I. Barca Bela
Pescador da barca bela,
Onde vás pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Ó pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
II. A Coroa
Bem sei que é toda de flores
Essa coroa d’amores
Que na frente vais cingir.
Mas é coroa — é reinado;
E a posto mais arriscado
Não se pode hoje subir.

Nesses reinos populosos
Os vassalos revoltosos
Tarde ou cedo dão a lei.
Quem há-de conter, domá-los,
Se são tantos os vassalos
E um só o pobre do rei?

Não vejo, rainha bela,
Para fugir essa estrela
Que os reis persegue sem dó,
Mais que um meio — falo sério:
É pôr limites ao império
E ter um vassalo só.
III. Sina
Por todas quantas estrelas
Tem o céu que possam mais,
Pelas flores virginais
De que se c’roam donzelas,
Pelas lágrimas singelas
Que o primeiro amor derrama,
Por aquela etérea chama
Que a mão de Deus acendeu
E que na terra alumia
Quanto há na terra do céu!
Por tudo quanto eu queria
Quando eu sabia querer,
E por tudo quanto eu cria
Quando me era dado crer!
Bem fadada seja a vida
Que por estas folhas brancas [2]
Sua história há-de escrever!
Que as dores lhe venham mancas
E com asas o prazer!

Esta sina que lhe dou,
Bruxa não na adivinhou,
Nem duende ma ensinou:

Li-a eu por meu condão
Em seus olhos inocentes,
Transparentes — transparentes
Até dentro ao coração.


[2] As folhas do álbum em que se escreveram estes versos
IV. Ai, Helena
Ai, Helena! de amante e de esposo
Já o nome te faz suspirar,
Já tua alma singela pressente
Esse fogo de amor delicioso
Que primeiro nos faz palpitar!...
Oh! não vás, donzelinha inocente,
Não te vás a esse engano entregar:
É amor que te ilude e te mente,
É amor que te há-de matar!

Quando o sol nestes montes desertos
Deixa a luz derradeira apagar,
Com as trevas da noite que espanta
Vêm os anjos do inferno encobertos
A sua vítima incauta afagar.
Doce é a voz que adormece e quebranta,
Mas a mão do traidor... faz gelar.
Treme, foge do amor que te encanta,
É amor que te há-de matar.
V. The Rose — A Sigh[3]
If this delicious, grateful flower,
Which blows but for a little hour,
Should to the sight so lovely be,
As from it’s fragrance seems to me,
A sigh must then it’s colour show,
For that is the softest joy I know.
And sure the rose is like a sigh,
Borne just to soothe and then — to die.

[3] By a young lady born blind.
V. A Rosa — Um Suspiro[4]
Se esta flor tão bela e pura,
Que apenas uma hora dura,
Tem pintado no matiz
O que o seu perfume diz,
Por certo na linda cor
Mostra um suspiro d’amor:
Dos que eu chego a conhecer
É este o maior prazer.
E a rosa como um suspiro
Há-de ser; bem se discorre:
Tem na vida o mesmo giro,
É um gosto que nasce e — morre.

[4] Por uma menina cega de nascença.
VI. Retrato
Ah! despreza o meu retrato
Que lhe eu queria aqui pôr!
Tem medo que lhe desfeie
O seu livro de primor?
Pois saiba que por despique
Eu sei também ser pintor:
Co’esta pena por pincel,
E a tinta do meu tinteiro,
Vou fazer o seu retrato
Aqui já de corpo inteiro.

Vamos a isto. — Sentada
Na cadeira moyen-âge,
O cabelo en châtelaines,
As mangas soltas. — É o traje.

Em longas pregas negras
Caia o veludo e arraste;
De si com desdém régio
Com o pezinho o afaste...

Nessa atitude! Está bem:
Agora mais um jeitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.

Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lhos tira melhor.
Este é o ar, esta a «pose», eu lho juro,
E o trajar que lhe fica melhor.

Vamos agora ao difícil:
Tirar feição por feição;
Entendê-las, que é o ponto,
E dar-lhe a justa expressão.

Os olhos são cor da noite,
Da noite em seu começar,
Quando inda é jovem, incerta,
E o dia vem de acabar;

Têm uma luz que vai longe,
Que faz gosto de queimar:
É uma espécie de lume
Que serve só de abrasar.

