No moinho

D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como «uma senhora modelo».
O velho Nunes, diretor do Correio, sempre que se falava nela, dizia,
acariciando com autoridade os quatro pêlos da calva:
— É uma santa! É o que ela é! A vila tinha quase orgulho na sua beleza
delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos
escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o
brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três
sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um
encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa,
curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria. Poucas vezes
safa. O marido, mais velho que ela, era um inválido, sempre de cama,
inutilizado por uma doença de espinha; havia anos que não descia à rua;

avistavam-no às vezes também à janela, murcho e trôpego, agarrado à bengala,
encolhido no robe-de-chambre, com uma. face macilenta, a barba desleixada e
com um barretinho de seda enterrado melancolicamente até ao cachaço. Os
filhos, duas rapariguitas e um rapaz, eram também doentes, crescendo pouco
e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, chorões e tristonhos. A
casa, interiormente, parecia lúgubre. Andava-se em pontas dos pés, porque o
senhor, na excitação nervosa que lhe davam as insónias, irritava-se com o
menor rumor, havia sobre as cómodas alguma garrafada da botica, alguma
malga com papas de linhaça;. as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e
no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa murchavam naquele ar
abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e era uma
tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a
um canto do canapé, embrulhado em cobertores com uma amarelidão de
hospital.

Maria da Piedade vivia assim, desde os Vinte anos. Mesmo em solteira, em
casa dos pais, a sua existência fora triste. A mãe era uma criatura desagradável
e azeda; o pai, que se empenhara pelas tavernas e pelas batotas, já velho,
sempre bêbedo, os dias que aparecia em casa passava-os à lareira, num silêncio
sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas
desancava a mulher. E quando João Coutinho pediu Maria em casamento,
apesar de doente já, ela aceitou, sem hesitação, quase com reconhecimento,
para salvar o casebre da penhora, não ouvir mais os gritos da mãe, que a
faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo
telhado. Não amava o marido decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado
que aquele lindo rosto de Virgem Maria, aquela figura de fada, fosse pertencer
ao Joãozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho,
por morte do pai, ficara rico, e ela, acostumada por fim àquele marido
rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a
alcova, ter-se-ia resignado, na, sua natureza de enfermeira e de consoladora, se
os filhos ao menos tivessem nascido sãos e robustos. Más aquela família que
lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existências hesitantes, que depois
pareciam apodrecer-lhe nas mãos, apesar dos seus cuidados inquietos,
acabrunhavam-na. Às vezes, só, picando a sua costura, corriam-lhe as lágrimas
pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma névoa que lhe escurecia a
alma.

Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos
choramingava, lá limpava os olhos, lá aparecia com a sua bonita face tranquila,
com alguma palavra consoladora, compondo a almofada a um, indo animar o
outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambição era ver o seu pequeno mundo
bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade,
um desejo, um capricho: nada a interessava na Terra senão as horas dos
remédios e o sono dos seus doentes. Todo o esforço lhe era fácil quando era
para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o
pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus
pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insónias do marido não
dormia também, sentada ao pé da cama, conversando, lendo-lhe as «Vidas dos
Santos», porque o pobre entrevado ia caindo em devoção. De manhã estava
um pouco mais pálida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os
bandós bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar — as sopas de leite aos
pequerruchos. A sua única distração era à tarde sentar-se à janela com a sua
costura, e a pequenada em roda, aninhada no chão, brincando tristemente. A
mesma paisagem que ela via da janela era tão monótona como a sua vida: em
baixo a estrada, depois uma ondulação de campos, uma terra magra plantada
aqui e além de oliveiras e, erguendo-se ao fundo, uma colina triste e nua, sem
uma casa, uma árvore, um fumo de aldeia que pusesse naquela solidão de
terreno pobre uma nota humana e viva.

