Capítulo XXI

O cónego Dias recomendara muito a Amaro que ao menos nas primeiras semanas, para evitar as
suspeitas da mana e da criada, não fosse à Ricoça. E a vida de Amaro tornou-se então mais triste, mais
vazia que outrora, quando pela primeira vez deixando a casa da S. Joaneira viera para a Rua das Sousas.

Todos os seus conhecidos estavam fora de Leiria: D. Maria da Assunção na Vieira; as Gansosinhos ao pé
de Alcobaça com a tia, a famosa tia que havia dez anos estava para morrer e para lhes deixar uma grande
herdade. Depois do serviço da Sé, as horas, todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. Não
estaria mais separado de toda a comunicação humana, se como Santo António vivesse nos areais do
deserto líbico. Só o coadjutor que, coisa singular, nunca lhe aparecia nos tempos felizes, voltara agora,
como o companheiro fatídico das horas tristes, a visitá-lo uma, duas vezes por semana, ao fim do jantar,
mais magro, mais chupado, mais soturno, com o seu eterno guarda-chuva na mão. Amaro odiava-o; às
vezes, para o impor, fingia-se todo ocupado numa leitura; ou precipitando-se para a mesa, mal lhe sentia
nos degraus as passadas lentas:

— Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.

Mas o homem instalava-se, com o odioso guarda-chuva entre os joelhos:

— Não se prenda, senhor pároco, não se prenda.

E Amaro, torturado por aquela figura lúgubre que não se mexia na cadeira, atirava a pena, furioso,
agarrava o chapéu:

— Não estou hoje para a coisa, vou espairecer.

E à primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.

Às vezes, farto da solidão, ia visitar o Silvério. Mas a felicidade pachorrenta daquele ser obeso, ocupado
em colecionar receitas de medicina caseira e em observar as perturbações fantásticas da sua digestão; os
seus constantes louvores do doutor Godinho, dos pequenos e da senhora; as chalaças obsoletas que ele
repetia havia quarenta anos e a inocente hilaridade, que elas lhe davam, impacientavam Amaro. Saía,
enervado, pensando na sorte inimiga que o fizera tão diferente do Silvério. Aquilo era a felicidade por
fim: por que não havia de ele ser também um bom padre caturra, com uma pequenina mania tirânica,
parasita regalado duma família respeitável, tendo um destes sangues tranquilos que giram sob camadas
de gordura, sem perigo de transbordar e de causar desgraças, como um riacho que corre por baixo
duma montanha?...

Outras vezes ia ao colega Natário, cuja fratura, mal tratada ao princípio, o retinha ainda na cama com o
aparelho na perna. Mas aí, enjoava-o o aspeto do quarto — impregnado dum cheiro de arnica e de suor,
com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e esquadrões de garrafas sobre a cómoda
entre fileiras de santos. Natário, mal o via aparecer, rompia em queixas: as cavalgaduras dos médicos! A
sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atraso em que estava a medicina neste maldito
país!... E ia salpicando o soalho negro de expetorações e de pontas de cigarro. Desde que estava doente,
a saúde dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma ofensa pessoal.

— E você sempre rijo, hem? Pudera! — murmurava com rancor.

E pensar que aquela besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o alarve do abade se gabava de
nunca ter estado na cama depois das sete da manhã! Animais!
Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do cónego, da Vieira, as melhoras da D. Josefa...

Mas Natário não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivência e a amizade;
interessavam-no só os seus inimigos, com quem tinha ligações de ódio. Queria saber do escrevente, se já
tinha estourado de fome...

— Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cair aqui nesta maldita cama!...

As sobrinhas apareciam então — duas criaturinhas sardentas, de olhos muito pisados. O seu grande
desgosto era que o titi não mandasse vir a benzedeira pôr-lhe virtude na perna: era o que tinha curado o
morgadinho da Barrosa, e o Pimentel de Ourém...
Natário, na presença das duas rosas do seu canteiro, calmava-se.

— Coitaditas, não é por falta de cuidados delas que eu ainda não arribei... Mas tenho sofrido, caramba!

E as duas rosas, com o mesmo movimento simultâneo, voltavam-se para o lado limpando os olhos aos lenços.
Amaro saía dali, mais enfastiado.

Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento
da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa, concordando com aquela paisagem de colinas tristes e
árvores enfezadas: e a sua vida aparecia-lhe como essa mesma estrada monótona e longa, sem um
incidente que a alegrasse, estirando-se desoladamente até se perder nas brumas do crepúsculo. Às vezes,
ao voltar, entrava no cemitério, ia passeando entre os renques de ciprestes, sentindo àquela hora do fim
da tarde a emanação adocicada das moutas de goivos; lia os epitáfios; encostava-se à grade dourada do
jazigo da família Gouveia, contemplando os emblemas em relevo, um chapéu armado e um espadim,
seguindo as negras letras da famosa ode que lhe adorna a lápide:

Caminhante, detém-te a contemplar

Estes restos mortais;

E, se sentires a mágoa a trasbordar,

Detém teus ais.

Que João Cabral da Silva Maldonado

Mendonça de Gouveia,

Moço fidalgo, bacharel formado,

Filho da ilustre Ceia,

Ex-administrador deste concelho.

Comendador de Cristo,

Foi de virtudes singular espelho.

Caminhante, crê nisto.

Depois era o rico mausoléu do Morais, onde sua esposa que, agora, rica e quarentona, vivia em
concubinagem com o belo capitão Trigueiros, fizera gravar uma piedosa quadra:

Entre os anjos espera, ó esposo,

A metade do teu coração

Que no mundo ficou, tão sozinha,

Toda entregue ao dever da oração...

Algumas vezes, ao fundo do cemitério, junto ao muro, via um homem ajoelhado ao pé duma cruz negra,
que um chorão assombreava, ao lado da vala dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua muleta no chão,
rezando sobre a sepultura da Totó. Ia falar-lhe, e mesmo, numa igualdade que aquele lugar justificava,
passeavam familiarmente, ombro a ombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de
que servia à desgraçada rapariga a vida para a passar estirada numa cama?

— Sempre era viver, senhor pároco... E eu, veja agora isto, sozinho de dia e de noite!

— Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia melancolicamente Amaro.

O sineiro então suspirava, perguntava pela Sr. D. Josefa, pela menina Amélia...

— Lá está na quinta.

— Coitadita, não está má estopada...

— Cruzes da vida, tio Esguelhas.

E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios de negrejamento das
cruzes e da brancura das lápides novas. Amaro, às vezes, reconhecia alguma sepultura que ele mesmo
tinha aspergido e consagrado: onde estariam aquelas almas que ele recomendara a Deus em latim,
distraído, engorolando à pressa as orações para ir ter com Amélia? Eram jazigos de gente da cidade; ele
conhecia de vista as pessoas da família; vira-as então lavadas em lágrimas, e agora passeavam em rancho
pela alameda ou chalaceavam ao balcão das lojas...

Voltava para casa mais triste, — e a sua longa noite começava, infindável. Tentava ler; mas ao fim das
dez primeiras linhas bocejava de tédio e de fadiga. Às vezes escrevia ao cónego. Às nove horas, tomava
chá; e depois era um passear sem fim pelo quarto fumando maços de cigarros, parando à janela a olhar a
negrura da noite, lendo aqui e além uma notícia ou um anúncio do Popular, e recomeçando a passear
com bocejos tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.

Para entreter as noites melancólicas, e por um excesso de sensibilidade ociosa, tentara fazer versos,
pondo o seu amor e a história dos dias felizes nas fórmulas conhecidas da saudade lírica:

Lembras-te desse tempo de delícias,

Ó anjo feiticeiro, Amélia amada,

Quando tudo era risos e ventura

E a vida nos corria sossegada?

Lembras-te dessa noite de poesia

Em que a Lua brilhava pelos céus

E nós unindo as almas, ó Amélia,

Erguemos nossa prece para Deus?...

Mas a despeito de todos os esforços nunca passara destas duas quadras — apesar de as ter produzido
com uma facilidade prometedora — como se o seu ser contivesse apenas estas duas gotas isoladas de
poesia, e, soltas elas à primeira pressão, nada mais restasse senão a seca prosa do temperamento carnal.