Na boca há um sorriso amável.
Amável é... mas queria
Saber se é todo bondade
Ou se meio é zombaria.

Ninguém mo diz? O retrato
Incompleto ficará,
Que nestas duas feições
Todo o ser, toda a alma está.

Pois fiel como um espelho
É tudo o que nele fiz,
E o que lhe falta — que é muito,
Também o espelho o não diz.
VII. Lucinda
Ergue a frente, lírio,
Ergue a branca frente!
O astro do delírio
Já surgiu no oriente.

Vês, o sol ardente
Lá caiu no mar;
A frente pendente
Ergue a respirar!

Alvo é o luar,
Teu alvor não cresta;
A hora de gozar,
De viver é esta.

Longa foi a sesta,
Longo o teu dormir;
Ergue a branca testa,
Tempo é de surgir!

Já se abre a sorrir
Tua boca linda...
Despertar, sentir
Ou sonhar é ainda?

Sonho que não finda
Será o teu sonhar,
Se a dormir, Lucinda,
Te sentes amar.
VIII. As Duas Rosas
Sobre se era mais formosa
A vermelha ou branca rosa,
Ardeu séculos a guerra
Em Inglaterra.

Paz entre as duas, jamais!
Reinar ambas as rivais,
Também não; e uma ceder
Como há-de ser?

Faltei eu lá na Inglaterra
Para acabar com a guerra.
Ei-las aqui bem iguais,
Mas não rivais.

Atei-as em laço estreito:
Que artista fui, com que jeito!
E oh! que lindas são, que amores
As minhas flores!

Dirão que é cópia; — bem sei:
Que todo inteiro o roubei
Meu pensamento brilhante
Do teu semblante...

Será. Mas se é tão belo
Que lhe dêem esse modelo,
Do meu quadro, na verdade,
Tenho vaidade.
IX. Voz e Aroma
A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.

A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma eu vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi secar...

E em torrentes de harmonia
Minha alma se exalará,
Esta alma que muda e fria
Nem sabe se existe já.
X. Seus Olhos
Seus olhos — se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou —
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.

Divino, eterno! — e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.
XI. A Délia
Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
— Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.

— Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã... o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.
XII. A Jovem Americana
Donde é que te eu vi, donzela,
E o que eras tu nesta vida
Quando não tinhas vestida
A forma de virgem bela
Que ora te vejo trajar?

Estrela foste no céu,
Serias no prado flor?
Ou, no diáfano splendor
De que Íris faz o seu véu,
Estavas, Silfa, a bordar?

Não houve poeta ainda
Que te não visse e cantasse,
Mulher que não te invejasse,
Nem pintor que a face linda
Te não fosse copiar.

Séculos tens. — E ah!... já sei
Quem és, quem foste e hás-de ser:
Bem te eu estava a conhecer
Quando primeiro te olhei
Sem te poder estranhar.

Com Deus e coa Liberdade
De nossas terras fugiste
Quando perdidos nos viste,
E te foste à soledade.
Do Novo Mundo acoitar.

Pois que ora piedosa vens
E nos sentes ressurgir,
Oh! não tornes a fugir,
Que melhor pátria não tens
Nem que mais te saiba amar.

Teu natal celebraremos
Hoje e sempre: teus amigos
Somos na lealdade antigos,
E no ardor novos seremos,
No desvelo em te adorar:

Porque tu és o Ideal
Da só beleza — do Bem;
Não és estranha a ninguém,
E de ti só foge o mal
Que te não pode encarar.
XIII. Adeus, Mãe!
— «Adeus, mãe! adeus, querida,
Que eu já não posso coa vida,
E os anjos chamam por mim.
Adeus, mãe, adeus!... Assim,
Junta os teus lábios aos meus,
E recebe o último adeus
Neste suspiro... Não chores,
Não chores: aquelas dores
Já sinto acalmar em mim.
Adeus, mãe, adeus!... Assim,
Junta os teus lábios aos meus...
Um beijo — um último... Adeus!»

