Capítulo XXIII

Amaro nessa manhã mandou à pressa chamar a Dionísia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona
que estava no mercado veio tarde, quando ele à volta da missa acabava de almoçar.
Amaro queria saber ao certo e imediatamente para quando estava a coisa...

— O bom sucesso da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Por quê, há novidade?

Havia; e o pároco leu-lhe então em confidência uma carta que tinha ao lado.
Era do cónego, que escrevia da Vieira, dizendo "que a S. Joaneira tinha já trinta banhos e queria voltar!
Eu, acrescentava, perco quase todas as semanas três, quatro banhos, de propósito para os espaçar e dar
tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu sem os meus cinquenta não vai. Ora já tenho quarenta,
veja lá você. Demais por aqui começa a fazer frio deveras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois
dizer pela volta do correio em que estado estão as coisas". E num post-scriptum dizia: "Tem você
pensado que destino se há de dar ao fruto?"

— Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionísia.

E Amaro ali mesmo escreveu a resposta ao cónego, que a Dionísia devia levar ao correio: "A coisa pode
estar pronta daqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo a volta da mãe! Isso de modo nenhum! Digalhe que a
pequena não escreve nem vai, porque a excelentíssima mana passa sempre adoentada".

E traçando a perna:

— E agora, Dionísia, como diz o nosso cónego, que destino se há de dar ao fruto?

A matrona arregalou os olhos de surpresa:

— Eu pensei que o senhor pároco tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criança a criar fora da terra...

— Está claro, está claro, interrompeu o pároco com impaciência. Se a criança nascer viva é evidente
que se há de dar a criar, e que há de ser fora da terra... Mas aí é que está! Quem há de ser a ama? É isso
que eu quero que você me arranje. Vai sendo tempo...

A Dionísia pareceu muito embaraçada. Nunca gostara de inculcar amas. Ela conhecia uma boa, mulher
forte e de muito leite, pessoa de confiança; mas infelizmente entrara no hospital, doente... Sabia de outra
também, até tivera negócios com ela. Era uma Joana Carreira. Mas não convinha porque vivia
justamente nos Poiais, ao pé da Ricoça.

— Qual não convém! exclamou o pároco. Que tem que viva na Ricoça?... Em a rapariga
convalescendo as senhoras vêm para a cidade, e não se fala mais na Ricoça.

Mas a Dionísia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Também sabia de outra. Essa morava
para o lado da Barrosa, a boa distância... Criava em casa, era o seu ofício... Mas nessa nem falar!

— Mulher fraca, doente?

A Dionísia chegou-se ao pároco, e baixando a voz:

— Ai, menino, eu não gosto de acusar ninguém. Mas, está provado, é uma tecedeira de anjos!

— Uma quê?

— Uma tecedeira de anjos!

— O que é isso? Que significa isso? perguntou o pároco.

A Dionísia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam crianças a criar em casa. E sem
exceção as crianças morriam... Como tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e as
criancinhas iam para o Céu... Daí é que vinha o nome.

— Então as crianças morrem sempre?

— Sem falhar.

O pároco passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.

— Diga lá tudo, Dionísia. As mulheres matam-nas?

Então a excelente matrona declarou que não queria acusar ninguém! Ela não fora espreitar. Não sabia o
que se passava nas casas alheias. Mas as crianças morriam todas...

— Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher dessas?

A Dionísia sorriu, apiedada daquela inocência de homem.

— Entregam, sim senhor, às dúzias!

Houve um silêncio. O pároco continuava o seu passeio do lavatório para a janela, de cabeça baixa.

— Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...

— É que se lhe paga um ano de criação adiantado, senhor pároco. A dez tostões ao mês, ou
quartinho, segundo as posses...

O pároco, agora encostado à janela, rufava devagar nos vidros.

— Mas que fazem as autoridades, Dionísia?

A boa Dionísia encolheu silenciosamente os ombros.

O pároco então sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:

— Bem, Dionísia, vejo que a única coisa a fazer é falar à tal ama que vive ao pé da Ricoça, à Joana
Carreira. Eu arranjarei isso...

A Dionísia falou ainda nas peças de enxoval que já tinha comprado por conta do pároco, dum berço
muito barato em segunda mão que vira no Zé Carpinteiro — e ia sair com a carta para o correio,
quando o pároco erguendo-se e galhofando:

— Ó tia Dionísia, essa coisa da tecedeira de anjos é uma história, hem?

Então a Dionísia escandalizou-se. O senhor pároco sabia que ela não era mulher de intrigas. Conhecia a
tecedeira de anjos há mais de oito anos, de lhe falar e de a ver na cidade quase todas as semanas. Ainda
no sábado passado a vira sair da taberna do Grego... O senhor pároco já tinha ido à Barrosa?

Esperou a resposta do pároco, e continuou:

— Pois bem, sabe o começo da freguesia. Há um muro caído. Depois é um caminho que desce. Ao
fundo desse corregozito encontra um poço atulhado. Adiante, retirada, há uma casita que tem um
alpendre. É lá que ela vive... Chama-se Carlota... Isto é para lhe mostrar que sei, amiguinho!

O pároco ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando o chão de pontas de cigarros.
Ali estava agora diante daquele episódio fatal, que até aí fora apenas um cuidado distante — dispor do
filho!

Era bem grave entregá-lo assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãe, naturalmente, havia de
querer ir a todo o momento vê-lo, a ama poderia falar aos vizinhos. O rapaz viria a ser, na freguesia, o
filho do pároco... Algum invejoso, que lhe cobiçasse a paróquia, poderia denunciá-lo ao senhor vigáriogeral.
Escândalo, sermão, devassa: e, se não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado
para longe, para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o fruto nascesse morto! Que solução natural
e perpétua! E para a criança, uma felicidade! Que destino podia ele ter neste duro mundo? Era o
enjeitado, era o filho do padre. Ele era pobre, a mãe pobre... O rapaz cresceria na miséria, vadiando,
apanhando o estrume das bestas, remeloso e tosco... De necessidade em necessidade iria conhecendo
todas as formas do inferno humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna, a
cadeia por fim. Uma enxerga na vida, uma vala na morte... E se morresse — era um anjinho que Deus
recolhia ao Paraíso...

