(SÉCULO X)

CAPÍTULO I

O guadamellato é uma ribeira que, descendo das solidões mais agras da Serra
Morena, vem através de um território montanhoso e selvático desaguar no
Guadalquivir pela margem direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em
que nestes desvios habitou uma população numerosa: foi nas eras do domínio
sarraceno em Hispânia. Desde o governo do amir Abul-Khatar o distrito de
Córdova fora distribuído ás tribos árabes do Yemen e da Syria, as mais nobres e
mais numerosas entre todas as raças da Africa e da Asia, que tinham vindo
residir na Península por ocasião da conquista ou depois dela. As famílias que se
estabeleceram naquelas encostas meridionais das longas serranias chamadas
pelos antigos Montes Marianos, conservaram por mais tempo os hábitos
erradios dos povos pastores. Assim no meio do décimo seculo, posto que esse
distrito fosse assas povoado, o seu aspeto assemelhava-se ao de um deserto;
porque nem se descortinavam por aqueles cabeços e vales vestígios alguns de
cultura, nem alvejava um único edifício no meio das colinas rasgadas
irregularmente pelos algares das torrentes, ou cobertas de selvas bravias e
escuras. Apenas um ou outro dia se enxergava na extrema de algum almargem
virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria ali,
se porventura se buscasse.

Havia, contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas,
porém não de vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais
saudosos dessas solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao
pôr-se, estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lajens lisas das campas,
por entre os raminhos floridos das sarças açoutadas do vento. Era ali que,
depois do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente
uns ao pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas
pálpebras das asas do anjo Azrael.

A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família
humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos
sumptuosos, do cativeiro e imobilidade da morte, talvez para avivar mais o
sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.

No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das
margens do Guadamellato para o nordeste, estava sentado um desses cemitérios
pertencente á tribo Yemenita dos Beni-Homair. Subindo pelo riu, viam-se
alvejar ao longe as pedras das sepulturas como um vasto estendal, e três únicas
palmeiras, plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de
cemitério de al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-
se um desses brincos da natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar: era
um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali
pelos esforços de centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do
cimo desta espécie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados
vastos horizontes.

Era um dia á tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras começavam do
lado de leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado
na borda do rochedo quadrangular um árabe dos Beni-Homair, armado da sua
comprida lança, volvia olhos atentos, ora para o lado do norte, ora para o de
oeste: depois sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado
oposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam ali também sentados em
diversas posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras
rápidas, dirigidas ao da lança, e a que ele respondia sempre do mesmo modo
com o seu abanar de cabeça.

"Al-barr," — disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos indicavam
uma grande superioridade sobre os outros — "parece que o kaid de
Chantoryu(1*) esqueceu a sua injuria como o wali de Zarkosta(2*) a sua ambição
de independência; e até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas
vezes vencidos pelo meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as
promessas que me induziste a fazer-lhes."

[(*) 1 — Santarém; 2 — Governador do Distrito de Saragoça.]

"Amir-al-melek"(1*) — replicou Al-barr — "ainda não é tarde: os
mensageiros podem ter sido retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias
que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Diz,
Al-athar, não te juraram eles pela sancta Kaaba (2*) que os enviados com a
notícia da sua revolta e da entrada dos cristãos chegariam hoje a este lugar
aprazado, antes do anoitecer?"

[(*) 1 — Príncipe real; 2 — O famoso templo de Mekka.]

"Juraram — respondeu Al-athar —; mas que fé merecem homens que não
duvidam de quebrar as promessas solenes feitas ao kalifa, e além disso de abrir o
caminho aos infiéis para derramarem o sangue dos crentes? Amir, nestas negras
tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que
falhassem as esperanças que pões nos tens ocultos aliados. Oxalá não tivesse de
tingir o sangue as ruas de Korthoba, e não houvera de ser o supedâneo do trono
que ambicionas o túmulo do teu irmão!"
Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua
amargura. Abdallah parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se
conservar algum tempo em silêncio, exclamou:

"Se os mensageiros dos revoltosos não chegarem até o anoitecer, não falemos
mais nisso. O meu irmão Al-hakem acaba de ser reconhecido sucessor do
kalifado: eu próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter
convosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr,
imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassidéh (1*) que
não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença dos
embaixadores do Frandjat,(2*) e que foi causa de caíres no desagrado do meu
pai e de Al-hakem, e de conceberes esse odio que alimentas contra eles, o mais
terrível odio deste mundo, o do amor próprio ofendido."

[(*) 1 — Poema de trinta versos, muito usado entre os árabes, e que correspondia de
certo muilo ás nossas odes; 2 — Os reinos cristãos além dos Pirenéus.]

Ahmed Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de
Abdallah. Os olhos, porém, de Al-barr faiscaram de cólera.

"Pagas mal, Abdallah, — disse ele com a voz presa garganta — os riscos que
tenho corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso império do Islão.
Pagas com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te pôr
na tua uma coroa. És filho do teu pai!... Não importa. Só te direi que é já tarde
para o arrependimento. Pensas acaso que uma conspiração sabida de tantos
ficará oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás de encontrar o
abismo!"

No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia
a falar, talvez para ver de novo se divertia o príncipe da arriscada empresa de
disputar a coroa ao seu irmão Al-hakem. Um grito, porém, de atalaia o
interrompeu. Ligeiro como relâmpago um vulto saíra do cemitério, galgara o
cabeço, e se aproximara sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro,
cujo capuz quase lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e
revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e arrancaram as
espadas.

Ao ver aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para
eles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as
espadas abaixaram-se como se uma corrente elétrica tivesse adormecido os
braços dos quatro sarracenos. Al-barr exclamara: — "Muulin (*) o profeta!
Muulin o santo!..."

[(*) Muulin significa o triste.]

"Muulin o pecador: — interrompeu o novo personagem — Muulin, o pobre
fakih (*) penitente e quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos
homens, mas a quem Deus por isso ilumina ás vezes os olhos da alma para
antever o futuro ou ler no fundo dos corações.