E esta existência vazia relaxara-lhe tão sutilmente todo o maquinismo da vontade e da ação, que
qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa concavidade das horas infindáveis, era-lhe odioso
como o peso dum fardo injusto. Preferia ainda os tédios da ociosidade aos tédios da ocupação. A não
serem os deveres estritos que ele não podia desleixar sem escândalo e sem censura — desembaraçara-se,
pouco a pouco, de todas as práticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas regulares ao
Santíssimo, nem as meditações espirituais, nem o rosário à Virgem, nem a leitura à noite do Breviário,
nem o exame de consciência — todas estas obras da devoção, estes meios secretos de santificação
progressiva substituía-os pelos infindáveis passeios pelo quarto, do lavatório à janela, e por maços de
cigarros fumados até ao negro dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o serviço
da paróquia feito com surdas revoltas de impaciência; tomara-se consumadamente o Indignus sacerdos
dos ritualistas; e tinha na sua ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que os
teólogos atribuem ao mau padre.

Só lhe restava, através da sua sentimentalidade, um apetite tremendo. E como a cozinheira era excelente,
e a Sra. D. Maria da Assunção, antes da sua partida para a Vieira, lhe deixara um fornecimento de cento e
cinquenta missas a cruzado — banqueteava-se, tratando-se a galinha e a geleia, regando-se dum vinho
picante da Bairrada que o padre-mestre lhe escolhera. E ali ficava à mesa, horas esquecidas, de perna
esticada, fumando sobre o café, e lamentando não ter à mão a sua Ameliazita...

— Que fará ela por lá, a pobre Ameliazita? pensava, espreguiçando — se com tédio e com langor.

A pobre Ameliazita, na Ricoça amaldiçoava a sua vida.

Logo durante a jornada no char-à-banc D. Josefa lhe fizera tacitamente sentir que dela não tinha a
esperar nem a antiga amizade, nem o perdão do escândalo... E assim foi, quando se instalaram. A velha
tomou — se intratável; era todo um modo cruel de abandonar o tu, de a tratar por menina; uma recusa
ríspida se Amélia lhe queria arranjar a almofada ou aconchegá-la no xale; um silêncio repreensivo
quando ela lhe passava o serão no quarto, costurando; e a todo o momento alusões suspiradas ao triste
encargo que Deus lhe mandava no fim dos seus dias...

Amélia, consigo, acusava o pároco: ele prometera-lhe que a madrinha seria toda caridade, toda
cumplicidade; e entregava-a por fim a uma semelhante ferocidade de velha virgem devota!...

Quando se viu naquele casarão da Ricoça, num quarto regelado, pintado a cor de canário, lugubremente
mobiliado, com uma cama de dossel e duas cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça
enterrada no travesseiro — torturada por um cão que debaixo das janelas, estranhando sem dúvida as
luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.

Ao outro dia desceu à quinta a ver os caseiros. Era talvez boa gente com quem podia distrair-se.
Encontrou uma mulher, alta e lúgubre como um cipreste, carregada de luto: um grande lenço negro
tingido, muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma
tristeza de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda pior, semelhante a um orangotango, com duas
orelhas enormes muito despegadas do crânio, uma saliência bestial do queixo, as gengivas deslavadas, um
corpo desengonçado de tísico, de peito metido para dentro. Abalou bem depressa, foi ver o pomar:
andava maltratado; as ruazitas estavam invadidas por um ervaçal húmido; e a sombra das árvores muito
juntas, num terreno baixo, cercado de altos muros, dava uma sensação doentia.

Era ainda preferível passar os seus dias metida no casarão; dias infindáveis em que as horas se iam
movendo com o vagar fastidioso dum desfilar funerário.

O seu quarto era na frente; e pelas duas janelas recebia a impressão triste da paisagem que se estendia
defronte; uma ondulação monótona de terras estéreis com alguma magra árvore aqui e além, um ar
abafado em que parecia errar constantemente a exalação de pauis próximos e de baixas húmidas, e a que
nem o sol de Setembro dissipava o tom sezonático.

Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josefa, acomodá-la no canapé; depois vinha costurar para ao pé
dela — como outrora na Rua da Misericórdia para ao pé da mãe; mas agora em lugar das boas
"cavaqueiras" tinha só o silêncio intratável da velha e a sua ronqueira incessante. Pensara em fazer vir o
seu piano da cidade; mas, apenas em tal falou, a velha exclamou com azedume:

— A menina está doida... Não tenho saúde para tocatas! Ora o despropósito!

A Gertrudes também não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava ao pé da velha, ou na
cozinha, desaparecia; era justamente daquela freguesia, e passava o seu tempo pelos casais, palrando com
as antigas vizinhas. .