E o corpo desanimado
No colo da mãe caía;
E ela o corpo... só pesado,
Só mais pesado o sentia!
Não se lamenta, não chora,
E quase a sorrir, dizia:
— «Que tem este filho agora,
Que tanto pesa? Não posso...»
E uma a uma, osso por osso,
Com a mão trémula tenta
As mãozinhas descarnadas,
As faces cavas, mirradas,
A testa inda morna e lenta.
— «Que febre, que febre!» diz;
E em tudo pensa a infeliz,
Tudo que há mau lhe ocorreu,
Tudo — menos que morreu.

Como nos gelos do norte
O sono traidor da morte
Engana o desfalecido
Que imagina adormecer,
Assim cansado, esvaído
De tão longo padecer,
Já não há no coração
Da mãe força de sentir;
Não tem já lume a razão
Senão só para a iludir.

Acorda, ó mãe desgraçada,
Que é tempo de despertar!
Anda ver a eça armada,
As luzes que ardem no altar.
Ouves? É a rouca toada
Dos padres a salmear?...
Vamos, que a hora é chegada,
É tempo de o amortalhar.

E os anjos cantavam:
«Aleluia!»
E os santos clamavam:
«Hosana!»

Ao triste cantar da terra
Responde o cantar do céu;
Todos lhe bradam: — «Morreu!»
E a todos o ouvido cerra.

E os sinos a tocar,
E os padres a rezar,
E ela ainda a acalentar
Nos braços o filho morto,
Que já não tem mais conforto,
Mais sossego neste mundo
Que o jazigo húmido e fundo
Onde há-de ir a sepultar.

Levai, ó anjos de Deus,
Levai essa dor aos céus.
Com a alma do inocente
Aos pés do Juiz Clemente
Aí fique a santa dor
Rogando à Eterna Bondade
Que estenda a imensa piedade
A quantos pecam d’amor.
XIV. Ave, Maria
Maria, doce mãe dos desvalidos,
A ti clamo, a ti brado!
A ti sobem, senhora, os meus gemidos,
A ti o hino sagrado
Do coração de um pai voa, ó Maria,
Pela filha inocente.
Com sua débil voz que balbucia,
Piedosa mãe clemente,
Ela já sabe, erguendo as mãos tenrinhas,
Pedir ao Pai dos céus
O pão de cada dia. As preces minhas
Como irão ao meu Deus,
Ao meu Deus que é teu filho e tens nos braços,
Se tu, mãe de piedade,
Me não tomas por teu? Oh! rompe os laços
Da velha humanidade;
Despe de mim todo outro pensamento
E vã tenção da terra;
Outra glória, outro amor, outro contento
De minha alma desterra.
Mãe, oh! mãe, salva o filho que te implora
Pela filha querida.
De mais tenho vivido, e só agora
Sei o preço da vida,
Desta vida, tão mal gasta e prezada
Porque minha só era...
Salva-a, que a um santo amor está votada,
Nele se regenera.
XV. Os Exilados
Eles tristes, das praias do desterro,
Os olhos longos e arrasados de água
Estendem para aqui... Cravado o ferro
Da saudade têm n’alma; e é negra mágoa
A que lhes rala os corações aflitos,
É a maior da vida — são proscritos.
Dor como outra não há, é a dor que os mata!
Dizer eu: «Essa terra é minha... minha,
Que nasci nela, que a servi, a ingrata!
Que lhe dei... dei por ela quanto tinha,
Sangue, vida, saúde, os bens da sorte...
E ela, por galardão, me entrega à morte!»

Morte lenta e cruel — a de Ugolino!
Bem lhes quiseram dar...
Mas não será assim: sopro divino
De bondade e nobreza
Não o pode apagar
Nos corações da gente portuguesa
Esse rancor de fera
Que em almas negras, negro e vil impera.

Tu, génio da Harmonia,
Tu solta a voz em que triunfa a glória,
Com que suspira amor!
Bela d’entusiasmo e de fervor,
Ergue-te, ó Rossi, tua voz nos guia:
A tua voz divina
Hoje um eco imortal deixa na história.

Inda no mar d’Egina
Soa o hino d’Alceu;
E atravessaram séculos
Os cantos de Tirteu.
Mais poderosa e válida
A tua voz será;
A tua voz etérea,
Tua voz não morrerá.