[(*) Fakih ou faquir, espécie de frade mendicante entre os muçulmanos.]

Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O
senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e ao teu irmão Al-hakem.
Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro. Está escrito. Vai; não
pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kortheba. Entra no teu
palácio Merwan; é o palácio dos kalifas da tua dinastia. Não foi sem mistério que
o teu pai to deu por morada. Sobe ao sotam (*) da torre. Aí acharás cartas do
kaid de Chantarya, e delas verás que nem ele, nem o wali de Zarkosta, nem os
Beni-Hafsun faltam ao que te juraram!"
[(*) Sotuko — o andar mais alto. Os nossos escritores tomavam esta palavra num
sentido evidentemente errado, servindo-se delia para indicar o aposento inferior
ou térreo.]

"Santo fakih — replicou Abdallab, crédulo como todos os muçulmanos
daqueles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado — creio o que dizes,
porque nada para ti é oculto. O passado, o presente, o futuro domina-los com a
tua inteligência sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes
tu assegura-lo?"

"Verme, que te crês livre! — atalhou com voz solene o fakih. — Verme, cujos
passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos
do destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco
fere mortalmente o guerreiro, pede ela acaso a Deus perdão do seu pecado?
Átomo varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar,
pergunta antes se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho
insensato!"
Fez então uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair
da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para os lados
de Córdova.

Nesta postura a figura do fakih fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele
repeliu três vezes:

"Para Merwan!"

Abdallah abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar para traz.
Os outros sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.

Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis,
porém, naquela época e o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de
habitantes, ninguém vos saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça,
donde viera. Passava a vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor
da canícula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras
vezes se via que não fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres como de um
objeto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado, ou antes
temido, era o dom de profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um
profeta terrível, porque as suas predições recaiam unicamente sobre futuros
males. No mesmo dia em que nas fronteiras do império os cristãos faziam
alguma correria, ou destruíam alguma povoação, ele anunciava publicamente o
sucesso nas praças de Córdova: qualquer membro da família numerosa dos
Beni-Umeyyas caia debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais
remota província do império, ainda das do Moghreb ou Mauritânia, na mesma
hora, no mesmo instante ás vezes, ele o chorava redobrando os seus choros
habituais. O terror que inspirava era tal, que no meio do maior tumulto popular
a sua presença bastava para tudo cair em mortal silêncio. A imaginação exaltada
do povo tinha feito dele um santo, santo como o islamismo os concebia; isto é,
um homem cujas palavras e aspeto gelavam de terror.

Ao passar por ele, Al-barr apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase
impercetível: "Salvaste-me!"

O fakih deixou-o afastar, e fazendo um gesto de profundo desprezo,
murmurou:

"Eu?! Eu teu cúmplice, miserável?!"

Depois, levantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os
dedos rapidamente, e rindo com um rir sem vontade, exclamou:

"Pobres títeres!"

Quando se fartou de representar com os dedos a ida de escarnio que lhe
sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para os lados de
Córdova, mas por diverso atalho.
CAPÍTULO II

Nos paços de Azzahrat, o magnifico alcaçar dos kalifas de Córdova, há muitas
horas que cessou o estrepito de uma grande festa. O luar de noite serena de abril
bate pelos jardins que se dilatam desde o alcaçar até o Guad-al-kébir, e alveja
trémulo pelas fitas cinzentas dos caminhos tortuosos, em que parecem
enredados os bosquesinhos de arbustos, os maciços de árvores silvestres, as
veigas de flores, os vergéis embalsamados, onde a laranjeira, o limoeiro, e as
restantes árvores frutíferas, trazidas da Pérsia, da Syria e do Cathay, espalham os
aromas variados das suas flores. Lá ao longe Córdova, a capital da Hispânia
muçulmana, repousa da lida diurna, porque sabe que Abdu-r-rahman III, o
ilustre kalifa, vê-la pela segurança do império. A vasta cidade repousa
profundamente; e o ruído mal distinto que parece revoar por cima dela, é apenas
o respiro lento dos seus largos pulmões, o bater regular das suas robustas
artérias. Das almádenas de seiscentas mesquitas não soa uma única voz de
almuhaden, e os sinos das igrejas moçárabes guardam também silêncio. As ruas,
as praças, os azokes, ou mercados, estão desertos. Somente o murmúrio das
novecentas fontes ou banhos públicos, destinados ás abluções dos crentes, ajuda
o zumbido noturno da sumptuosa rival de Bagdad.

Que festa fora essa que expirara algumas horas antes de nascer a lua, e de
tingir com a brancura pálida da sua luz aqueles dois vultos enormes de Azzahrat
e de Córdova, que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distancia, como
dois fantasmas gigantes envoltos em largos sudários? Na manhã do dia que
findara, Al-hakem, o filho mais velho de Abdu-r-rahman, fora associado ao
trono. Os walis, wasires e khatehs da monarquia dos Beni-Umeyyas tinham
vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é, futuro kalifa do Andalús e do Moghreb.
Era uma ida afagada longamente pelo velho príncipe dos crentes que se
realizara, e o júbilo de Abdu-r-rahman se havia espraiado numa dessas festas,
por assim dizer fabulosas, que só sabia dar no seculo decimo a corte mais polida
da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Hispânia.

O palácio Merwan, junto dos muros de Córdova, distingue-se á claridade
duvidosa da noite pelas suas formas maciças e retangulares, e a sua cor tisnada,
bafo dos seculos que entristece e santifica os monumentos, contrasta com a das
cúpulas aéreas e douradas dos edifícios, com a das almádenas esguias e leves das
mesquitas, e com a dos campanários cristãos, cuja tez docemente pálida suaviza
ainda mais o brando raio de luar que se quebra naqueles estreitos panos de pedra
branca, de onde não se reflete, mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como
Azzahrat e como Córdova, calado e aparentemente tranquilo, o palácio Merwan,
a antiga morada dos primeiros kalifas, suscita ideias sinistras, enquanto o aspeto
da cidade e da vila imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e
paz. Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do
coração que experimenta quem o considera assim solitário e carrancudo; é
também o clarão avermelhado que ressumbra da mais alta das raras frestas
abertas na face exterior da sua torre albarran, a maior de todas as que o cercam,
a que atalaia a campanha. Aquela luz, no ponto mais elevado do grande e escuro
vulto da torre, é como um olho de demónio, que contempla colérico a paz
profunda do império, e que espera ansioso o dia em que renasçam as lutas e as
devastações de que por mais de dois séculos fora teatro o solo ensanguentado de
Hispânia.

