Capítulo IX

A vida de Amaro tornou-se monótona. Março ia muito molhado, muito frio; e depois do serviço na Sé,
Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Às três horas
jantava; e nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do
jantarinho na Rua da Misericórdia, quando Amélia, com o seu colar muito branco, lhe passava a sopa de
grãos-de-bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicência servia, tesa e enorme, com o seu corpo de
soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao
avental com ruído. Era muito suja: as facas tinham o cabo húmido da água gordurosa das lavagens.

Amaro, desgostoso e indiferente, não se queixava; comia mal, à pressa; mandava vir o café, e ficava horas
esquecidas sentado à mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do prato, perdido num tédio mudo,
sentindo os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.

Às vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericórdia, aparecia ao fim do jantar: sentava-se
arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao
pároco, repetia, invariavelmente:

— Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.

— Está claro, rosnava Amaro.

Ao princípio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira, provocando, animando
o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escândalos da Rua da Misericórdia. O coadjutor, por
servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfídia.

— Ali há podres, hem? dizia o pároco.

O outro encolhia os ombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, numa expressão de
malícia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalizassem o
senhor cónego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, frases moles; um batizado que havia; o que
dissera o cónego Campos; um frontal do altar que era necessário limpar. Aquela conversa enfastiava
Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não o interessavam as
intriguinhas do cabido, as parcialidades tão comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericórdia, as
turras da câmara eclesiástica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas
palestras eclesiásticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade duma
caturrice e a tortuosidade duma conspiração.

— O vento está sul? perguntava ele enfim, bocejando.

— Sempre! respondia o coadjutor.

Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saía com um olhar de revés à Vicência.
Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no;
desabituado da leitura não compreendia "o sentido". Ia olhar à vidraça: a noite estava tenebrosa, o lajedo
reluzia vagamente. Quando acabaria aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatório para a janela
recomeçava os seus passeios, com as mãos atrás das costas. Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha
escrúpulos: julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler
orações no livro; celebrara o "seu sacrifício" — sentia-se vagamente quite com o Céu!

E continuava a viver só: o cónego nunca vinha à Rua das Sousas, "porque, dizia, era casa que só o entrar
nela até se lhe agoniava o estômago". E Amaro, cada dia mais amuado, não voltara a casa da S. Joaneira.
Escandalizara-se muito que ela não lhe tivesse mandado pedir para ir às partidas da sexta-feira; atribuíra
"a desfeita" à hostilidade de Amélia; e, mesmo para a não ver, trocara com o padre Silveira a missa do
meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquele novo sacrifício!

Todas as noites Amélia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que
ficava como sufocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ela
conhecia os passos fofos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os
olhos, como na fadiga duma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e às vezes, pelas dez horas,
quando já não era possível que ele viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe intumescia a
garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:

— Vou-me deitar, estou com umas dores de cabeça que não paro!

Atirava-se para a cama de bruços, murmurava numa agonia:

— Oh Senhora das Dores, minha madrinha! Por que não vem ele, por que não vem ele?

Nos primeiros dias, apenas ele se fora embora, toda a casa lhe pareceu desabitada e lúgubre! Quando vira
no quarto dele os cabides sem a sua roupa, a cómoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a
travesseirinha onde ele dormia, apertou ao peito com delírio a última toalha a que ele limpara as mãos!
Tinha constantemente o seu rosto presente, ele entrara sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu
amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.

Uma tarde, que fora visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar à Ponte gente parada,
embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia à banda e garibaldi escarlate, que, de punho no ar, já
rouca, praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de
penugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os ombros, as mãos muito enterradas nos bolsos,
rosnando:

— Não lhe fez mal, não lhe fez mal...

O Sr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parara a olhar, descontente daquela "falta de ordem
pública".

— Algum barulho? perguntou-lhe Amélia.

— Olá, menina Amélia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou — lhe um rato morto à cara, e a
mulher está a fazer aquele espalhafato. Bêbedas!

Mas a rapariga de garibaldi vermelho voltara-se — e Amélia aterrada reconheceu a Joaninha Gomes, sua
amiga da mestra, que fora amante do padre Abílio! O padre fora suspenso, deixara-a; ela partira para
Pombal, depois para o Porto; de miséria em miséria voltara a Leiria, e aí vivia nalguma viela ao pé do
quartel, entisicando, gasta por todo um regimento! — Que exemplo, Santo Deus, que exemplo!...

