Clérigos e mesmo burgueses de foro uivavam sob
o açoite ou no torniquete, até largarem agonizando o derradeiro morabitino.
Ah! a romântica Torre, cantada tão meigamente ao luar pelo Videirinha,
quantos tormentos abafara!...

E de repente, com um berro, Gonçalo agarrou de sobre a mesa um volume de
Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra a tronco de
uma faia. É que descortinara a gato da Rosa cozinheira, trepado, de unhas
fincadas num ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de melros.


Quando nessa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de montar,
polainas de couro polido, luvas de camurça branca, parou a égua ao portão da
Feitosa — um velho todo esfarrapado, com longos cabelos caídos pelos
ombros e imensas barbas espalhadas pelo peito, imediatamente se ergueu do
banco de pedra onde comia rodelas de chouriço, bebendo de uma cabaça,
para o avisar que o Sr. Sanches Lucena e a Sra. D. Ana andavam por fora, de
carruagem. Gonçalo pediu ao velho que puxasse o ferro da sineta. E,
entregando um cartão ao jovem, que entreabrira a rica grade dourada, com um
S e um L entrelaçados sob uma coroa de conde:

— O Sr. Sanches Lucena, bem?

— O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor...
— O quê? Esteve doente?
— Pois o Sr. Conselheiro, aqui há três ou quatro semanas, andou muito
agoniado...
— Oh! Sinto muito... Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitíssimo!
Chamou o velho que repicara a sineta para o recompensar com um tostão. E,
interessado por aquelas barbaças e melenas de mendigo de Melodrama:
— Vossemecê pede esmola por estes sítios?
O homem ergueu para ele os olhos sujos, avermelhados da poeira e da sal,
mas risonhos, quase contentes:
— Também me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, graças a Deus, lá me
fazem muito bem.
— Então quando lá voltar diga ao Bento... Você conhece o Bento?
Se conhecia! E a Sra. Rosa...
— Pois diga ao Bento que lhe dê umas calças, homem! Você assim, com
essas calças, não anda decente.
O velho riu, num riso lento e desdentado, mirando com gosto os sórdidos
farrapos que lhe trapejavam nas canelas, mais denegridas e secas que galhos de
inverno:

— Rotinhas, rotinhas... Mas o se Dr. Júlio diz que me ficam assim bem. O
Sr. Dr. Júlio, quando lá passa, sempre me tira o retrato na máquina. Ainda na
semana passada... Até com uns pedaços de grilhões dependuradas do pulso, e
uma espada erguida na mão... Parece que para mostrar ao Governo.

Gonçalo, rindo, picou a égua. Pensava agora em alongar por Valverde: depois
recolheria por Vila-Clara, e tentaria o Gouveia a partilhar na Torre um cabrito
assado no espeto de cerejeira, para que ele na véspera, na Assembleia,
convidara o Manuel Duarte e o Titó. Mas ao atravessar a "Cruz das Almas",
onde a estrada de Corinde, tão linda, com as suas filas de álamos, cruza a
ladeira de Valverde, parou — notando ao fundo, para o lado de Corinde,
como o confuso esbarro de uma carrada de lenha, e uma carriola de açougue,
e uma mulher de lenço escarlate bracejando sobre a albarda de um burro, e
dois lavradores de enxada às costas. E, de repente, todo o encalhe se despegou
— a mulher trotando no seu burrinho, logo sumida numa volta de arvoredo; a
carriola solavancando num rolo leve de poeira; o carro avançando para a
"Cruz das Almas" a chiar tardiamente; os cavadores descendo para uma chã
através das leiras de feno... Na estrada só restou, como desamparado, um
homem de jaqueta ao ombro, que se arrastava penosamente, coxeando.
Gonçalo trotou, com curiosidade:

— Que foi?... Vossemecê que tem?

O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonçalo uma face
arrepanhada, quase desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de suor:
— Nosso Senhor lhe dê muito boas-tardes, meu Fidalgo! Ora o que há de
ser? Desgraças desta vida!