Alguém vê-la, talvez, no paço de Merwan. No de Azzahrat, posto que
nenhuma luz bruxuleei nos centenares de varandas, de miradouros, de pórticos,
de balcões, que lhe arrendam o imenso circuito, alguém vê-la por certo.
A sala denominada do Kalifa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos
encerra aquele rei dos edifícios, devera a estas horas mortas estar deserta, e não
o está. Dois lampadários de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente
lavrados, que, cruzando-se em ângulos retos, servem de moldura ao almofadado
de azul e ouro, que reveste as paredes e o teto. A água de fonte perene murmura
caindo num tanque de mármore construído no centro do aposento, e no topo
da sala ergue-se o trono de Abdu-r-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do
país de Fars. Abdu-r-rahman está aí sozinho. O kalifa passeia de um para outro
lado, com olhar inquieto, e de instante a instante pára e escuta, como se
esperasse ouvir um ruído longínquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais
viva ansiedade; porque o único ruído que lhe fere os ouvidos é o dos próprios
passos sobre o xadrez variegado, que forma o pavimento da imensa quadra.
Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os
lados do trono, abre-se lentamente, e um novo personagem aparece. No rosto
de Abdu-r-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda mais
viva.

O recém-chegado oferecia notável contraste no seu gesto e vestiduras com as
pompas do lugar em que se introduzia, e com o aspeto majestoso de Abdu-rrahman,
ainda belo apesar dos anos e dos cabelos brancos que começavam a
misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrara apenas
faziam um rumor sumido no chão de mármore. Vinha descalço. A sua aljarabia
ou túnica era de lã grosseiramente tecida, o cinto uma corda de esparto.
Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que
nenhum espanto produzia nele aquela magnificência. Não era velho; e todavia a
sua tez tostada pelas injúrias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla
vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao
pé do kalifa, que ficara imóvel, cruzou os braços e pôs-se a contempla-lo calado.
Abdu-r-rahman foi o primeiro em romper o silêncio:

"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando anuncias a
tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste como o teu
nome. Nunca entraste a ocultas em Azzahrat senão para me saciares de
amargura; mas apesar disso eu não deixarei de abençoar a tua presença, porque
Algafir — dizem-no todos e eu o creio — é um homem de Deus. Que vens
anunciar-me, ou que pretendes de mim?"

"Amir-al-muminin (*), que pode pretender de ti um homem cujos dias se
passam á sombra dos túmulos pelos cemitérios, e a cujas noites de oração basta
por abrigo o pórtico de um templo; cujos olhos tem queimado o choro, e que
não esquece um instante que tudo neste desterro, a dor e o gozo, a morte e a
vida, está escrito lá em cima? Que venho anunciar-te?!. O mal; porque só mal há
na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o apetite
e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacáveis
inimigos!"

[(*) Príncipe dos crentes, título correspondente ao de kalifa]

"Vens, pois, anunciar-me uma desventura?!. Cumpra-se a vontade de Deus.
Tenho reinado perto de quarenta anos, sempre poderoso, vencedor e respeitado;
todas as minhas ambições tem sido satisfeitas, todos os meus desejos
preenchidos; e todavia nesta longa carreira de glória e prosperidade só fui
inteiramente feliz quatorze dias da minha vida. Pensava que este fosse o décimo
quinto. Devo acaso apaga-lo do registo em que conservo a memória deles, e em
que já o tinha escrito?"

"Podes apaga-lo: — replicou o rude fakih — podes, até, rasgar todas as folhas
brancas que restam no livro. Kalifa! vês estas faces sulcadas pelas lágrimas? vês
estas pálpebras requeimadas por elas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se
em breve as tuas pálpebras e as tuas faces não estão semelhantes ás minhas."
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pálido de Abdu-r-rahman: os seus
olhos serenos como o céu, que imitavam na cor, tomaram a terrível expressão
que ele costumava dar-lhes no revólver dos combates, olhar esse que só por si
fazia recuar os inimigos. O fakih não se moveu, e pôs-se a olhar também para
ele fito.

"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyyas pode chorar arrependido dos seus
erros diante de Deus; mas quem disser que há neste mundo desventura capaz de
lhe arrancar uma lágrima, diz-lhe ele que mentiu!"

Os cantos da boca de Al-gafir encresparam-se com um quase impercetível
sorriso. Houve um largo espaço de silêncio. Abdu-r-rahman não o interrompeu:
o fakih prosseguiu:

"Amir-al-muminin, qual dos teus dois filhos amas tu mais? Al-hakem, o
sucessor do trono, o bom e generoso Al-hakem, ou Abdallah, o sábio e
guerreiro Abdallah, o ídolo do povo de Korthoba?"

"Oh, — replicou o kalifa sorrindo — já sei o que me queres dizer. Devias
prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os cristãos passaram a
um tempo as fronteiras do norte e do oriente. O meu velho tio Al-mod-dhafer
já depôs a espada vitoriosa, e crês necessário expor a vida de um deles aos
golpes dos infiéis. Vens profetizar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih,
creio em ti, que és aceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrela dos BeniUmeyyas.
Se eu amasse um mais do que outro não hesitaria na escolha: fora esse
que eu mandara, não á morte, mas ao triunfo. Se, porém, essas são as tuas
previsões, e elas tem de realizar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte
posso eu desejar aos meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed
(guerra santa) contra os infiéis?"
Al-gafir escutou Abdu-r-rahman sem o menor sinal de impaciência.
Quando ele acabou de falar repetiu tranquilamente a pergunta:

"Kalifa, qual amas tu mais dos teus dois filhos?"