E também ela gostava dum padre! Também ela, como outrora a Joaninha, chorava sobre a sua costura
quando o Sr., padre Amaro não vinha! Onde a levava aquela paixão! À sorte da Joaninha! A ser a amiga
do pároco! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por ele, com um
filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa num momento
um céu enevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joaninha varreu-lhe do espírito as névoas
amorosas e mórbidas, em que ela se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro;
lembrou-se mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo, para se refugiar num dever
dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por ele; começou mesmo a bordar-lhe umas
chinelas...

Mas pouco a pouco a ideia má que, atacada, se encolhera e se fingira morta, — principiou lentamente a
desenroscar-se, a subir, a invadi-la! De dia, de noite, costurando e rezando, a ideia do padre Amaro, os
seus olhos, a sua voz apareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria ele? por
que não vinha? gostava de outra? Tinha ciúmes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquela
paixão ia-a envolvendo como uma atmosfera de onde não podia sair, que a seguia se ela fugia, e que a
fazia viver! As suas resoluções honestas ressequiam-se, morriam como débeis florinhas naquele fogo que
a percorria. Se às vezes a lembrança de Joaninha ainda voltava, repelia-a com irritação; e acolhia
alvoroçadamente todas as razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só
uma ideia — atirar-lhe os braços ao pescoço e beijá-lo, oh! beijá-lo!... Depois, se fosse necessário, morrer!

Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o "palerma".

— Que maçada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, à noite.

Não o suportava com os seus olhos voltados sempre para ela, a sua quinzena preta, as suas monótonas
conversas sobre o governo civil.

E idealizava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lúbricos; de dia vivia numa inquietação de
ciúmes, com melancolias lúgubres, que a tornavam, como dizia a mãe, "uma mona, que até enraivece"!

O génio azedava-se-lhe.

— Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãe.

— Não me sinto boa. Estou para ter alguma!

Andava, com efeito, amarela, perdera o apetite. E enfim uma manhã ficou de cama com febre. A mãe,
assustada, chamou o doutor Gouveia. O velho prático, depois de ver Amélia, veio à sala de jantar
sorvendo com satisfação a sua pitada.

— Então, senhor doutor? disse a S. Joaneira.

— Case-me esta rapariga, S. Joaneira, case-me esta rapariga. Tenho — lho dito tantas vezes, criatura!

— Mas, senhor doutor...

— Mas case-a por uma vez, S. Joaneira, case-a por uma vez! repetia ele pelas escadas, arrastando um
pouco a perna direita que um reumatismo teimoso encolhia.

Amélia enfim melhorou — com grande alegria de João Eduardo, que enquanto ela estivera doente
vivera numa aflição, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando às vezes no cartório uma
lágrima triste sobre os papéis selados do severo Nunes Ferral.

No domingo seguinte, à missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas que
se arredavam, viu de relance Amélia ao pé da mãe, com o seu vestido de seda preta de largos folhos.
Cerrou um momento os olhos; e mal podia sustentar o cálix com as mãos trémulas.

Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se
voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum — a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amélia
"que o senhor pároco estava tão amarelo, que devia ter alguma dor". Amélia não respondeu, curvada
sobre o livro com todo o sangue nas faces. E durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a
face banhada num êxtase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hóstia, a sua
cabeça bem-feita curvando-se na adoração ritual; uma doçura corria — lhe na pele quando a voz dele,
apressada, dizia mais alto algum latim; e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita
estendida, disse para a igreja o Benedicat vos, ela, com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua
alma para o altar, como se ele fosse o próprio Deus a cuja bênção as cabeças se curvavam ao comprido
da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus varapaus pasmavam para os dourados do
sacrário.

À saída da missa começara a chover; e Amélia e a mãe, á porta com outras senhoras, esperavam uma
"aberta".

— Olá! por aqui? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.

— Estamos à espera que passe a chuva, senhor pároco, disse a S. Joaneira voltando-se. E
imediatamente, muito repreensiva: — E por que não tem aparecido, senhor pároco? Realmente! Que lhe
fizemos nós? Credo, até dá que falar...

— Muito ocupado, muito ocupado... balbuciou o pároco.

— Mas um bocadinho à noite. Olhe, pode crer, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado.

Não, lá isso, senhor pároco, tem sido ingratidão!
Amaro disse, corando:

— Pois acabou-se. Hoje à noite lá apareço, e estão as pazes feitas...
Amélia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céu carregado,
como assustada do temporal.

