Capítulo XVIII

Uma circunstância inesperada veio estragar aquelas manhãs em casa do sineiro. Foi a extravagância da
Totó. Como disse o padre Amaro, "a rapariga saia-lhes um monstro"!
Tinha agora por Amélia uma aversão desabrida. Apenas ela se aproximava da cama, atirava a cabeça para
debaixo dos cobertores, torcendo — se com frenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amélia fugia,
impressionada com a ideia de que o diabo que habitava a Totó, recebendo o cheiro que ela trazia da
igreja nos vestidos, impregnados de incenso e salpicados de água benta, se espolinhava de terror dentro
do corpo da rapariga...

Amaro quis repreender a Totó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão demoníaca para
com a menina Amélia que vinha entretê-la, ensiná-la a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralítica
rompeu num choro histérico; depois, de repente, ficou imóvel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo,
com uma escuma branca na boca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama de água; Amaro, por
prudência, recitou os exorcismos... E Amélia desde então resolveu "deixar a fera em paz". Não tentou
mais ensinar-lhe o alfabeto, nem orações a Santa Ana.

Mas, por escrúpulo, iam sempre ao entrar vê-la um instante. Não passavam da porta da alcova,
perguntando-lhe de alto "como ia". Nunca respondia. E eles retiravam-se logo aterrados com aqueles
olhos selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo de um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando
se com uma faiscação metálica nos vestidos de Amélia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o
que estava por baixo, numa curiosidade ávida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe
arreganhava os beiços lívidos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incomodava sobretudo.
Amaro, que não acreditava muito em possessos e endemoninhados, via ali os sintomas de loucura
furiosa. Os sustos de Amélia aumentaram. — Felizmente que as pernas inertes cravavam a Totó ali na
enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e mordê-los num acesso!

Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, "depois daquele espetáculo"; e decidiu
então, daí por diante, subir para o quarto sem falar à Totó.

Foi pior. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Totó debruçava-se para fora do leito,
agarrada às bordas da enxerga, num esforço ansioso para a seguir, para a ver, com a face toda
descomposta do desespero da sua imobilidade. E Amélia ao entrar no quarto sentia vir debaixo uma
risadinha seca, ou um ui! prolongado e uivado que a gelava...

Andava agora aterrada: viera-lhe a ideia que Deus estabelecera ali, ao lado do seu amor com o pároco,
um demónio implacável para a escarnecer e apupar. Amaro, querendo-a tranquilizar, dizia-lhe que o
nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declarara pecado crer em pessoas possessas...

— Mas para que há rezas, então, e exorcismos?

— Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Enfim a ciência é a ciência...

Ela pressentia que Amaro a enganava — e a Totó estragava a sua felicidade. Enfim Amaro achou o meio
de escaparem à "maldita rapariga": era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a
cozinha para subir a escada, e a posição da cama da Totó, na alcova, não lhe permitia vê-los, quando eles
cautelosamente passassem pé ante pé. Era fácil, de resto, porque à hora do rendez-vous, entre as onze e o
meio-dia, nos dias da semana, a sacristia estava deserta.

Mas sucedia que, quando eles entravam em pontas de pés e mordendo a respiração, os seus passos, por
mais sutis, faziam ranger os velhos degraus da escada. E então a voz da Totó saía da alcova, uma voz
rouca e áspera, berrando:

— Passa fora, cão! passa fora, cão!

Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralítica. Amélia tremia, toda branca.
E a criatura uivava de dentro:

— Lá vão os cães! lá vão os cães!

Eles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquela voz de um desolamento lúgubre,
que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:

— Estão a pegar-se os cães! Estão a pegar-se os cães!

Amélia caía sobre o catre, quase desmaiada de terror. Jurava não voltar àquela casa maldita...

— Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de ver então? Queres que
nos deitemos nos bancos da sacristia?

— Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amélia, apertando as mãos.

— Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Enfim, que queres que lhe faça?

Ela não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia do rendez-vous, começava a tremer à
ideia daquela voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a
despertando lentamente do adormecimento de todo o ser, em que caíra nos braços do pároco.
Interrogava-se agora: não andaria cometendo um pecado irremissível? As afirmações de Amaro,
assegurando-lhe o perdão do Senhor, já não a tranquilizavam. Ela bem via, quando a Totó uivava, uma
palidez cobrir o rosto do pároco, como correr-lhe no corpo um calafrio do inferno entrevisto. E se Deus
os desculpava — por que deixava assim o demónio atirar — lhes, pela voz da paralítica, a injúria e o
escárnio?

Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dores, pedindo
lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que era aquela perseguição da Totó, e se era sua intenção divina
mandar — lhe assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia como
outrora descer do Céu às suas orações, entrar-lhe na alma aquela tranquilidade suave como uma onda de
leite que era uma visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da graça.
Prometia então não voltar a casa do sineiro; — mas quando o dia chegava, à ideia de Amaro, do leito,
daqueles beijos que lhe levavam a alma; daquele fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a
tentação; vestia-se, jurando que era a última vez; e ao toque das onze partia, com as orelhas a arder, o
coração tremendo da voz da Totó que ia ouvir, as entranhas abrasando-se no desejo do homem que a ia
atirar para cima da enxerga.

Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.
Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á autoridade sagrada da sua batina. Ele
então, vendo-a chegar tão pálida e tão transtornada, galhofava para a tranquilizar. Não, era uma tolice, se
iam agora estragar o regalozinho daquelas manhãs, porque havia uma doida na casa! Prometera-lhe de
resto procurar outro sítio para se verem; e mesmo com o fim de a distrair, aproveitando a solidão da
sacristia, mostrava-lhe às vezes os paramentos, os cálices, as vestimentas, procurando interessá-la por um
frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava
nas relíquias, que era ainda o senhor pároco e não perdera o seu crédito no Céu.

Foi assim que uma manhã lhe fez ver uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegara de presente
duma devota rica de Ourém. Amélia admirou-a muito. Era de cetim azul, representando um
firmamento, com estrelas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flamejava um coração de ouro
cercado de rosas de ouro. Amaro desdobrara-a, fazendo cintilar junto da janela os bordados espessos.

— Rica obra, hem? centos de mil-réis... Experimentamo-la ontem na imagem... Vai-lhe como um
brinco. Um bocadito comprida, talvez... — E olhando Amélia, numa comparação da sua alta estatura
com a figura atarracada da imagem da Senhora: — A ti é que te havia de ficar bem. Deixa ver...

Ela recuou:

— Não, credo, que pecado!

— Tolice! disse ele adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de cetim branco, duma
alvura de nuvem matutina. Não esta benzida... É como se viesse da modista.

— Não, não, dizia ela frouxamente, com os olhos já luzidios de desejo. Ele então zangou-se. Queria
talvez saber melhor do que ele o que era pecado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que
se deve aos vestuários dos santos?

— Ora não seja tola. Deixe ver.

Pôs-lha aos ombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar
toda envolvida no manto, assustada e imóvel, com um sorriso cálido de gozo devoto.

— Oh filhinha, que linda que ficas!

Ela então, movendo-se com uma cautela solene, chegou-se ao espelho da sacristia — um antigo espelho
de reflexo esverdeado, com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se
um momento, naquela seda azul-celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrelas, com
uma magnificência sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no contato com os
ombros da imagem penetrava-a duma voluptuosidade beata. Um fluido mais doce que o ar da terra
envolvia-a, fazia-lhe passar no corpo a carícia do éter do Paraíso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou
mais alto, no Céu...

Amaro babava-se para ela:

— Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhoras!

Ela deu uma olhadela viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas cora o
seu rosto trigueiro, de lábios rubros, alumiado por aquele rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o
altar, com cantos ao órgão e um culto sussurrando em redor, faria palpitar bem forte o coração dos fiéis...

Amaro então chegou-se por detrás dela, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda — e
estendendo os lábios por sobre os dela, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos de Amélia
cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para trás, pesada de desejo. Os beiços do padre não se
desprendiam, ávidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração dela apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com
um gemido desfaleceu sobre o ombro do padre, descorada e morta de gozo.

Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as pálpebras como acordada de muito longe; uma
onda de sangue escaldou-lhe o rosto:

— Oh! Amaro, que horror, que pecado!...

— Tolice! disse ele.

Mas ela desprendia-se do manto, toda aflita:

— Tira-mo, tira-mo! gritava, como se a seda a queimasse.

Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com coisas sagradas...

— Mas não está benzida... Não tem dúvida...

Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, colocou-o no gavetão, sem uma palavra.
Amélia olhava-o petrificada; e só os seus lábios pálidos se moviam numa oração.

Quando ele lhe disse, enfim, que eram horas de irem a casa do sineiro — recuou, como diante do
demónio que a chamasse.

— Hoje não! exclamou, implorando-o.

Ele insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ela bem sabia que não era pecado, quando as
coisas não estavam benzidas... Era ser muito pobre de espírito... Que demónio, só meia hora, ou um
quarto de hora!

Ela, sem responder, ia-se aproximando da porta.

— Então não queres?

Ela voltou-se, e com uns olhos suplicantes:

— Hoje não!

Amaro encolheu os ombros. E Amélia atravessou rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos nas lajes,
como se passasse entre as ameaças cruzadas dos santos indignados.

No dia seguinte de manhã, a S. Joaneira, que estava na sala de jantar, sentindo o senhor cónego subir
soprando forte, veio encontrá-lo à escada e fechou-se com ele na saleta.
Queria contar-lhe a aflição que tivera de madrugada. A Amélia acordara de repente aos gritos, que
Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no pescoço! que sufocava! que a Totó a queimava por detrás! e
que as labaredas do Inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Enfim um horror!... Viera encontrá
la em camisa a correr pelo quarto, como doida. Daí a pouco caíra para o lado com um ataque de nervos.

Toda a casa estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a manhã apenas tocara
numa colher de caldo.

— Pesadelos, disse o cónego. Indigestão!

— Ai, senhor cónego, não! exclamou a S. Joaneira, que parecia acabrunhada, sentada diante dele na
borda duma cadeira. É outra coisa: são aquelas desgraçadas visitas à filha do sineiro!