E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira de anjos...
Com razão. Quem prepara uma criança para a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos
e para as lágrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandá-la direita para a eternidade bem-aventurada!
Olha ele! Que vida a sua, nesses trinta anos atrás! Uma infância melancólica, com aquela pega da
marquesa de Alegros; depois a casa na Estrela, com o alarve do tio toucinheiro; e daí as clausuras do
seminário, a neve constante de Feirão, e ali em Leiria tantos transes, tantas amarguras... Se lhe tivessem
esmagado o crânio ao nascer, estava agora com duas asas brancas, cantando nos coros eternos.

Mas enfim não havia que filosofar: era partir para Poiais e falar à ama, à Sra. Joana Carreira.
Saiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe porém de repente a ideia, a
curiosidade de ir à Barrosa ver a tecedeira... Não lhe falaria: examinaria apenas a casa, a figura da mulher,
os aspetos sinistros do sítio... Demais como pároco, como autoridade eclesiástica, devia observar aquele
pecado organizado num recanto de estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denunciá-lo ao senhor
vigário-geral ou ao secretário do governo civil...

Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquela tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem um
passeio a cavalo. Não hesitou, então; foi alugar uma égua à estalagem do Cruz; e daí a pouco, de espora
no pé esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.

Ao chegar ao córrego, de que lhe falara a Dionísia, apeou, foi andando com a égua pela arreata. A tarde
estava admirável; muito alto no azul, uma grande ave fazia semicírculos vagarosos.

Encontrou enfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde pássaros ainda chilreavam; adiante,
num terreno plano, muito isolada, lá estava a casa com o seu alpendre; o sol declinando batia-lhe na
única janela do lado, acendendo-a num resplendor de ouro e brasa; e, muito delgado, elevava-se da
chaminé um fumo claro no ar sereno.

Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos pinheiros baixos, a capelinha da
Barrosa punha a alvura alegre da sua parede muito caiada.

Amaro ia imaginando então a figura da tecedeira; sem saber por quê, supunha-a muito alta, com um
carão trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.

Defronte da casa prendeu a égua à cancela, e olhou pela porta aberta: era uma cozinha térrea, de grande
lareira, com saída para o pátio estradado de mato onde dois bacorinhos fossavam. Na prateleira da
chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes caçarolas de cobre, dum lustro de casa
rica. Num velho armário meio aberto branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma
claridade parecia sair do asseio e do arranjo das coisas.

Amaro então bateu forte as palmas. Uma rola pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada
da parede. Depois chamou alto:

— Sra. Carlota!

Imediatamente do lado do pátio uma mulher apareceu, com um crivo na mão. E Amaro, surpreendido,
viu uma agradável criatura de quase quarenta anos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no
pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram os de Amélia ou antes o brilho
mais repousado dos da S. Joaneira.

Assombrado, balbuciou:

— Creio que me enganei... Aqui é que mora a Sra. Carlota?

Não se enganara, era ela; mas com a ideia que a figura medonha "que tecia os anjos" devia estar algures,
agachada num vão tenebroso da casa, perguntou ainda:

— Vossemecê vive aqui só?

A mulher olhou-o desconfiada:

— Não senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...

Justamente o marido saía do pátio, — medonho, esse, quase anão, com a cabeça embrulhada num lenço e
muito enterrada nos ombros, a face de uma amarelidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo anelavam-se
os pêlos raros duma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos
raiados de sangue, olhos de insônia e de bebedeira.

— Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito colado à saia da mulher.

Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma história que ia forjando laboriosamente. Era
uma parente que ia ter o seu bom sucesso. O marido não pudera vir falar-lhes porque estava doente...

Queria uma ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...

— Não, fora de casa, não. Cá em casa — disse o anão que não se despegava das saias da mulher,
mirando o pároco de lado com o seu medonho olho injetado.

Ah, então tinham-no informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era uma ama para casa.

Veio dirigindo-se para a égua, devagar; parou, e abotoando o casacão:

— Mas em casa recebem crianças para criação?... — perguntou ainda.

— Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.

Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se, rondando em tomo da
cavalgadura:

— É necessário trazer-lha cá, já se sabe.

O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficara à porta da cozinha.

— Também se lhe vai buscar, disse.

Amaro batia palmadas no pescoço da égua.

— Mas sendo a coisa de noite, agora com esse frio, é matar a criança...

Então os dois, falando ao mesmo tempo, afirmaram que não lhe fazia mal. Havendo, já se sabe, carinho e
agasalho...

Amaro cavalgou vivamente a égua, deu as boas-tardes e trotou pelo córrego.

Amélia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava naquelas horas, que se
avizinhavam, em que devia sentir chegarem as dores. Sofria mais que durante os primeiros meses; tinha
tonturas, perversões de gosto — que o doutor Gouveia observava, franzindo a testa descontente. As
noites eram más, numa turbação de pesadelos. Já não eram as alucinações religiosas: isso cessara numa
súbita aplacação de todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma santa
canonizada. Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe representava de modos monstruosos: ora
era um ser medonho que lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra
infindável que lhe saía de dentro, durante horas, como uma fita de léguas, enrolando-se no quarto em
roscas sucessivas que ganhavam a altura do teto; e acordava em tremuras nervosas que a deixavam
prostrada.

Mas ansiava por ter a criança. Estremecia à ideia de ver um dia inesperadamente a mãe aparecer na
Ricoça. Ela escrevera-lhe, queixando-se do senhor cónego que a retinha na Vieira, dos temporais que já
reinavam, da solidão que se ia fazendo na praia. Além disso D. Maria da Assunção voltara; felizmente,
uma noite providencialmente gelada dera-lhe durante a jornada uma inflamação dos brônquios — e
estava de cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouveia. O Libaninho, esse, também viera à
Ricoça; e saíra lastimando-se de não ter visto a Amelinha "que tinha nesse dia enxaqueca".

— Se isto demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia ela, choramigando, a Amaro.

— Paciência, filha. Não se pode forçar a natureza...

— O que tu me tens feito sofrer! suspirava ela, o que tu me tens feito sofrer!