Nós no templo da pátria penduramos
Esta c’roa singela
Que de mirto e de rosas entrançamos
Para essa fronte bela:
Aqui, de voto, ficará pendente,
E um culto de saudade
Aqui, perenemente,
Lhe daremos no altar da Liberdade.
XVI. Preito
É lei do tempo, Senhora,
Que ninguém domine agora
E todos queiram reinar.
Quanto vale nesta hora
Um vassalo bem sujeito,
Leal de homenage e preito
E fácil de governar?

Pois o tal sou eu, Senhora:
E aqui juro e firmo agora
Que a um despótico reinar
Me rendo todo nesta hora,
Que a liberdade sujeito...
Não a reis! — outro é meu preito:
Anjos me hão-de governar.
XVII. No Lumiar

Era um dia de Abril; a primavera
Mostrava apenas seu virgíneo seio
Entre a folhagem tenra; não vencera,
De todo, o sol o misterioso enleio
Da névoa rara e fina que estendera
A manhã sobre as flores; o gorjeio
Das aves inda tímido e infantil...
Era um dia de Abril.
E nós íamos lentos passeando
De vergel em vergel, no descuidado
Sossego d’alma que se está lembrando
Das lutas do passado,
Das vagas incertezas do porvir.
E eu não cansava de admirar, de ouvir,
Porque era grande, um grande homem deveras
Aquele duque — ali maior ainda,
Ali no seu Lumiar, entre as sinceras
Belezas desse parque, entre essas flores,
A qual mais bela e de mais longe vinda
Esmaltar de mil cores
Bosque, jardim, e as relvas tão mimosas,
Tão suaves ao pé — muito há cansado
De pisar alcatifas ambiciosas,
De tropeçar no perigoso estrado
Das vaidades da terra.
E o velho duque, o velho homem d’Estado,
Ao falar dessa guerra
Distante — e das paixões da humanidade,
Sorria malicioso
Daquele sorrir fino sem maldade,
Que tão seu era, que, entre desdenhoso
E benévolo, a quanto lhe saía
Dos lábios dava um cunho de nobreza,
De razão superior.
E então como ele a amava e lhe queria
A esta pobre terra portuguesa!
Velha tinha a razão, velha a experiência,
Jovem só esse amor.

Tão jovem, que inda cria, inda esperava,
Inda tinha a fé viva da inocência!...
Eu, na força da vida,
Tristemente de mim me envergonhava.
— Passeávamos assim, e em reflectida
Meditação tranquila descuidados
Íamos sós, já sem falar, descendo
Por entre os velhos olmos tão copados,
Quando sentimos para nós crescendo
Rumor de vozes finas que zumbia
Como enxame de abelhas entre as flores,
E vimos, qual Diana entre os menores
Astros do céu, a forma que se erguia,
Sobre todas gentil, dessa estrangeira
Que se esperava ali. Perfeita, inteira
No velho amável renasceu a vida
E a graça fácil. Cuidei ver o antigo
O nobre Portugal que ressurgia
No venerado amigo;
E na formosa dama que sorria,
O génio da subida,
Rara e fina elegância que a nobreza,
O gosto, o amor do Belo, o instinto da Arte
Reúne e faz irmãos em toda a parte;
Que afere a grandeza
Pela medida só dos pensamentos,
Do stilo de viver, dos sentimentos,
Tudo o mais como fútil desprezando.

Pensei que a saudar o velho ilustre
Em seus últimos dias
E a despedir-se, até Deus sabe quando,
De nossas praias tristes e sombrias,
Vinha esse génio... Tristes e sombrias,
Que o sol lhe foge, lhe esmorece o lustre,
E onde tudo o que é alto vai baixando...

O triste, o que não tem já sol que o aqueça
Sou eu talvez — que, à míngua de fé, sinto
O cérebro gelar-me na cabeça
Porque no coração o fogo é extinto.
Ele não era assim,
Ou, sabia fingir melhor do que eu!

— Como o nobre corcel que envelheceu
Nas guerras, ao sentir o áureo telim
E as armas sobre o dorso descarnado,
Remoça o garbo, em juvenil meneio
Franja de espuma o freio,
E honra os brasões da casa em que foi nado.

