Capítulo VIII

O padre Amaro voltara para casa aterrado.

— E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração encolhido.

Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma familiaridade, depois
de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela não ficara muito indignada — . apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito eclesiástico, a
delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cónego. Mas podia contar à mãe, ao
escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, — que era a sua
atitude de repreensão — dizer-lhe com pompa: — "São esses desregramentos que desonram o
sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" — Poderiam desterrá-lo
outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?

E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos negros, o
sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito — a sua paixão, crescendo
surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma
asneira"!

Decidiu-se então a ir falar ao cónego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber forças duma
razão, duma experiência alheia: costumava consultar ordinariamente o cónego que, pelo hábito da
disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e não perdera,
desde o seminário, a sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma casa e uma criada
para ir viver só, necessitava o auxílio do cónego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão avermelhado. Os tições
da braseira, cobertos duma pulverização de cinza, revermelhavam vagamente. E o cónego, sentado numa
cadeira de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, amodorrado no calor
do lume, com o Breviário sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada
dormitava como ele.

Aos passos de Amaro o cónego abriu muito devagar os olhos, rosnou:

— Ia adormecendo, hem!

— É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?

— Ah! é você? disse o cónego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei uma
gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?

— Vim por aqui.

— Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão — cheia! Eu carreguei-me um
bocado, disse o cónego rufando com os dedos na capa do Breviário.

Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:

— Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: — Aconteceu-me um caso! — Mas
reteve-se, murmurou: — Estou hoje esquisito; tenho andado ultimamente fora dos eixos...

— Você, com efeito, anda amarelo, disse o cónego, considerando-o. Purgue-se, homem!

Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.

— Sabe? estou com ideia de mudar de casa.

O cónego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos sonolentos:

— Mudar de casa! Ora essa! por quê?

O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:

— Você percebe... Tenho estado a pensar, é assim esquisito estar em casa de duas mulheres, com uma
rapariga...

— Ora, histórias! Que me vem você contar? Você é hóspede... Deixe — se disso, homem! É como
quem está na hospedaria.

— Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...

E suspirou; desejava que o cónego o interrogasse, facilitasse as confidências.

— Então só hoje é que pensa nisso, Amaro?!

— É verdade, tenho estado a pensar hoje nisto. Tenho as minhas razões. — Ia a dizer: — Fiz uma
tolice, — mas acanhou-se.

O cónego olhou para ele um momento:

— Homem! seja franco!

— Sou.

— Você acha aquilo caro?

— Não! disse o outro com uma negação impaciente.

— Bem, então é outra coisa...

— É. Você que quer? — E num tom magano, com que julgou agradar ao cónego: — A gente
também gosta do que é bom...

— Bem, bem, disse o cónego rindo, percebo. Você, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer por
bons modos que tem nojo de tudo aquilo!

— Tolice! disse Amaro, erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.

— Oh, homem! exclamou o cónego abrindo os braços. Você quer sair da casa? Por alguma é! Ora a
mim parece-me que melhor...

— É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta
ferrada! Veja você se me arranja uma casita barata com alguma mobília... Você entende melhor dessas
coisas...

O cónego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o queixo.

— Uma casita barata, rosnou por fim. Eu verei, eu verei... talvez.

— Você compreende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao cónego. A casa da S. Joaneira...

Mas a porta rangeu, D. Josefa Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abade, o catarro da
pobre D. Maria da Assunção, a doença de fígado que ia minando o engraçado cónego Sanches — Amaro
saiu, quase contente agora de se não "ter desabotoado com o padre-mestre".