A pior hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rosário, ficava junto à janela olhando estupidamente
as gradações da luz poente; todos os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um
silêncio parecia descer, pousar sobre a Terra; depois uma primeira estrelinha treme. luzia e brilhava: e
diante dela era então só uma massa inerte de sombra muda até ao horizonte, aonde ainda ficava um
momento uma delgada tira cor de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou
contorno de objeto em redor que o prendesse, ia muito saudoso para longe, para a Vieira; àquela hora a
mãe e as amigas recolhiam do passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos palheiros
começam a aparecer as luzes; é a hora do chá, dos quinos alegres, quando os rapazes da cidade vão em
rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma flauta, improvisando soirées. E ela ali, só!...

Era então necessário deitar a velha, rezar com ela e com a Gertrudes o terço. Acendiam depois o
candeeiro de latão, pondo-lhe diante uma velha chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o
serão, no silêncio lúgubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, num medo constante de ladrões; e então começava
para Amélia a hora dos terrores supersticiosos. Não podia adormecer, sentindo ao pé a negrura daquelas
antigas salas desabitadas e em redor o tenebroso silêncio dos campos. Ouvia ruídos inexplicáveis: era o
soalho do corredor que estalava, sob passadas multiplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava
como sob um hálito invisível: ou a distância, para os lados da cozinha, o baque surdo dum corpo.

Acumulava então as orações, encolhida debaixo da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadelo
continuavam-lhe os terrores da vigília. Uma vez acordara de repente, a uma voz que dizia, gemendo, por
trás da alta barra da cama: — Amélia, prepara-te, o teu fim chegou! Espavorida, em camisa, atravessou
correndo a casa, foi refugiar-se na cama da Gertrudes.

Mas na noite seguinte a voz sepulcral voltou quando ela ia adormecer: Amélia, lembra-te dos teus
pecados! Prepara-te, Amélia! Deu um grito, desmaiou. Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitara,
correu àquele ai agudo que cortara o silêncio do casarão. Achou-a estirada ao través do leito, com os
cabelos soltos da rede rojando no chão, as mãos geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do
caseiro, e até de madrugada foi uma azáfama para a chamar à vida. Desde esse dia a Gertrudes dormia
ao pé dela — e a voz não tornou a ameaçá-la por trás da barra.

Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a ideia da morte e o pavor do Inferno. Por esse tempo, um
vendedor ambulante de estampas passou pela Ricoça; e a Sra. D. Josefa comprou-lhe duas litografias

— a Morte do Justo e a Morte do Pecador.

— Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse ela.

Amélia não duvidou ao princípio que a velha, que contava morrer no mesmo aparato de glória com que
expirava o Justo da estampa, lhe quisera mostrar a ela, a pecadora, a cena pavorosa que a esperava.

Odiou-a por aquela "picardia". Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar à compra da estampa
outra explicação: era Nossa Senhora que ali mandara o vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo
na litografia da Morte do Pecador o espetáculo da sua agonia: e estava então certa que tudo seria assim,
traço por traço — o seu anjo da guarda fugindo aos soluços; Deus Padre desviando o rosto dela com
repugnância; o esqueleto da morte rindo ás gargalhadas; e demónios de cores rutilantes, com todo um
arsenal de torturas, apoderando-se dela, uns pelas pernas, outros pelos cabelos, arrastando-a com uivos
de júbilo para a caverna chamejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna Dor... E ela
podia ver ainda, no fundo dos Céus, a grande balança — com um dos pratos muito alto onde as suas
orações não pesavam mais que uma pena de canário, e o outro prato caído, de cordas retesadas,
sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de pecado.

Caiu então numa melancolia histérica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não
querendo dar cuidados ao seu corpo pecador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as
mesmas orações lhe custavam, como se as julgasse inúteis; e tinha atirado para o fundo duma arca o
enxoval que andava a costurar para o filho — porque o odiava, aquele ser que ela sentia mexer-se-lhe já
nas entranhas e que era a causa da sua perdição. Odiava-o — mas menos que o outro, o pároco que lho
fizera, o padre malvado que a tentara, a estragara, a atirara às chamas do Inferno! Que desespero quando
pensava nele! Estava em Leiria sossegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez — e
ela ali sozinha, com o ventre condenado e enfartado do pecado que ele lá depusera, ia-se afundindo na
perdição sempiterna!