Ele calava-se resignado — muito bom, muito temo agora com ela. Vinha-a ver quase todas as manhãs,
porque não queria pelas tardes encontrar o abade Ferrão.
Tranquilizara-a a respeito da ama, dizendo-lhe que falara à mulher da Ricoça inculcada pela Dionísia.
Era uma escolha rica a Sra. Joana Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e
dentes de marfim...

— Fica-me tão longe para vir ver depois a criança... — suspirava ela.

Tomavam-na agora pela primeira vez entusiasmos de mãe. Desesperava-se em não poder ela mesma
costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz — porque havia de ser um rapaz! — se chamasse
Carlos. Cismava-o já homem, e oficial de cavalaria. Enternecia-se com a esperança de o ver gatinhar...

— Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a vergonha!...

— Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.

Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a ideia de ele ser um enjeitadinho!

Um dia veio ao abade com um plano extraordinário "que Lhe inspirara Nossa Senhora": ela casaria já
com João Eduardo, mas o rapaz devia por uma escritura adotar o Carlinhos! Que para que o anjinho
não fosse um enjeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos do abade, numa
suplicação loquaz. Que convencesse João Eduardo, que desse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos
pés dele, do senhor abade, que era o seu pai e o seu protetor.

— Oh, minha senhora, sossegue, sossegue. Esse é também o meu desejo, como lhe disse. E há de
arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado daquela excitação.

Depois, daí a dias, foi outra exaltação: descobrira de repente, uma manhã, que não devia trair Amaro,
"porque era o papá do seu Carlinhos". E disse-o ao abade; fez corar os sessenta anos do bom velho,
palrando muito convencidamente dos seus deveres de esposa para com o pároco.

O abade, que ignorava as visitas do pároco todas as manhãs, assombrou-se.

— Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei que lhe
tinham passado essas loucuras.

— Mas é o pai do meu filho, senhor abade, disse ela, olhando-o muito séria.
Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que era o
"papá do seu Carlinhos".

— Bem sei, filha, bem sei, dizia ele impaciente. Obrigado. Não me gabo da honra...

Ela chorava, então, aninhada no sofá. Era necessária toda uma complicação de carícias para a calmar.
Fazia-o sentar num banquinho junto dela; tinha-o ali como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe
devagarinho a coroa; queria que se tirasse a fotografia ao Carlinhos para a trazerem ambos numa
medalha ao pescoço; e se ela morresse, ele havia de levar o Carlinhos à sepultura, ajoelhá-lo, pôr-lhe as
mãozinhas, fazê-lo rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada, tapando o rosto com as mãos:

— Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!

— Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.

Ah, aquelas manhãs na Ricoça! Eram para ele como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir à velha
escutar-lhe as lamúrias. Depois, era aquela hora com Amélia, que o torturava com as pieguices dum
sentimentalismo histérico, — estirada no sofá, grossa como um tonel, com a face intumescida, os olhos
papudos...

Numa dessas manhãs, Amélia, que se queixava de cãibras, quis dar um passeio pelo quarto apoiada a
Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe-de-chambre, quando se sentiram, embaixo no
caminho, passos de cavalos; chegaram à janela — mas Amaro recuou vivamente, deixando Amélia que
embasbacara com a face contra a vidraça. Na estrada galhardamente montado numa égua baia, passava
João Eduardo de paletó branco e chapéu alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um num pônei,
outro acorreado num burro; e atrás, a distância, num passo de respeito e de cortejo, um criado de farda,
de bota de cano e esporões enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas grotescas,
e no chapéu a roseta escarlate. Ela ficara assombrada, seguindo-os até que as costas do lacaio
desapareceram à esquina da casa. Sem uma palavra, veio sentar — se no sofá. Amaro, que continuava
passeando pelo quarto, teve então um risinho sarcástico:

— O idiota, de lacaio à retaguarda!

Ela não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, saiu atirando com a porta, foi para o quarto de
D. Josefa contar-lhe a cavalgada, e vituperar o Morgado.

— Um excomungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as mãos apertadas na cabeça.

Que vergonha, senhor pároco, que vergonha para a nobreza destes reinos!

Desde esse dia Amélia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor pároco não vinha. Quem
esperava agora com impaciência era o Sr. abade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se dele, queria-o numa
cadeira junto ao canapé: e depois de rodeios demorados de ave que tenteia a presa, caía sobre a pergunta
fatal — se tinha visto o Sr. João Eduardo?

Queria saber o que ele dissera, se falara nela, se a avistara à janela. Torturava-o com curiosidades sobre a
casa do Morgado, a mobília da sala, o número de lacaios e de cavalos, se o criado de farda servia à mesa...

E o bom abade respondia com paciência — contente de a ver esquecida do pároco, ocupada de João
Eduardo: tinha agora a certeza que aquele casamento se faria: ela evitava, de resto, pronunciar sequer o
nome de Amaro, e uma vez mesmo respondeu ao abade que lhe perguntava se o senhor pároco voltara à
Ricoça:

— Ai, vem pela manhã ver a madrinha... Mas eu não lhe apareço, que nem estou decente...

Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o agora à janela, muito arranjada da cinta para cima que
era o que se podia ver da estrada — enxovalhada das saias para baixo. Estava esperando João Eduardo,
os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em quando, com efeito, o gozo de os ver passar, naquele passo
bem lançado de cavalos de preço, sobretudo o da égua baia de João Eduardo, que ele defronte da Ricoça
fazia sempre ladear, de chicote atravessado e perna à Marialva, como lhe ensinara o Morgado. Mas era o
lacaio, sobretudo, que a encantava: e com o nariz nos vidros seguia-o num olhar guloso, até que à volta
da estrada via desaparecer o pobre velho, de dorso corcovado, com a gola da farda até à nuca e as pernas
bamboleantes.

E para João Eduardo que delícia aqueles passeios com os Morgaditos, na égua baia! Nunca deixava de ir
à cidade: fazia-lhe bater o coração o som das ferraduras sobre o lajedo: ia passar diante da Amparo da
botica, diante do cartório do Nunes, que tinha a sua banca ao pé da janela, diante da Arcada, diante do
senhor administrador que lá estava na varanda de binóculo para a Teles — e o seu desgosto era não
poder entrar com a égua, os Morgaditos e o lacaio pelo escritório do doutor Godinho que era no
interior da casa.