Amaro então ofereceu-lhe o seu guarda-chuva. E enquanto a S. Joaneira o abria, apanhando com
cuidado o vestido de seda, Amélia disse ao pároco:

— Até à noite, sim? — e mais baixo, olhando em redor, com medo: — Oh, vá! Tenho estado tão
triste! tenho estado como doida! Vá, peço — lhe eu!

Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr pelas ruas de batina. Entrou no quarto, sentou-se
aos pés da cama, e ali ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto num raio de sol muito
quente: recordava o rosto de Amélia, a redondeza dos seus ombros, a beleza dos encontros, as palavras
que lhe dissera: — Tenho estado como doida! A certeza de que "a rapariga gostava dele" entrou-lhe
então na alma com a violência de uma rajada, e ficou a sussurrar por todos os recantos do seu ser com
um murmúrio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de côvado,
estendendo os braços, desejando a posse imediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia
defronte ao espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o
sustentasse a ele! Mal pôde jantar. Com que impaciência desejava a noite! A tarde clareava; a cada
momento tirava o seu ''''cebolão'''' de prata, indo olhar à janela, com irritação, a claridade do dia que se
arrastava devagar no horizonte. Engraxou ele mesmo os seus sapatos, lustrou o cabelo de banha. E antes
de sair rezou cuidadosamente o seu Breviário — porque, em presença daquele amor adquirido, viera-lhe
um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalizados o viessem perturbar; e não queria, com
desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.

Ao entrar na rua de Amélia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, sufocado; pareceu-lhe
melodioso o piar das corujas na velha Misericórdia, que há tantas semanas não ouvia.

Que admiração quando ela apareceu na sala de jantar!

— Ditosos olhos que o veem! Pensávamos que tinha morrido! Grande milagre!

Estavam a Sra. D. Maria da Assunção, e as Gansosos. Arredaram as cadeiras com entusiasmo para lhe
dar lugar, admirá-lo.

— Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!

O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O Sr. Artur Couceiro improvisou-lhe um
fadinho à viola:

Ora já cá temos o senhor pároco

Nos chás da S. Joaneira.

Isto já parece outra coisa,

Volta a bela cavaqueira!

Houve palmas. E a S. Joaneira, toda banhada de riso.

— Ai, tem sido uma ingratidão dele!

— Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o cónego. Uma casmurrice, digo eu!

Amélia não falava, com as faces abrasadas, os olhos húmidos pasmados para o padre Amaro — a quem
tinham dado a poltrona do cónego, e que se repoltreava nela, túmido de gozo, fazendo rir as senhoras
pelas pilhérias com que contava os desleixos da Vicência.

João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho álbum.

Assim recomeçou a intimidade de Amaro na Rua da Misericórdia. Jantava cedo, depois lia o seu
Breviário; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça
passando rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos moles apoiadas ao cabo dos
guarda-chuvas. Mal avistava a janela da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao
toque agudo da campainha sentia às vezes um susto indefinido de achar a mãe já desconfiada ou Amélia
mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.

Encontrava já as Gansosos, a D. Josefa Dias; e o cónego, que jantava agora muito com a S. Joaneira e que
àquela hora, estirado na poltrona, findava a sua soneca, dizia-lhe bocejando:

— Ora viva o menino bonito!

Amaro ia sentar-se ao pé de Amélia, que costurava à mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos
os dias como o mútuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a véspera; e às vezes mesmo,
debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a cavaqueira. Eram sempre os mesmos
interessezinhos, as questões que iam na Misericórdia, o que dissera o senhor chantre, o cónego Campos
que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novais...

— Mais amor do próximo! resmungava o cónego mexendo-se na poltrona. E com um arroto curto
tornava a cerrar as pálpebras.

Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amélia imediatamente abria a mesinha para a
partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josefa, o pároco; e como Amaro jogava mal, Amélia,
que era mestra, sentava-se por detrás dele para o "guiar". Logo às primeiras vasas havia altercações.

Então Amaro voltava o rosto para Amélia, tão perto que confundiam os seus hálitos.

— Esta? perguntava, indicando a carta com olho lânguido.

— Não! não! espere, deixe ver, dizia ela, vermelha.

O seu braço roçava o ombro do pároco: Amaro sentia o cheiro da água-de-colónia que ela usava com
exagero.

Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, mordicando o bigode, contemplava-a com paixão;
Amélia, para se desembaraçar daqueles dois olhos langorosos fitos nela, tinha-lhe dito, por fim "que até
era indecente, diante do pároco que era de cerimónia, estar assim a cocá-la toda a noite".