E, gemendo, contou a sua história. — Desde meses padecia de uma chaga
num tornozelo, que não secara, nem com emplastros, nem com pó de
murtinhos, nem com benzeduras... E agora andava arriba, na fazenda do Sr.
Dr. Júlio, a consertar um socalco, para ajudar um compadre também doente
com maleitas — e, zás, desaba um pedregulho, que topa na ferida, leva a
carne, lasca o osso, o deixa naquela lástima!... Até rasgara a fralda para ensopar
o sangue e amarrar por cima o lenço.


— Mas assim não pode andar, homem! Donde é vossemecê?
— De Corinde, meu Fidalgo. Manuel Solha, do lugar da Finta. Até lá,
sempre me hei de arrastar.
— E então, dessa gente toda, que aí estava há bocado, ninguém o pode
ajudar?... Uma carriola, dois latagões..,.
Uma rija guinada, no teimoso esforço de firmar a perna, arrancou um grito ao
Solha. Mas sorriu, arquejando... Que queria o Fidalgo? Cada um, neste mundo,
tem a sua pressa... Enfim, a rapariga do burro prometera passar pela Finta,
para avisar. E talvez um dos seus rapazes aparecesse na estrada com uma
eguazita que ele comprara pela Páscoa — e que, por desgraça, também
mancava!...


Imediatamente, com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou:
— Bem! Então, égua por égua, já vossemecê tem aqui esta...
O Solha embasbacou para Gonçalo:
— Ora essa! Santo nome de Deus!... Pois eu havia de ir a cavalo, e V Exa.
a pé?
— Gonçalo ria:
— Homem, com essas discussões de "eu a pé" e "você" a cavalo", e "faz
favor" e "não senhor", é que perdemos um tempo precioso. Monte, esteja
quieto, e trote para a Finta!

O outro recuava para a valeta da estrada, sacudindo a cabeça, esgazeado,
como no espanto de um sacrilégio;
— Isso é que não, meu senhor, isso é que não! Antes eu acabasse aqui à
míngua, com a chaga em bolor!
Gonçalo bateu o pé, com autoridade:
— Monte, que mando eu! Vossemecê é um lavrador de enxada, eu sou um
Doutor formado em Coimbra, sou. eu que sei, sou eu que mando!

E o Solha, logo submisso perante aquela força deslumbrante do Saber
superior, agarrou em silêncio a crina da égua, enfiou respeitosamente o
estribo, ajudado pelo Fidalgo, que, sem tirar as luvas brancas, lhe amparava o
pé entrapado e manchado de sangue.

Depois, quando ele repousou no selim com um ah! consolado:


— Então que tal?
O homem só murmurava o nome do nosso Senhor, na gratidão e no
assombro daquela caridade:
— Mas isto é a volta do mundo... Eu aqui, na égua do Fidalgo! E o
Fidalgo, o Sr. Gonçalo Ramires, da Torre, a pé pela estrada!
Gonçalo gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou pela quinta do Dr.
Júlio, que agora se arrojara a obras e plantações de vinha. Depois, como o
Manuel Solha conhecia o Pereira Brasileiro (que pensara em arrendar as terras
do Dr. Júlio), conversaram sobre esse esperto homem, sobre as grandezas da
Cortiga. Já sem embaraço, direito no selim, no gosto daquela intimidade com
o Fidalgo da Torre, o Solha esquecia a chaga, a dor que adormentara. E à
estribeira do Solha, atento e sorrindo, o Fidalgo estugava o passo na poeira
branca.

Assim se avizinhavam da Bica-Santa, um dos sítios decantados daquelas
cercanias formosas. Aí a estrada, cortada na encosta de um monte, alarga e
forma um arejado terraço, donde se abrange todo o vale de Corinde, tão rico
em casais, em arvoredos, em searas, em águas. No pendor do monte, coberto
de carvalhos e de fragas musgosas, brota a fonte nomeada, que já em tempos
de El-Rei D. João V curava males de entranhas e que uma devota senhora de
Corinde, D. Rosa Miranda Carneiro, mandou encanar desde o alto até a um
tanque de mármore, onde agora corre beneficamente, por uma bica de bronze,
sob a imagem e patrocínio de Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se
encurvam dois compridos bancos de pedra, que a espalhada ramaria das
carvalheiras tolda de sombra e frescura. E um suave retiro onde se apanham
violetas, se comem merendas, e senhoras dos arredores se sentam em rancho,
nas tardinhas de domingo, escutando os melros, gozando a povoada, luminosa
e verdejante largueza do vale.