Foi um dia, depois dum desses passeios triunfais, que voltando às duas horas da Barrosa, ao chegar ao
Poço das Bentas e ao subir para o caminho de carros, viu de repente o Sr. padre Amaro que descia
montado num garrano. Imediatamente João Eduardo fez caracolar a égua. O caminho era tão estreito,
que apesar de se chegarem às sebes quase roçaram os joelhos — e João Eduardo pôde então, do alto da
sua égua de cinquenta moedas, agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar com um olhar o padre
Amaro que se encolhia muito pálido, com a barba por fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o
garrano ronceiro. No alto do caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sela, e viu o pároco
que apeava à porta do casebre isolado onde há pouco, ao passar, os Morgaditos tinham rido "do anão".

— Quem vive ali? perguntou João Eduardo ao lacaio.

— Uma Carlota... Má gente, Sr. Joãozinho!

Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre, pôs a passo a égua baia. Mas não viu por trás dos
vidros a costumada face pálida sob o lenço escarlate. As portadas da janela estavam meio cerradas; e ao
portão, desatrelado com os varões em terra, o cabriolé do doutor Gouveia.
É que tinha chegado enfim o dial Nessa manhã viera da Ricoça um moço da quinta com um bilhete de
Amélia quase ininteligível — Dionísia depressa, a coisa chegou! Trazia ordem também de ir chamar o
senhor Gouveia. Amaro foi ele mesmo avisar a Dionísia.
Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josefa, a própria D. Josefa, lhe inculcara uma ama — que ele já ajustara,
grande mulher, rija como um castanheiro. E agora combinaram rapidamente que nessa noite Amaro se
postaria com a ama à portinha do pomar, e Dionísia viria dar-lhe a criança bem atabafada.

— Às nove da noite, Dionísia. E não nos faça esperar! — recomendou-lhe ainda Amaro vendo-a
abalar num espalhafato.

Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquela dificuldade que ele sentia como uma
coisa viva fixá-lo e interrogá-lo: — Que havia de fazer à criança? Tinha ainda tempo de ir aos Poiais
ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionísia conhecia; ou podia montar a cavalo e ir à Barrosa falar à
Carlota... E ali estava, diante daqueles dois caminhos, hesitando numa agonia. Queria serenar, discutir
aquele caso como se fosse um ponto de teologia, pesando-lhe os prós e os contras: mas tinha
temerariamente diante de si, em lugar de dois argumentos, duas visões: — a criança a crescer e a viver
nos Poiais, ou a criança esganada pela Carlota a um canto da estrada da Barrosa... — E, passeando pelo
quarto, suava de angústia, quando no patamar a voz inesperada do Libaninho gritou:

— Abre; parocozinho, que sei que estás em casa!

Foi necessário abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mão, oferecer-lhe uma cadeira. Mas o Libaninho
felizmente não se podia demorar. Passara na rua, e subira a saber se o amigo pároco tinha noticia
daquelas santinhas da Ricoça.

— Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a prazentear.

— Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado mais ocupado!... Estou de serviço no quartel... Não
te rias, parocozinho, que estou lá fazendo muita virtude... Meto-me com os soldadinhos, falo-lhes das
chagas de Cristo...

— Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papéis da mesa, passeava, numa
inquietação de animal preso.

— Não é para as minhas forças, pároco, que se eu pudesse!... Olha, agora vou eu levar a um sargento
uns bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha, vão cheios de virtude. Ontem dei outros iguais a um
anspeçada, perfeito rapaz, um amor de rapaz. Pus-lhos eu mesmo por baixo da camisola. Perfeito
rapaz!...

— Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro abrindo a janela, abafando
de impaciência.

— Credo, olha o ímpio! Se o deixassem desbatizava o regimento. Pois adeus, parocozinho. Estás
amarelinho, filho... Precisas purga, eu sei o que isso é.

Ia a sair, mas à porta, parando:

— Ai, diz cá, parocozinho, diz cá: tu ouviste alguma coisa?

— De quê?

— Foi o padre Saldanha que mo disse. Diz que o nosso chantre declarara (palavras do Saldanhinha)
que lhe constava que ia na cidade um escândalo com um senhor eclesiástico... Mas não disse quem nem o
quê... O Saldanha qui-lo sondar, mas o chantre diz que recebera só uma denúncia vaga, sem nome...
Tenho estado a pensar: quem será?

— Pataratas do Saldanha...

— Ai, filho ! Deus queira que sejam. Que quem folga, são os ímpios... Quando fores pela Ricoça dá
recados àquelas santinhas...

E pulou pelos degraus a ir levar "a virtude" ao batalhão.

Amaro ficara aterrado. Era ele decerto, eram os seus amores com Amélia que já iam chegando ao
vigário-geral em denúncias tortuosas! E ali vinha agora aquele filho, criado a meia légua da cidade, ficar
como uma prova viva!... Parecia-lhe extraordinário, quase sobrenatural, ter o Libaninho, que em dois
anos não lhe viera a casa duas vezes, ter o Libaninho entrado com aquela nova terrível, quando ele
estava ali numa batalha com a consciência. Era como a Providência, que sob a forma grotesca do
Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe: "Não deixes viver quem te pode trazer o
escândalo! Olha que já se suspeita de ti!".

Era decerto Deus apiedado que não queria que houvesse na terra mais um enjeitado, mais um miserável,

— e que reclamava o seu anjo!...

Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e daí a cavalo para a casa de Carlota.
Demorou-se lá até às quatro horas.

De volta a casa atirou o chapéu para cima da cama, e sentiu enfim um alívio de todo o seu ser. Estava
acabado! Lá falara à Carlota e ao anão; lá lhe pagara um ano adiantado; agora era esperar pela noite!
Mas na solidão do quarto toda a sorte de imaginações mórbidas o assaltavam: via a Carlota a esganar a
criancinha roxa; via os cabos de polícia mais tarde a desenterrar o cadáver, o Domingos da
administração redigindo sobre um joelho o auto de corpo de delito, e ele, de batina, arrastado para
cadeia de S. Francisco, em ferros, ao lado do anão! Tinha quase vontade de montar a cavalo, voltar à
Barrosa desfazer o ajuste. Mas uma inércia retinha-o. Depois, nada o forçava à noite a entregar a criança
à Carlota... Podia levá-la bem agasalhada à Joana Carreira, a boa ama dos Poiais...
Para escapar àquelas ideias que lhe faziam sob o crânio um ruído de tormenta, saiu, foi ver Natário que
já se erguia — e que lhe gritou imediatamente do fundo da poltrona:

— Então você viu, Amaro? O idiota, de lacaio atrás!