E então desabafou, com a efusão labial de quem abre os diques a um descontentamento acumulado.
Nunca quisera dizer nada, porque enfim reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde
que aquilo começara, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de todo. Ora alegrias
sem razão, ora umas trombas de dar melancolia aos móveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde,
abrir as janelas... Às vezes tinha até medo de lhe ver o olhar tão esquisito: quando vinha de casa do
sineiro era sempre branca como a cal, a cair de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Enfim, dizia-se
que a Totó tinha o demónio no corpo. E o senhor chantre, o outro que tinha morrido (Deus lhe fale na
alma), costumava dizer que, neste mundo, as duas coisas que se pegavam mais às mulheres eram tísicas e
demónio no corpo. Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro, sem
estar certa que aquilo nem lhe prejudicava a saúde, nem lhe prejudicava a alma. Enfim, queria que uma
pessoa de juízo, de experiência, fosse examinar a Totó...

— Numa palavra, disse o cónego, que escutara de olhos cerrados aquela verbosidade repassada de
lamúria; o que a senhora quer é que eu vá ver a paralítica, e saber à justa o que se passa...

— Era um alívio para mim, riquinho!

Aquela palavra, que a S. Joaneira, na sua gravidade de matrona, reservava para a intimidade das sestas,
enterneceu o cónego. Fez uma carícia ao pescoço gordo da sua velhota, e prometeu com bondade ir
estudar o caso...

— Amanhã, que a Totó está só, lembrou logo a S. Joaneira.

Mas o cónego preferia que Amélia estivesse presente. Podia assim ver como as duas se davam, se havia
influência do espírito maligno...

— Que isto que eu faço é de agradecer... É por ser para quem é... Que bem me bastam os meus
achaques, sem me ocupar dos negócios de Satanás.

A S. Joaneira recompensou-o com uma beijoca sonora.

— Ah, sereias, sereias!... murmurou o cónego filosoficamente.

No fundo aquele encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus hábitos, toda uma manhã
desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo de exercitar a sua sagacidade; além disso odiava o espetáculo de
doenças e de todas as circunstâncias humanas relacionadas com a morte. Mas, enfim, fiel à sua promessa,
daí a dias, na manhã em que fora prevenido que Amélia ia à Totó, arrastou-se contrariado para a botica
do Carlos; e instalou — se, com um olho no Popular e outro na porta, à espera que a rapariga
atravessasse para a Sé. O amigo Carlos estava ausente; o Sr. Augusto ocupava os seus vagares sentado à
escrivaninha, de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fora, o sol já quente dos fins de
abril fazia rebrilhar o lajeado do largo; não passava ninguém; e só quebravam o silêncio as marteladas
nas obras do doutor Pereira. Amélia tardava. E o cónego, depois de ter considerado longo tempo, com o
Popular caído nos joelhos, o medonho sacrifício que fazia pela sua velhota, ia cerrando as pálpebras, já
tomado da quebreira, naquele repouso calado do meio-dia próximo — quando entrou na botica um
eclesiástico.

— Oh, abade Ferrão, você pela cidade! exclamou o cónego Dias despertando do seu quebranto.

— De fugida, colega, de fugida, disse o outro colocando cuidadosamente sobre uma cadeira dois
grossos volumes que trazia, amarrados num barbante.

Depois voltou-se e tirou, com respeito, o seu chapéu ao praticante.

Tinha o cabelo todo branco; devia passar já dos sessenta anos; mas era robusto, uma alegria bailava
sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes magníficos a que uma saúde de granito conservava o
esmalte; o que o desfigurava era um nariz enorme.

Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava ali de visita ou infelizmente por motivo de
doença.

— Não, estou aqui à espera. Uma embaixada de truz, amigo Ferrão!

— Ah, fez o velho discretamente. — E enquanto tirava com método duma carteira atulhada de
papéis a receita para o praticante, deu ao cónego notícias da freguesia. Era lá, nos Poiais, que o cónego
tinha a fazenda, a Ricoça. O abade Ferrão passara de manhã diante da casa e ficara surpreendido vendo
que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo Dias tinha algumas ideias de ir lá passar o Verão?

Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma vergonha, mandara-lhe dar uma
mão de ocre. Enfim, era necessário alguma aparência, sobretudo numa casa que estava à beira da estrada,
onde passava todos os dias o morgadelho dos Poiais, um parlapatão que imaginava que só ele tinha um
palacete decente em dez léguas á roda... Só para meter ferro, àquele ateu! Pois não lhe parecia, amigo
Ferrão?

O abade estava justamente lamentando consigo aquele sentimento de vaidade num sacerdote; mas, por
caridade cristã, para não contrariar o colega, apressou-se a dizer:

— Está claro, está claro. A limpeza é a alegria das coisas...

O cónego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi à porta afirmar-se se era Amélia.
Não era. E voltando, retomado agora da sua preocupação, vendo que o praticante fora dentro ao
laboratório, disse ao ouvido do Ferrão:

— Uma embaixada da fortuna! Vou ver uma endemoniada!

— Ah, fez o abade, todo sério à ideia daquela responsabilidade.

— Quer você vir comigo, abade? É aqui perto...

O abade desculpou-se polidamente. Viera falar ao senhor vigário-geral, fora depois ao Silvério para lhe
pedir aqueles dois volumes, vinha ali aviar uma receita para um velho da freguesia, e tinha de estar de
volta aos Poiais ao toque das duas horas.