Antes porém de desembocar na Bica-Santa, e perto do lugar do Serdal, a
estrada de Corinde quebra numa volta: — e, aí, de repente, a égua saltou, num
reparo, que obrigou o Fidalgo da Torre, desconfiado da perícia do Solha, a
deitar a mão à caimba do freio. Fora o encontro inesperado de uma carruagem
— uma caleche forrada de azul, com a parelha coberta de redes brancas
contra a mosca, e na almofada, teso, um cocheiro de bigode, farda de gola
escarlate e chapéu de tope amarelo. E Gonçalo mantinha ainda a égua pelo
freio, como melro serviçal em trilho perigoso — quando avistou, untado num
dos bancos de pedra, junto da Bica, com um xaile-manta por cima dos
joelhos, o velho Sanches Lucena. Ao lado o trintanário, agachado, esfregava
com um molho de erva a botina que a bela D. Ana lhe estendia, apanhando o
vestido de linho cru, apoiando a outra mão, sem luva, na cinta vergada e fina.

A desconcertada aparição do Fidalgo da Torre, puxando pela rédea a sua égua
onde se escarranchava regaladamente um cavador em mangas de camisa,
alvorotou aquele repousado e dormente recanto da Bica. Sanches Lucena
esbugalhava os olhos, esbugalhava os óculos, num arremesso de curiosidade
que o levantara, com o pescoço esticado, o xaile-manta escorregado para a
relva. D. Ana recolheu bruscamente a botina, logo empertigada na gravidade
condigna da senhora da Feitosa, retomando como uma insígnia o cabo de
ouro da luneta de ouro, suspensa por um cordão de ouro. E até o trintanário
ria pasmadamente para o Solha.

Mas já, como seu desembaraço elegante, Gonçalo, num relance, saudara D.
Ana, apertava com fervor a mão espantada do Sanches Lucena, e,
alegremente, se congratulava por aquele encontro ditoso! Pois vinha
justamente da Feitosa! E aí soubera com desgosto, por um jovem da quinta
decerto exagerado, que o Sr. Conselheiro nas últimas semanas andara doente...
E, então como estava? como estava? Oh! a fisionomia era excelente!

— Pois não é verdade, Sra. D. Ana? O aspeto é excelente!

Com um leve requebro da cabeça, um fofo ondear do molho de plumas
brancas sobre o chapéu de palha vermelha, ela volveu numa voz rolada, lenta
e gorda, que arrepiou Gonçalo:

— O Sanches agora, graças a Deus, desfruta melhor saúde...
— Um pouco melhor, sim, com efeito, muito agradecido a V. Exa., Sr.
Gonçalo Ramires! — murmurou o descarnado e corcovado homem,
repuxando para os joelhos o xaile-manta.

E, com os óculos a luzir, cravados em Gonçalo, na curiosidade que o
abrasava, quase lhe rosara a face afilada, mais amarela que um círio:
— Mas, com perdão de V. Exa.! como é que V. Exa. anda por aqui, pela
estrada de Corinde, neste estado, a pé, trazendo à rédea um lavrador de
enxada?...


Rindo, sobretudo para D. Ana, cujos olhos formosamente negros, de uma
funda refulgência líquida, também esperavam, sérios e reservados, Gonçalo
contou o desastre do bom homem, que encontrara no caminho gemendo,
arrastando a perna escalavrada...

— De sorte que lhe ofereci a minha égua... E até, se V Exa. me permite,
minha senhora, é necessário que eu combine com ele o resto da jornada...