João Eduardo passara-lhe na rua, na égua baia, com os Morgadinhos; e Natário desde então rugia de
impaciência de estar ali amarrado à cadeira e não poder recomeçar a campanha, expulsá-lo por uma boa
intriga da casa do Morgado, arrancar-lhe a égua e o lacaio.

— Mas não as perde, em Deus me dando pernas...

— Deixe lá o homem, Natário, disse Amaro.

Deixá-lo! quando tinha uma ideia prodigiosa — que era provar ao Morgado, com documentos, que o
João Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao amigo Amaro?

Era engraçado, com efeito. O homem não deixava de o merecer, só pela maneira como olhava para a
gente de bem, do alto da égua... — E Amaro fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro, de manhã,
no caminho de carros da Barrosa.

— Está claro! exclamou Natário. Para que somos nós sacerdotes de Cristo? Para exaltar os humildes e
derrubar os soberbos.

Dali, Amaro foi ver D. Maria da Assunção — que já se erguera também — que lhe fez a história da sua
bronquite e a enumeração dos últimos pecados: o pior era que, para se distrair um bocado na
convalescença, recostava-se por trás da vidraça, e um carpinteiro que morava defronte embasbacava para
ela; e por influência do maligno, não tinha forças para se retirar. para dentro, e vinham-lhe pensamentos
maus...

— Mas vossa senhoria não está com atenção, senhor pároco.

— Ora essa, minha senhora!

E apressou-se a pacificar-lhe os escrúpulos — porque a salvação daquela alma idiota era para ele um
emprego melhor que a mesma paróquia.

Já escurecia quando entrou em casa. A Escolástica queixou-se da demora que lhe esturrara o jantar. Mas
Amaro tomou apenas um copo de vinho e uma garfada de arroz, que engoliu de pé, olhando com terror
pela janela a noite que impassivelmente caia.

Entrava no quarto a ver se os candeeiros já estavam acesos, quando o coadjutor apareceu. Vinha falar
lhe sobre o batizado do filho do Guedes, que estava marcado para o dia seguinte às nove horas.

— Trago luz? — disse de dentro a criada sentindo a visita.

— Não! gritou logo Amaro.

Temia que o coadjutor visse a alteração que sentia nas faces, ou que se instalasse para toda a noite.

— Diz que vem na Nação de anteontem um artigo muito bom — observou o coadjutor, grave.

— Ah! fez Amaro.

Passeava no seu trilho costumado, do lavatório para a janela; parava às vezes a rufar nos vidros; já se
tinham acendido os candeeiros.

Então o coadjutor, chocado com aquela treva do quarto e aquele passear de fera numa jaula, ergueu-se, e
com dignidade:

— Estou a incomodar talvez...

— Não!

E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu guarda-chuva entre os joelhos.

— Agora anoitece mais cedo, disse.

— Anoitece...

Enfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que se ia encostar: e o homem
saiu, depois de lhe lembrar ainda o batizado do menino do seu amigo Guedes.
Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a noite estava tenebrosa e quente, anunciando chuva. Ia
agora tomado duma esperança que lhe fazia bater o coração: era que a criança nascesse mortal E era
bem possível. A S. Joaneira em nova tivera duas crianças mortas; a ansiedade em que vivera Amélia devia
ter perturbado a gestação. E se ela morresse também? Então a esta ideia, que nunca lhe acudira, invadiu
o bruscamente uma piedade, uma ternura por aquela boa rapariga que o amava tanto, e que agora, por
obra dele, gritava dilacerada de dores. E todavia, se ambos morressem, ela e a criança, era o seu pecado e
o seu erro que caíam para sempre nos escuros abismos da eternidade... Ele ficava, como antes da sua
vinda a Leiria, um homem tranquilo, ocupado da sua igreja, duma vida limpa e lavada como uma página
branca!

Parou junto ao casebre em ruínas à beira da estrada, onde devia estar a pessoa que da Barrosa vinha
buscar a criança: não se tinha decidido se seria o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar o
anão, para lhe levar o filho, com aqueles olhos raiados dum sangue mau. Falou para dentro, para as
trevas do casebre.

— Olá!

Foi um alívio quando a clara voz da Carlota disse na negrura:

— Cá está!

— Bem, é esperar, Sra. Carlota.

Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada a temer, se o filho partisse aninhado contra aquele
robusto seio de quarentona fecunda, tão fresca e tão lavada.
Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento mais denso de sombra naquela
lúgubre noite de Dezembro. Nem uma fenda de luz saía da janelas do quarto de Amélia. No ar muito
pesado nenhuma folhagem ramalhava. E a Dionísia não aparecia.

Aquela demora torturava-o. Podia passar gente e vê-lo rondar na estrada. Mas repugnava-lhe ir ocultar
se no casebre em ruínas ao pé de Carlota. Foi andando ao comprido do muro do pomar, voltou, — e viu
então na porta envidraçada do terraço uma claridade de luz aparecer.

Correu para a portinha verde do pomar que quase imediatamente se abriu; e a Dionísia, sem uma
palavra, pôs-lhe nos braços um embrulho.

— Morta? perguntou ele.

— Qual! Vivo! Um rapagão!

E fechou a porta devagarinho, quando os cães, farejando rumor, começavam a ladrar.
Então o contato do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval todas as ideias de
Amaro. O quê! ir dá-lo àquela mulher, à tecedeira de anjos, que na estrada o atiraria a algum valado, ou
em casa o arremessaria à latrina? Ah! não, era o seu filho!

Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr aos Poiais e acordar a outra ama... A Dionísia não
tinha leite... Não o podia levar para a cidade... Oh! que desejo furioso de bater àquela porta da quinta,
precipitar-se para o quarto de Amélia, meter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado, e todos
três ficarem ali como no conchego dum céu! Mas quê, era padre! Maldita fosse a religião que assim o
esmagava!