O cónego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...
O abade então confessou ao caro colega que eram coisas que não gostava de examinar. Aproximava-se
sempre delas com um espírito rebelde à crença, com desconfianças e suspeitas que lhe diminuíram a
imparcialidade.

— Mas enfim há prodígios! disse o cónego. — Apesar das suas próprias dúvidas, não gostava daquela
hesitação do abade, a propósito dum fenómeno sobrenatural, em que ele, cónego Dias, estava
interessado. Repetiu com secura: — Tenho alguma experiência, e sei que há prodígios.

— Decerto, decerto há prodígios, disse o abade. Negar que Deus ou a Rainha do Céu possa aparecer
a uma criatura, é contra a doutrina da Igreja... Negar que o demónio possa habitar o corpo de um
homem, seria estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Jó, sem ir mais longe, e à família de Sara. Está
claro, há prodígios. Mas que raríssimos que são, cónego Dias!
Calou-se um momento olhando o cónego, que tapava o nariz com rapé em silêncio — e continuou mais
baixo, com o olho brilhante e fino:

— E depois não tem o colega notado que é uma coisa que só sucede às mulheres? É só a elas, cuja
malícia é tão grande que o próprio Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso, tão
contraditório, que os médicos não as compreendem. É só a elas que sucedem prodígios!... O colega já
ouviu de ter aparecido a nossa Santa Virgem a um respeitável tabelião? Já ouviu dum digno juiz de
direito possuído do espírito maligno? Não. Isto faz refletir... E eu concluo que é malícia nelas, ilusão,
imaginação, doença, etc... Não lhe parece? A minha regra nesses casos é ver tudo isso de alto e com
muita indiferença.

Mas o cónego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guarda-sol, fazendo pari o largo:

— Pst, pst! Eh lá!

Era Amélia que passava. Parou logo, contrariada daquele encontro que a ia ainda retardar mais. E já o
senhor pároco devia estar desesperado...

— De modo que, disse o cónego à porta abrindo o seu guarda-sol, você, abade, em lhe cheirando a
prodígio...

— Suspeito logo escândalo.

O cónego contemplou-o um momento, com respeito:

— Você, Ferrão, é capaz de dar quinaus a Salomão em prudência!

— Oh, colega! oh, colega! exclamou o abade, ofendido com aquela injustiça feita à incomparável
sabedoria de Salomão.

— Ao próprio Salomão! afirmou ainda o cónego da rua.

Tinha preparado uma história hábil para justificar a sua visita à paralítica; mas durante a sua conversação
com o abade ela escapara-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatórios da memória; e
foi sem transição que disse simplesmente a Amélia:

— Vamos lá, também quero ir ver essa Totó!

Amélia ficou petrificada. E o senhor pároco, naturalmente, já lá estava! Mas a sua madrinha Nossa
Senhora das Dores, que ela invocou logo naquela aflição, não a deixou enleada no embaraço. — E o
cónego, que caminhava ao lado dela, ficou surpreendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:

— Viva, hoje é o dia das visitas à Totó! O senhor pároco disse-me que também talvez hoje aparecesse
por lá... Talvez lá esteja até.

— Ah! O amigo pároco também? Está bom, está bom. Faremos uma consulta à Totó!

Amélia então, contente de sua malícia, tagarelou sobre a Totó. O senhor cónego ia ver... Era uma
criatura incompreensível... Ultimamente, ela não tinha querido contar em casa, mas a Totó tomara-lhe
birra... E dizia coisas, tinha um modo de falar de cães e de animais, de arrepiar!... Ai, era um encargo que
já lhe pesava... Que a rapariga não lhe escutava as lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma
fera!

— O cheiro é desagradável! rosnou o cónego, entrando.

Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tê-la arranjado. O pai, esse, um desleixado também...

— É aqui, senhor cónego, disse, abrindo a porta da alcova — que, agora, em obediência às ordens do
senhor pároco, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.

Encontraram a Totó meio erguida sobre a cama, com a face acesa numa curiosidade, àquela voz do
cónego que não conhecia.

— Ora viva lá a Sra. Totó! disse ele da porta, sem se aproximar.

— Vá, cumprimenta o senhor cónego, disse Amélia, começando logo, com uma caridade
desacostumada, a compor a roupa da cama, a arrumar a alcova. Diz-lhe como estás... Não te faças
amuada!

Mas a Totó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha à cabeceira, examinando muito
aquele sacerdote tão gordo, tão grisalho, tão diferente do senhor pároco... E os seus olhos, mais
brilhantes todos os dias à medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do homem para
Amélia, numa ansiedade de perceber por que o trazia ela ali, àquele velho obeso, e se ia também subir
com ele para o quarto.

Amélia agora tremia. Se o senhor pároco entrasse, e ali, diante do cónego, a Totó, tomada do seu frenesi,
rompesse aos gritos, tratando-os de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadela, foi à cozinha vigiar
o pátio. Faria um sinal da janela, apenas Amaro aparecesse.

E o cónego, só na alcova da Totó, preparando-se para começar as suas observações, ia perguntar-lhe
quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade, — quando ela, adiantando a face, lhe disse numa voz
sutil como um sopro:

— E o outro?

