José Matias

Linda tarde, meu amigo!... Estou esperando o enterro do José Matias — do
José Matias de Albuquerque, sobrinho do visconde de Garmilde... O meu
amigo certamente o conheceu — um rapaz airoso, louro como uma espiga,
com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de
contemplativo, destro cavaleiro, de uma elegância sóbria e fina. E espírito
curioso, muito afeiçoado às ideias gerais, tão penetrante que compreendeu a
minha «Defesa da Filosofia Hegeliana»! Esta imagem do José Matias data de
1865: porque a derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de janeiro,
metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava dentro de uma quinzena cor de
mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a aguardente.
Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coimbra,
recolhendo do Porto, ceou com ele, no Paço do Conde! Até o Craveiro, que
preparava as «Ironias e Dores de Satã», para acirrar mais a briga entre a Escola
Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tão fúnebre
idealismo: «Na jaula do meu peito, o coração...». E ainda lembro o José
Matias, com uma grande gravata de cetim preto, tufada entre o colete de linho
branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas, sorrindo palidamente
àquele coração que rugia na sua jaula... Era uma noite de Abril, de Lua cheia.
Passeámos depois em bando, com guitarras, pela ponte e pelo Choupal. O
Januário cantou ardentemente as endechas românticas do nosso tempo:
Ontem de tarde, ao sol-posto, Contemplavas, silenciosa, A torrente caudalosa
Que refervia aos teus pés...
E o José Matias, encostado ao parapeito da ponte, com a alma e os olhos
perdidos na Lua! — Porque não acompanha o meu amigo este moço
interessante ao Cemitério dos Prazeres? Eu tenho uma tipoia, de praça e com
número, como convém a um professor de Filosofia... O quê! Por causa das
calças claras! Oh meu caro amigo! De todas as materializações da simpatia,
nenhuma mais grosseiramente material do que a casimira preta. E o homem
que nós vamos enterrar era um grande espiritualista!
Vem o caixão saindo da igreja... Apenas três carruagens para o acompanhar.
Mas realmente, meu caro amigo, o José Matias morreu há seis anos, no seu
puro brilho. Esse, que aí levamos, meio decomposto, dentro de tábuas
agaloadas de amarelo, é um resto de bêbedo, sem história e sem nome, que o
frio de Fevereiro matou no vão de um portal.
O sujeito de óculos de ouro, dentro do coupé?... Não conheço, meu amigo.
Talvez um parente rico, desses que aparecem nos enterros, com o parentesco
corretamente coberto de fumo, quando o defunto já não importuna, nem
compromete. O homem obeso de carão amarelo, dentro da vitória, é o Alves
«Capão», que tem um jornal onde desgraçadamente a filosofia não abunda, e
que se chama a «Piada». Que relação o prendia ao Matias?... Não sei. Talvez se
embebedassem nas mesmas tascas: talvez o José Matias ultimamente
colaborasse na «Piada»; talvez debaixo daquela gordura e daquela literatura,
ambas tão sórdidas, se abrigue uma alma compassiva. Agora é a nossa tipoia...
Quer que desça a vidraça? Um cigarro?... Eu trago fósforos. Pois este José
Matias foi um homem desconsolador para quem, como eu, na vida ama a
evolução lógica e pretende que a espiga nasça coerentemente do grão. Em
Coimbra sempre o considerámos como uma alma escandalosamente banal.
Para este juízo concorria talvez a sua horrenda correção. Nunca um rasgão
brilhante na batina! Nunca uma poeira estouvada nos sapatos! Nunca um pêlo
rebelde do cabelo ou do bigode fugido daquele rígido alinho que nos desolava!
Além disso, na nossa ardente geração, ele foi o único intelectual que não rugiu
com as misérias da Polónia; que leu sem palidez ou choro as
«Contemplações»; que permaneceu insensível perante a ferida de Garibaldi! E
todavia, nesse José Matias, nenhuma secura ou dureza ou egoísmo ou
desafabilidade! Pelo contrário! Um suave camarada, sempre cordial, e
mansamente risonho. Toda a sua inabalável quietação parecia provir de uma
imensa superficialidade sentimental. E, nesse tempo, não foi sem razão e
propriedade que nós alcunhámos aquele moço tão macio, tão louro e tão
ligeiro, de «Matias Coração de Esquilo». Quando se formou, como lhe
morrera o pai, depois a mãe, delicada e linda senhora de quem herdara
cinquenta contos, partiu para Lisboa, alegrar a solidão de um tio que o
adorava, o general visconde de Carmilde. O meu amigo sem dúvida se lembra
dessa perfeita estampa de general clássico, sempre de bigodes terrificamente
encerados, as calças cor de flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas
presilhas sobre as botas coruscantes, e o chicote debaixo do braço com a
ponta a tremer, ávida de vergastar o mundo! Guerreiro grotesco e
deliciosamente bom... O Garmilde morava então em Arroios, numa casa
antiga de azulejos, com um jardim, onde ele cultivava apaixonadamente
canteiros soberbos de dálias. Esse jardim subia muito suavemente até ao muro
coberto de hera que o separava de outro jardim, o largo e belo jardim de rosas
do conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois
torreõezinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a Casa da
Parreira. O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece
Helena de Troia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da
Parreira... Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração.
Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da sua grande caleche, ou
nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou
nos dois bailes da Assembleia do Carmo, de que o Matos Miranda era um
diretor venerado. Por gosto borralheiro de provinciana, ou por pertencer
àquela burguesia séria que nesses tempos, em Lisboa, ainda conservava os
antigos hábitos severamente encerrados; ou por imposição paternal do
marido, já diabético e com sessenta anos — a deusa raramente emergia de
Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade
constante, quase irremediavelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José
Matias — porque, jazendo o palacete do general na falda da colina, aos pés do
jardim e da Casa da Parreira, não podia a divina Elisa assomar a uma janela,
atravessar o terraço, colher uma rosa entre as ruas de buxo, sem ser
deliciosamente visível, tanto mais que nos dois jardins assoalhados nenhuma
árvore espalhava a cortina da sua rama densa. O meu amigo decerto trauteou,
como todos trauteámos, aqueles versos gastos, mas imortais:
Era no Outono, quando a imagem tua À luz da lua...
Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da
Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no
terraço, à luz da lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de
encanto lamartiniano. Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da
palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados.
Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados,
tristes, de longas pestanas... Ah! meu amigo, até eu, que já então
laboriosamente anotava Hegel, depois de a encontrar numa tarde de chuva
esperando a carruagem à porta do Seixas, a adorei durante três exaltados dias e
lhe rimei um soneto! Não sei se o José Matias lhe dedicou sonetos. Mas todos
nós, seus amigos, percebemos logo o forte, profundo, absoluto amor que
concebera, desde a noite de Outono, à luz da lua, aquele coração, que em
Coimbra considerávamos de «esquilo»!
Bem compreende que homem tão comedido e quieto não se exalou em
suspiros públicos. já no tempo, porém, de Aristóteles, se afirmava que amor e
fumo não se escondem; e do nosso cerrado José Matias o amor começou logo
a escapar, como o fumo leve através das fendas invisíveis de uma casa fechada
que arde terrivelmente. Bem me recordo de uma tarde que o visitei em
Arroios, depois de voltar do Alentejo. Era um domingo de julho. Ele ia jantar
com uma tia-avó, uma D. Mafalda Noronha, que vivia em Benfica, na Quinta
dos Cedros, onde habitualmente jantavam também aos domingos o Matos
Miranda e a divina Elisa. Creio mesmo que só nessa casa ela e o José Matias se
encontravam, sobretudo com as facilidades que oferecem pensativas alamedas
e retiros de sombra. As janelas do quarto do José Matias abriam sobre o seu
jardim e sobre o jardim dos Mirandas: e, quando entrei, ele ainda se vestia,
lentamente. Nunca admirei, meu amigo, face humana aureolada por felicidade
mais segura e serena! Sorria iluminadamente quando me abraçou, com um
sorriso que vinha das profundidades da alma iluminada; sorria ainda
deliciadamente enquanto eu lhe contei todos os meus desgostos no Alentejo;
sorriu depois extaticamente, aludindo ao calor e enrolando um cigarro
distraído, e sorriu sempre, enlevado, a escolher na gaveta da cómoda, com
escrúpulo religioso, uma gravata de seda branca. E a cada momento,
irresistivelmente, por um hábito já tão inconsciente como o pestanejar, os seus
olhos risonhos, calmamente enternecidos, se voltavam para as vidraças
fechadas... De sorte que, acompanhando aquele raio ditoso, logo descobri, no
terraço da Casa da Parreira, a divina Elisa, vestida de claro, com um chapéu
branco, passeando preguiçosamente, calçando pensativamente as luvas, e
espreitando também as janelas do meu amigo, que um lampejo oblíquo de sol
ofuscava de manchas de ouro. O José Matias no entanto conversava, antes
murmurava, através do sorriso perene, coisas afáveis e dispersas. Toda a sua
atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para
prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção
com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da
estola e do amito, para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem deitar,
com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço! E depois de enfiar a
sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem
reter um delicioso suspiro, que abriu largamente, solenemente, as vidraças!
Introito ad altarem Deam! Eu permaneci discretamente enterrado no sofá. E,
meu caro amigo, acredite!, invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua
adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na
branca mulher calçando as luvas claras, e tão indiferente ao mundo como se o
mundo fosse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés!
E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e
imaterial! Não ria... Decerto se encontravam na quinta de D. Mafalda: decerto
se escreviam, e transbordantemente, atirando as cartas por cima do muro que
separava os dois quintais: mas nunca, por cima das heras desse muro,
procuraram a rara delícia de uma conversa roubada ou a delícia ainda mais
perfeita de um silêncio escondido na sombra. E nunca trocaram um beijo...
Não duvide! Algum aperto de mão fugidio e sôfrego, sob os arvoredos de D.
Mafalda, foi o limite exaltadamente extremo que a vontade lhes marcou ao
desejo. O meu amigo não compreende como se mantiveram assim dois frágeis
corpos, durante dez anos, em tão terrível e mórbido renunciamento... Sim,
decerto lhes faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha
no muro. Depois a divina Elisa vivia realmente num mosteiro, em que
ferrolhos e grades eram formados pelos hábitos rigidamente reclusos do
Matos Miranda, diabético e tristonho. Mas, na castidade deste amor, entrou
muita nobreza moral e finura superior de sentimento. O amor espiritualiza o
homem — e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil ao José
Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista;
mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal
adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trémulos e
embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele, sim, ele gozou
nesse amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobre-humano.
E durante dez anos, como o Rui Blas do velho Hugo, caminhou, vivo e
deslumbrado, dentro do seu sonho radiante, sonho em que Elisa habitou
realmente dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou
consubstancial com o seu ser! Acreditará o meu amigo que ele abandonou o
charuto, mesmo passeando solitariamente a cavalo pelos arredores de Lisboa,
logo que descobrira na quinta de D. Mafalda, uma tarde, que o fumo
perturbava Elisa?