De dentro do embrulho saiu um gemido. Correu então para o casebre — quase esbarrou com a Carlota,
que se apoderou logo da criança.

— Aí está, disse ele. Mas ouça lá. Isto agora é sério. Agora é outra coisa. Olhe que o não quero
morto... É para o tratar. O que se passou não vale... É para o criar! é para viver. Você tem a sua fortuna...
Trate dele!...

— Não tem dúvida, não tem dúvida, dizia a mulher apressada.

— Escute... A criança não vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.

— Vai bem, senhor, vai bem.

— Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Há de levar o capote! Não quero que morra de frio!

Atirou-lho aos ombros com força, traçando-lho sobre o peito, agasalhando a criança; — e a mulher já
enfastiada meteu rapidamente pela estrada.

Amaro ficou ali plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na negrura. Então todos os seus
nervos, depois daquele choque, se relaxaram numa fraqueza de mulher sensível — e rompeu a chorar.

Muito tempo rondou a casa. Mas ela permanecia na mesma escuridão, naquele silêncio que o aterrava.
Depois, triste e fatigado, veio voltando para a cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.
A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor Gouveia ceava tranquilamente o frango assado que lhe
preparara a Gertrudes, para depois das canseiras do dia. O abade Ferrão, sentado junto da mesa, assistia
lhe à ceia; viera munido dos sacramentos para o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito;
durante as oito horas de dores a rapariga mostrara — se corajosa; o parto fora feliz, de resto, e saíra um
rapagão que fazia muita honra ao papá.

O bom abade Ferrão baixava castamente os olhos àqueles detalhes, no seu pudor de sacerdote.

— E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a criança no mundo,
os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja) apoderam-se dele e não o largam até a
morte. Por outro lado, ainda que menos sofregamente, o Estado não o perde de vista... E aí começa o
desgraçado a sua jornada do berço à sepultura, entre um padre e um cabo de polícia!
O abade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a controvérsia.

— A Igreja, continuava o doutor com serenidade, começa, quando a pobre criatura ainda nem tem
sequer consciência da vida, por lhe impor uma religião...

O abade interrompeu, meio sério, meio rindo:

— Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua alma, devo adverti-lo que o sagrado

Concílio de Trento, cânon décimo terceiro, comina a pena de excomunhão contra todo o que disser que
o batismo é nulo, por ser imposto sem a aceitação da razão.

— Tomo nota, abade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do Concílio de Trento para comigo
e outros colegas...

— Era uma assembleia respeitável! acudiu o abade já escandalizado.

— Sublime, abade. Uma assembleia sublime. O Concílio de Trento e a Convenção foram as duas
mais prodigiosas assembleias de homens que a terra tem presenciado...

O abade fez uma visagem de repugnância àquele cotejo irreverente entre os santos autores da doutrina e
os assassinos do bom rei Luís XVI.

Mas o doutor prosseguiu:

— Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum tempo enquanto ela faz a sua dentição e tem o seu
ataque de lombrigas...

— Vá, vá, doutor! murmurava o abade, escutando-o pacientemente, de olhos cerrados — como
significando "anda, anda, enterra bem essa alma no abismo de fogo e pez"!

— Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão, continuava o doutor,
quando se torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do
Universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato
de seis anos que não sabe ainda o bê-a-bá tem uma ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias
combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o
Universo e os seus sistemas planetários; como apareceu na Terra a criação; como se sucederam as raças;
como passaram as revoluções geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se inventou a
escrita... Sabe tudo: possui completa e imutável a regra para dirigir todas as ações e formar todos os
juízos; tem mesmo a certeza de todos os mistérios; ainda que seja míope como uma toupeira vê o que se
passa na profundidade dos céus e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir
a esse espetáculo, o que lhe há de suceder depois de morrer... Não há problema que não decida... E
quando a Igreja tem feito deste marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a ler... O
que eu pergunto é: para quê?

A indignação tinha emudecido o abade.

— Diga lá, abade, para que os mandam os senhores ensinar a ler? Toda a ciência universal, o res
scibilis, está no Catecismo: é meter-lho na memória, e o rapaz possui logo a ciência e consciência de
tudo... Sabe tanto como Deus... De facto, é Deus mesmo.

O abade pulou.

— Isso não é discutir, exclamou, isso não é discutir!... Isso são chalaças à Voltaire! Essas coisas
devem-se tratar mais de alto...

— Como chalaças, abade? Tome um exemplo: a formação das línguas. Como se formaram? Foi Deus,
que descontente com a Torre de Babel...

Mas a porta da sala abriu-se, e apareceu a Dionísia. Havia pouco o doutor tinha-lhe dado uma desanda
no quarto de Amélia; e agora a matrona falava-lhe sempre encolhida de terror.

— Senhor doutor, disse ela no silêncio que se fez, a menina acordou e diz que quer o filho.

— E então? A criança levaram-na, não?

— A criança levaram-na... disse a Dionísia.

— Bem, acabou-se...

Dionísia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.

— Ouça lá, diga-lhe que a criança vem amanhã... Que amanhã sem falta lha trazem. Minta. Minta
como um cão; aqui o senhor abade dá licença... Que durma, que sossegue.

A Dionísia retirou-se. Mas a controvérsia não recomeçou: diante daquela mãe que acordava depois da
fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre, os dois
velhos esqueceram a Torre de Babel e a formação das línguas. O abade, sobretudo, parecia comovido.

Mas o doutor não tardou, sem piedade, a lembrar-lhe que eram aquelas as consequências da situação do
padre na sociedade...

O abade baixou os olhos, ocupado na sua pitada, sem responder, como ignorando que houvesse um
padre naquela história infeliz.

O doutor, então, segundo a sua ideia, discursou contra a preparação e educação eclesiástica.

— Aí tem o abade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo: resistência às mais justas
solicitações da natureza, e resistência aos mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é criar
um monstro que há de passar a sua desgraçada existência numa batalha desesperada contra os dois
factos irresistíveis do Universo — a força da Matéria e a força da Razão!

— Que está o senhor a dizer? exclamou assombrado o abade.

— Estou a dizer a verdade. Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o
celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em
evitar todo o conhecimento e toda a ideia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão
forçada do espírito de indagação e de exame, portanto de toda a ciência real e humana...