"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakem se me representa no
espirito, amo mais Al-hakem: quando com os olhos da alma vejo o nobre e
altivo gesto, a cara vasta e inteligente do meu Abdallah, amo-o mais a ele. Como
te posso eu, pois, responder, fakih?"

"E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um
e outro.

Um deles deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui
mesmo talvez, sem glória, debaixo do cutelo do algoz, ou do punhal do
assassino."

Abdu-r-rahman recuara ao ouvir estas palavras: o suor começou a descer-lhe
em bagas da cara. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentira
apertar-se-lhe o coração desde que o fakih começara a falar. A reputação de
iluminado de que gozava Al-muulin, o caracter supersticioso do kalifa, e mais
que tudo, terem verificado todas as negras profecias que num longo decurso de
anos ele lhe fizera, tudo contribuía para aterrar o príncipe dos crentes. Com voz
trémula replicou:

"Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condenar no fim da vida a
perpetua aflição, a ver correr o sangue dos meus filhos queridos ás mãos da
desonra ou da perfídia?"

"Deus é grande e justo, — interrompeu o fakih. — Acaso nunca fizeste correr
injustamente o sangue? Nunca por odio brutal despedaçaste de dor nenhum
coração de pai, de irmão, de amigo?"

Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um acento singular. Abdu-rrahman,
possuído de mal refreado susto, não atentou por isso.

"Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrível profecia —
exclamou ele por fim — sem que me expliques o modo porque se deve realizar
esse terrível sucesso; e como há de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro
dos muros de Azzahrat verter o sangue de um dos filhos do kalifa de Korthoba,
cujo nome, seja-me lícito dize-lo, é o terror dos cristãos, e a glória do
islamismo?"

Al-muulin tomou um ar imperioso e solene, estendeu a mão para o trono, e
disse:

"Assenta-te, kalifa, no teu trono, e escuta-me, porque em nome da futura
sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do império, e das vidas e do repouso
dos muçulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que
perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Sucessor do profeta, íman (*) da
divina religião do Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me."

[(*) Pontífice. Os kalifas reuniam em si o sumo império, e o sumo pontificado.]

O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro
mistério que encerravam as palavras do fakih tinham subjugado a alma
profundamente religiosa de Abdu-r-rahman. Maquinalmente subiu ao trono,
encruzou-se em cima da pilha de coxins em que ele rematava, e encostando ao
punho o rosto demudado, disse com voz presa: — "Podes falar, Suleyman-ibnAbd-al-gafir!"

Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o peito,
Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.
CAPÍTULO III

"Kalifa! — começou Al-muulin — tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o
que é a afronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e enérgico, se
este não pode repeli-la, e sem demora, com o mal ou com a afronta, vinga-la á
luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na alma desse homem, que por
todo o desagravo deixa fugir alguma lágrima furtiva, e até, ás vezes, é obrigado a
beijar a mão que o feriu nos seus mais santos afetos. Não sabes o que isto é;
porque todos os teus inimigos tem caído diante do alfange do almogaure, ou
deixado tombar a cabeça de cima do cepo do algoz. Ignoras por isso o que é o
odio; o que são essas solidões tenebrosas, por onde o ressentimento, que não
pode vir ao gesto, se dilata e vive á espera do dia da vingança. Dir-to-ei eu.
Nessa noite imensa, em que se envolve o coração chagado, há uma luz
sanguinolenta que vem do inferno, e que ilumina o espirito vagabundo. Há aí
terríveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de
desagravo. Imagina como será fácil aos altos entendimentos o encontra-lo! É
por isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, aparece ás vezes
inesperada, tremenda, irresistível, e morde-nos surgindo debaixo dos pés como a
víbora, ou despedaça-nos como o leão pulando de entre os juncais. Que lhe
importa a ela a majestade do trono, a santidade do templo, a paz domestica, o
ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distâncias, calculou as dificuldades,
meditou no silêncio, e riu-se de tudo isso!"

E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdu-r-rahman olhava para ele
espantado.

"Mas — prosseguiu o fakih — ás vezes Deus suscita um dos seus servos, um
dos seus servos de ânimo tenaz e forte, possuído também de alguma ida oculta e
profunda, que se levante, e rompa a trama urdida nas trevas. Este homem no
caso presente sou eu.

Para bem? Para mal? — Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como
se prepara a ruina do teu trono, e a destruição da tua dinastia."

"A ruina do meu trono? — gritou Abdur-r-rahman pondo-se em pé e levando
a mão ao punho da espada. — Quem, a não ser algum louco, imagina que o
trono dos Beni-Umeyyas pode, não digo desconjuntar-se, mas apenas vacilar
debaixo dos pés de Abdu-r-rahman? Quando, porém, falarás enfim claro, Almuulin?"
E a cólera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual
impassibilidade o fakih prosseguiu:

"Esqueces-te, kalifa, da tua reputação de prudência e longanimidade. Pelo
profeta! Deixa divagar um velho tonto como eu. Não!. Tens razão. Basta! O raio
que fulmina o cedro desce rápido do céu. Quero ser como ele. Amanhã a estas
horas o teu filho Abdallah ter-te-á já privado da coroa para a cingir na própria
cara, e o teu sucessor Al-hakem terá perecido sob um punhal de assassino.

Ainda te encolerizas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?"
"Infame! — exclamou Abdu-r-rahman — Hipócrita, que me tens enganado!
Tu ousas caluniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue há de correr, mas é o teu.
Crias que com essas visagens de inspirado, com esses trajos de penitência, com
essa linguagem dos santos poderias quebrar a afeição mais pura, a de um pai?
Enganas-te, Al-gafir! A minha reputação de prudente, verás que era bem
merecida."
Dizendo isto o kalifa ergueu as mãos como quem ia a bater as palmas.
Almuulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indício de
perturbação ou terror.