E esta presença real da divina criatura no seu ser criou modos novos, no José
Matias estranhos, derivando da alucinação. Como o visconde de Garmilde
jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Matias ceava, depois
da ópera, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia
frito no Céu, e o Colares no Céu engarrafado. Pois nunca ceava sem
serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores. Porquê? Porque
Elisa também ali ceava, invisível. Daí esses silêncios banhados num sorriso
religiosamente atento... Porquê? Porque a estava sempre escutando! Ainda me
lembro de ele arrancar do quarto três gravuras clássicas de faunos ousados e
ninfas rendidas... Elisa pairava idealmente naquele ambiente; e ele purificava
as paredes, que mandou forrar de sedas claras. O amor arrasta ao luxo,
sobretudo amor de tão elegante idealismo: e o José Matias prodigalizou com
esplendor o luxo que ela partilhava. Decentemente não podia andar com a
imagem de Elisa numa tipoia de praça, nem consentir que a augusta imagem
roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto,
carruagens de um gosto sóbrio e puro, e assinou um camarote na ópera, onde
instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco, bordado a estrelas
de ouro.
Além disso, como descobrira a generosidade de Elisa, logo se tornou
congénere e sumptuosamente generoso: e ninguém existiu então em Lisboa
que espalhasse, com facilidade mais risonha, notas de cem mil réis. Assim
desbaratou, rapidamente, sessenta contos com o amor daquela mulher a quem
nunca dera uma flor!
E, durante esse tempo, o Matos Miranda? Meu amigo, o bom Matos Miranda
não desmanchava nem a perfeição, nem a quietação desta felicidade! Tão
absoluto seria o espiritualismo do José Matias, que apenas se interessasse pela
alma de Elisa, indiferente às submissões do seu corpo, invólucro inferior e
mortal?... Não sei. Verdade seja, aquele digno diabético, tão grave, sempre de
cache-nez de lã escura, com as suas suíças grisalhas, os seus ponderosos
óculos de ouro, não sugeria ideias inquietadoras de marido ardente, cujo
ardor, fatalmente e involuntariamente, se partilha e abrasa. Todavia nunca
compreendi, eu, filósofo, aquela consideração, quase carinhosa, do José Matias
pelo homem que, mesmo desinteressadamente, podia por direito, por
costume, contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca!... Haveria ali
reconhecimento por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal
(onde José Matias nunca a descortinaria) aquela divina mulher, e por a manter
em conforto, solidamente nutrida, finamente vestida, transportada em
caleches de macias molas? Ou recebera o José Matias aquela costumada
confidência — «não sou tua, nem dele»-que tanto consola do sacrifício porque
tanto lisonjeia o egoísmo?... Não sei. Mas com certeza este seu magnânimo
desdém pela presença corporal do Miranda no templo onde habitava a sua
deusa dava à felicidade de José Matias uma unidade perfeita, a unidade de um
cristal que por todos os lados rebrilha, igualmente puro, sem arranhadura ou
mancha. E esta felicidade, meu amigo, durou dez anos... Que escandaloso
luxo para um mortal!
Mas um dia, a terra, para o José Matias, tremeu toda, num terramoto de
incomparável espanto. Em janeiro ou Fevereiro de 1871, o Miranda, já
debilitado pela diabetes, morreu com uma pneumonia. Por estas mesmas ruas,
numa pachorrenta tipoia de praça, acompanhei o seu enterro numeroso, rico,
com ministros, porque o Miranda pertencia às Instituições. E depois,
aproveitando a tipoia, visitei o José Matias em Arroios, não por curiosidade
perversa, nem para lhe levar felicitações indecentes, mas para que, naquele
lance deslumbrador, ele sentisse ao lado a força moderadora da filosofia...
Encontrei porém com ele um amigo mais antigo e confidencial, aquele
brilhante Nicolau da Barca, que já conduzi também a este cemitério, onde
agora jazem, debaixo de lápides, todos aqueles camaradas com quem levantei
castelos nas nuvens... O Nicolau chegara da Velosa, da sua quinta de
Santarém, de madrugada, reclamado por um telegrama do Matias. Quando
entrei, um criado atarefado arranjava duas malas enormes. O José Matias
abalava nessa noite para o Porto. já envergara mesmo um fato de viagem,
todo negro, com sapatos de couro amarelo: e depois de me sacudir a mão,
enquanto o Nicolau remexia um grogue, continuou vagando pelo quarto,
calado, como embaçado, com um modo que não era emoção, nem alegria
pudicamente disfarçada, nem surpresa do seu destino bruscamente sublimado.
Não! Se o bom Darwin não nos ilude no seu livro da «Expressão das
Emoções», o José Matias, nessa tarde, só sentia e só exprimia embaraço! Em
frente, na Casa da Parreira, todas as janelas permaneciam fechadas sob a
tristeza da tarde cinzenta. E, todavia, surpreendi o José Matias atirando para o
terraço, rapidamente, um olhar em que transparecia inquietação, ansiedade,
quase terror! Como direi? Aquele é o olhar que se resvala para a jaula mal
segura onde se agita uma leoa! Num momento em que ele entrara na alcova,
murmurei ao Nicolau, por cima do grogue: — O Matias faz perfeitamente, em
ir para o Porto... — Nicolau encolheu os ombros: — Sim, pensou que era
mais delicado... Eu aprovei. Mas só durante os meses de luto pesado... — Às
sete horas acompanhámos o nosso amigo à estação de Santa Apolónia. Na
volta, dentro do coupé que uma grande chuva batia, filosofámos. Eu sorria
contente: — Um ano de luto, e depois muita felicidade e muitos filhos... É um
poema acabado! — O Nicolau acudiu, sério: — E acabado numa deliciosa e
suculenta prosa. A divina Elisa fica com toda a sua divindade e a fortuna do
Miranda, uns dez ou doze contos de renda... Pela primeira vez na nossa vida
contemplámos, tu e eu, a virtude recompensada!
Meu caro amigo! Os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e
José Matias não se arredou do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu instalado
fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a melancolia dos dias
abrasados fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Júlio
Verne, e bebendo cerveja gelada até que a tarde refrescava e ele se vestia, se
perfumava, se floria para jantar na Foz.