O abade erguera-se, ferido duma piedosa indignação:

— Pois o senhor nega à Igreja a ciência?

— Jesus, meu caro abade, continuou tranquilamente o doutor, Jesus, os seus primeiros discípulos, o
ilustre S. Paulo representaram em parábolas, em epístolas, num prodigioso fluxo labial, que as produções
do espírito humano eram inúteis, pueris, e sobretudo perniciosas...

O abade passeava pela sala, indo contra um e outro móvel como um boi espicaçado, apertando as mãos
na cabeça na desolação daquelas blasfémias: não se conteve, gritou:

— O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor, peço-lhe humildemente perdão... O senhor faz-me
cair em pecado mortal... Mas isso não é discutir... Isso é falar com a leviandade dum jornalista...
Lançou-se então com calor numa dissertação sobre a sabedoria da Igreja, os seus altos estudos gregos e
latinos, toda uma filosofia criada pelos santos padres...

— Leia S. Basílio! exclamou. Lá verá o que ele diz dos estudos dos autores profanos, que são a
melhor preparação para os estudos sagrados! Leia a História dos mosteiros na meia-idade! Era lá que
estava a ciência, a filosofia...

— Mas que filosofia, senhor, mas que ciência! Por filosofia meia dúzia de conceções dum espírito
mitológico, em que o misticismo é posto em lugar dos instintos sociais... E que ciência! Ciência de
comentadores, ciência de gramáticos... Mas vieram outros tempos, nasceram ciências novas que os
antigos tinham ignorado, a que o ensino eclesiástico não oferecia nem base nem método, estabeleceu-se
logo o antagonismo entre elas e a doutrina católica!... Nos primeiros tempos, a Igreja ainda tentou
suprimi-las pela perseguição, a masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abade... O fogo, sim, o fogo e a
masmorra. Mas agora não o pode fazer e limita-se a vituperá-las em mau latim... E no entanto continua a
dar nos seus seminários e nas suas escolas e ensino do passado, o ensino anterior a essas ciências,
ignorando-as, e desprezando-as, refugiando-se na escolástica... Escusa de apertar as mãos na cabeça...
Estranha ao espírito moderno, hostil nos seus princípios e nos seus métodos ao desenvolvimento
espontâneo dos conhecimentos humanos... O senhor não é capaz de negar isso! Veja o Syllabus no seu
cânone décimo terceiro...

A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionísia:

— A pequena está a choramigar, diz que quer a criança.

— Mau, mau! disse o doutor.

E depois dum momento:

— Que tal aspeto tem ela? Está corada? Está inquieta?

— Não senhor, está bem. Só a choramigar, a falar no pequeno...

Diz que o quer hoje por força...

— Converse com ela, distraia-a... Veja se ela adormece...

A Dionísia retirou-se; e o abade logo com cuidado:

— Ó doutor, supõe que lhe possa fazer mal o afligir-se?

— Pode-lhe fazer mal, abade, pode — disse o doutor que rebuscava na sua farmácia portátil. Mas eu
vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a Igreja hoje é uma intrusa, abade!

O abade tornou a levar as mãos á cabeça.

— Escusa de ir mais longe, abade. Veja a Igreja em Portugal. É grato observar-lhe o estado de decadência...

Pintou-lho a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja fora a Nação; hoje era uma minoria
tolerada e protegida pelo Estado. Dominara nos tribunais, nos conselhos da Coroa, na fazenda, na
armada, fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que todo o clero do reino.

Fora a ciência no país; hoje tudo o que sabia era algum latim macarrónico. Fora rica, tinha possuído no
campo distritos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste pão diário do ministro
da Justiça, e pedia esmola à porta das capelas. Recrutara-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e
hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar aos enjeitados da Misericórdia.

Fora a depositária da tradição nacional, do ideal coletivo da pátria; e hoje, sem comunicação com o
pensamento nacional (se é que o há) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma, recebendo de lá a lei e o
espírito...

— Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar! — disse o abade, erguendo-se escarlate.

Mas a Dionísia tinha de novo aparecido à porta.

— Que temos mais?

— A menina está-se a queixar dum peso na cabeça. Diz que sente faíscas diante dos olhos...

O doutor então imediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionísia. O abade, só, passeava pela sala
ruminando toda uma argumentação erriçada de textos, de nomes formidáveis de teólogos, que ia fazer
desabar sobre o doutor Gouveia. Mas, meia hora passou, a luz do candeeiro ia esmorecendo, e o doutor
não voltou.

Então aquele silêncio da casa, onde só o som dos seus passos sobre o soalho da sala punha uma nota
viva, começou a impressionar o velho. Abriu a porta devagarinho, escutou; mas o quarto de Amélia era
muito afastado, ao fim da casa, ao pé do terraço; não vinha de lá nem rumor nem luz. Recomeçou o seu
passeio solitário na sala, numa tristeza indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir ver também a
doente; mas o seu caráter, o pudor sacerdotal não lhe permitiam aproximar-se sequer duma mulher no
leito, em trabalho de parto, a não ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa,
mais fúnebre, passou. Então, em pontas de pés, corando na escuridão daquela audácia, foi até ao meio do
corredor: agora, aterrado, sentia no quarto de Amélia um ruído confuso e surdo de pés movendo-se
vivamente no soalho, como numa luta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu à sala, e abrindo o seu
Breviário começou a rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente, numa carreira.

Ouviu uma porta a distância bater. Depois o arrastar no soalho duma bacia de latão. E enfim o doutor
apareceu. A sua figura fez empalidecer o abade: vinha sem gravata, com o colarinho espedaçado; os
botões do colete tinham saltado; e os punhos da camisa, voltados para trás, estavam todos manchados de
sangue.

— Alguma coisa, doutor?

O doutor não respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo, com a face animada dum calor
de batalha. Ia já sair com o estojo, mas lembrando-lhe a pergunta ansiosa do abade:

— Tem convulsões, disse.

O abade então deteve-o à porta, e muito grave, muito digno:

— Doutor, se há perigo, peço-lhe que se lembre... É uma alma cristã em agonia, e eu estou aqui.

— Certamente, certamente...