"Não chames ainda os eunucos; porque assim é que dás provas de que não a
merecias. Conheces que me seria impossível fugir. Para matar ou morrer sempre
é tempo. Escuta, pois, o infame, o hipócrita até o fim. Acreditarias tu na palavra
do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que ele é incapaz de mentir ao seu
amado pai, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possíveis."

O fakih desatara de novo num rir trémulo e hediondo. Meteu a mão no
peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre
a cabeça e entregou-as ao kalifa, que começou a ler com avidez. A pouco e
pouco Abdu-r-rahman foi empalidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim
deixou-se cair sobre os coxins do trono, e cobrindo a cara com as mãos,
murmurou: — "Meu Deus! porque te mereci isto!"

Al-muulin fitara nele um olhar de girifalte, e nos lábios vagueava-lhe um riso
sardónico e quase impercetível.
Os pergaminhos eram várias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das
fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos cheiks berberes, dos que se
tinham instalado na Hispânia, conhecidos pelo seu pouco afeto aos BeniUmeyyas.
O mais importante, porém, de tudo era uma extensa correspondência
com Umeyya-ibn-Ishak, guerreiro célebre e antigo alcaide de Santarém, que por
graves ofensas passara ao serviço dos cristãos de Oviedo e Astúrias com muitos
cavaleiros ilustres da sua clientela. Esta correspondência era completa de parte a
parte. Por ela se via que Abdallah contava não só com os recursos dos
muçulmanos seus parciais, mas também com importantes socorros dos infiéis
por intervenção de Umeyya. A revolução devia rebentar em Córdova pela morte
de Al-hakem e pela deposição de Abdu-r-rahman. Uma parte da guarda do
alcaçar de Azzahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas,
seria o hadjeb ou primeiro ministro do novo kalifa. Ali se liam, em fim, os
nomes dos principais personagens implicados na revolta, e todas as
circunstâncias desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquela
individuação que nas suas cartas ele constantemente exigia. Al-muulin falara
verdade: Abdu-r-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspiração,
escrita com letras de sangue pela mão do seu próprio filho.

Durante algum tempo o kalifa conservou-se como a estátua da dor na postura
que tomara. O fakih olhava fito para ele com uma espécie de cruel
complacência. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silencio: o príncipe BeniUmeyya,
esse parecia ter perdido o sentimento da vida.

"É tarde: — disse o fakih. — Chegará em breve a manhã. Chama os eunucos.
Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azzahrat deve dar
testemunho da prontidão da tua justiça. Elevei ao trono de Deus a última
oração, e estou aparelhado para morrer, eu o hipócrita, eu o infame, que
pretendia lançar sementes de odio entre ti e o teu virtuoso filho. Kalifa, quando
a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir."

Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre irónica e insolente, e ao
redor dos lábios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do fakih despertou Abdu-r-rahman dos seus tenebrosos pensamentos.
Pôs-se em pé. As lágrimas tinham corrido por aquelas faces, mas estavam
enxutas. A procela de paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do
príncipe dos crentes recobrara aparente serenidade. Descendo do trono pegou
na mão mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:

"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem aceito ao
profeta, perdoa as injúrias de um insensato! Cria ser superior á fraqueza humana.
Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou
tranquilo... bem tranquilo. Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu
tão atroz desígnio. Alguém lho inspirou: alguém verteu naquele ânimo soberbo
as vans e criminosas esperanças de subir ao trono por cima do meu cadáver e do
de Al-hakem. Não desejo sabe-lo para o absolver; porque ele já não pode evitar
o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pai fui kalifa, e Deus
confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão de
acompanha-lo todos os que o precipitaram no abismo."

"Ainda há pouco te disse — replicou Al-gafir — o que pôde inventar o ódio
que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indiferença, e até da
submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu ofendeste no seu amor próprio
de poeta, e que expulsaste de Azzahrat como um homem sem engenho nem
saber, quis provar-te que ao menos possuía o talento de conspirador. Foi ele que
preparou este terrível sucesso. Hás de confessar que se houve com destreza. Só
numa coisa não: em pretender associar-me aos seus desígnios. Associar-me?. não
digo bem. fazer-me seu instrumento. A mim!... Queria que eu te apontasse ao
povo como um impio pelas tuas alianças com os amires infiéis do Frandjat.
Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei
ao meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeyya-ibn-Ishak, o
aliado dos cristãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude coligir estas
provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças eram a miragem do deserto.
Dos seus aliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla não foram
um sonho. As cartas de Umeyya, as promessas do amir nazareno de Djalikia,(*)
tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de
Umeyya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu deixarás, kalifa,
que eu guarde para mim... Oh, os insensatos! os insensatos!"

[(*) Os árabes designavam os reis de Oviedo e Leão pelo titulo de reis de Galiza.]
E desatou a rir.

A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava trazer á
Hispânia muçulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de
poucas horas, talvez. Era necessário afoga-la em sangue. O longo habito de
reinar, junto ao caracter enérgico de Abdu-r-rahman, fazia com que nestas crises
ele desenvolvesse de um modo admirável todos os recursos que o génio
amestrado pela experiencia lhe sugeria. Recalcando no fundo do coração a cruel
lembrança de que era um filho que ia sacrificar á paz e á segurança do império, o
kalifa despediu Al-muulin, e mandando imediatamente reunir o divan deu largas
instruções ao chefe da guarda dos eslavos.

Ao romper da manhã todos os conspiradores que residiam em Córdova
estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens de
Ahdu-r-rahman aos walis das províncias e aos generais das fronteiras. Apesar
das lágrimas e rogos do generoso Al-hakem, que lutou tenazmente por salvar a
vida do seu irmão, o kalifa mostrou-se inflexível. A cabeça de Abdallah caiu aos
pés do algoz na própria camara do príncipe no palácio Merwan. Al-barr,
suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o suplício.

