Prefácio

O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma atenção da Crítica, quando foi
publicado ulteriormente um romance intitulado — O Primo Basílio. E no Brasil e em Portugal
escreveu-se (sem todavia se aduzir nenhuma prova efetiva) que O Crime do Padre Amaro era uma
imitação do romance do Sr. E. Zola — La Faute de L''Abbé Mouret; ou que este livro do autor do
Assomoir e de outros magistrais estudos sociais sugerira a ideia, os personagens, a intenção de O Crime
do Padre Amaro.

Eu tenho algumas razões para crer que isto não é correto. O Crime do Padre Amaro foi escrito em
1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874 [sic]. O livro do Sr. Zola, La Faute de L''Abbé
Mouret (que é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escrito e publicado em 1875.
Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insuficiente.
Eu podia, enfim, ter penetrado no cérebro, no pensamento do Sr. Zola, e ter avistado, entre as formas
ainda indecisas das suas criações futuras, a figura do abade Mouret, — exatamente como o venerável
Anquises no vale dos Elísios podia ver, entre as sombras das raças vindouras flutuando na névoa
luminosa do Lete, aquele que um dia devia ser Marcelo. Tais coisas são possíveis. Nem o homem
prudente as deve considerar mais extraordinárias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos Céus — e
outros prodígios provados.

O que, segundo penso, mostra melhor que a acusação carece de exatidão, é a simples comparação dos
dois romances. La Faute de L''Abbé Mouret é, no seu episodio central, o quadro alegórico da iniciação
do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abade Mouret (Sérgio), tendo sido atacado duma
febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação mística no culto da Virgem, na solidão de um
vale abrasado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo
parque do século XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação
alegórica do Paraíso. Ai, tendo perdido na lebre a consciência de si mesmo a ponto de se esquecer do seu
sacerdócio e da existência da aldeia, e a consciência do universo a ponto de ter medo do Sol e das
árvores do Paradou como de monstros estranhos — erra, durante meses, pelas profundidades do bosque
inculto, com Albina que é o génio, a Eva desse lugar de legenda; Albina e Sérgio, seminus como no
Paraíso, procuram sem cessar, por um instinto que os impele, urna árvore misteriosa, da rama da qual cai
a influência afrodisíaca da matéria procriadora; sob este símbolo da Árvore da Ciência se possuem,
depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na sua inocência paradisíaca, o meio físico de
realizar o amor; depois, numa mútua vergonha súbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e
dai os expulsa, os arranca o padre Arcangias, que é a personificação teocrática do antigo Arcanjo. Na
última parte do livro o abade Mouret recupera a consciência de si mesmo, subtrai-se á influência
dissolvente da adoração da Virgem, obtém por um esforço da oração e um privilégio da graça a extinção
da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra caída aos pés da cruz; e, é sem
que lhe mude a cor do rosto que asperge e responsa o esquife de Albina, que se asfixiou no Paradou sob
um montão de flores de perfumes fortes.

Os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de
L''Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, foi talvez a origem de
toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro.
Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta
bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama duma alma mística, a''O Crime do Padre
Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de
beatas tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa.
Aproveito este momento para agradecer á Crítica do Brasil e de Portugal a atenção que ela tem dado aos
meus trabalhos.

Bristol, 1 de Janeiro de 1880.

Eça de Queirós