Nunca me há-de esquecer aquele dia!
Nem os olhos, as falas, e a sincera
Admiração da bela dama inglesa
Por tudo quanto via;
O fruto, a flor, o aroma, o sol que os gera,
E esta vivaz, veemente natureza,
Toda de fogo e luz,
Que ama incessante, que de amar não cansa,
E contínua produz
Nos frutos o prazer, na flor a esp’rança.

Ali as nações todas se juntaram,
Ali as várias línguas se falaram;
A Europa convidada
Veio ao festim — não ao festim, ao preito.
Vassalagem rendida foi prestada
Ao talento, à beleza,
A quanto n’alma infunde amor, respeito,
Porque é deveras grande: — que a grandeza
Os homens não a dão;
Põe-na por sua mão
Naqueles que são seus,
Nos que escolheu — só Deus.

Oh! minha pobre terra, que saudades
Daquele dia! Como se me aperta
O coração no peito coas vaidades,
Coas misérias que aí vejo andar alerta,
À solta apregoando-se! Na intriga,
Na traição, na calúnia é forte a liga,
É fraca em tudo o mais...

Tu, sossegado
Descansa no sepulcro; e cerra, cerra
Bem os olhos, amigo venerado,
Não vejas o que vai por nossa terra.
Eu fecho os meus, para trazer mais viva
Na memória a tua imagem
E a dessa bela Inglesa que se esquiva
De nós entre a folhagem
Dos bosques de Parténope. Cansado,
Fito nesta miragem
Os olhos d’alma, enquanto que arrastado,
Vai o tardio pé
Por este que inda é,
Que cedo não será, bem cedo — em mal!
O velho Portugal.[7]


[7] Estes versos foram inspirados pela visita da celebrada Mrs. Northon à quinta do Lumiar, onde o falecido duque de
Palmela reuniu, para a festejar, alguns poucos amigos escolhidos. Foi nos últimos tempos de sua vida. Mrs. Northon reside
actualmente em Nápoles, a Parténope de que fala o texto.
XVIII. A um amigo
Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

Que sobre a flor de seus anos
Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.

Recebe este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.
XIX. Os Lusíadas
EPÍLOGO DE PAGGI.[8]

I.
Coa doce voz o cisne lusitano
Assim as próprias feras abrandava;
Mas nem o Tejo. de seu canto ufano,
Nem as ingratas Tágides tocava:
De seu ímpio destino desumano
Nunca as iras fatais, nunca domava;
Nem achou entre os seus humanidade
Quem moveria as pedras à piedade.

II.
Ingrata pátria, o engenho sublimado
Digno de um capitólio em Roma antiga,
Tu não o ergueste desse baixo estado
Em que só por tua glória se afadiga!
O engenho que te inveja malogrado
Toda a nação de méritos amiga,
Tu na vida em misérias o deixaste,
E em leito vil à fome o assassinaste!

III.
Vai! Sua glória é mais hoje a maravilha
Das gentes, porque mais o perseguiste;
Morre o teu nome quando o seu mais brilha,
Despojam dele a tua língua triste;
Ibéria o adoptou, França o perfilha,
Britânia o quer; e agora eterno existe,
Que num e noutro itálico idioma
Entre os seus vates o coloca Roma.

IV.
Tu fica-te cos ossos desonrados
Que te acusam de ingrata ao céu e à terra;
Seu spírito, esse vai onde prezados
São virtude e talento, e onde ímpia guerra
Stulto o poder não faz aos mais honrados:
Mais de outros já que teu, já não se encerra
Num canto do orbe sua altiva fama,
Que Augusto a ampara e um Alexandre a aclama.