O dia imediato á noite em que se passou a cena entre Abdu-r-rahman e Algafir,
que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Córdova, e de luto para
muitas das mais ilustres famílias.
CAPÍTULO V

AS TRAIÇÕES


Esperávamos debalde pelos oficiais de el-rei, no dia antecedente; mas na
manhã da quarta-feira voltaram dizendo a Vasco da Gama que o samorim nos
receberia naquela manhã. Partimos; e ao chegar ao paço, as desconfianças, que
começáramos a ter na véspera, mais avultaram então: muitos naires armados
estavam reunidos no terreiro da entrada, e espalhados pelos aposentos: guiaramnos
por uma porta cerrada, que só passadas quatro horas se abriu: ali esperámos
impacientes, até que el-rei mandou que entrasse o embaixador de Portugal; mas
acompanhado só por dois dos seus. O escrivão Diogo Dias e Fernão Martins, o
língua, foram os que ele escolheu.

— Senhor Fernão Martins — disse Álvaro Velho interrompendo a leitura —,
melhor podereis narrar o que se passou entre vós e o samorim, do que a minha
escritura.

E o intérprete, tomando a mão, prosseguiu nestes termos:

— Entrados à presença de el-rei, logo descobrimos no seu aspeto carregado,
que ou ele suspeitava mal de nós, ou que alguma traição se urdia. Sem, todavia,
se perturbar, Vasco da Gama se aproximou ao estrado, onde o samorim jazia
reclinado. Perto dele estavam quatro mouros; que muitos destes cães havia entre
os oficiais do paço. Por intervenção de um deles, que me repetia em árabe as
palavras de el-rei, se travou entre este e o capitão-mor o seguinte diálogo:

« — Disseste-me que vinhas de um país muito rico; e apresentaste-te diante
mim com as mãos vazias, como nenhum mouro ousara fazê-lo, nem ainda o
mais pobre dos meus vassalos? Disseste-me que me trazias cartas do teu senhor,
e não mas destes ainda. Treme de enganar-me, frangue do Ocidente! (*)

[(*) Frangue era o nome que os mouros da índia davam aos Portugueses; de tempos
remotos foi este o nome geral com que os Maometanos designaram os cristãos da Europa;
provavelmente, porque, sendo os Franceses (Francos) a nação mais conhecida na Ásia,
desde a época das Cruzadas, confundiam todas as nações europeias,
como se fossem uma só.]

« — Por mares imensos vim a descobrir teus reinos; para os meus naturais a
própria existência destas terras era duvidosa: aparelhado estava para lutar com
tormentas e com homens (aqui Vasco da Gama apertou o punho da espada),
porém não para ostentar riquezas na tua luzida Corte.

« — Buscavas acaso pedras; ou buscavas homens? Se, como me disseste, eram
homens que procuravas, porque não trouxeste contigo coisa que os contentasse?
Já me afirmaram que na tua nau havia imagem de ouro.

« — É a da mãe de Deus: ela me sustentou sobre as águas do oceano: ela me
guiou e trouxe até às costas das índias. Bem que não de ouro, mas só dourada,
não ta dera eu por nenhum caso. Tivera-me por perdido no dia em que a
perdesse.

« — Entrega-me, então, as cartas do teu rei: vejamos o que nelas me diz.
« — Ei-las aqui, ó rei; mas que leia a que vem em aravia algum dos teus
naturais, que entenda esta linguagem: são nossos inimigos os mouros, e poderão
torcer o que nela está escrito. A que vem em português sei eu que te dará prazer.
«Lá me custou — prosseguiu Fernão Martins — o repetir aos intérpretes
mouros o gracioso cumprimento do capitão-mor; mas que remédio? Ouvindo as
minhas palavras todos quatro fizeram uma visagem, como se lhes tivessem
despejado na boca um gomil de vinagre: todavia transmitiram ao samorim as
palavras de Vasco da Gama.

«Então se mandou chamar um jovem índio, que pegando na carta, não
percebia dela uma só letra: era pois forçoso que os mouros a lessem: felizmente
nos ocorreu que se mandasse chamar o nosso amigo Monçaide, que, com os
outros, lesse aquela carta a el-rei.

«Ele chegou brevemente, e com três dos mouros a trasladou em índio; do
conteúdo deu o samorim mostras de ficar contente: depois perguntou ao capitão
que mercadorias eram as que Portugal podia mandar à índia.

« — Às primeiras necessidades da vida provê absolutamente o meu país: tem
trigo com que o homem se sustenta; panos, com que se cobre; ferro, com que se
defende — esta foi a resposta de Vasco da Gama.

« — E dessas coisas trazes algumas para mercadejar com os meus naturais?
« — Sim, trago; e ir-me-ei a bordo dos meus navios, deixando na casa em que
pousámos cinco homens, a quem mandarei essas coisas, para eles as resgatarem
por ouro e prata, ou por outras mercadorias.

« — Não deixes ninguém — atalhou o samorim —, parte com todos os teus:
e depois de amarrares bem as naus farás desembarcar isso que da tua terra
trouxeste.

«Com isto nos despedimos: Monçaide veio connosco até à pousada; e pelo
caminho nos revelou que os mouros urdiam larga trama para nos haverem de
perder: Vasco da Gama, que bem percebia o risco em que nos achávamos, ficou
todo aquele dia taciturno, e com aspeto carregado.

Fernão Martins calou-se neste ponto, e Álvaro Velho, pegando outra vez no
manuscrito, seguiu avante na sua leitura:

«No outro dia partimos para Pandarane, e apesar de nos perdermos uns dos
outros no caminho, chegámos finalmente aos estaus, em que Vasco da Gama
nos esperava para embarcarmos: era perto da noite; pedimos uma almadia, mas
o catual recusou-a, com o pretexto de que era muito tarde. Então a cólera do
capitão-mor rebentou como uma torrente: acusou o catual de traidor; ameaçouo
de que voltaria a Calecut para se queixar a el-rei; e Bontaibo, que traduzia na
linguagem dos índios as palavras de Vasco da Gama, exagerava ainda,
porventura, as suas expressões de despeito: temeu, ou fingiu temer, ó catual o
furor do capitão português, e respondeu, que em vez de uma almadia, daria
trinta, se tantas nós pretendêssemos.