Às vezes mesmo dizia-lhe, rindo:

— Ó Sr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, se não temo-la aqui temo-la a dormir.

E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joaneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia
sonolentamente a sua meia.

Depois do chá Amélia sentava-se ao piano. Causava então entusiasmo em Leiria uma velha canção
mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de apetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos,
apenas Amélia começava com muita languidez tropical:

Quando sali de la Habana,

Valga-me Dios ! ...

Mas Amaro amava sobretudo a outra estrofe, quando Amélia, com os dedos frouxos no teclado, o busto
deitado para trás, rolando os olhos ternos, em movimentos doces de cabeça, dizia, toda voluptuosa,
silabando o espanhol:

Si à tua ventana llega

Una paloma,

Trata-la com cariño

Que es mi persona.

E como a achava graciosa, crioula, quando ela gorjeava:

Ay chiquita que si,

Ay chiquita que no-o-o-o!

Mas as velhas reclamavam-no para continuar a manilha, e ele ia sentar-se, cantarolando as últimas notas,
com o cigarro ao canto da boca, os olhos húmidos de felicidade.

Às sextas-feiras era a grande partida. A Sra. D. Maria da Assunção aparecia sempre com o seu belo
vestido de seda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga, davam-lhe com deferência o melhor lugar
ao pé da mesa — que ela ia ocupar, meneando pretensiosamente os quadris, com ruge-ruges de seda.

Antes do chá, a S. Joaneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ela uma garrafa de
jeropiga velha: e ali as duas amigas tagarelavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois

Artur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tísico, cantava o fado novo que compusera, chamado o
Fado da Confissão; eram quadras feitas para regalar aquela piedosa reunião de saias e de batinas:

Na capelinha do amor,

No fundo da sacristia,

Ao senhor padre Cupido

Confessei-me noutro dia...

Vinha depois a confissão de pecadinhos doces, um ato de contrição de amor, uma penitência terna:

Seis beijinhos de manhã,

De tarde um abraço só...

E pra acalmar doces chamas

Jejuar a pão-de-ló.

Aquela composição galante e devota fora muito apreciada na sociedade eclesiástica de Leiria. O senhor
chantre pedira uma cópia, e perguntara, referindo-se ao poeta:

— Quem é o hábil Anacreonte?

E informado que era o escrevente da administração, falou dele com tanto apreço à esposa do senhor
governador civil, que Artur obteve a gratificação de oito mil-réis, que havia anos implorava.

Àquelas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua última pilhéria era furtar beijos à Sra. D. Maria da
Assunção; a velha escandalizava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revés um olhar
guloso. Depois o Libaninho desaparecia um momento, e entrava com uma saia de Amélia vestida, uma
touca da S. Joaneira, fingindo uma chama lúbrica por João Eduardo — que, entre as risadas agudas das
velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natário vinham às vezes: formava-se então um grande quino.
Amaro e Amélia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos colados, ambos vermelhos,
permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.

Amaro saía sempre de casa da S. Joaneira mais apaixonado por Amélia. Ia pela rua devagar, ruminando
com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquele amor — uns certos olhares dela, o arfar desejoso do
seu peito, os contatos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de
pensar nela, às escuras, atabafado nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas
sucessivas que ela lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flor, até que ficava como
embriagado de orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno
excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do
sentimento! À sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ela; e com as pálpebras cerradas
murmurava:

— Tão boa, coitadinha, tão boa!

Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciências. Quando tinha estado, durante três horas da
noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exalava de todos os seus movimentos,

— ficava tão carregado de desejos que necessitava conter-se "para não fazer um disparate ali mesmo na
sala, ao pé da mãe". Mas depois, em casa, só torcia os braços de desespero: queria-a ali de repente,
oferecendo-se ao seu desejo; fazia então combinações — escrever-lhe-ia, arranjariam uma casinha
discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aqueles meios lhe pareciam
incompletos e perigosos, ao recordar o olho finório da irmã do cónego, as Gansosos tão mexeriqueiras!

E diante daquelas dificuldades que se erguiam como as muralhas sucessivas duma cidadela, voltavam as
antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem
pecado, comodamente! Por que o tinham feito padre? Fora "a velha pega" da marquesa de Alegros! Ele
não abdicava voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um
boi para o curral!

Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja:
por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até
têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz — serás casto — a um homem novo
e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina — accedo — dita a tremer pelo
seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E quem
inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas
escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas
tentações? Que viessem ali duas, três horas para o pé da Ameliazinha, e veriam, sob a sua capa de
santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se ilude e se evita, menos o amor! E se ele é fatal, por
que impediram então que o padre o sinta, o realize com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o
vá procurar pelas vielas obscenas! — Porque a carne é fraca!

A carne! Punha-se então a pensar nos três inimigos da alma — MUNDO, DIABO e CARNE. E
apareciam à sua imaginação em três figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra de olho
de brasa e pé de cabra; e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavalos, palacetes) — de que lhe
parecia uma personificação suficiente o Sr., conde de Ribamar! Mas que mal tinham eles feito à sua alma?
O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a única consolação da sua existência; e do
mundo, do senhor conde, só recebera proteção, benevolência, tocantes apertos de mão... E como poderia
ele evitar as influências da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos de outrora, para os
areais do deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminário que ele
pertencia a uma Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção dum serviço santo. — Não
compreendia, não compreendia!

Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Bíblia está cheia de núpcias!
Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro,
com a cabeça coberta de faixas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas
batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar
passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de sândalo onde vão os tesouros do dote
rangem, amarradas com cordas de púrpura, sobre o dorso dos camelos! Os mártires no circo casam-se
num beijo, sob o bafo dos leões, às aclamações da plebe! Jesus mesmo não vivera sempre na sua
santidade inumana; era frio e abstrato nas ruas de Jerusalém, nos mercados do bairro de Davi; mas lá
tinha o seu lugar de ternura e de abandono em Betânia, sob os sicómoros do Jardim de Lázaro; ali,
enquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram à parte, ele olha defronte os tetos
dourados do templo, os soldados romanos que jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares
amorosos que passam sob os arvoredos de Getsémani — e pousa a mão sobre os cabelos louros de
Marta, que ama e fia a seus pés!

O seu amor era pois uma infração canónica, não um pecado da alma: podia desagradar ao senhor
chantre, não a Deus; seria legitimo num sacerdócio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer
protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossível que transportar a velha
Sé para cima do monte do Castelo.

Encolhia então os ombros, escarnecendo toda aquela vaga argumentação interior. "Filosofia e palhada!"
Estava doido pela rapariga, — era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma...
E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o papa faria o mesmo!

Eram às vezes três horas da manhã, e ainda passeava no quarto, falando só.

Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela Rua das Sousas, tinha visto na janela do pároco
uma luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso,
tomara o hábito triste de andar até tarde pelas ruas.

O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebera a simpatia de Amélia pelo pároco. Mas
conhecendo a sua educação e os hábitos devotos da casa, atribuía aquelas atenções quase humildes com
Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilégios de confessor.

Instintivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fora inimigo de padres! Achava-os um
"perigo para a civilização e para a liberdade"; supunha-os intrigantes, com hábitos de luxúria, e
conspirando sempre para restabelecer "as trevas da Meia-Idade"; odiava a confissão que julgava uma
arma terrível contra a paz do lar; e tinha uma religião vaga — hostil ao culto, às rezas, aos jejuns, cheia
de admiração pelo Jesus poético, revolucionário, amigo dos pobres, e "pelo sublime espírito de Deus que
enche todo o Universo"! Só desde que amava Amélia é que ouvia missa, para agradar à S. Joaneira.
E desejaria sobretudo apressar o casamento, para tirar Amélia daquela sociedade de beatas e padres,
receando ter mais tarde uma mulher que tremesse do Inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se
confessasse aos padres "que arrancam às confessadas os segredos de alcova"!

Quando Amaro voltara a frequentar a Rua da Misericórdia, ficou contrariado. "Cá temos outra vez o
marmanjo!", pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amélia tratava agora o pároco com uma
familiaridade mais terna, que a presença dele lhe dava visivelmente uma animação singular, "e que havia
uma espécie de namoro"! Como ela se fazia vermelha, mal ele entrava! Como o escutava, com uma
admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé dele nas partidas de quino!

Uma manhã, mais inquieto, veio à Rua da Misericórdia, — e enquanto a S. Joaneira tagarelava na
cozinha, disse bruscamente a Amélia:

— Menina Amélia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o Sr.
padre Amaro.

Ela ergueu os olhos espantados:

— Que maneiras? Ora essa! Então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui de
hóspede...

— Pois sim, pois sim...

— Ah! mas sossegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar para ao pé do homem.
João Eduardo, tranquilizado, raciocinou que "não havia nada". Aqueles modos eram excessos de
beatério. Entusiasmo pela padraria!