O cónego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquela resolução de Amaro de deixar a casa da S.
Joaneira era bem-vinda: quando ele o trouxera de hóspede para a Rua da Misericórdia, combinara com a
S. Joaneira diminuir-lhe a mesada que havia anos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se
logo: a S. Joaneira, se não tinha hóspede, dormia só no primeiro andar: o cónego podia então saborear
livremente os carinhos da sua velhota; — e Amélia na sua alcova, em cima, era alheia a este
"conchegozinho". Quando veio o padre Amaro, a S. Joaneira cedeu-lhe o quarto, e dormia numa cama
de ferro ao pé da filha: e o cónego então reconheceu, como ele disse, desconsolado — "que aquele
arranjo tinha estragado tudo". Para gozar as doçuras da sesta com a sua S. Joaneira, era necessário que
Amélia jantasse fora, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações importunas: e ele, cónego do
cabido, na egoísta velhice, quando precisava ter recato com a sua saúde, via-se obrigado a esperar, a
espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e higiênicos as dificuldades dum colegial que ama a senhora
professora. Ora se Amaro saísse, a S. Joaneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas
comodidades, as tranquilas sestas. É verdade que tinha de dar a antiga mesada... Daria a mesada!

— Que diabo! ao menos está um homem à sua vontade, resumiu ele.

— Que está para aí o mano a falar só? perguntou a Sra. D. Josefa, despertando do quebranto em que
ia caindo, ao pé do lume.

— Estava cá a malucar como hei de castigar a carne na quaresma — disse o cónego com um riso grosso.

A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e ele subia devagar, com o coração pequenino,
receando encontrar a S. Joaneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amélia — que
tendo-lhe sentido os passos na escada tomara rapidamente a costura, e, com a cabeça muito baixa, dava
grandes agulhadas, vermelha como o lenço que abainhava para o cónego.

— Muito boa noite, menina Amélia.

— Muito boa noite, senhor pároco.

Amélia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amável; aquela secura aterrou-o; disse-lhe
logo muito perturbado:

— Menina Amélia, eu peço-lhe que me perdoe... Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz... Mas
acredite... Estou resolvido a sair daqui. Até já pedi ao Sr., cónego Dias que me arranjasse casa...

Falava com o rosto baixo — e não via Amélia erguer os olhos para ele, surpreendida e toda desconsolada.

Neste momento a S. Joaneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:

— Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o Sr. padre Natário: grande jantar! Conte lá, conte lá!

Amaro teve de dizer os pratos, as pilhérias do Libaninho, a discussão teológica; depois falaram da
fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer à S. Joaneira que ia deixar a casa, — o que era,
coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dial

Na manhã seguinte o cónego foi a casa de Amaro, pela manhã, antes de ir ao coro. O pároco fazia a
barba à janela:

— Olá, padre-mestre! Que há de novo?

— Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Há uma casita lá para os meus
lados, que é um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.

Aquela precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente o fio à navalha:

— Tem mobília?

— Tem mobília, tem louças, tem roupas, tem tudo.

— Então...

— Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, você tem razão. Estive a pensar no
caso... É melhor para você viver só. De modo que vista-se, e vamos ver a casita.

Amaro, calado, rapava a cara com desespero.

A casa era na Rua das Sousas, de um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobília, como
disse o cónego, "podia passar a veteranos"; algumas litografias desbotadas pendiam lugubremente de
grandes pregos negros; e o imundo major Nunes deixara os vidros quebrados, os soalhos todos
escarrados, as paredes riscadas de fósforos, e até sobre um poial da janela duas peúgas quase negras.

Amaro aceitou a casa. E nessa mesma manhã o cónego ajustou-lhe uma criada, a Sra. Maria Vicência,
pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como
considerou o cónego Dias) era a própria irmã da famosa Dionísia!

A Dionísia fora outrora a Dama das Camélias, a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozara a honra de
ser concubina de dois governadores civis e do terrível morgado da Sertejeira; e as paixões frenéticas que
inspirara tinham sido para quase todas as mães de família de Leiria causa de lágrimas e de fanicos. Agora
engomava para fora, encarregava-se de empenhar objetos, entendia muito de partos, protegia "o rico
adulteriozinho" segundo a singular expressão do velho D. Luís da Barrosa, cognominado o infame,
fornecia lavradeirinhas aos senhores empregados públicos, sabia toda a história amorosa do distrito. E
via-se sempre na rua a Dionísia com o seu xale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo dentro dum
chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos — mas a que faltavam já os dois dentes de
diante.

O cónego logo nessa tarde deu parte à S. Joaneira da resolução de Amaro. Foi um grande espanto para a
excelente senhora! Queixou-se, com amargura, da ingratidão do senhor pároco.
O cónego tossiu grosso e disse:

— Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo por quê: é que este arranjo do quarto
em cima, etc., está-me a arrasar a saúde.