Vendo-a assim tão resignada e tão sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam
que ela era beata: todavia ninguém a avistava na igreja, a não ser ao domingo,
com o pequerrucho mais velho pela mão, todo pálido no seu vestido de
veludo azul. Com efeito, a sua devoção limitava-se a esta missa todas as
semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas
preocupações do Céu; naquele dever de boa mãe, cumprido com amor,
encontrava uma satisfação suficiente à sua sensibilidade; não necessitava
adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava
que toda a afeição excessiva dada ao Pai do Céu, todo o tempo gasto em se
arrastar pelo confessionário ou aos pés do oratório, seria uma diminuição
cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era velar os filhos:
e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a só
a ela, parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa
cruz, tendo para o amimar toda uma humanidade pronta. Além disso nunca
tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam â devoção. O seu longo
hábito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a força, o amparo
daqueles inválidos tornara-a terna, mas prática: e assim era ela que
administrava agora a casa do marido, com um bom senso que a afeição dirigia,
uma solicitude de mãe próvida. Tais ocupações bastavam para entreter o seu
dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspeto de caras saudáveis, as
comiserações de cerimónia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria
da Piedade se ouvisse outra voz estranha â família, a não ser a do Dr. Abílio
— que a adorava, e que dizia dela com os olhos esgazeados:

É uma fada! É uma fada!...
Foi por isso grande a excitação na casa, quando João Coutinho recebeu uma
carta do seu primo Adrião, que lhe anunciava que em duas ou três semanas ia
chegar à vila. Adrião era um homem célebre, e o marido de Maria da Piedade
tinha naquele parente um orgulho enfático. Assinara mesmo um jornal de
Lisboa, só para ver o seu nome nas locais e na crítica. Adrião era um
romancista: e o último livro, «Madalena», um estudo de mulher trabalhado a
grande estilo, de uma análise delicada e subtil, consagrara-o como um mestre.
A sua fama, que chegara até à vila, num vago de legenda, apresentava-o como
uma personalidade interessante, um herói de Lisboa, amado das fidalgas,
impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situação no Estado. Mas
realmente na vila era sobretudo notável por ser primo do João Coutinho.

D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via já a sua casa em
confusão com a presença do hóspede extraordinário. Depois a necessidade de
fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de conversar com um literato, e
tantos outros esforços cruéis!... E a brusca invasão daquele mundano, com as
suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de são, na paz triste do seu
hospital, dava-lhe a impressão apavorada de uma profanação. Foi por isso um
alívio, quase um reconhecimento, quando Adrião chegou, e muito
simplesmente se instalou na antiga estalagem do Tio André, à outra
extremidade da vila. João Coutinho escandalizou-se: tinha já o quarto do
hóspede preparado, com lençóis de rendas, uma colcha de damasco, pratas
sobre a cómoda, e queria-o todo p ara si, o primo, o homem célebre, o grande
autor... Adrião, porém recusou:

— Eu tenho os meus hábitos, vocês têm os seus... Não nos contrariemos,
hem?... O que faço é vir cá jantar. De resto, não estou mal no Tio André...
Vejo da janela um moinho e uma represa que são um quadrozinho delicioso...
E ficamos amigos, não é verdade?
Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herói, aquele fascinador por
quem choravam mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um
sujeito extremamente simples — muito menos complicado, menos
espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chapéu
desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo à larga
num corpo robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um
dos caçadores de aldeia que às vezes encontrava, quando de mês a mês ia
visitar as fazendas do outro lado do rio. Além disso não fazia frases; e a
primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus
negócios. Viera por eles. Da fortuna do pai, a única terra que não estava —
devorada, ou abominavelmente hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao
pé da vila, que andava além disso mal arrendada... O que ele desejava era
vendê-la. Mas isso parecia-lhe a ele tão difícil como fazer a «Ilíada»! ... E
lamentava sinceramente ver o primo ali, inútil sobre uma cama, sem o poder
ajudar nesses passos a dar com os proprietários da vila. Foi por isso, com
grande alegria, que ouviu João Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma
administradora de primeira ordem, e hábil nestas questões como um antigo
rábula!...

— Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo...
E na questão de preço, deixa-a a ela!...
— Mas que superioridade, prima! — exclamou Adrião maravilhado. —
Um anjo que entende de cifras!
Pela primeira vez na sua existência Maria da Piedade corou com a palavra de
um homem. De resto prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...
No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de Março
fresco e claro, partiram a pé. Ao princípio, acanhada por aquela companhia de
um leão, a pobre senhora caminhava junto dele com o ar de um pássaro
assustado: apesar de ele ser tão simples, havia na sua figura enérgica e
musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e luzidios
alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido à

orla do seu vestido um galho de silvado, e como ele se abaixara para o
desprender delicadamente, o contacto daquela mão branca e fina de artista na
orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar
bem depressa à fazenda, aviar o negócio com o Teles, e voltar imediatamente
a refugiar-se, como no seu elemento próprio, no ar abafado e triste do seu
hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tépido — e a
conversa de Adrião foi-a lentamente acostumando à sua presença.

Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos:
o que os pequenos necessitavam era ar, sol, uma outra vida que aquele
abafamento de alcova...
Ela também assim o julgava: mas quê!, o pobre João, sempre que se lhe falava
de ir passar algum tempo à quinta, afligia-se ri terrivelmente: tinha horror aos
grandes ares e aos grandes horizontes: a Natureza forte fazia-o quase
desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...
Ele então lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satisfação num dever tão
santamente cumprido... Mas enfim, ela devia ter momentos em que desejasse
alguma outra coisa além daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da
doença...
— Que hei de eu desejar mais? — disse ela. Adrião calou-se: pareceu-lhe
absurdo supor que ela desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da
Trindade... No que ele pensava era noutros apetites, nas ambições do coração
insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe tão delicado, tão grave de dizer àquela
criatura virginal e séria — que falou da paisagem...
— Já viu o moinho? — perguntou-lhe ela. — Tenho vontade de o ver, se
mo quiser ir mostrar, prima. — Hoje é tarde. Combinaram logo ir visitar esse
recanto de verdura, que era o idílio da vila. Na fazenda, a longa conversa com
o Teles criou uma aproximação maior entre Adrião e Maria da Piedade.
Aquela venda, que ela discutia com uma astúcia de aldeã, punha entre eles
como. que um interesse comum. Ela falou-lhe já com menos reserva quando
voltaram. Havia nas maneiras dele, de um respeito tocante, uma atração que
ao seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiança: nunca falara tanto
a ninguém: a ninguém jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava
constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma
dor — a tristeza do seu interior, as doenças, tantos cuidados graves... E vinha
lhe por ele uma simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre
presente. desde que ele se tornava assim depositário das suas tristezas.

Adrião voltou para o seu quarto, na estalagem do André. impressionado,
interessado por aquela criatura tão triste e tão doce. Ela destacava sobre o
mundo de mulheres que até ali conhecera, como um perfil suave de anjo
gótico entre fisionomias de mesa-redonda. Tudo nele concordava
deliciosamente: o ouro do cabelo, a doçura da voz, a modéstia na melancolia,
a linha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo o seu
pequenino espírito burguês, certo fundo rústico de aldeã e uma leve
vulgaridade de hábitos davam um encanto: era um anjo que vivia há muito
tempo numa vilota grosseira e estava por muitos lados preso às trivialidades
do sítio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar ao céu natural, aos
cimos puros da sentimentalidade...

Achava absurdo e infame fazer a corte â prima... Mas involuntariamente
pensava no delicioso prazer de fazer bater aquele coração que não estava
deformado pelo espartilho, e de pôr enfim os seus lábios numa face onde. não
houvesse pós de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia
percorrer toda a província em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de
corpo, nem aquela virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasião
que não voltava.

O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de
Corot, sobretudo à hora do meio-dia em que eles lá foram, com a frescura da
verdura, a sombra recolhida das grandes árvores, e toda a sorte de murmúrios
de água corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando e
espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O
moinho era de um alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular,
a sua roda. enorme, quase podre, coberta de ervas, imóvel sobre a, gelada
limpidez da água escura. Adrião achou-o digno de uma cena de romance, ou,
melhor, da morada de uma fada. Maria da Piedade não dizia nada, achando
extraordinária aquela admiração pelo moinho abandonado do Tio Costa.
Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se numa escada desconjuntada
de pedra, que mergulhava na água da represa os últimos degraus: e ali ficaram
um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as
aves piarem nas ramas. Adrião via-a de perfil , um pouco curvada,
esburacando com a ponteira do guarda-sol as ervas bravas que invadiam os
degraus: era deliciosa assim, tão branca, tão loura, de uma linha tão pura sobre
o fundo azul do ar: o seu chapéu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado,
mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silêncio dos campos
em redor isolava-os — e, insensivelmente, ele começou a falar-lhe baixo. Era
ainda a mesma compaixão pela melancolia da sua existência naquela triste vila,
pelo seu destino de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de
se achar ali tão só com aquele homem tão robusto, toda receosa e achando
um sabor delicioso ao seu receio... Houve um momento em que ele falou do
encanto de ficar ali para sempre na vila.