Decerto esta excitação a teria matado — se não fosse o abade Ferrão que começara então a vir ver muito
regularmente a irmã do amigo cónego.

Amélia ouvira falar muitas vezes nele na Rua da Misericórdia; dizia — se lá que o Ferrão tinha "ideias
esquisitas"; mas não era possível recusar-lhe nem a virtude da vida nem a ciência de sacerdote. Havia
muitos anos que era ali abade; os bispos tinham-se sucedido na diocese, e ele ali ficara esquecido naquela
freguesia pobre, de côngrua atrasada, numa residência onde chovia pelos telhados. O último vigário
geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavreado:

— Você é um dos bons teólogos do reino. Você está predestinado por Deus para um bispado. Você
ainda apanha a mitra. Você há de ficar na história da Igreja portuguesa como um grande bispo, Ferrão!

— Bispo, senhor vigário-geral! Isso era bom! Mas era necessário que eu tivesse o arrojo dum Afonso
de Albuquerque ou dum D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!

E ali ficara, entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma
chávena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mapa, precipitando-se a uma meia
légua por um temporal desfeito se um paroquiano tinha uma dor de dentes, passando uma hora a
consolar uma velha z quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um
cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu vizinho, grande amigo de todos os
rapazitos a quem fazia botes de cortiça, e não duvidando parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que
era raro na freguesia, e exclamar: "Linda moça, Deus a abençoe! "

E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão célebre, que lhe chamavam "a donzela".
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas de estação aos pés do Santíssimo Sacramento;
cumprindo com uma felicidade fervente as menores práticas da vida devota; purificando-se para os
trabalhos do dia com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, de onde a sua alma saía ágil,
como dum banho fortificante; preparando-se para o sono com um destes longos e piedosos exames de
consciência, tão úteis, que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarco e
Sêneca, e que são a correção laboriosa e sútil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento meticuloso da
virtude ativa, empreendido com um fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que
tinha vago abismava-se num caos de livros.

Tinha só um defeito o abade Ferrão: gostava de caçar! Coibia-se, porque a caça tira muito tempo, e é
sanguinário matar uma pobre ave que anda azafamada pelos campos nos seus negócios domésticos. Mas
nas claras manhãs de Inverno, quando ainda há orvalho nas giestas, se via passar um homem de
espingarda ao ombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro — iam-se-lhe os olhos nele... Às vezes,
porém, a tentação vencia; agarrava furtivamente a espingarda, assobiava à Janota, e com as abas do
casacão ao vento, lá ia o teólogo ilustre, o espelho da piedade, através de campos e vales... E daí a pouco

— pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda
debaixo do braço, os dois pássaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu rosário à
Virgem, e respondendo aos bons-dias da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito
criminoso.

O abade Ferrão, apesar do seu aspeto "gebo" e do seu grande nariz, agradou a Amélia, logo desde a
primeira visita à Ricoça; e a sua simpatia cresceu, quando viu que D. Josefa o recebia com pouco
alvoroço, apesar do respeito que o mano cónego tinha pela ciência do abade.

A velha, com efeito, depois de ter estado só com ele numa prática de horas, condenara-o com uma única
palavra, na sua autoridade de velha devota experiente:

— É relaxado!

Não se tinham realmente compreendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos anos naquela paróquia de
quinhentas almas, as quais caíam todas, de mães e filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso
Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono da freguesia, tendo pouca experiência de confissão,
encontrava-se, subitamente, diante duma alma complicada de devota da cidade, dum beatério caturra e
atormentado; e ao ouvir aquela extraordinária lista de pecados mortais, murmurava espantado:

— É estranho, é estranho...

Percebera bem ao princípio que tinha diante de si uma dessas degenerações mórbidas do sentimento
religioso, que a teologia chama Doença dos escrúpulos — e de que na sua generalidade estão afetadas
hoje todas as almas católicas; mas depois, a certas revelações da velha, receou estar realmente em
presença duma maníaca perigosa; e instintivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos
doidos, recuou a cadeira.