Deu outras razões de prudência higiénica, e acrescentou passando-lhe com bondade os dedos pelo
pescoço:

— E o que é perder a conveniência, não se aflija a senhora! Eu darei para a panela como dantes; e
como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma
beijoca, Augustinha, sua brejeira! E ouça, como-lhe cá as sopas.

Amaro no entanto embaixo ia emalando a sua roupa. Mas a cada momento parava, dava um ai triste,
ficava a olhar em redor o quarto, a cama fofa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de
chita onde ele lia o Breviário, ouvindo, por cima, cantarolar Amélia.

— Nunca mais! pensava. Nunca mais!

Adeus as boas manhãs passadas ao pé dela, vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que se
prolongavam à luz do candeeiro! Adeus os chás, ao pé da braseira, quando o vento uivava fora e
cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!

A S. Joaneira e o cónego apareceram então à porta do quarto. O cónego resplandecia; e a S. Joaneira
disse, muito magoada:

— Já sei, já sei, seu ingrato!

— É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os ombros tristemente. Mas há razões... Eu
sinto...

— Olhe, senhor pároco, disse a S. Joaneira, não se ofenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe
queria como filho... e levou o lenço aos olhos.

— Tolices, exclamou o cónego. Pois então ele não pode vir aqui em amizade, passar as noites para o
cavaco, tomar o seu café?... O homem não vai para o Brasil, senhora!

— Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tê-lo de portas adentro!

Enfim, ela bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor... Fez-lhe então grandes recomendações
sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quisesse, louças, lençóis...

— E veja lá, não lhe esqueça alguma coisa, senhor pároco!

— Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado.

E continuando a arrumar a sua roupa, o pároco desesperava-se agora contra a resolução que tomara. A
pequena evidentemente não tinha aberto bico! Para que sairia então daquela casa tão barata, tão
confortável, tão amiga? E odiava o cónego pelo seu zelo tão precipitado.

O jantar foi triste. Amélia, decerto para explicar a sua palidez, queixava-se de dores na cabeça. Ao café o
cónego quis a sua "dose de música"; e Amélia, ou maquinalmente ou com intenção, disse a canção
querida:

Ai! adeus! acabaram-se os dias

Que ditoso vivi a teu lado!

Soa a hora, o momento fadado.

É forçoso deixar-te e partir!

Então, àquela chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão perturbado que
teve de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto à vidraça, esconder as duas lágrimas que
irreprimivelmente lhe saltavam das pálpebras. Os dedos de Amélia embrulhavam-se também no teclado;
até a mesma S. Joaneira disse:

— Oh! filha, toca outra coisa, credo!

Mas o cónego, erguendo-se pesadamente:

— Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou consigo até a Rua das Sousas...

Amaro então quis dizer adeus à idiota; mas depois de um forte acesso de tosse, a velha dormia, muito
fraca.

— Deixá-la sossegada, disse Amaro. E apertando a mão á S. Joaneira: — Muito obrigado por tudo,
minha senhora, acredite...

Calou-se, com um soluço na garganta.

A S. Joaneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.

— Oh, senhora! disse o cónego rindo-se, já há bocado lhe disse, o homem não vai para as Índias!

— A gente é pela amizade que lhes ganha, choramingou a S. Joaneira.

Amaro tentou gracejar. Amélia, muito branca, mordia o beicinho.

Enfim Amaro desceu: e o João Ruço, que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o baú para a Rua da
Misericórdia, muito bêbedo, cantarolando o Bendito, — levava-lho agora para a Rua das Sousas, bêbedo
também, mas trauteando o Rei-chegou.

Quando Amaro, nessa noite, se viu só naquela casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente e um
tédio tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar ali
a morrer!

Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão
duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatório, a
bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janela; tudo ali cheirava a
mofo; e fora, na rua negra, caia sem cessar a chuva triste. Que existência! E seria sempre assim!...