Rapidamente, voltou ao Solha, que, de novo acanhado perante os Senhores da
Feitosa, com o chapéu na mão, encolhido sobre o selim, como atenuando a
sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas já Gonçalo lhe
ordenava que trotasse para a Finta — e lhe mandasse a égua por um dos seus
rapazes, ali à Bica-Santa, onde ele se demorava com o Sr. Conselheiro. E
quando o Solha largou, saudando desabaladamente, torcido, como impelido
ao seu pesar pelos acenos risonhos com que o Fidalgo o despedia, o assombro
do Sanches Lucena recomeçou:


— Ora uma coisa destas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonçalo
Mendes Ramires a trazer à rédea, pela estrada de Corinde, um cavador de
enxada! E a repetição do Bom Samaritano... Mas para melhor!
Gonçalo gracejou, sentado no banco, junto de Sanches Lucena. — Oh! o
Bom Samaritano não merecera uma página tão amável no Evangelho,
somente por oferecer o burro a um Levita doente: decerto mostrara virtudes
mais belas... — E sorrindo para D. Ana, que, do Outro lado de Sanches
Lucena, espalhava a luneta, com lentidão majestosa, pelas árvores e pela Fonte
que tão bem conhecia:

— Há dois anos, minha senhora, que eu não tenho a honra...
Mas Sanches Lucena despediu um grito:
— Oh! Sr. Gonçalo Ramires! V. Exa. traz sangue na mão!
O Fidalgo reparou, espantado. Sobre a luva de camurça branca ressaltavam
duas manchas arroxeadas:
— Não é sangue meu! foi naturalmente quando o Solha montou, e eu lhe
segurei o pé escalavrado...


Arrancou a luva, que arremessou para as ervas bravas, por trás do banco de
pedra. E continuando o sorriso:
— Com efeito, não tenho a honra de encontrar a V. Exa., minha senhora,
desde o baile do Barão das Marges, em Oliveira, o famoso baile de Entrudo...
Há mais de dois anos, era eu estudante. E ainda me recordo que V Exa. estava
vestida esplendidamente de Catarina da Rússia...

E, enquanto a envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos, pensava: —
"Formosa criatura! mas ordinária! e que!..." D. Ana também se recordava do
baile dos Marges:
— O cavalheiro, porém, está equivocado. Eu não fui de Russa, fui de
Imperatriz...
— Sim, de Imperatriz da Rússia, da Grande Catarina... E com um gosto!
com um luxo!
Sanches Lucena voltou vagarosamente para Gonçalo os óculos de ouro,
apontou um dedo alongado e lívido:
— Pois também eu me lembro que a sua mana, e a minha senhora, a Sra.
D. Graça, trazia um traje de lavradeira de Viana... Foi uma luzidíssima festa;
nem admira; o nosso Marges é sempre primoroso... E desde essa noite não
tornei a encontrar a mana de V. Exa. em intimidade. Apenas de longe, na
missa...

De resto pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa montada,
criadagem e cocheira porque, ou culpa do ar ou culpa da água, não se dava
bem na Cidade.
Gonçalo acalorou mais o seu interesse:
— Mas então, realmente, V. Exa. o que tem tido?
Sanches Lucena sorriu, com amargura. Os médicos, em Lisboa, não se
entendiam. Uns atribuíam ao estômago — outros atribuíam ao coração.
Portanto, aqui ou ali, víscera essencial atacada. E sofria crises — más crises...
Enfim, com a graça de Deus, e regime, e leite, e descanso, ainda esperava
arrastar uns anos.
— Oh! com certeza! — exclamou Gonçalo alegremente. — E V. Exa. não
pensa que a estada em Lisboa, e as Câmaras, e a Política, a terrível Política, o
fatiguem, o agitem?...
Não, pelo contrário, Sanches Lucena passava toleravelmente em Lisboa.
Melhor mesmo que na Feitosa! Depois, gostava daquela distração das
Câmaras. E como conservava amigos na Capital, uma roda escolhida, uma
roda fina...
— Um desses nossos excelentes amigos, V. Exa. decerto conhece. Ele é
parente de V. Exa.... O D. João da Pedrosa.
Gonçalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou polidamente:

— Sim, o D. João, decerto...
E Sanches Lucena, passando pelas suíças brancas a mão magríssima, quase
transparente, onde reluzia um enorme anel de armas de safira:
— E não somente o D. João... Outro dos nossos amigos é igualmente
parente de V. Exa., e chegado. Muitas vezes temos falado de V. Exa., e da sua
casa. Que ele pertence também à primeira nobreza... É o Arronches Manrique.
— Cavalheiro muito dado, muito divertido! — acrescentou D. Ana, com
uma convicção que lhe alteou o peito, a que o corpete justo marcava a força
viçosa e a perfeição.
A Gonçalo também nunca chegara esse nome sonoro. Mas não hesitou:
— Sim, perfeitamente, o Manrique... De resto, eu tenho tantos parentes
em Lisboa, e vou tão pouco a Lisboa!... E V. Exa., Sra. D. Ana...
Mas o Sanches Lucena insistia, deliciado naquela conversa de parentescos
fidalgos:
— V. Exa., naturalmente, tem em Lisboa toda a sua parentela histórica.
Assim eu creio que V. Exa. é primo do Duque de Lourençal... O Duarte
Lourençal! Ele não usa o título, por Miguelismo, ou antes por hábito; mas
enfim é o legítimo Duque de Lourençal. É quem representa a casa de
Lourençal.


Gonçalo, sorrindo atentamente, desabotoara o fraque, procurava a sua velha
charuteira de couro.
— Sim, com efeito, o Duarte... Somos primos. Diz ele que somos primos.
E eu acredito. Entendo tão pouco de árvores de costado!... De facto as casas
em Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes, não só pelo lado
de Adão, mas pelos Godos... E V Exa., Sra. D. Ana, prefere a estada em
Lisboa?
Mas, reparando que escolhera um charuto, distraidamente o trincara:
— Oh! perdão minha senhora... Ia fumar sem saber se V. Exa....
Ela saudou, descendo as longas pestanas:
— O cavalheiro pode fumar; o Sanches não fuma, mas eu até aprecio o
cheiro.
Gonçalo agradeceu, enjoado com aquela voz redonda e gorda, aqueles
horrendos "cavalheiro, o cavalheiro!..." Mas pensava: — "que linda pele! que
bela criatura!..." E Sanches Lucena, inexorável, estendera o dedo agudo:
— Pois eu conheço muito, não o Sr. D. Duarte Lourençal, não tenho essa
subida honra por ora, mas seu irmão, o Sr. D. Filipe. Cavalheiro
estimabilíssimo, como V. Exa. decerto sabe... E depois, que talento... Que
talento, no cornetim!
— Ah!

— O quê! V. Exa. não ouviu seu primo, o Sr. D. Filipe Lourençal, tocar
cornetim?
E até a bela D. Ana se animou, com um sorriso lânguido dos beiços cheios,
mais vermelhos que cerejas maduras sobre o fresco rebrilho dos dentes
pequeninos:
— Oh! toca ricamente! O Sanches gosta muito de música; eu também...
Mas, como V. Exa. compreende, aqui na aldeia, com a falta de recursos...
Gonçalo, arremessando o fósforo, exclamara logo, num sincero interesse:
— Então, queria que V. Exa. ouvisse um amigo meu, que é
verdadeiramente sublime no violão, o Videirinha!...
Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o Fidalgo,
singelamente:
— É um rapaz muito meu amigo, de Vila-Clara... O José Videira, ajudante
da Farmácia...
Os óculos de Sanches Lucena cresceram de puro espanto:
— Ajudante da Farmácia e amigo do Sr. Gonçalo Mendes Ramires!
— Sim, desde estudante, dos exames do Liceu. Até o Videirinha passava as
férias na Torre, com a mãe, antiga costureira da casa. Tão bom rapaz, tão
simples... E na realidade, no violão, um génio!

— Agora tem ele uma cantiga admirável que chamou o Fado dos Ramires.
A música é com efeito um fado de Coimbra, um fado conhecido. Mas os
versos são dele, umas quadras engraçadas sobre coisas da minha Casa, lendas,
patranhas... Pois ficou sublime! Ainda há dias na Torre, comigo e com o
Titó...
E a este nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro reparo:
— O Titó?
O Fidalgo ria:
— É uma velha alcunha de amizade que nós damos ao António Vilalobos.
Então Sanches Lucena atirou ambos os braços, como se alguém muito
querido aparecesse na estrada:
— O António Vilalobos! Mas esse é um dos nossos fiéis e bons amigos!
Cavalheiro estimabilíssimo! Quase todas as semanas nos faz o favor de
aparecer pela Feitosa...
E agora era o Fidalgo que pasmava perante essa intimidade a que nunca o Titó
aludira, quando no Gago, na Torre, na Assembleia, se berrava, politicando, o
nome do Sanches Lucena!
— Ah, V. Exa. conhece...