O cónego não compreendeu. Que falasse alto! Que era?

— O outro, o que vem com ela!

O cónego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:

— Que outro?

— O bonito. O que vai com ela para o quarto. O que a belisca...

Mas Amélia entrava; e a paralítica calou-se logo, repousada, com os olhos cerrados e respirando
regaladamente, como num alívio repentino de todo o seu sofrimento. O cónego, esse, imobilizado de
assombro, permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para auscultar a Totó. Ergueu-se
por fim, soprou como numa calma de agosto, sorveu de espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa
aberta entre os dedos, os olhos muito vermelhos cravados na colcha da Totó.

— Então, senhor cónego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou Amélia.

Ele respondeu, sem a olhar:

— Sim senhor, muito bem... Vai bem... É esquisita... Pois é andar, é andar... Adeus...

Saiu, resmungando que tinha negócios, — e voltou imediatamente à botica.

— Um copo de água! exclamou, caindo em cheio sobre a cadeira.

O Carlos, que voltara, apressou-se, oferecendo flor de laranja, perguntando se sua excelência estava
incomodado...

— Cansadote, disse.

Tomou o Popular de sobre a mesa, e ali ficou, sem se mexer, abismado nas colunas do periódico. O
Carlos tentou falar da política do pais, depois dos negócios de Espanha, depois dos perigos
revolucionários que ameaçavam a Sociedade, depois da deficiência da administração do concelho de que
era agora um adversário feroz... Debalde. Sua excelência grunhia apenas monossílabos soturnos. E o
Carlos, enfim, recolheu-se a um silêncio chocado, comparando, num desdém interior que lhe vincava de
sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna daquele sacerdote à palavra inspirada dum
Lacordaire e dum Malhão! Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal, erguia a sua cabeça de
hidra...

Batia uma hora na torre quando o cónego, que vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar Amélia,
arremessou o jornal, saiu da botica sem dizer uma palavra e estugou o seu passo de obeso para a casa do
tio Esguelhas. A Totó estremeceu de medo ao ver de novo aquela figura bojuda aparecer à porta da
alcova. Mas o cónego riu-se para ela, chamou-lhe Totozinha, prometeu-lhe um pinto para bolos; e
mesmo sentou-se aos pés da cama com um ah! regalado, dizendo:

— Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita doente, hem? Coitadita! Deixa
que te hás de curar... Hei de pedir a Deus... Fica por minha conta.

Ela fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além, inquieta, na perturbação que lhe
dava aquele homem a sós com ela tão perto que lhe sentia o hálito forte.

— Então, ouve cá, disse ele chegando-se mais para ela, fazendo ranger o catre com o seu peso. Ouve
cá, quem é o outro? Quem é que vem com a Amélia?

Ela respondeu logo, atirando as palavras dum fôlego:

— É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem para o quarto, fecham — se por dentro; são como cães!

Os olhos do cónego injetaram-se para fora das órbitas:

— Mas quem é ele, como se chama? O teu pai que te disse?

— É o outro, é o pároco, o Amaro! fez ela impaciente.

— E vão para o quarto, hem? Lá para cima? E tu que ouves, tu que ouves? Diz tudo, pequena, diz tudo!

A paralítica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua voz de tísica, — como ambos
entravam, e a vinham ver, e se roçavam um pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam lá
uma hora fechados...

Mas o cónego, com uma curiosidade lúbrica que lhe punha uma chama nos olhos mortiços, queria saber
os detalhes torpes:

— E ouve lá, Totozinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama?

Ela respondeu com a cabeça afirmativamente, toda pálida, os dentes cerrados.

— E olha, Totozinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, diz, que te dou dois pintos.

Ela não descerrava os lábios; e a sua face transtornada parecia ao cónego selvagem.

— Tu embirras com ela, não é verdade?

Ela fez que sim numa afirmação feroz de cabeça.

— E viste-os beliscarem-se?

— São como cães! soltou ela por entre os dentes.

O cónego então endireitou-se; bufou outra vez com o seu grande sopro de encalmado, e coçou
vivamente a coroa.

— Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. Não te constipes...
Saiu; e ao fechar com força a porta exclamou alto:

— Isto é a infâmia das infâmias! Eu mato-o! eu perco-me!

Esteve um momento considerando, e partiu para a Rua das Sousas, de guarda-sol em riste, apressando a
sua obesidade, com a face apoplética de furor. No Largo da Sé, porém, parou a refletir ainda; e rodando
sobre os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um hábito de quarenta anos, não dobrou
o joelho ao Santíssimo. E arremessou-se para a sacristia — justamente quando o padre Amaro saía,
calçando cuidadosamente as luvas pretas que usava agora sempre para agradar à Ameliazinha.
O aspeto descomposto do cónego assombrou-o.

— Que é isso, padre-mestre?

— O que é, exclamou o cónego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a sua infâmia! é a sua infâmia!...
E emudeceu, sufocado de cólera.

Amaro, que se fizera muito pálido, balbuciou:

— Que está você a dizer, padre-mestre?

O cónego tomara fôlego:

— Não há padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra!