V.
Lá onde surge de alto monte, e brilha
Sobre a escolhida grei de Deus a estrela,
E igual àquela antiga maravilha
Que os reis guiou a Deus, sobre os reis vela,
Lá onde ao mérito o poder se humilha,
Beija a paz da justiça a face bela,
E de ilustre carvalho à sombra amena
Descansa Roma no velar de Sena.[9]

VI.
Lá vai, minha obra, o desta luz roubada
Tu leva à pátria musa esses primores;
Em fala ignota estava sepultada,
Raios de estranho sol são seus fulgores.
Vai, viverás: também com luz furtada
Deu vida Prometeu. Se mais não fores,
Serás reflexo de beleza, lustre,
E de eterno splendor émula ilustre.[10]


[8] Paggi esteve muitos anos em Lisboa, e aqui publicou duas edições da sua tradução d’Os Lusíadas, que, se não tem o
valor poético da de Nervi, nem a fidelidade da de Briccolani, é todavia muito apreciável. Este epílogo foi tirado da segunda
edição de 1659 — que é a mais correcta, conservando-se-lhe a própria ortografia.
[9] Cidade do grão-ducado de Toscana, pátria do papa Alexandre VII, a quem a versão d’Os Lusíadas foi dedicada.
[10] Publicando-se a primeira vez esta tradução dos versos de Paggi no 2.º número do vol. II do jornal A Semana, apareceu
com uma introdução, da qual julgamos dever extractar alguns parágrafos:
«Um nome ilustre e português, germanado pela inspiração e pelas tradições pátrias com a glória de Camões, associa-se hoje
à nobre desafronta que um estrangeiro soube, há século e meio, escrever no fim d’Os Lusíadas em honra das esquecidas
cinzas de Camões. O estrangeiro foi Carlos António Paggi, que na sua tradução italiana d’Os Lusíadas acrescentou, como
epílogo, seis formosas estrofes em honra do poeta que a Pátria, ou antes a corte do seu tempo, votara à humiliação e à
indigência. O nome glorioso na história contemporânea das nossas letras é o de Almeida Garrett, que em belíssimos versos
portugueses trasladou a elegia melancólica com que o italiano Paggi apostrofou a indiferença, ou o desprezo que foram em vida
de Camões a tença mais avultada que os poderosos lhe destinaram no seu livro de mercês.
«Quem gravou mais estes versos na loisa de Camões, quem lhe refrescou as cinzas com mais esta saudade, foi o poeta, que
resume no seu nome, como num traço conciso, toda uma regeneração literária, o poeta que marca no estádio das letras um
repoiso ameno depois do servilismo ou da inanição da poesia nacional; o mesmo que celebrou Camões em versos ungidos de
sentimento e de saudade íntima; aquele que interrogou os Portugueses sobre o lugar onde jaziam os ossos do maior génio da
nossa terra; foi o próprio que em Portugal, onde só a opulência tem monumentos, e a nulidade estátuas, levantou o mais
clamoroso brado a favor daquela pobre ossada, perdida, profanada, pisada talvez sacrilegamente pelos filhos degenerados duma
pátria envilecida; foi aquele mesmo que rematou também um dos seus mais graciosos e sentidos poemas, com esta apóstrofe,
temerosa e solene, já tantas vezes citada por nacionais e estrangeiros:

Onde jaz, Portugueses, o moimento
Que do imortal cantor as cinzas guarda?
Homenagem tardia lhe pagastes
No sepulcro sequer? Raça d’ingratos!»
XIX. La Lusiada
EPILOGO DI PAGGI.

I.
Cotal cantava il lusitano cigno
Molcendo con sue voce anco le fere,
Non che l’amato patrio Tago e’l Migno,
E le del canto suo Tagide altere:
Che pur del suo destino empio e maligno
Non puote unqua addolcir l’ire severe;
Non trovando fra suoi humanitade
Quei ch’i scelsi avria mossi anco a pietade.

II.
Potesti, ingrata patria, un spirto degno
D’un campidoglio in una Roma antica,
Non sollevar da basso stato, indegno
Di cui fiè per te gloria ogni fatica?
Un spirto che t’invidia al maggior segno
Ogni altra nazion di mer’ ti amica,
Veder soffristi vivo egro e scontento
Ed in vil letto di disagio spento!

III.
Ma vanne pur che, quanto iniqua, austera
Fusti con lui, tanto fra l’altre genti
Sorgerá la sua gloria ove tua pera,
Fino a caciarne i tuoi nativi accenti.
Adotteranlo la nazione ibera,
La franca, use adottar spirti eminenti,
L’angla: ed ambe le italiche favelle
Vorran che viva fra suoi poeti anch’elle.