— Ficar aqui? Para quê? — perguntou ela, sorrindo. — Para quê? Para
isto, para estar sempre ao pé de si... Ela cobriu-se de um rubor, o
guarda solinho escapou-lhe das mãos. Adrião receou tê-la ofendido, e acrescentou
logo rindo: — Pois não era delicioso?... Eu podia alugar este moinho, fazer-me
moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...

Isto fê-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela, os dentes, a pele, a
cor do cabelo. Ele continuou gracejando, com o seu plano de se fazer moleiro,
e de ir pela estrada tocando o burro, carregado de sacas de farinha.
— E eu venho ajudá-lo, primo! — disse ela, animada pelo seu próprio riso,
pela alegria daquele homem ao seu lado.
— Vem? — exclamou ele. — juro-lhe que me faço moleiro! Que Paraíso,
nós aqui ambos no moinho, ganhando alegremente a nossa vida, e ouvindo
cantar estes melros!
Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como se ele fosse já
arrebatá-la para o moinho. Mas Adrião agora, inflamado àquela ideia, pintava lhe
na sua palavra colorida toda uma vida romanesca, de uma felicidade idílica,

naquele esconderijo de verdura: de manhã, a pé cedo, para o trabalho, depois
o jantar na relva à beira de água; e à noite as boas palestras ali sentados, à
claridade das estrelas ou, sob a sombra cálida dos céus negros de Verão...
E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos braços, e beijou-a sobre os
lábios, de um só beijo, profundo e interminável. Ela tinha ficado contra o seu
peito, branca, como morta: e duas lágrimas corriam-lhe ao comprido da face.
Era assi m tão dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o
guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, murmurando:

— É mal feito... É mal feito... Ele mesmo estava tão perturbado — que a
deixou descer para o caminho: e daí a um momento seguiam ambos calados
para a vila. Foi só na estalagem que ele pensou: «Fui um tolo!»
Mas no fundo estava contente da sua generosidade. À noite foi a casa dela:
encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavando-lhe em água de malvas as
feridas que ele tinha na perna. E então pareceu-lhe odioso distrair aquela
mulher dos seus doentes. De resto um momento como aquele no moinho não
voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da província,
desmoralizando, a frio, uma boa mãe... A venda da fazenda estava concluída.
Por isso, no dia seguinte, apareceu de tarde, a dizer-lhe adeus: partia à noitinha
na diligência; encontrou-a na sala, à janela costumada, com a pequenada
doente aninhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe mudar a
cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adrião achou-lhe a palma da mão tão fria
como um mármore: e quando ele saiu, Maria da Piedade ficou voltada para a
janela, escondendo a face dos pequenos, olhando abstratamente a paisagem
que escurecia, com as lágrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura...
Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e forte, os seus olhos
luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se lhe tinham apossado da
imaginação. O que a encantava nele não era o seu talento, nem a sua
celebridade em Lisboa, nem as mulheres que o tinham amado: isso para ela
aparecia-lhe vago e pouco compreensível: o que a fascinava era aquela
seriedade, aquele ar honesto e são, aquela robustez de vida, aquela voz tão
grave e tão rica: e antevia, para além da sua existência ligada a um inválido,
outras existências possíveis, em que se não vê sempre diante dos olhos uma
face fraca e moribunda, em que as noites se não passam a esperar as horas dos
remédios... Era como uma rajada de ar impregnado de todas as forças vivas da
Natureza, que atravessava, subitamente, a sua alcova abafada: e respirava-a
deliciosamente... Depois, tinha ouvido aquelas conversas em que ele se
mostrava tão bom, tão sério, tão delicado: e à força do seu corpo, que
admirava, juntava-se agora u m coração terno, de uma ternura varonil e forte,
para —, cativar... Este amor latente invadiu-a, apoderou-se dela uma noite que
lhe apareceu esta ideia, esta visão: «Se ele fosse meu marido!» Toda ela
estremeceu, apertou desesperadamente os braços contra o peito, como
confundindo-se com a sua imagem evocada, prendendo-se a ela, refugiando-se
na sua força... Depois ele deu-lhe aquele beijo no moinho.