O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente dum gracejo:

— Que rapariga!? O senhor está a brincar?

Sorriu mesmo, afetando segurança; e os seus beiços brancos tremiam.

— Homem, eu vi! berrou o cónego.

O pároco, subitamente aterrado, recuou:

— Viu?

Imaginara, num relance, uma traição, o cónego escondido num recanto da casa do tio Esguelhas...

— Não vi, mas é como se visse! — continuou o cónego num tom tremendo. — Sei tudo. Venha de
lá. Disse-mo a Totó. Fecham-se no quarto horas e horas! Até se ouve embaixo ranger a cama! É uma
ignomínia!

O pároco, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a um canto, uma resistência de
desespero.

— Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?

O cónego pulou.

— O que tenho? o que tenho? Pois o senhor ainda me fala nesse tom? O que tenho é que vou daqui
imediatamente dar parte de tudo ao senhor vigário-geral!

O padre Amaro, lívido, foi para ele com o punho fechado:

— Ah, seu maroto!

— Que é lá? que é lá? exclamou o cónego de guarda-sol erguido. Você quer-me pôr as mãos?

O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de um
momento, falando com uma serenidade forçada:

— Ouça lá, Sr. cónego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S. Joaneira...

— Mente! mugiu o cónego.

— Vi, vi, vi! afirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas
de camisa, ela tinha-se erguido, estava a apertar o colete. Até o senhor perguntou: "Quem está aí?". Vi,
como estou a vê-lo agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive há dez
anos amigado com a S. Joaneira( à face de todo o clero! Ora aí tem!
O cónego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, àquelas palavras, como um boi
atordoado. Só pôde dizer daí a pouco, muito murcho:

— Que traste você me sai!

O padre Amaro então, quase tranquilo, certo do silêncio do cónego, disse com bonomia:

— Traste por quê? Diga-me lá! Traste por quê? Temos ambos culpas no cartório, eis aí está. E olhe
que eu não fui perguntar, nem peitar a Totó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem
agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escola e para o sermão. Cá na vida eu faço
isto, o senhor faz aquilo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se à
velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que manda.
Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é fazer costas!
O cónego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda daquelas verdades. Tinha-se deixado
cair numa cadeira, a descansar de tanta cólera inútil; e erguendo os olhos para Amaro:

— Mas você, homem, no começo da carreira!

— E você, padre-mestre, no fim da carreira!

Então riram ambos. Imediatamente cada um declarou retirar as palavras ofensivas que tinham dito; e
apertaram-se gravemente a mão. Depois conversaram.
O cónego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena da casa. Se fosse com outra... até estimava!

Mas a Ameliazinha!... Se a pobre mãe viesse a saber, estourava de desgosto.

— Mas a mãe escusa de saber! exclamou Amaro. Isto é entre nós, padre-mestre! Isto é segredo de
morte! Nem a mãe sabe de nada, nem eu mesmo digo à pequena o que se passou hoje entre nós. As
coisas ficam como estavam, e o mundo continua a rolar... Mas você, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem
uma palavra à S. Joaneira... Que não haja agora traição!

O cónego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra de honra de cavalheiro e de sacerdote
que aquele segredo ficava para sempre sepultado no seu coração.

Então apertaram ainda uma outra vez afetuosamente a mão.

Mas a torre gemeu as três badaladas. Era a hora de jantar do cónego.

E ao sair, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho de entendedor:

— Pois seu velhaco, tem dedo!

— Que quer você? Que diabo... Começa-se por brincadeira...

— Homem! disse o cónego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor deste mundo.

— É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor deste mundo.

Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquilidade de alma. Até aí incomodava-o, por vezes, a
ideia de que correspondera ingratamente à confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalizado na Rua
da Misericórdia. Mas a tácita aprovação do cónego viera tirar-lhe, como ele dizia, aquele espinho da
consciência. Porque enfim, o chefe de família, o cavalheiro respeitável, o cabeça — era o cónego. A S.
Joaneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo, às vezes agora, em tom de galhofa, tratava o Dias
de seu caro sogro.

Outra circunstância viera alegrá-lo: a Totó adoecera de repente: o dia seguinte ao da visita do cónego,
passara-o soltando golfadas de sangue: o doutor Cardoso, chamado à pressa, falara de tísica galopante,
questão de semanas, caso decidido...

— É destas, meu amigo, tinha ele dito, que é trás... trás... — era a sua maneira de pintar a morte, que,
quando tem pressa, conclui o seu trabalho com uma fouçada aqui, outra além.

As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora tranquilas. Amélia e o pároco já não entravam em
pontas de pés, tentando esgueirar-se para o prazer, despercebidos da Totó. Batiam com as portas,
palravam forte, certos que a Totó estava bem prostrada de febre, sob os lençóis húmidos dos suores
constantes. Mas Amélia, por escrúpulo, não deixava de rezar todas as noites uma Salve-Rainha pelas
melhoras da Totó. Às vezes mesmo ao despir-se, no quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um
rostinho triste:

— Ai, filho! Até me parece pecado, nós aqui a gozarmos, e a pobre pequena lá embaixo a lutar com a
morte...