Mas D. Ana, que se erguera bruscamente do banco, e, debruçada, recolhia a
luva e a sombrinha — lembrou ao marido o esfriar lento da tarde, a neblina
subindo sempre àquela hora do vale aquecido:
— Sabes que nunca te faz bem... E também não faz bem à parelha, assim
parada, há tanto tempo.
Imediatamente Sanches Lucena, receoso, puxara da algibeira um espesso lenço
de seda branca para abafar o pescoço. E, receoso também pela parelha, logo
se arrancou pesadamente do banco de pedra, com um aceno cansado ao
trintanário para apanhar o xale, avisar o cocheiro. Mas ainda atravessou,
vergado e arrimado à bengala, para o parapeito que resguarda a estrada sobre
o despenhado pendor do monte, dominando o vale. E confessava a Gonçalo
que aquele era, nos arredores da Feitosa, o seu passeio preferido. Não só pela
beleza do sítio, já cantado pelo "nosso mavioso Cunha Torres"; mas porque
do terraço da Bica, sem esforço, sentado no banco, avistava numa largueza
terras suas:

— Olhe V. Exa.... Para além daquele souto, até a chã e ao cômoro onde
está a casota amarela e por trás o pinhal, tudo é meu... O pinhal ainda é meu...
Acolá, do renque de álamos para diante, depois do lameiro, é também meu...
Ali, do lado da ermida, pertence ao Monte-Agra... Mas, mais para lá, passado o
azinhal, pelo monte acima, é tudo meu!


O lívido dedo, o braço escanifrado na manga de casimira preta, cresciam por
sobre o vale. — Além os pastos... Adiante os centeios... Depois o bravio... —
Tudo dele! E, por trás da magra figura alquebrada, de chapéu enterrado na
nuca, o abafo de seda subido até às pálidas orelhas quase despegadas, D. Ana,
esbelta, clara e sã como um mármore, com um sorriso esquecido nos lábios
gulosos, o formoso peito mais cheio, acompanhava a enumeração copiosa,
afincava a luneta sobre os pastos, e os pinhais, e os centeios, sentindo já —
tudo dela!
— E agora acolá, detrás do olival — concluiu Sanches Lucena com
respeito — é sítio seu, Sr. Gonçalo Mendes Ramires...
— Meu?
— De V. Exa., quero dizer, ligado à Casa de V Exa.. Pois não reconhece?...
Além, por trás do moinho, passa a estrada de Santa Maria de Craquede. São os
túmulos dos seus antepassados... Passeio que eu também às vezes faço, e com
gosto. Ainda há um mês visitamos detidamente as ruínas. E acredite que fiquei
impressionado! Aquele bocado de claustro tão antigo, os grandes esquifes de
pedra, a espada chumbada à abóbada por cima do túmulo do meio... É de
comover! E achei muito bonito, muito filial, da parte de V. Exa., o ter sempre
aquela lâmpada de bronze acesa de noite e de dia...
Gonçalo engrolou um murmúrio risonho — porque não se recordava da
espada, nunca recomendara a lâmpada. Mas Sanches Lucena, agora, suplicava
um precioso favor ao Sr. Gonçalo Mendes Ramires. E era que V. Exa. lhe
concedesse a honra de o conduzir na carruagem à Torre... Alvoroçadamente
Gonçalo recusou. Nem podia! combinara com o homem da perna dorida
esperar ali, na Bica, pela sua égua.