IV.
Tienti pur l’ossa inonorate ancora
Che t’accusan d’ingrata anco sepulte;
Che lo spirto di lui, gia di te fuora
Non errará, ne fien sue pene inulte;
Vedrailo accolto ove virtu s’onora:
Gia piu d’altri che tuo, fra le piu culte
Genti del orbe, e maturar sua speme
Sotto un Augusto e un Alessandro insieme.

V.
La ve ad illuminar da eccelso monte
Astro di Dio, l’eletta gregia, sorge,
Che al par di quel che ad inchinar la fronte
Condussi i regi a Dio, i regi scorge,
La dove il merto abbatte sforzi ed onte,
La giustizia à la pace il labro porge,
E di quercia Feretria à l’ombre amena
Riposa Roma al vigilar di Siena,

VI.
Or la vanne, opra, ed à le patrie muse,
Quasi terzo cristal le luci rendi
Che sotto ignoto dir sepolte e chiuse
Da sol che altrove splende or furi e prendi.
Vanne, e qual gia Prometteo anima infuse
Con le luci non sue, tu vita attendi:
Spechio del altrui bello, emulo industre
E d’eterno splendor riflesso illustre.
XX. O Tejo
AO SENHOR VISCONDE DE ALMEIDA GARRETT

PELO CONDE DE CAMBURZANO

Nessas margens risonhas do Tejo
Não há som que não cante de amor;
Em suas ondas azuis o lampejo
Das estrelas, no albor, se espelhou.

Essa terra produz a violeta
Ao primeiro sorrir da manhã,
Vago Zéfiro a flor indiscreta,
Sussurrando, lascivo beijou.

É loquaz este bosque sombrio,
Cheio ainda do canto dos bardos;
Aqui é Tempe, aqui o Ménalo frio,
E o Meandro que os cisnes produz.

Oiço uns ecos de mágica lira
Pela noite ir ao longo da praia...
Quem é esse tão fero que aí gira
E do dia desdenha da luz?

É Catão [11] — só a este não doma
Quem a terra fez muda a seu mando;
É Catão — a infâmia de Roma
Na sua frente jamais não pesou.

Como geme alva pomba ferida,
Assim Mérope [12] geme e lamenta;
Soam trompas guerreira alarida,
E a alegria ao seu peito voltou.

Nas cumeadas de Hermínio [13] nevosas,
Que dos hórridos gelos se c’roam,
Vê a aurora coberta de rosas
De beleza em que pompa surgiu!

Na hástea débil as tenras florinhas
Vão o puro rocio bebendo,
Cada gota do céu, nas ervinhas,
Rica pérola ardente luziu.

Mas o Génio do monte, que horrendo
Entre as sombras impera da noite,
Bate as asas, já foge e fremendo
No profundo do mar mergulhou

Repentino lá surge um guerreiro,
Torvo o cenho, a armadura de ferro...
É Viriato... a seus pés — o primeiro! —
Calca as Águias que o mundo adorou.

Da caverna que os ossos lhe encerra
Surde a voz... Inclinai as cabeças
Ante o livre que impávido à terra
— Ou morrer — ou salvá-la jurou...

Emudece a harpa. — O nome adorado
Da sua Júlia [14] as Dríades cantem!
Sobre a fronte ao poeta sagrado
Febo próprio os seus loiros poisou.


[11] Alude à tragédia Catão do Sr. Garrett.
[12] Alude à tragédia Mérope do Sr. Garrett.
[13] Do mesmo modo alude à Caverna de Viriato, publicada ultimamente nas Flores sem Fruto, com a tradução francesa
por Mademoiselle de Flaugergues.
[14] Alude igualmente à ode ou canção II do livro primeiro — Flores sem Fruto
XX. IL TAGO
AL SIGNOR VISCONTE DE ALMEIDA GARRETT

DAL CONTE DI CAMBURZANO

Sule sponde ridenti del Tago
Dice ogni eco canzone d’amore;
In que’ flutti d’azzuro sì vago
Ogni stella al mattin sì spechiò.

Quella terra produce la viola
Al primiezo dell’ alba sorriso,
Zefiretto che lene trasvola
Susurrando quel fiore baciò.