Amaro encolhia os ombros. Que lhe haviam eles de fazer, se era a vontade de Deus?...
E Amélia, resignando-se à vontade de Deus em tudo, ia deixando cair as saias.

Tinha agora daquelas pieguices frequentes que impacientavam o padre Amaro. Em certos dias aparecia
muito murcha; trazia sempre algum sonho lúgubre a contar, que a torturara toda a noite, e em que ela
pretendia descobrir avisos de desgraças...

Perguntava-lhe às vezes:

— Se eu morresse, tinhas muita pena?

Amaro enfurecia-se. Realmente era estúpido! Tinham apenas uma hora para se verem, e haviam de estar
a estragá-la com lamúrias?

— É que não imaginas, dizia ela, trago o coração negro como a noite.

Com efeito as amigas da mãe estranhavam-na. Às vezes, durante serões inteiros não descerrava os lábios,
pendia sobre a sua costura, picando molemente a agulha; ou então, muito cansada mesmo para trabalhar,
ficava junto da mesa fazendo girar devagar o abajur verde do candeeiro, com o olhar vazio e a alma
muito longe.

— Ó rapariga, deixa esse abajur em paz! diziam-lhe as senhoras nervosas.

Ela sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a saia branca que havia semanas
andava bainhando. A mãe, vendo-a sempre tão pálida, pensara em chamar o doutor Gouveia.

— Não é nada, minha mãe, é nervoso, passa...

O que provava a todos que era nervoso eram os sustos súbitos que a tomavam — a ponto de dar um
grito, quase desmaiar, se de repente uma porta batia. Certas noites mesmo, exigia que a mãe viesse
dormir ao pé dela, com medo de pesadelos e de visões.

— É o que diz sempre o Sr. doutor Gouveia, observava a mãe ao cónego, é uma rapariga que
necessita casar...

O cónego pigarreava grosso.

— Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais, ao que parece...

Era com efeito a ideia do cónego, que a rapariga (como ele dizia só consigo) "andava-se a arrasar de
felicidade". Nos dias em que sabia que ela fora ver a Totó, não se fartava de a estudar, cocando-a do
fundo da poltrona com um olho pesado e lúbrico. Prodigalizava-lhe agora as familiaridades paternais.
Nunca a encontrava na escada sem a deter, com coceguinhas aqui e ali, palmadinhas na face muito
prolongadas. Queria-a em casa repetidas vezes pela manhã; e enquanto Amélia palrava com D. Josefa, o
cónego não cessava de rondar em torno dela, arrastando as chinelas com um ar de velho galo. E eram
entre Amélia e a mãe conversas sem fim sobre esta amizade do senhor cónego, que decerto lhe deixaria
um bom dote.

— Seu maganão, tem dedo! — dizia sempre o cónego quando estava só com Amaro, arregalando os
olhos redondos. Aquilo é um bocado de rei!

Amaro entufava-se:

— Não é mau bocado, padre-mestre, é um bom bocado.

Era este um dos grandes gozos de Amaro — ouvir gabar aos colegas a beleza de Amélia, que era
chamada entre o clero "a flor das devotas". Todos lhe invejavam aquela confessada. Por isso insistia
muito com ela em que se ajanotasse aos domingos, à missa; zangara-se mesmo ultimamente de a ver
quase sempre entrouxada num vestido de merino escuro, que lhe dava um ar de velha penitente.

Mas Amélia, agora, já não tinha aquela necessidade amorosa de contentar em tudo o senhor pároco.
Acordara quase inteiramente daquele adormecimento estúpido da alma e do corpo, em que a lançara o
primeiro abraço de Amaro. Vinha-lhe aparecendo distintamente a consciência pungente da sua culpa.
Naqueles negrumes dum espírito beato e escravo, fazia — se um amanhecimento de razão. — O que era
ela no fim? A concubina do senhor pároco. E esta ideia, posta assim descarnadamente, parecia-lhe
terrível. Não que lamentasse a sua virgindade, a sua honra, o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais
ainda por ele, pelos delírios que ele lhe dava. Mas havia alguma coisa pior a temer que as reprovações do
mundo: eram as vinganças de Nosso Senhor. Era da perda possível do Paraíso que ela gemia baixo; ou
de mais medonho ainda, de algum castigo de Deus, não das punições transcendentes que acabrunham a
alma além da tumba, mas dos tormentos que vêm durante a vida, que a feririam na sua saúde, no seu
bem-estar e no seu corpo. Eram vagos medos de doenças, de lepras, de paralisias ou de pobrezas, de dias
de fome — de todas essas penalidades de que ela supunha pródigo o Deus do seu catecismo. Como em
pequena, nos dias em que se esquecia de pagar à Virgem o seu tributo regular de Salve-Rainhas, temia
que ela a fizesse cair na escada ou levar palmatoadas da mestra, arrefecia de medo agora, à ideia de que
Deus, em castigo dela se deitar na cama com um padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a
reduzisse a pedir esmola pelas vielas. Estas ideias não a deixavam, desde o dia em que na sacristia pecara
de concupiscência dentro do manto de Nossa Senhora. Tinha a certeza que a Santa Virgem a odiava, e
que não cessava de reclamar contra ela; debalde procurava abrandá-la, com um fluxo incessante de
orações humilhadas; sentia bem Nossa Senhora, inacessível e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais
aquele divino rosto lhe sorrira; nunca mais aquelas mãos se tinham aberto para receber com agrado as
suas orações, como ramos congratulatórios. Era um silêncio seco, uma hostilidade gelada de divindade
ofendida. Ela conhecia o crédito que Nossa Senhora tem nos concílios do Céu; desde pequena lho
tinham ensinado; tudo o que ela deseja o obtém, como uma recompensa devida aos seus prantos no
Calvário; seu Filho sorri-lhe à sua direita, o Deus Padre fala-lhe à esquerda... E compreendia bem que
para ela não havia esperança — e que alguma coisa medonha se preparava lá em cima, no Paraíso, que
lhe cairia um dia sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com um desabamento de catástrofe... Que seria?
Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quase tanto a sua cólera como a de Deus.