Amélia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerara o escrevente um pouco
tapado — e se ele percebera, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do cónego que era curtida em
malícia! Por isso mal sentia Amaro na escada, daí por diante, tomava uma atitude distraída, muito
artificial; mas, ai! apenas ele lhe falava com a sua voz suave ou voltava para ela aqueles olhos negros que
lhe faziam correr estremeções nos nervos, — como uma ligeira camada de neve que se derrete a um sol
muito forte, a sua atitude fria desaparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão contínua de paixão. Às
vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava ali; e ficava toda surpreendida quando
ouvia a um canto da sala a sua voz melancólica.

Ela sentia de resto que as amigas da mãe envolviam a sua "inclinação" pelo pároco numa aprovação
muda e afável. Ele era, como dizia o cónego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das
velhas exalava-se uma admiração por ele que fazia ao desenvolvimento da paixão de Amélia uma
atmosfera favorável. D. Maria da Assunção dizia-lhe às vezes ao ouvido:

— Olha para ele! É de inspirar fervor. É a honra do clero. Não há outro!...

E todas elas achavam em João Eduardo "um presta para nada"! Amélia então já não disfarçava a sua
indiferença por ele: as chinelas que lhe andava a bordar tinham há muito desaparecido do cesto do
trabalho, e já não vinha à janela vê-lo passar para o cartório.

A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo — na alma, que como ele dizia, lhe
andava mais negra que a noite.

— A rapariga gosta do padre, tinha ele concluído. E à dor da sua felicidade destruída juntava-se a
aflição pela honra dela ameaçada.

Uma tarde, tendo-a visto sair da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:

— Eu quero-lhe falar, menina Amélia... Isto não pode continuar assim... Eu não posso... A menina
traz namoro com o pároco!

Ela mordeu o beiço, toda branca:

— O senhor está a insultar-me! — e queria seguir, toda indignada.

Ele reteve-a pela manga do casabeque: ''

— Ouça, menina Amélia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe. Tenho andado, que até se me
parte o coração. — E perdeu a voz, de comovido.

— Não tem razão... Não tem razão, balbuciava ela.

— Jure-me então que não há nada com o padre!

— Pela minha salvação!... Não há nada!... Mas também lhe digo, se tornar a falar em tal, ou a insultarme,
conto tudo à mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.

— Oh menina Amélia...

— Não podemos continuar aqui a falar... Está ali já a D. Micaela a cocar.

Era uma velha, que levantara a cortina de cassa numa janela baixa, e espreita-la com olhinhos reluzentes
e gulosos, a face toda ressequida encostada sofregamente á vidraça. Separaram-se então, — e a velha
desconsolada deixou cair a cortina.

Amélia nessa noite — enquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionários que então
pregavam na Barrosa — disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:

— Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem
reparasse.

Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assunção; e, apesar da recomendação de Amélia,
os seus olhos não se despregavam dela, numa interrogação muda e ansiosa, já assustado que as
desconfianças da mãe ou a malícia das velhas "andassem armando escândalo". Depois do chá, no rumor
das cadeiras que se acomodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:

— Quem reparou?

— Ninguém. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.

Desde então cessaram as olhadelas doces, os lugares chegadinhos à mesa, os segredos; e sentiam um
gozo picante em afetar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflamava. Era para
Amélia delicioso — enquanto o padre Amaro afastado tagarelava com as senhoras — adorar a sua
presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos castamente aplicados às chinelas de João Eduardo que
muito astutamente recomeçara a bordar.

Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o pároco instalado ali todas as noites,
com a face próspera, a perna traçada, gozando a veneração das velhas. "A Ameliazinha, sim, agora
portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...": mas ele sabia que o pároco a desejava, a "cocava"; e apesar
do juramento dela pela sua salvação, da certeza que não havia nada — temia que ela fosse lentamente
penetrada por aquela admiração caturra das velhas, para quem o senhor pároco era um anjo: só se
contentaria em arrancar Amélia (já empregado no governo civil) àquela casa beata: mas essa felicidade
tardava a chegar — e saía todas as noites da Rua da Misericórdia mais apaixonado, com a vida estragada
de ciúmes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até
tarde; às vezes voltava ainda ver as janelas fechadas da casa dela; ia depois à alameda ao pé do rio, mas o
frio ramalhar das árvores sobre a água negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um
momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que bocejava encostado ao reste.

Um cheiro de mau petróleo sufocava. Saía; e dirigia-se, devagar, à redação da Voz do Distrito.