«Saímos ao longo da praia: havia muito que o Sol tinha desaparecido no
ocidente; nenhuma barca por ali jazia; e o capitão, receoso de alguma cilada,
mandou Gonçalo Pires, com mais dois homens, adiante, que se encontrassem
Paulo da Gama, seu irmão, com os batéis abicados em terra, lhe dissessem que
saísse logo para as naus; porque em terra correria risco.

«Os homens não tornaram; e fartos de buscar em vão barcos, que nos
conduzissem a bordo dos nossos navios, tivemos de voltar à povoação, onde
passámos a noite em casa de um mercador mouro.

«Na manhã seguinte, a traição, até aí encoberta, se patenteou claramente.
Exigiram de Vasco da Gama que mandasse aproximar as naus à terra: recusou
ele fazê-lo; e então lhe declarou o catual, que sem isso não tornaria a pôr os pés
dentro delas.

«Soltar palavras ásperas era quanto podíamos fazer na nossa defesa; mas os
sinais de cólera só acarretaram sobre nós escárnios. Os mouros e índios, que
connosco estavam, diziam, rindo, que podíamos partir para Calecut, ou para
nossos navios, como melhor nos aprouvesse; mas as portas tinham-se cerrado, e
nós estávamos cercados de naires armados, que cuidadosamente nos guardavam.
«Por fim o catual exigia só que as velas e leme dos navios fossem trazidos
para terra: com isto, dizia ele, abrir-se-nos-ia caminho franco, dar-se-nos-ia uma
almadia, para nos recolhermos a bordo. Vasco da Gama, porém, recusou
constante qualquer condição para a sua partida, que el-rei lhe concedera solta e
livre.

«No meio destas disputas, Gonçalo Pires voltou, e nos disse que encontrara
Nicolau Coelho, capitão do Bérrio, com os batéis aproados em terra, o qual ali o
esperava. Com a ajuda de Bontaibo saiu então um dos nossos disfarçado, e foi
avisar Nicolau Coelho de que fugisse sem demora: os mouros o perceberam,
bem que tarde, e mandaram muitas almadias após os batéis; mas estas não os
puderam alcançar.

«Então recorreram à mais diabólica das tentações para abalar nossa
constância. Sentíamo-nos desfalecer à míngua; e por mais que pedíamos nos
trouxessem com que matar a fome, as nossas súplicas eram para eles nova
matéria de riso, e de pungentes escárnios.

«Eterno nos pareceu este dia de contínua agonia: e não foi essa noite menos
atribulada: as guardas se aumentaram ao cair das trevas; e tendo-nos, durante o
dia, permitido o passear por um pequeno jardim, logo que anoiteceu nos
encerraram num estreito aposento: concederam-nos, todavia, algum alimento,
que, apesar da nossa aflição, devorámos, como quem nada tinha comido desde a
tarde antecedente.

«No dia seguinte os oficiais de el-rei voltaram à nossa prisão: o seu modo era
outro; mostraram-se muito tratáveis, e por fim declararam a Vasco da Gama
que, se mandasse vir para terra as mercadorias que trazia, o deixariam ir
livremente. Esta condição era suave para quem se via em tão apertado trance, e
foi aceita. Escreveu o capitão a Paulo da Gama que mandasse para terra várias
coisas que lhe apontou: tanto que elas chegaram, abriram-se as portas da nossa
prisão, e nos mesmos batéis que as trouxeram partimos para os navios, ficando
dois em terra, para feitorizarem aquelas mercadorias.

«Ao chegarmos a bordo todos nos abraçavam, como se há muito tempo não
nos vissem: tínhamos sido, por assim o dizer, salvos das garras da morte. Vasco
da Gama ordenou que os batéis não transportassem para terra nenhumas
fazendas mais; e, passados dias, escreveu uma carta ao samorim, queixando-se
das afrontas e violências por nós recebidas. El-rei respondeu logo, dando
grandes desculpas das ofensas feitas pelos seus, e prometendo que mandaria
mercadores, que comprassem ou trocassem esses poucos objetos, que de
Portugal trouxéramos para mercadejar.

«E com efeito alguns mouros vieram a Pandarane para esse fim: mas não se
concluindo o negócio, o capitão ordenou que as fazendas ali depositadas se
levassem para Calecut, onde, porventura, se acharia para elas melhor mercado.
Disso avisou el-rei,. o qual à sua custa as fez transportar para a cidade.
«A boa amizade restabelecia-se, aparentemente, entre nós e o samorim; mas
tudo quanto este fazia era para nos enganar: os mouros tinham-no persuadido
de que éramos ladrões do mar, e, medroso das nossas bombardas, dissimulava
connosco, esperando ocasião oportuna para nos colher às mãos.

«Todavia a marinhagem ia frequentes vezes a Calecut, porém sempre aos
poucos, e com a necessária cautela. Para trazer ao reino alguma coisa do
Oriente, os marinheiros mais pobres chegavam a ponto de trocar a própria
roupa por cravo, canela, e mais especiarias: por outra parte as almadias cheias de
índios rodeavam constantemente as naus, para nos venderem toda a casta de
mantimentos, que podíamos desejar. Assim passaram muitos dias.

«Estávamos no mês de Agosto: o piloto Canacá dizia que a monção, ou
tempo próprio de atravessar o golfão, que divide a África da índia, era chegada:
cumpria partir; e Vasco da Gama mandou avisar disto o samorim, pedindo-lhe
que fizesse embarcar os embaixadores, que, segundo lhe anunciara, queria enviar
ao seu irmão o rei de Portugal, e ao mesmo tempo lhe permitisse, que em nome
dele trouxesse ao seu senhor, el-rei D. Manuel, certa porção de especiarias,
como amostra dos preciosos géneros que a índia produzia.

«Foi neste ponto, que a má vontade de el-rei de Calecut apareceu a lume: um
presente que, mandando este recado, lhe fizera o capitão-mor, não o quis ele
ver, e respondeu a Diogo Dias, escrivão da nau S. Gabriel, o qual fora com esta
mensagem, que, antes de partirem, os portugueses deviam pagar-lhe seiscentos
xerafins, como era estabelecido para todos aqueles que vinham mercadejar aos
seus portos.