Pobre D. Josefa! Logo na primeira noite em que chegara é Ricoça (contava ela), ao começar o rosário a
Nossa Senhora, lembra-lhe de repente que lhe esquecera o saiote de flanela escarlate, que era tão eficaz
nas dores das pernas... Trinta e oito vezes de seguida recomeçara o rosário, e sempre o saiote escarlate se
interpunha entre ela e Nossa Senhora!... Então desistira, de exausta, de esfalfada. E imediatamente
sentira dores vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por
vingança a espetar-lhe alfinetes nas pernas...

O abade pulou:

— Oh minha senhora!...

— Ai, não é tudo, senhor abade!

Havia outro pecado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir expetoração; e, tendo ainda o
nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera
pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar
com. as fezes! Que havia de fazer?

O abade, de olhar esgazeado, limpava o suor da testa.

Mas isto não era o pior: o grave era, que na noite antecedente, estava toda sossegada, toda em virtude, a
rezar a S. Francisco Xavier — e de repente, nem ela soube como, pôs-se a pensar como seria S. Francisco
Xavier nu em pêlo!

O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Enfim, vendo-a olhar ansiosa para ele à espera das suas
palavras e dos seus conselhos, disse:

— E há muito que sente esses terrores, essas dúvidas...?

— Sempre, senhor abade, sempre!

— E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas inquietações?

— Todas as pessoas que conheço, dúzias de amigas, todo o mundo... O inimigo não me escolheu só a
mim... A todos se atira...

— E que remédio dava a essas ansiedades de alma...?

— Ai, senhor abade, aqueles santos da cidade, o senhor pároco, o Sr. Silvério, o Sr. Guedes, todos,
todos nos tiravam sempre de embaraços... E com uma habilidade, com uma virtude...

O abade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando que por todo o reino tantos
centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho naquelas trevas de alma, mantendo o
mundo dos fiéis num terror abjeto do Céu, representando Deus e os seus santos como uma corte que
não é menos corrompida, nem melhor, que a de Calígula e dos seus libertos.
Quis então levar àquele noturno cérebro de devota, povoado de fantasmagorias, uma luz mais alta e
mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror de
ofender a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é
por amor que é necessário servi-lo, não por medo... Que todos esses escrúpulos, Nossa Senhora a
enterrar alfinetes, o nome de Deus a cair no estômago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou
lhe confiança em Deus, bom regime para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas...

— E quando eu voltar, disse enfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre
isto, e havemos de serenar essa alma.

— Obrigada, senhor abade, respondeu a velha secamente.

E apenas a Gertrudes daí a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os pés, D. Josefa exclamou, toda
indignada, quase choramigando:

— Ai, não presta para nada, não presta para nada!... Não me percebeu... É um tapado... É um
pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha num sacerdote do Senhor...
Desde esse dia não tornou a revelar ao abade os pecados medonhos que continuava a cometer; e quando
ele, por dever, quis recomeçar a educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se
confessava com o Sr., padre Gusmão, não sabia se seria delicado receber de outro a direção moral...

O abade fez-se vermelho, respondeu:

— Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza nessas coisas...
Saiu. E daí por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da saúde, de ter falado do tempo, da
estação, das doenças que iam, de alguma festa na igreja, — apressava-se em se despedir e ir para o
terraço conversar com Amélia.

Vendo-a sempre tão tristonha, interessara-se por ela; para Amélia, as visitas do abade eram uma
distração, naquela solidão da Ricoça; e assim se iam familiarizando, a ponto que nos dias em que ele
regularmente vinha, Amélia punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poiais esperá-lo até junto da casa
do ferrador. As conversas do abade, falador incansável, entretinham-na, tão diferentes dos mexericos da
Rua da Misericórdia, — como o espetáculo dum largo vale com árvores, plantações, águas, pomares e
rumor de lavouras, recreia os olhos habituados às quatro paredes caiadas duma trapeira da cidade. Tinha
com efeito uma destas conversações semelhantes aos jornais semanais de recreio, o TESOURO DAS
FAMÍLIAS ou as LEITURAS PARA SERÕES, em que há de tudo — doutrina moral, histórias de
viagens, anedotas de grandes homens, dissertações sobre a lavoura, citação duma boa chalaça, traços
sublimes da vida dum santo, um verso aqui e além, e até receitas, como uma muito útil que deu a Amélia
para lavar as flanelas sem encolherem. Só era monótono quando falava da sua família paroquiana, dos
casamentos, batizados, doenças, questões, ou quando começava as suas histórias de caça.

— Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Córrego das Tristes, quando uma revoada de perdizes...

Amélia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da Janota, pontarias fabulosas contadas
em mímica, com imitações de vozes de pássaros, e pum, pum de fuzilaria. Ou então era descrições das
caçadas selvagens que ele lera com gula — a caça ao tigre do Nepal, ao leão da Argélia e ao elefante,
histórias ferozes que arrastavam a imaginação da rapariga para longe, para os países exóticos onde a erva
é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em brasa, e entre cada ramagem reluzem os olhos
duma fera... E depois, a propósito de tigres e de malaios, lembrava — lhe um história curiosa de S.
Francisco Xavier, e ei-lo lançado, o terrível palrador, na descrição dos feitos da Ásia, das armadas da
Índia e das estocadas famosas do cerco de Dio!

Foi mesmo um desses dias, no pomar, em que o abade, tendo começado por enumerar as vantagens que
o cónego tiraria de transformar o pomar em terra de lavoura, acabara por contar perigos e valores dos
missionários da Índia e do Japão — que Amélia, então em toda a intensidade dos seus terrores noturnos,
falou dos ruídos que ouvia na casa e dos sobressaltos que lhe davam.

— Oh, que vergonha! disse o abade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de papões...

Ela então, atraída por aquela bondade do senhor abade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite por
detrás da barra da cama.

O abade pôs-se sério:

— Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar... Decerto tem havido
prodígios no mundo, mas Deus não se põe assim a falar a qualquer, por detrás das barras das camas, nem
permite ao demónio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus pecados são grandes, não vêm de
detrás da cama, vêm-lhe de si mesma, da sua consciência... E pode então fazer dormir ao pé de si a
Gertrudes, e sem Gertrudes, e todo o batalhão de infantaria, que as há de continuar a ouvir... Havia de as
ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessário é calmar a consciência que reclama penitência e
purificação...

Tinham subido ao terraço, falando assim: e Amélia sentara-se fatigada num dos bancos de pedra que ali
havia, e ficara a olhar a quinta ao longe, os tetos dos currais, a longa rua de loureiros, a eira, e a distância
os campos que se sucediam planos e avivados do tom húmido que lhes dera a chuva ligeira da manhã:
agora a tarde estava de uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente
tocava de vivos cor-de-rosa tenro... Pensava naquelas palavras tão sensatas do abade, no descanso que
gozaria se cada pecado que lhe pesava na alma como um penedo se tomasse ligeiro e se dissipasse sob a
ação da penitência. E vinham-lhe desejos de paz, dum repouso igual à quietação dos campos que se
estendiam diante dela.

Um pássaro cantou, depois calou-se; e recomeçou dai a um momento com um trinado tão vibrante, tão
alegre, que Amélia sorria, escutando-o.

— É um rouxinol...

— Os rouxinóis não cantam a esta hora, disse o abade. É um melro... Aí está um que não tem medo
de fantasmas, nem ouve vozes... Olhe que entusiasmo, o maganão!

Era com efeito um gorjear triunfante, um delírio de melro feliz, que dera de repente a todo o pomar
uma sonoridade festiva.

E Amélia, diante daquele chilrear glorioso dum pássaro contente, subitamente, sem razão, num destes
abalos nervosos que vêm às mulheres histéricas, rompeu a chorar.

— Então, que é isso, que é isso? fez o abade muito surpreendido.

Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e de amigo, calmando-a.

— Que infeliz que sou!.., murmurou ela aos soluços.

Ele então muito paternal:

— Não tem razão para o ser... Sejam quais forem as aflições, as inquietações, uma alma cristã tem
sempre a consolação à mão... Não há pecado que Deus não perdoe, nem dor que não calme, lembre-se
disso... O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que sufoca, que a faz chorar... Se eu lhe
posso valer, sossegá-la, é procurar-me...

— Quando? disse ela toda desejosa já de se refugiar na proteção daquele santo homem.

— Quando quiser, disse ele rindo. Eu não tenho horas para consolar... A igreja está sempre aberta,
Deus está sempre presente...

Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amélia foi à residência; e durante duas horas
esteve prostrada diante do pequeno confessionário de pinho — que o bom abade por suas mãos pintara
de azul-escuro, com extraordinárias cabecinhas de anjos que em lugar de orelhas tinham asas, uma obra
de alta arte de que ele falava com uma secreta vaidade.