Desesperou-se então contra Amélia: acusou-a, com o punho fechado, das comodidades que perdera, da
falta de mobília, da despesa que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter
vindo ao seu quarto, dizer-lhe: Sr. padre Amaro, para que sai de casa? Eu não estou zangada! — Porque
enfim quem irritara o seu desejo? Ela, com as suas maneirinhas temas, os seus olhinhos adocicados! Mas
não, deixara-o ema. lar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa
do Beijo!

Jurou então não voltar a casa da S. Joaneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensava — no que havia
de fazer para humilhar Amélia. Q quê? Desprezá-la como uma cadela! Ganhar influência na sociedade
devota de Leiria, ser muito do senhor chantre: afastar da Rua da Misericórdia o cónego e as Gansosos;
intrigar com as senhoras da boa roda para que se afastassem dela, com secura, no altar-mor, à missa do
domingo; dar a entender que a mãe era uma prostituta... Enterrá-la! cobri-la de lama! E na Sé, ao sair da
missa, regalar-se de a ver passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, enquanto ele, à
porta, de propósito, conversaria com a mulher do governador civil e seria galante com a baronesa de
Via-Clara!... Depois pregaria um grande sermão, na quaresma, e ela ouviria dizer, na arcada, nas lojas:
"Grande homem, o padre Amaro!". Tornar-se-ia ambicioso, intrigaria, e, protegido pela Sra. condessa de
Ribamar, subiria nas dignidades eclesiásticas: o que pensaria ela quando o visse um dia bispo de Leiria,
pálido e interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores, ao longo da nave
da Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os roucos cantos do órgão? E ela o que seria então?
Uma magra criatura murcha, embrulhada num xale barato! E o Sr. João Eduardo, o escolhido de agora,
o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do
cigarro, curvado sobre o seu papel almaço, impercetível na terra, adulando alto e invejando baixo! E ele,
bispo, na vasta escadaria hierárquica que sobe até ao Céu, estaria já muito para cima dos homens, na
zona de luz que faz a face de Deus-Padre! — E seria par do reino, e os padres da sua diocese tremeriam
de o ver franzir a testa!

Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.

Que faria ela àquela hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a
bisca, riam — ela roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa. Recordou o seu pé, o
bocadinho da meia que vira quando ela saltava as lamas na quinta, e essa curiosidade inflamada subia
pela curva da perna até ao seio, percorrendo belezas que suspeitava... O que ele gostava daquela maldita!
E era impossível obtê-la! E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua da Misericórdia, pedi-la à mãe,
vir à Sé dizer-lhe: "Senhor pároco, case-me com esta mulher", e beijar, sob a proteção da Igreja e do
Estado, aqueles braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega da marquesa de
Alegros!...

Abominava então todo o mundo secular — por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o
sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na
ideia da superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar
e possuir a rapariga — mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder
supremo de distribuir o Céu e o Inferno?... — E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de
orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora ideia que esse domínio só era válido
na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por actos triunfantes, em plena sociedade. Era
um Deus dentro da Sé — mas apenas saia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo
irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre almas de beatas... E era isto
que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao
espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a autoridade
dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no
seu caso, o direito místico de abrir ou fechar as portas do Céu? O que ele queria era o velho direito de
abrir ou fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amélias tremessem da
sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a
denúncia e dos terrores que inspira o carrasco, e ali naquela vila, sob a jurisdição da sua Sé, fazer
estremecer, à ideia de castigos torturantes, aqueles que aspirassem a realizar felicidades — que lhe eram
a ele interditas; e pensando em João Eduardo e em Amélia; lamentava não poder acender as fogueiras da
Inquisição! — Assim aquele inofensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colérica duma paixão
contrariada, ambições grandiosas de tirania católica: — porque todo o padre, o mais boçal, tem um
momento em que é penetrado pelo espírito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento místico ou
nas suas ambições de dominação universal: todo o subdiácono se julga uma hora capaz de ser santo ou
de ser papa: não há seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado com ternura à caverna no
deserto em que S. Jerónimo, olhando o céu estrelado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça, como um
abundante rio de leite: e o abade pançudo que à tardinha, à varanda, palita o dente furado saboreando o
seu café com um ar paterno, traz dentro em si os indistintos restos dum Torquemada.