«Diogo Dias fora deixado em terra com Álvaro de Braga, para feitorizarem as
mercadorias, que se haviam desembarcado; e aí deviam ficar até a volta de nova
armada. Ouvida a determinação de el-rei, voltou à casa onde morava, resolvido a
vir a bordo relatar a Vasco da Gama o que sucedera; ao chegar à pousada viu-a
rodeada de homens armados: entrou, e juntamente com o seu companheiro foi
retido nela pelos naires, enquanto pela cidade se lançavam, como depois contou
Bontaibo, temerosos pregões, para que ninguém da cidade tivesse comunicação
com a armada.

«Felizmente um jovem negro, que com eles estava, pôde escapar à vigilância
das guardas: correu à praia: a noite começava a cerrar-se; nenhuma barca o quis
tomar, até que, já cansado de andar ao longo da costa, achou no extremo da
cidade uns pescadores, que a troco de algum dinheiro o conduziram a bordo,
fugindo outra vez para terra encobertos pelo escuro, com receio de serem
severamente punidos.

«Passou-se o seguinte dia, sem que uma só barca viesse aos navios: em conta
de perdidos tínhamos Diogo Dias e Álvaro de Braga. Na manhã imediata — era
o dia da Assunção da Virgem — os vigias do S. Gabriel viram aproximar-se uma
almadia: chegaram a bordo quatro índios que davam mostras de quererem
vender-nos pedras preciosas: deixaram-nos subir; e Vasco da Gama, fingindo
ignorar a prisão dos feitores, os acolheu, como se estivéssemos em boa paz com
o seu rei: e por eles mandou uma carta a Diogo Dias pelo teor da qual
mostrávamos não saber o que sucedera em terra.

«Isto enganou os de Calecut, que começaram a vir a bordo com frequência,
até que no domingo seguinte chegou uma almadia com seis mercadores, que,
pela riqueza do trajo, pareciam pessoas principais: tanto que estes subiram,
Vasco da Gama os mandou prender, e mais doze homens dos que com eles
vinham, enviando pelos outros uma carta ameaçadora ao samorim, na qual dizia
que pelos dois portugueses, que deixava na índia, levava em reféns estes
mercadores, uma vez que logo não lhe fossem os seus restituídos. Depois
levantámos ferro, e como o vento era contrário, andámos quatro dias
bordejando na enseada, fundeando, finalmente, à espera do vento, tanto ao mar
que não víamos a terra.

— Agora, senhor Álvaro — disse Álvaro Velho para o de Braga —, a vós
toca referir o que com Diogo Dias passastes, quando vos deixámos nas mãos
daqueles cães.

E Álvaro de Braga disse:
— Logo que em Calecut se espalhou a nova de que vós outros éreis já ao
largo, as mulheres e filhos dos que tínheis cativos correram ao paço, fazendo
grandes choros; a sua aflição, que abrangia a muita gente, por serem aqueles
mercadores dos principais, comoveu o ânimo de el-rei, que nos mandou chamar,
mostrando-se muito irado contra o catual, e ordenando que fôssemos ambos
postos em liberdade: “Em nada sou culpado de quanto vos aconteceu — disse
ele a Diogo Dias. — Ide dizer ao vosso capitão que me solte meus vassalos; e tu
podes voltar a terra para negociar a fazenda que aí tendes: para prova de que
desejo a boa amizade dos Portugueses escreverei ao meu irmão D. Manuel, e
será na sua própria linguagem.” Então Bontaibo, que aí fora chamado por
intérprete, deu uma ola, ou folha de palmeira, a Diogo Dias, que nela escreveu
com uma pena de ferro a carta que o samorim ditou para el-rei de Portugal, e
que ele trouxe ao capitão-mor.

«No dia seguinte uma almadia nos conduziu a ambos a bordo do S. Gabriel, e
muitas outras barcas iam connosco para levarem os que ali se achavam cativos:
temerosos todavia da vingança dos portugueses, lançaram-nos no batel da nau,
que ainda flutuava à popa.

«Tanto que chegastes — disse Álvaro Velho, prosseguindo a leitura —, Vasco
da Gama mandou descer à almadia os seis prisioneiros principais, dizendo-lhes
que mandaria os outros, quando viessem as mercadorias, que ainda haviam
ficado em terra. Partiram, e ao romper da alva, Bontaibo veio ter connosco:
tinham querido matá-lo os outros mouros, dizendo que era nosso espia.
Recebemo-lo como amigo, e o capitão-mor lhe prometeu que el-rei lhe faria
mercê: foi ele quem miudamente nos contou as traições que contra nós estavam
urdidas; e de que ainda ontem tivemos mais uma prova.

«Seriam dez horas da manhã, quando vimos vogar para nós sete barcas cheias
de gente: três se aproximaram, trazendo na borda pendurados alguns panos dos
que Diogo Dias deixara em terra: pareciam querer mostrar com isto que vinham
restituir-nos a fazenda, que ficara no seu poder; mas o capitão-mor os fez afastar
às bombardadas, porque resolvera trazer consigo a Portugal os homens que
cativara.

«Desfraldámos as velas ao vento: depois de três meses de demora neste país
traiçoeiro, a índia ficou descoberta; e nós levaremos a el-rei D. Manuel a certeza
de que o seu nome será imortal na história.

Álvaro Velho calou-se: o seu manuscrito ainda tinha várias folhas em branco;
ele as encheu depois; mas chegando ao reino, ninguém fez caso dele, nem do
que escrevera: só passados muitos anos, um bedel da universidade, chamado
Fernão Lopes de Castanheda, desenterrou em Santa Cruz de Coimbra aquele
caderno precioso, e dele se serviu para compor a mais curiosa porção do
primeiro livro da sua História da índia.

Quando a leitura acabou, o dia vinha rompendo: a candeia da bitácula
começava a bruxulear já frouxa; e os homens do quarto, substituídos por outros,
foram repousar da sua longa vigília.