E apesar de se acercar o bendito remate do luto e da desesperada espera, não
notei no José Matias nem alvoroço elegantemente reprimido, nem revolta
contra a lentidão do tempo, velho por vezes tão moroso e trôpego... Pelo
contrário! Ao sorriso de radiosa certeza, que nesses anos o iluminara com um
nimbo de beatitude, sucedera a seriedade carregada, toda em sombra e rugas,
de quem se debate numa dúvida irresolúvel, sempre presente, roedora e
dolorosa. Quer que lhe diga? Nesse Verão, no Hotel Francfort, sempre me
pareceu que o José Matias, a cada instante da sua vida acordada, mesmo
emborcando a fresca cerveja, mesmo calçando as luvas ao entrar para a
caleche que o levava à Foz, angustiadamente perguntava à sua consciência: —
Que hei-de fazer? Que hei-de fazer? E depois, uma manhã, ao almoço,
realmente me assombrou, exclamando ao abrir o jornal, com um assomo de
sangue na face: — O quê! já são 29 de Agosto? Santo Deus... já o fim de Agosto!...
Voltei a Lisboa, meu amigo. O Inverno passou, muito seco e muito azul. Eu
trabalhei nas minhas «Origens do Utilitarismo». Um domingo, no Rossio,
quando já se vendiam cravos nas tabacarias, avistei dentro de um coupé a
divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. E nessa semana encontrei no meu
«Diário Ilustrado» a notícia curta, quase tímida, do casamento da Sra. D. Elisa
Miranda... Com quem, meu amigo? — Com o conhecido proprietário, o Sr.
Francisco Torres Nogueira!...
O meu amigo cerrou ai o punho, e bateu na coxa, espantado. Eu também
cerrei os punhos ambos, mas para os levantar ao Céu, onde se julgam os feitos
da Terra, e clamar furiosamente, aos urros, contra a falsidade, a inconstância
ondeante e pérfida, toda a enganadora torpeza das mulheres, e daquela
especial Elisa cheia de infâmia entre as mulheres! Atraiçoar à pressa,
atabalhoadamente, apenas findara o luto negro, aquele nobre, puro, intelectual
Matias! — e o seu amor de dez anos, submisso e sublime!...
E depois de apontar os punhos para o Céu ainda os apertava na cabeça,
gritando: — Mas porquê? Porquê? — Por amor? Durante anos ela amara
elevadamente este moço, e de um amor que se não desiludira nem se fartara,
porque permanecia suspenso, imaterial, insatisfeito. Por ambição? Torres
Nogueira era um ocioso amável como José Matias, e possuía em vinhas
hipotecadas os mesmos cinquenta ou sessenta contos que o José Matias
herdara agora do tio Garmilde em terras excelentes e livres. Então porquê?
Certamente porque os grossos bigodes negros do Torres Nogueira apeteciam
mais à sua carne, do que o buço louro e pensativo do José Matias! Ali! bem
ensinara S. João Crisóstomo que a mulher é um monturo de impureza,
erguido à porta do Inferno!
Pois, meu amigo, quando eu assim rugia, encontro uma tarde na Rua do
Alecrim o nosso Nicolau da Barca, que salta da tipoia, me empurra para um
portal, agarra excitadamente no meu pobre braço, e exclama engasgado: — já
sabes? Foi o José Matias que recusou! Ela escreveu, esteve no Porto, chorou...
Ele nem consentiu na ver! Não quis casar, não quer casar! — Fiquei
trespassado. — E então ela... — Despeitada, fortemente cercada pelo Torres,
cansada da viuvice, com aqueles belos trinta anos em botão, que diabo!,
coitada, casou! Eu ergui os braços até à abóbada do pátio: — Mas então esse
sublime amor do José Matias? — O Nicolau, seu íntimo e confidente, jurou
com irrecusável segurança: — É o mesmo sempre! Infinito, absoluto... Mas
não quer casar! — Ambos nos olhámos, e depois ambos nos separámos,
encolhendo os ombros, com aquele assombro resignado que convém a
espíritos prudentes perante o Incognoscível. Mas eu, filósofo, e portanto
espírito imprudente, toda essa noite esfuraquei o acto do José Matias com a
ponta de uma psicologia que expressamente aguçara — e já de madrugada,
estafado, conclui, como se conclui sempre em filosofia, que me encontrava
diante de uma causa primária, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem
vantagem para ele, para mim, ou para o mundo, a ponta do meu instrumento!
Depois a divina Elisa casou e continuou habitando a Parreira com o seu
Torres Nogueira, no conforto e sossego que já gozara com o seu Matos
Miranda. No meado do Verão, José Matias recolheu do Porto a Arroios, ao
casarão do tio Garmilde, onde reocupou os seus antigos quartos, com as
varandas para o jardim, já florido de dálias que ninguém tratava. Veio Agosto,
como sempre em Lisboa silencioso e quente. Aos domingos, José Matias
jantava com D. Mafalda de Noronha, em Benfica, solitariamente — porque o
Torres Nogueira não conhecia aquela venerada senhora da Quinta dos
Cedros. A divina Elisa, com vestidos claros, passeava à tarde no jardim entre
as roseiras. De sorte que a única mudança, naquele doce canto de Arroios,
parecia ser o Matos Miranda no seu belo jazigo dos Prazeres, todo de
mármore — e o Torres Nogueira no leito excelente de Elisa.
Havia, porém, uma tremenda e dolorosa mudança — a do José. Matias!
Adivinha o meu amigo como esse desgraçado consumia os seus estéreis dias?
Com os olhos, e a memória, é a alma, e todo o ser cravados no terraço, nas
janelas, nos jardins da Parreira! Mas agora não era de vidraças largamente
abertas, em aberto êxtase, com o sorriso de segura beatitude: era por trás das
cortinas fechadas, através de uma escassa fenda, escondido, surripiando
furtivamente os brancos sulcos do vestido branco, com a face toda devastada
pela angústia e pela derrota. E compreende porque sofria assim, este pobre
coração? Certamente porque Elisa, desdenhada pelos seus braços fechados,
correra logo, sem luta, sem escrúpulos, para outros braços, mais acessíveis e
prontos... Não, meu amigo! E note agora a complicada subtileza desta paixão.