E partira!
Então começou para Maria da Piedade uma existência de abandonada. Tudo
de repente em volta dela — a doença do marido, os achaques dos filhos, as
tristezas do seu dia, a sua costura-lhe pareceu lúgubre. Os seus deveres, agora
que não punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardos injustos.
A sua vida representava-se-lhe como desgraça excecional: não se revoltava
ainda, mas tinha desses abatimentos, dessas súbitas fadigas de todo o seu ser,
em que caia sobre a cadeira, com os braços pendentes, murmurando:

— Quando se acabará isto? Refugiava-se então naquele amor como uma
compensação deliciosa . Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se
penetrar dele e da sua lenta influência. Adrião tornara-se, na sua imaginação,
como um ser de proporções extraordinárias, tudo o que é forte, e que é belo, e
que dá razão à vida. Não quis que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse
alheio. Leu todos os seus livros, sobretudo aquela «Madalena» que também
amara, e morrera de um abandono. Estas leituras calmavam-na, davam-lhe
como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de
romance, parecia sentir alívio às suas.

Lentamente, esta necessidade de encher a imaginação desses lances de amor,
de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi durante meses um devorar
constante de romances. Ia-se assim criando no seu espírito um mundo
artificial e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele
aspeto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo.
Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente e áspera. Não suportava
ser arrancada aos episódios sentimentais do seu livro, para ir ajudar a voltar o
marido e sentir-lhe o hálito mau. Veio-lhe o nojo das garrafadas, dos
emplastros, das feridas dos pequenos a lavar. Começou a ler versos. Passava
horas só, num mutismo, à janela, tendo sob o seu olhar de virgem loura toda a
rebelião de uma apaixonada. Acreditava nos amantes que escalam os balcões,
entre o canto dos rouxinóis: e queria ser amada assim, possuída num mistério
de noite romântica...

O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de Adrião e alargou-se,
estendeu-se a um ser vago que era feito de tudo o que a encantara nos heróis
de novela; era um ente — meio príncipe e meio facínora, que tinha,
sobretudo, a força. Porque era isto que admirava, que queria, porque ansiava
nas — noites cálidas em que não podia dormir — dois braços fortes como
aço, que a apertassem num abraço mortal, dois lábios de fogo que, num beijo,
lhe chupassem a alma. Estava uma histérica.
Às vezes, ao pé do leito do marido, vendo diante de si aquele corpo de tísico,
numa imobilidade de entrevado, vinha-lhe um ódio torpe, um desejo de lhe
apressar a morte...

E no meio desta excitação mórbida do temperamento irritado, eram fraquezas
súbitas, sustos de ave que pousa, um grito ao ouvir bater uma porta, uma
palidez de desmaio se havia na sala flores muito cheirosas... À noite abafava;
abria a janela; mas o cálido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol,
enchiam-na de um desejo intenso, de uma ânsia voluptuosa, cortada de crises
de choro...
A santa tornava-se Vénus. E o romanticismo mórbido tinha penetrado tanto
naquele ser, e desmoralizara-o tão profundamente, que chegou ao momento
em que bastaria que um homem lhe tocasse, para ela lhe cair nos braços — e
foi o que sucedeu enfim, com o primeiro que a namorou, daí a dois anos. Era
o praticante da botica.

Por causa dele escandalizou toda a vila. E agora deixa a casa numa desordem,
os filhos sujos e ramelosos, em farrapos, sem comer até altas horas, o marido
a gemer abandonado na sua alcova, toda a trapagem dos emplastros por cima
das cadeiras, tudo num desamparo torpe — para andar atrás do homem, um
maganão odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa, luneta preta com
grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à catita. Vem de
noite às entrevistas de chinelo de ourelo, cheira a suor; e pede-lhe dinheiro
emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila
«a Bola de Unto».