— Mas fica aqui o meu trintanário, que leva a égua de V. Exa. à Torre.
— Não, não, se V. Exa. me permite, eu espero... Depois meto pelo atalho
da Crassa, porque tenho às oito horas na Torre, à minha espera para jantar, o
Titó.
D. Ana, do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com a
ameaça renovada da friagem, do relento... Mas, junto da caleche, Sanches
Lucena ainda emperrou para afirmar a Gonçalo, com a descarnada mão sobre
o encovado peito, que aquela tarde lhe ficava célebre...
— Porque vi uma coisa que poucas vezes se terá visto: o maior Fidalgo de
Portugal, a pé pela estrada de Corinde, levando à rédea no seu próprio cavalo
um cavador de enxada!
Ajudado por Gonçalo, trepou enfim pesadamente ao estribo. D. Ana já se
enterrara nas almofadas, alçando entre as mãos, como uma insígnia, o cabo
rebrilhante da luneta de ouro. O trintanário também se entesou, cruzou os
braços: e a caleche aparatosa, com as manchas brancas das redes dos cavalos,
mergulhou no silêncio e na penumbra da estrada, sob a espalhada ramaria das
faias.

— Que maçada! — exclamou Gonçalo. E não se consolava de tarde tão
linda assim desperdiçada... Intolerável, esse Sanches Lucena, com o Sr. D.
Fulano e o Sr. D. Sicrano, e a sua gula de "roda fina", e "tudo dele" por colina
e vale! A mulher, esplêndida peça de carne, como filha de carniceiro — mas
sem migalha de graça ou alma. E que voz, Jesus, que voz! Gente pedante e
sabuja... E agora só desejava recuperar a sua égua, galopar para a Torre, e
desabafar com o Titó, familiar da Feitosa!, o seu asco por toda aquela
Sancharia.
A égua não tardou, a trote largo, montada pelo filho do Solha, que, ao avistar
o Fidalgo, saltou à estrada, de chapéu na mão, encouchado e encarnado,
balbuciando que o pai chegara bem, pedia ao nosso Senhor lhe pagasse a
caridade...
— Bem, bem! Recados ao teu pai. Que estimo as melhoras. Lá mandarei
saber.
Num pulo montara — galopava pelo fácil atalho da Crassa. Mas, diante do
portão da Torre, encontrou um jovem do Gago, com um bilhete do Titó,
anunciando que não podia jantar na Torre porque partia nessa semana para
Oliveira!
— Que disparate! Para Oliveira também eu parto; mas janto hoje! Até
combinávamos, o levava na carruagem... Ele que ficou a fazer, o Sr. D.
António?

O rapaz coçou pensativamente a cabeça:
— O Sr. D. António passou lá por casa para eu trazer o bilhete ao
Fidalgo... Depois, creio que tem festa, porque entrou em frente no tio Cosme
fogueteiro, a comprar bichas de rabear...
Aquelas inesperadas bichas de rabear causaram logo ao Fidalgo uma imensa
inveja:
— E onde é a festa, sabes?
— Eu não sei, meu Fidalgo... Mas parece que é coisa rija, porque o Sr. João
Gouveia encomendou lá ao patrão dois grandes pratos de bolos de bacalhau.
Bolos de bacalhau! Gonçalo sentiu como a amargura de uma traição:
— Oh! que animais!
E de repente ideou uma vingança alegre:
— Pois se vires hoje o Sr. D. António ou o Sr. João Gouveia não te
esqueças de lhes dizer que sinto muito... Que eu também cá tinha à noite na
Torre uma festa. E havia senhoras. Vinha a Sra. D. Ana Lucena... Não te
esqueças, hem?
Gonçalo galgou as escadas rindo da sua invenção. Mas, nessa noite, às nove
horas, depois do arrastado e atochado jantar com o Manuel Duarte, entrou na
sala grande dos retratos, apenas iluminada pelo lampião dourado do corredor,
para buscar uma caixa de charutos. E casualmente, através da janela aberta,
reparou num homem que, embaixo, rente da sombra dos álamos, rondava,
espreitava... Mais atento, imaginou reconhecer os poderosos ombros, o andar
bovino do Titó. Mas não, com certeza! o homem trazia jaqueta e carapuço de
lã. Curioso, abafando os passos, ainda se aproximou da varanda. O vulto
porém descera da estrada, logo sumido sob as árvores de uma quelha que
contorna o Casal do Miranda, e desemboca adiante, na Portela, junto das
primeiras casas de Vila-Clara.