O José Matias permanecia devotadamente crente de que Elisa, na
profundidade da sua alma, nesse sagrado fundo espiritual onde não entram as
imposições das conveniências, nem as decisões da razão pura, nem os ímpetos
dó orgulho, nem as emoções da carne — o amava, a ele, unicamente a ele, e
com um amor que não deperecera, não se alterara, floria em todo o seu viço,
mesmo sem ser regado ou tratado, como a antiga Rosa Mística! O que o
torturava, meu amigo, o que lhe cavara longas rugas em curtos meses, era que
um homem, um macho, um bruto, se tivesse apoderado daquela mulher que
era sua, e que do modo mais santo e mais socialmente puro, sob o patrocínio
enternecido da Igreja e do Estado, lambuzasse com os rijos bigodes negros, à
farta, os divinos lábios que ele nunca ousara roçar, na supersticiosa reverência
e quase no terror da sua divindade! Como lhe direi?... O sentimento deste
extraordinário Matias era o de um monge, prostrado perante uma imagem da
Virgem, em transcendente enlevo — quando de repente um bestial sacrílego
trepa ao altar e ergue obscenamente a túnica da imagem! O meu amigo sorri...
E então o Matos Miranda? Ali, meu amigo! Esse era diabético, e grave, e
obeso, e já existia instalado na Parreira, com a sua obesidade e a sua diabetes,
quando ele conhecera Elisa e lhe dera para sempre vida e coração. E o Torres
Nogueira, esse, rompera brutalmente através do seu puríssimo, amor, com os
negros bigodes, e os carnudos braços, e o rijo arranque de um antigo pegador
de touros, e empolgara aquela mulher — a quem revelara talvez o que é um homem!
Mas, cos demónios! Essa mulher ele a recusara, quando ela se lhe oferecia, na
frescura e na grandeza de um sentimento que nenhum desdém ainda
ressequira ou abatera. Que quer?... É a espantosa tortuosidade espiritual deste
Matias! Ao cabo de uns meses ele esquecera, positivamente esquecera essa
recusa afrontosa, como se fora um leve desencontro de interesses materiais ou
sociais, passado há meses, no Norte, e a que a distância e o tempo dissipavam
a realidade e a amargura leve! E agora, aqui em Lisboa, com as janelas de Elisa
diante das suas janelas e as rosas dos dois jardins unidos rescendendo na
sombra, a dor presente, a dor real, era que ele amara sublimemente uma
mulher, e que a colocara entre as estrelas para mais pura adoração, e que um
bruto moreno, de bigodes negros, arrancara essa mulher de entre as estrelas e
a arremessara para a cama!
Enredado caso, hem, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de
filósofo! E conclui que o Matias era um doente, atacado de
hiperespiritualismo, de uma inflamação violenta e pútrida do espiritualismo,
que receara apavoradamente as materialidades do casamento, as chinelas, a
pele pouco fresca ao acordar, um ventre enorme durante seis meses, os
meninos berrando no berço molhado... E agora rugia de furor e tormento,
porque certo materialão, ao lado, se prontificara a aceitar Elisa em camisola de
lã. Um imbecil?... Não, meu amigo! Um ultra-romântico, loucamente alheio às
realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de
meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.
E sabe o meu amigo o que exacerbou, mais furiosamente, este tormento? É
que a pobre Elisa mostrava por ele o antigo amor! Que lhe parece? Infernal,
hem?... Pelo menos, se não sentia o antigo amor intacto na sua essência, forte
como outrora e único, conservava pelo pobre Matias uma irresistível
curiosidade e repetia os gestos desse amor... Talvez fosse apenas a fatalidade
dos jardins vizinhos! Não sei. Mas logo desde Setembro, quando o Torres
Nogueira partiu para as suas vinhas de Carcavelos, a assistir à vindima, ela
recomeçou, da borda do terraço, por sobre as rosas e as dálias abertas, aquela
doce remessa de doces olhares com que durante dez anos extasiara o coração
do José Matias.
Não creio que se escrevessem por cima do muro do jardim, como sob o
regime paternal do Matos Miranda... O novo senhor, o homem robusto da
bigodeira negra, impunha à divina Elisa, mesmo de longe, de entre as vinhas
de Carcavelos, retraimento e prudência. E acalmada por aquele marido, moço
e forte, menos sentiria agora a necessidade de algum encontro discreto na
sombra tépida da noite, mesmo quando a sua elegância moral e o rígido
idealismo do José Matias consentissem em aproveitar uma escada contra o
muro... De resto, Elisa. era fundamentalmente honesta; e conservava o
respeito sagrado do seu corpo, por o sentir tão belo e cuidadosamente feito
por Deus — mais do que da sua alma. E quem sabe?... Talvez a adorável
mulher pertencesse à bela raça daquela marquesa italiana, a marquesa Júlia de
Malfieri, que conservava dois amorosos ao seu doce serviço, um poeta para as
delicadezas românticas e um cocheiro para as necessidades grosseiras.
Enfim, meu amigo, não psicologuemos mais sobre esta viva, atrás do morto
que morreu por ela! O facto foi que Elisa e o seu amigo insensivelmente
recaíram na velha união ideal, através dos jardins em flor. E em Outubro,
como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias,
para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e
extaticamente!
Parece que um tão estreme espiritualista, reconquistando a idealidade do
antigo amor, devia reentrar também na antiga felicidade perfeita. Ele reinava
na alma imortal de Elisa — que importava que outro se ocupasse do seu
corpo mortal? Mas não! o pobre moço sofria, angustiadamente. E, para
sacudir a pungência destes tormentos, findou, ele tão sereno, de uma tão doce
harmonia de modos, por se tornar um agitado. Ali! meu amigo, que
redemoinho e estrépito de vida! Desesperadamente. durante um ano,
remexeu, aturdiu, escandalizou Lisboa! São desse tempo algumas das suas
extravagâncias lendárias... Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou
quarenta mulheres das mais torpes é das mais sujas, apanhadas pelas negras
vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e
gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo
branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a
aparição do Sol!