Que seria dela se tivesse contra si Nossa Senhora e o senhor pároco? Além disso, amava-o. Nos seus
braços, todo o terror do Céu, a mesma ideia do Céu desaparecia; refugiada ali, contra o seu peito, não
tinha medo das iras divinas; o desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoólico, davam-lhe uma
coragem colérica; era com um brutal desafio ao Céu que se enroscava furiosamente ao seu corpo. — Os
terrores vinham depois, só no seu quarto. Era esta luta que a empalidecia, lhe punha pregas de
envelhecimento ao canto dos lábios secos e ardidos, lhe dava aquele ar murcho de fadiga que irritava o
padre Amaro.

— Mas que tens, tu, que parece te espremeram o suco? perguntava — lhe ele quando aos primeiros
beijos a sentia toda fria, toda inerte.

— Passei mal a noite... Nervoso.

— Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.

Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora todos os dias. Se tinha dito a
missa com fervor? Se tinha lido o Breviário? Se tinha feito a oração mental?...

— Sabes tu que mais? disse ele furioso. Sebo! E esta! Tu pensas que eu sou ainda seminarista, e que
tu és o padre examinador, que verifica se cumpri a Regra? Ora a tolice!

— É que é necessário estar bem com Deus — murmurava ela.

Era com efeito a sua preocupação, agora, que Amaro fosse um bom padre. Contava, para se salvar e para
se livrar da cólera de Nossa Senhora, com a influência do pároco na corte de Deus: e temia que ele por
negligência de devoção a perdesse, e que, diminuindo o seu fervor, diminuíssem os seus méritos aos
olhos do Senhor. Queria-o conservar santo e favorito do Céu para colher os proveitos da sua proteção
mística.

Amaro chamava a isto "caturrices de freira velha". Detestava-as, por as achar frívolas — e porque
tomavam um tempo precioso, naquelas manhãs da casa do sineiro...

— Nós não viemos aqui para lamúrias, dizia ele, muito secamente. Fecha a porta, se queres.

Ela obedecia, — e então aos primeiros beijos na penumbra da janela cerrada, ele reconhecia enfim a sua
Amélia, a Amélia dos primeiros dias, o delicioso corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos de
paixão.

E cada dia a desejava mais, dum desejo contínuo e tirânico, que aquelas horas escassas não satisfaziam.

Ah! positivamente, como mulher não havia outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa,
mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices, sim, mas era não as tomar a sério, e gozar enquanto era novo!

E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e doçuras — como uma destas salas onde tudo
é acolchoado, não há móveis duros nem ângulos, e o corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade
mole duma almofada.

Decerto, o melhor era as suas manhãs em casa do tio Esguelhas. Mas tinha outros regalos. Comia bem:
fumava caro numa boquilha de espuma: toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprara alguma
mobília: e não tinha, como outrora, embaraços de dinheiro porque a Sra. D. Maria da Assunção, a sua
melhor confessada, lá estava com a bolsa pronta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma pechincha: uma
noite em casa da S. Joaneira, a excelente senhora, a propósito duma família de ingleses que vira passar
num char-à-banc para ir visitar a Batalha, exprimira a opinião que os ingleses eram hereges.

— São batizados como nós, observara D. Joaquina Gansoso.

— Pois sim, filha, mas é um batismo para rir. Não é o nosso rico batismo, não lhes vale.

O cónego então, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a Sra. D. Maria dissera uma
blasfémia. O santo concílio de Trento, no seu cânone IV, sessão VII, lá determinara "que aquele que
disser que o batismo dado aos hereges, em nome do Padre, do Filho e do Espírito, não é o verdadeiro
batismo, seja excomungado!". E a D. Maria, segundo o santo concílio, estava desde esse momento
excomungada!...

A excelente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lançar-se aos pés de Amaro, que em penitência da
sua injúria feita ao cânone IV, sessão VII do santo concílio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de
intenção pelas almas do purgatório — que D. Maria lhe estava pagando a cinco tostões cada uma.

Assim, ele podia às vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de satisfação misteriosa e um
embrulhozinho na mão. Era algum presente para Amélia, um lenço de seda, uma gravatinha de cores,
um par de luvas. Ela extasiava-se com aquelas provas da afeição do senhor pároco; e era então no quarto
escuro um delírio de amor, enquanto embaixo a tísica, sobre a Totó, ia fazendo "trás... trás..."