O abade tomou a ficar só, esperando. Tudo dormia na Ricoça, D. Josefa, os caseiros, a quinta, os campos
em redor. Na sala, um relógio de parede, enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca do sol e
em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau de uma coruja pensativa, um móvel de castelo
antigo, bateu meia-noite, depois uma hora. O abade a cada momento ia até ao meio do corredor: era o
mesmo rumor de pés numa luta; outras vezes um silêncio tenebroso. Voltava então para o seu Breviário.
Meditava naquela pobre rapariga que, além no quarto, estava talvez no momento que ia decidir da sua
eternidade: não tinha ao pé nem a mãe, nem as amigas: na memória apavorada devia passar-lhe a visão
do pecado: diante dos olhos turvos aparecia-lhe a face triste do Senhor ofendido: as dores contorciam o
seu corpo miserável: e na escuridão em que ia penetrando, sentia já o hálito ardente da aproximação de
Satanás. Temeroso fim do tempo e da carne! — Então rezava fervorosamente por ela.

Mas depois pensava no outro que fora uma metade do seu pecado, e que agora na cidade, estirado na
cama, ressonava tranquilamente. E rezava então também por ele.

Tinha sobre o Breviário um pequeno crucifixo. E contemplava-o com amor, abismava-se enternecido na
certeza da sua força, contra a qual era bem pouca a ciência do doutor e todas as vaidades da razão!
Filosofias, ideias, glórias profanas, gerações e impérios passam: são como os suspiros efêmeros do
esforço humano: só ela permanece e permanecerá, a cruz — esperança dos homens, confiança dos
desesperados, amparo dos frágeis, asilo dos vencidos, força maior da humanidade: crux triumphus
adversus demonios, crux oppugnatorum murus...

Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante daquela tremenda batalha que estava dando lá dentro à
morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu a janela, sem uma palavra, para respirar um momento uma
golfada de ar fresco.

— Como vai ela? perguntou o abade.

— Mal, disse o doutor, saindo.

O abade, então, ajoelhou, balbuciou a oração de S. Fulgêncio:

— Senhor, dá-lhe primeiro a paciência, dá-lhe depois a misericórdia...

E ali ficou, com a face nas mãos, apoiado à beira da mesa.

A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça. Era a Dionísia, que suspirava, recolhendo todos os
guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.

— Então, senhora, então? perguntou-lhe o abade.

— Ai, senhor abade, está perdidinha... Depois das convulsões que foram de arrepiar, caiu naquele
sono, que é o sono da morte...

E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solidão, disse muito excitada:

— Eu não quis dizer nada... Que o senhor doutor tem um génio!... Mas sangrar a rapariga naquele
estado é querer matá-la... Que ela tinha perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se sangra ninguém
em semelhante momento. Nunca, nunca!

— O senhor doutor é homem de muita ciência...

— Pode ter a ciência que quiser... Eu também não sou nenhuma tola... Tenho vinte anos de
experiência... Nunca me morreu nenhuma nas mãos, senhor abade... Sangrar em convulsões? Até causa
horror!...

Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a criaturinha. Até lhe quisera administrar
clorofórmio...

Mas a voz do doutor Gouveia berrou por ela do fundo do corredor — e a matrona abalou, com o seu
molho de guardanapos.

O medonho relógio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas, depois as três... O abade, agora,
cedia a espaços a uma fadiga de velho, cerrando um momento as pálpebras. Mas resistia bruscamente: ia
respirar o ar pesado da noite, olhar aquela treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se, a murmurar, com
a cabeça baixa, as mãos postas sobre o Breviário:

— Senhor, volta os teus olhos misericordiosos para aquele leito de agonia...

Foi então Gertrudes que apareceu comovida. O senhor doutor mandara-a abaixo acordar o moço para
pôr a égua ao cabriolé.

— Ai, senhor abade, pobre criaturinha! Ia tão bem, e de repente isto... Que foi por lhe tirarem o
filho... Eu não sei quem é o pai, mas o que sei é que nisto tudo anda um pecado e um crime!...

O abade não respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.

O doutor então entrou com o seu estojo na mão:

— Se quiser, abade, pode ir, disse.

Mas o abade não se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a bailar-lhe nos lábios entreabertos,
e retendo-a por timidez: enfim, não se conteve, e num tom de medo:

— Fez-se tudo, não há remédio, doutor?

— Não.

— É que nós, doutor, não devemos aproximar-nos duma mulher em parto ilegítimo senão num caso extremo...

— Está num caso extremo, senhor abade, disse o doutor, vestindo já o seu grande casacão.

O abade então recolheu o Breviário, a cruz — mas antes de sair, julgando do seu dever de sacerdote pôr
diante do médico racionalista a certeza da eternidade mística que se desprende do momento da morte,
murmurou ainda:

— É neste instante que se sente o terror de Deus, o vão do orgulho humano...

O doutor não respondeu, ocupado a afivelar o seu estojo.

O abade saiu — mas, já no meio do corredor, voltou ainda, e falando com inquietação:

— O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos socorros da religião, os moribundos voltarem a
si de repente, por uma graça especial... A presença do médico então pode ser útil...

— Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo involuntariamente de ver a presença da
Medicina reclamada para auxiliar a eficácia da Graça.

Desceu, a ver se estava pronto o cabriolé.

Quando voltou ao quarto de Amélia, a Dionísia e a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O
leito, todo o quarto estava revolvido como um campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiamse.
Amélia estava imóvel, com os braços hirtos, as mãos crispadas duma dor de púrpura escura — e a
mesma cor mais arroxeada cobria-lhe a face rígida.

E debruçado sobre ela, com o crucifixo na mão, o abade dizia ainda, numa voz de angústia:

— Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericórdia divina! Arrepende-te no seio
do Senhor! Jesu, Jesu, Jesu!

Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o Miserere. O doutor que ficara à porta retirou-se
devagarinho, atravessou em bicos de pés o corredor, e desceu à rua, onde o moço segurava a égua
atrelada.

— Vamos ter água, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de sono.

O doutor Gouveia ergueu a gola do paletó, acomodou o seu estojo no assento — e daí a um momento
o cabriolé rodava surdamente pela estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da
noite com o darão vermelho das suas lanternas.