Mas todo este alarido não lhe dissipou a dor — e foi então que, nesse
Inverno, começou a jogar e a beber! Todo o dia se encerrava em casa
(certamente por trás das vidraças, agora que Torres Nogueira regressara das
vinhas), com olhos e alma cravados no terraço fatal; depois, à noite, quando as
janelas de Elisa se apagavam, saía numa tipoia, sempre a mesma, a tipoia do
Gago, corria à roleta do Bravo, depois ao clube do Cavalheiro, onde jogava
freneticamente até à tardia hora de cear, num gabinete de restaurante, com
molhos de velas acesas, e o Colares, e o champanhe, e o conhaque correndo
em jorros desesperados.
E esta vida, espicaçada pelas Fúrias, durou anos, sete anos! Todas as terras que
lhe deixara o tio Garmilde se foram, largamente jogadas e bebidas: e só lhe
restava o casarão de Arroios e o dinheiro apressado, porque o hipotecara.
Mas, subitamente, desapareceu de todos os antros de vinho e de jogo. E
soubemos que o Torres Nogueira estava morrendo com uma anasarca!
Por esse tempo, e por causa de um negócio do Nicolau da Barca, que me
telegrafara ansiosamente da sua quinta de Santarém (negócio embrulhado, de
uma letra) procurei o José Matias em Arroios, às dez horas, numa noite quente
de Abril. O criado, enquanto me conduzia pelo corredor mal iluminado, já
desadornado das ricas arcas e talhas da Índia do velho Garmilde, confessou
que a sua Excelência não acabara de jantar... E ainda me lembro, com um
arrepio, da impressão desolada que me deu o desgraçado! Era no quarto que
abria sobre os dois jardins. Diante de uma janela, que as cortinas de damasco
cerravam, a mesa resplandecia, com duas serpentinas, um cesto de rosas
brancas, e algumas das nobres pratas do Garmilde: e ao lado, todo estendido
numa poltrona, com o colete branco desabotoado, a face lívida descaída sobre
o peito, um copo vazio na mão inerte, o José Matias parecia adormecido ou morto.
Quando lhe toquei no ombro, ergueu num sobressalto a cabeça, toda
despenteada: — Que horas são? — Apenas lhe gritei, num gesto alegre, para o
despertar, que era tarde, que eram dez, encheu precipitadamente o copo, da
garrafa mais chegada, de vinho branco, e bebeu lentamente, com a mão a
tremer, a tremer... Depois, arredando os cabelos da testa húmida: — Então
que há de novo? — Esgazeado, sem compreender, escutou, como num
sonho, o recado que lhe mandava o Nicolau. Por fim, com um suspiro,
remexeu uma garrafa de champanhe dentro do balde em que ela gelava,
encheu outro copo, murmurando: — Um calor... Uma sede!... — Mas não
bebeu: arrancou o corpo pesado à poltrona de verga e forçou os passos mal
firmes para a janela, a que abriu violentamente as cortinas, depois a vidraça...
E ficou hirto, como colhido pelo silêncio e escuro sossego da noite estrelada.
Eu espreitei, meu amigo! Na casa da Parreira duas janelas brilhavam,
fortemente iluminadas, abertas à macia aragem. E essa claridade viva envolvia
uma figura branca, nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do
terraço, como esquecida numa contemplação. Era Elisa, meu amigo! Por trás,
no fundo do quarto claro, o marido certamente arquejava, na opressão da
anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso,
ao seu doce amigo. O miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto
daquela visão benfazeja. E entre. eles rescendiam, na moleza da noite, todas as
flores dos dois jardins... Subitamente Elisa recolheu, à pressa, chamada por
algum gemido ou impaciência do pobre Torres. E as janelas logo se fecharam,
toda a luz e vida se sumiram na Casa da Parreira.
Então José Matias, com um soluço despedaçado, de transbordante tormento,
cambaleou, tão ansiadamente se agarrou à certina que a rasgou, e tombou
desamparado nos braços que lhe estendi, e em que o arrastei para a cadeira,
pesadamente, como a um morto ou a um bêbedo. Mas, volvido um momento,
com espanto meu, o extraordinário homem descerra os olhos, sorri num lento
e inerte sorriso, murmura quase serenamente: — É o calor... Está um calor!
Você não quer tomar chá?
Recusei e abalei — enquanto ele, indiferente à minha fuga, estendido na
poltrona, acendia tremulamente um imenso charuto.
Santo Deus! já estamos em Santa Isabel! Como estes lagóias vão arrastando
depressa o pobre José Matias para o pó e para o verme final! Pois, meu amigo,
depois dessa curiosa noite, o Torres Nogueira morreu. A divina Elisa, durante
o novo luto, recolheu à quinta de uma cunhada também viúva, à Corte
Moreira, ao pé de Reja. E o José Matias inteiramente se sumiu, se evaporou,
sem que me revoassem notícias dele, mesmo incertas — tanto mais que o
íntimo por quem as conheceria, o nosso brilhante Nicolau da Barca, partira
para a ilha da Madeira, com o seu derradeiro pedaço de pulmão, sem
esperança, por dever clássico, quase dever social, de tísico.
Todo esse ano, também, andei enfronhado no meu «Ensaio dos Fenómenos
Afetivos». Depois, um dia, no começo do Verão, descendo pela Rua de S.
Bento, com os olhos levantados, a procurar o nº 214, onde se catalogava a
livraria do morgado de Azemel, quem avisto eu à varanda de uma casa nova e
de esquina? A divina Elisa, metendo folhas de alface na gaiola de um canário!