Son loquaci le brune foreste,
Piene ancora del canto de’ bardi;
Quivi è Tempe, quí Menalo agreste,
E’l Meandro che i cigni nutrì.

Odo un suono di magica lira
Lungo il lido siull’ umida sera...
Chi è colui che sì fiero a s’aggira
E disdegna la luce del di?

Egli é Cato, lui solo non doma
Chi la terra fè muta á suoi cenni;
Egli è Cato, l’infamia di Roma
Sul suo capo giammai non pesò.

Come gemon le bianche colombe,
Cosi Merope piange e lamenta;
Ma improviso squillare di trombe
Alta gioja in suo cuore versò.

Su le cime d’Erminio nevose,
Cui fan gl’orridi ghiacci corona,
Ve’ l’aurora cosparsa di rose
Qual fa pompa di rara beltà!

I fioretti sul gracile stelo
Van bevendo la pura rugiada,
Ogni stilla caduta dal cielo
Fra l’erbette una perla si fa.

Ma lo Spirto del monte, che orrendo
Tiene impero fra l’ombre di notte,
Bate l’ali, gia fugge e fremendo
Nel profondo dei mari piombò.

Un guerriero repente si desta,
Torvo il ciglio, rachiuso nell’arme,
È Viriato... un vessillo calpesta
Che tremante la terra mirò.

Dallo speco che l’ossa ne serra
Una voce si parte — t’inchina
— A colui che la libera terra
O far salva o perire giurò...

Tace l’arpa... Di Giulia ripeta
Ogni Driade il nome soave!...
Su la fronte del sacro poeta
Febo istesso l’alloro posò.
XXI. Canção da Donzela Finlandesa
Oh! se o meu Bem me volver,
Se quem dantes via, eu vejo
Traga ele a boca a escorrer
De lobo em sangue, lha beijo;
E a mão vou-lha apertar,
Cobras lha andem a enroscar.
Ah! se o vento alma tivera,
Língua o ar da primavera,
Fora a sua voz bastante:
Novas levara e trouxera
Entre um e outro amante.
Desprezo finos guisados,
Deixo ao cura os assados;
Só quero amar, ser constante
A quem o verão me deu
E o inverno afez a ser meu.[15]

[15] O original é fenício ou finlandês.
Esta pequena Runa, canção em metro rúnico, é considerada no Norte como um desses raros exemplares da literatura primitiva dos povos, que a caracterizam.
Como tal tem sido traduzida em muitas línguas com o auxílio das versões literais, que para isso se publicaram em Estocolmo.
Por este modo se fez a portuguesa: e creio ser a primeira que aparece nas línguas do Sul. Dou com ela as versões todas, poéticas e literais, que me chegaram à mão. Muito aproveitaria ao estudo das línguas e literaturas da Europa se os nossos literatos se dessem com o mesmo empenho ao estudo das runas e sagas do Norte com que ali se dão ao das nossas xácaras e solaus.
XXI. Carmen Fenicae Puellae
Ille si meus veniret,
Visus ante si veniret;
Illitum lupi cruore
Os libenter oscularer;
Si ter implicaret anguis,
At manum manu tenerem.
Si qua mens adesset austro,
Si qua lingua veris aurae;
Ferret aura, ferret auster,
Et referret usque verba,
Nuntians, amanti amantis.
Nil moror dapes opimas,
Presbiter nihil quod assat,
Dum mihi meum reservem,
Quem mihi subegit aestas,
Bruma quem dedit domandum.

A. Hedner
Praepositus Ydriensis
XXI. Eyton Runo Suomalaisen
Jos mun tuttuii tulisi,
Ennen nähtyni näkyisi,
Sillen suuta suikkajaisin;
Jos olis suu suden weressä;
Sillen kättä käppäjäisin,
Jospa käärme kämmen-päässä.
Olisko tuuli mielellisnä,
Ahawainen kielellisnä:
Sanan toisi, sanan weisi,
Sanan liian liikuttaisi,
Kahden kaunihin wälillä.
Ennen heitän herkku-ruuat,
Paistit pappilan unohdan,
Ennenkun heitän herttaseni.
Kesän kestyteltyäni,
Talwen taiwuteltuani.