E bela, meu amigo, mais cheia e mais harmoniosa, toda madura, e suculenta, e
desejável, apesar de ter festejado em Beja os seus quarenta e dois anos! Mas
aquela mulher era da grande raça de Helena que, quarenta anos também
depois do cerco de Troia, ainda deslumbrava os homens mortais e os deuses
imortais. E, curioso acaso, logo nessa tarde, pelo Seco, o João Seco da
Biblioteca, que catalogava a livraria do morgado, conheci a nova história desta
Helena admirável.
A divina Elisa tinha agora um amante... E unicamente por não poder, com a
sua costumada honestidade, possuir um legítimo e terceiro marido. O ditoso
moço que ela adorava era com efeito casado... Casado em Beja com uma
espanhola que, ao cabo de um ano desse casamento e de outros requebros,
partira para Sevilha, passar devotamente a Semana Santa, e lá adormecera nos
braços de um riquíssimo criador de gado. O marido, pacato apontador de
Obras Públicas, continuara em Beja, onde também vagamente ensinava um
vago desenho... Ora uma das suas discípulas era a filha da senhora da Corte
Moreira: e ai na quinta, enquanto ele guiava o esfuminho da menina, Elisa. o
conheceu e o amou, com uma paixão tão urgente que o arrancou
precipitadamente às Obras Públicas, e o arrastou a Lisboa, cidade mais
propícia do que Beja a uiva felicidade escandalosa, e que se esconde. O João
Seco é de Beja, onde passara o Natal; conhecia perfeitamente o apontador, as
senhoras da Corte Moreira; e compreendeu o romance, quando das janelas
desse nº 214, onde catalogava a livraria do Azemel, reconheceu Elisa na
varanda da esquina, e o apontador enfiando regaladamente o portão, bem
vestido, bem calçado, de luvas claras, com aparência de ser infinitamente mais
ditoso naquelas obras particulares do que nas públicas.
E dessa mesma janela do 214 o conheci eu também, o apontador! Belo moço,
sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade (e
talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viúvo, e portanto
«vazio», como diz a Bíblia Eu frequentava esse nº 214, interessado no catálogo
da livraria, porque o morgado de Azemel possuía, pelo irónico acaso das
heranças, uma coleção incomparável dos filósofos do século XVIII. E
passadas semanas, saindo desses livros uma noite (o João Seco trabalhava de
noite) e parando adiante, à beira de um portal aberto, para acender o charuto,
enxergo à luz tremente do fósforo, metido na sombra, o José Matias Mas que
José Matias, meu caro amigo! Para o considerar mais detidamente, raspei
outro fósforo. Pobre José Matias! Deixara crescer a barba, uma barba rara,
indecisa, suja, mole como cotão amarelado: deixara crescer o cabelo, que lhe
surdia em farripas secas de sob um velho chapéu-coco, mas todo ele, no resto,
parecia diminuído, minguado, dentro de uma quinzena de mescla
enxovalhada, e de umas calças pretas, de grandes bolsos, onde escondia as
mãos com o gesto tradicional, tão infinitamente triste, da miséria ociosa. Na
espantada lástima que me tomou, apenas balbuciei: — Ora esta! Você! Então
que é feito? — E ele, com a sua mansidão polida, mas secamente, para se
desembaraçar, e numa voz que a aguardente enrouquecera: — Por aqui, à
espera de um sujeito. — Não insisti, segui. Depois, adiante, parando,
verifiquei o que num relance adivinhara — que o portal negro ficava em
frente ao prédio novo e às varandas de Elisa!
Pois, meu amigo, três anos viveu o José Matias encafuado naquele portal!
Era um desses pátios da Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados,
sempre sujos, cavernas laterais da rua, donde ninguém escorraça os
escondidos da miséria ou da dor, Ao lado havia uma taverna. Infalivelmente,
ao anoitecer, o José Matias descia a Rua de S. Bento, colado aos muros, e,
como uma sombra, mergulhava na sombra do portal. A essa hora já as janelas
de Elisa luziam, de Inverno embaciadas pela névoa fina, de Verão ainda
abertas e arejando no repouso e na calma. E para elas, imóvel, com as mãos
nas algibeiras, o José Matias mantinha-se em contemplação. Cada meia hora,
subtil mente, enfiava para a taverna. Copo de vinho, copo de aguardente — e,
de mansinho, recolhia à negrura do portal, ao seu êxtase. Quando as janelas de
Elisa se apagavam, ainda arrastava através da longa noite, mesmo das negras
noites de Inverno — encolhido, transido, a bater as solas rotas no lajedo, ou
sentado ao fundo, nos degraus da escada — esmagando os olhos turvos na
fachada negra daquela casa, onde a sabia dormindo com o outro!
Ao princípio, para fumar um cigarro apressado, trepava até ao patamar
deserto, a esconder o lume que o denunciaria no seu esconderijo. Mas depois,
meu amigo, fumava incessantemente, colado à ombreira, puxando o cigarro
com ânsia, para que a ponta rebrilhasse, o iluminasse! E percebe porquê, meu
amigo?... Porque Elisa já descobrira que, dentro daquele portal, a adorar
submissamente as suas janelas, com a alma de outrora, estava o seu pobre José
Matias!...
E acreditará o meu amigo que então, todas as noites, ou por trás da vidraça ou
encostada à varanda (com o apontador dentro, estirado no sofá, já de chinelas,
lendo o «Jornal da Noite») ela se demorava a fitar o portal, muito quieta, sem
outro gesto, naquele antigo e mudo olhar do terraço por sobre as rosas e as
dálias? O José Matias percebera, deslumbrado. E agora avivava
desesperadamente o lume, como um farol, para guiar na escuridão os amados
olhos dela, e lhe mostrar que ali estava transido, todo seu, e fiel!
De dia nunca ele passava na Rua de S. Bento. Como ousaria, com o jaquetão
roto nos cotovelos e as botas cambadas? Porque aquele moço de elegância
sóbria e fina tombara na miséria do andrajo. Onde arranjava mesmo, cada dia,
os três patacos para o vinho e para a posta de bacalhau nas tavernas? Não
sei... Mas louvemos a divina Elisa, meu amigo! Muito delicadamente, por
caminhos arredados e astutos, ela rica, procurara estabelecer uma pensão ao
José Matias, mendigo. Situação picante, hem? A grata senhora dando duas
mesadas aos seus dois homens — o amante do corpo e o amante da alma!
Ele, porém, adivinhou donde procedia a pavorosa esmola — e recusou, sem
revolta, nem alarido de orgulho, até com enternecimento, até com uma
lágrima nas pálpebras que a aguardente inflamara!
Mas só com noite muito cerrada ousava descer à Rua de S. Bento, e enfiar
para o seu portal. E adivinha o meu amigo como ele gastava o dia? A
espreitar, a seguir, a farejar o apontador de Obras Públicas! Sim, meu amigo!
Uma curiosidade insaciada, frenética, atroz, por aquele homem que Elisa
escolhera!... Os dois anteriores, o Miranda e o Nogueira, tinham entrado na
alcova de Elisa, publicamente, pela porta da Igreja, e para outros fins humanos
além do amor — para possuir um lar, talvez filhos, estabilidade e quietação na
vida. Mas este era meramente o amante, que ela nomeara e mantinha só para
ser amada: e nessa união não aparecia outro motivo racional senão que os dois
corpos se unissem. Não se fartava, portanto, de o estudar, na figura, na roupa,
nos modos, ansioso por saber bem como era esse homem que, para se
completar, a sua Elisa preferira entre a turba dos homens. Por decência, o
apontador morava na outra extremidade da Rua de S. Bento, diante do
mercado. E essa parte da rua, onde o não surpreenderiam, na sua pelintrice, os
olhos de Elisa, era o paradeiro do José Matias, logo de manhã, para mirar,
farejar o. homem, quando ele recolhia da casa de Elisa, ainda quente do calor
da sua alcova. Depois não o largava, cautelosamente, como um larápio,
rastejando de longe no seu rasto. E eu suspeito que o seguia assim, menos por
curiosidade perversa, do que para verificar se, através das tentações de Lisboa,
terríveis para um apontador de Beja, o homem conservava o corpo fiel a Elisa.
Em serviço da felicidade dela — fiscalizava o amante da mulher que amava!
Requinte furioso de espiritualismo e devoção, meu amigo! A alma de Elisa era
sua e recebia perenemente a adoração perene: e agora queria que o corpo de
Elisa não fosse menos adorado, nem menos lealmente, por aquele a quem ela
entregara o corpo! Mas o apontador era facilmente fiel a uma mulher tão
formosa, tão rica, de meias de seda, de brilhantes Pias orelhas, que o
deslumbrava. E quem sabe, meu amigo?, talvez esta fidelidade, preito carnal à
divindade de Elisa, fosse para o José Matias a derradeira felicidade que lhe
concedeu a vida.
Assim me persuado, porque, no Inverno passado, encontrei o apontador,
num manhã de chuva, comprando camélias a um florista da Rua do Ouro; e
em frente, a uma esquina, o José Matias, escaveirado, esfrangalhado, cocava o
homem, com carinho, quase com gratidão! E talvez nessa noite, no portal,
tiritando, batendo as solas encharcadas, com os olhos enternecidos nas
escuras vidraças, pensasse: «Coitadinha, pobre Elisa! Ficou bem contente por
ele lhe trazer as flores!»
Isto durou três anos. Enfim, meu amigo, anteontem, o João Seco apareceu na
minha casa, de tarde, esbaforido: — Lá levaram o José Matias, numa maca,
para o hospital, com uma congestão nos pulmões!
Parece que o encontraram, de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido
no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as
varandas de Elisa. Corri ao hospital. Morrera... Subi, com o médico de serviço,
à enfermaria. Levantei o lençol que o cobria. Na abertura da camisa suja e
rota, preso ao pescoço por um cordão, conservava um saquinho de seda,
puído e sujo também. Decerto continha flor, ou cabelos, ou pedaço de renda
de Elisa, do tempo do primeiro encanto e das tardes de Benfica... Perguntei ao
médico, que o conhecia e o lastimava, — se ele sofrera. — Não! Teve um
momento comatoso, depois arregalou os olhos, exclamou: «Oh!», com grande
espanto, e ficou.
Era o grito da alma, no assombro e horror de morrer também? Ou era a alma
triunfando por se reconhecer enfim imortal e livre? O meu amigo não sabe;
nem o soube o divino Platão, nem o saberá o derradeiro filósofo na derradeira
tarde do mundo.
Chegámos ao cemitério. Creio que devemos pegar às borlas do caixão... Na
verdade, é bem singular este Alves «Capão», seguindo tão sentidamente o
nosso pobre espiritualista... Mas, santo Deus, olhe! Além, à espera, à porta da
igreja, aquele sujeito compenetrado, de casaca, com paletó alvadio... É o
apontador de Obras Públicas! E traz um grosso ramo de violetas... Elisa
mandou o seu amante carnal acompanhar à cova e cobrir de flores o seu
amante espiritual. Mas, oh meu amigo, pensemos que, certamente, nunca ela
pediria ao José Matias para espalhar violetas sobre o cadáver do apontador! É
que sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dele tirar a sua
felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de
si recebe, se tratará com brutalidade e desdém! Grande consolo, meu amigo,
este apontador com o seu ramo, para um metafísico que, como eu, comentou
Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte, e provou suficientemente a ilusão
da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José
Matias, que era talvez muito mais que um homem — ou talvez ainda menos
que um homem... — Com efeito, está frio... Mas que linda tarde!