Século VIII

Um som de queixume e pavor — um grito tremendo e doloroso escutava-se
em todas as províncias de Hispânia. Desde os fraguedos de Gibraltar, até os
distantes desvios das Astúrias, não se via senão desespero, aflição e luto. O
império fugira das mãos dos Godos, o trono de Rodrigo (*) jazia por terra, e
estava fadado que a altiva Hispânia sofresse o jugo do invasor muçulmano.
[(*) Rodrigo: Último soberano do império visigodo da Hispânia.
Quando foi eleito rei, era duque de Bética,parte da Península Hispânica hoje chamada
Andaluzia. A Bética foi buscar o seu nome a Bétis, antiga designação do Guadalquivir.]
Que espantoso espetáculo era aos olhos de um cristão o ver o velho e o
mesquinho; o fraco, o enfermo e o indefeso; a mãe com o seu filho nos braços;
o monge com o crucifixo que salvara; o jovem e a donzela; o marido e a quase
desfalecida esposa — fugindo em tropel pelas estradas, e abandonando os seus
tetos queridos para se acolherem nas cidades muradas, a fim de escaparem ao
ferro do infiel despiedoso! Desde a batalha dos oito dias (*) o terrível inimigo
tinha voado de conquista a conquista, sem dar nem tomar repouso.
[(*) A batalha de Guadalete, em que findou o império godo, durou oito dias e oito noites.]
O Árabe feroz e o incansável Sarraceno tinham-se ligado com os desumanos
filhos da África. A mesma crença os tinha fraternizado; o mesmo espírito de
uma religião feroz, e de uma ambição desvairada, os havia tornado
conquistadores. Nenhuma barreira que não fosse efémera, se podia opor à série
das suas vitórias, que, devorando tanto as aldeias como as cidades, levavam a
assolação a toda a parte, com tal força, que nem paços fortificados, nem
baluartes, nem castelos torreados, lhes podiam obstar. Diante deles, o país
parecia os jardins do Éden; atrás deles, um ermo árido e despido.
Mas o império godo não baqueou com ignomínia: não herdaram os filhos da
Hispânia nenhuma herança de opróbrio. O trono de Rodrigo só foi destruído
pelas perfídias de traidores, e à custa de batalhas muito feridas. Os exércitos
godos não fugiram; foram passados à espada e totalmente aniquilados; mas
deixando repassadas de sangue mourisco as veigas do Meio-Dia, e tintas nele as
correntes do Xerez. Quando até já não existiam nem as esforçadas legiões
espanholas, nem o seu capitão, na planície vizinha a cada castelo, a cada cidade,
tinham os agarenos que lutar e vencer um combate de morte; era um vasto
campo de batalha que se estendia perante eles desde os enfileirados cimos das
montanhas nevadas até os vales dos Pirenéus.
Época medonha foi esta para a Hispânia! A assolação, tremenda e irresistível,
assemelhava-se a uma torrente caudalosa, que saindo do leito profundo, que
durante séculos a conteve, submerge as aldeias espalhadas pelas suas antigas
margens, tornando-as em montões de ruínas, ou antes podia-se comparar a mil
torrentes descendo repentina mente das montanhas e vindo afluir nos vales —
tão imprevista, tão irresistível era aquela súbita devastação.
A bela Andaluzia foi a primeira vítima. De mar a mar: desde os rochedos do
Sul até os cabeços das Alpujarras, as cidades foram incendiadas, os templos
profanados e os sacerdotes expulsos deles. O ferro exterminou uma população
inteira, e debaixo dos pés duros do Africano e do Árabe, as mesmas campinas,
outrora tão lindas, e os vales relvosos, amareleceram e secaram-se. E a sorte da
Andaluzia era a que esperava a Hispânia inteira.
Lá soa pelas ameias da torre de atalaia de Áuria um grito estremecedor:
«Mouros! Mouros! Ei-los! Ei-los!» E mil bocas repetiram este grito de baluarte
em baluarte, de ameia em ameia, de palácio em palácio, e de choupana em
choupana: «Os mouros! Ei-los, ei-los!» Mas não era esta voz a do pavor ou
descorçoamento — não se ouvia ali o estrépito do exército preparando-se para o
combate, nem o murmúrio do povo tumultuando, nem revolta, nem sinal de
terror: tudo estava pronto. Por nove dias estiveram abertas as portas de Áuria
desde o amanhecer até o sol-posto, para receberem dentro dos muros os
desgraçados fugitivos, que para ali corriam de todas as terras próximas, temendo
a chegada dos bárbaros muçulmanos: nove dias lhes ofereceram os muros de
Áuria este asilo transitório; passados eles, as pesadas portas se aferrolharam.
Havia justamente um instante, que o som dos ferrolhos e batentes tinha
repercutido nos ouvidos dos sentinelas, quando se ouviu clamar na atalaia:
«Mouros! Eis os mouros!»
Passou uma hora — hora durante a qual todos os corações estavam cheios de
uma resolução inabalável e sofrida, a qual se reforçava a cada momento mais.
Ela passou — e as portas de Áuria foram cercadas. Não pelos mouros! — ainda
não pelos mouros; mas pelo tropel desvairado dos camponeses, que em altos
gritos pediam guarida. Ainda que só por uma hora mais se concedesse a entrada,
os de novo chegados eram tantos, que bastariam para povoar uma cidade inteira.
Debalde lhes diziam os de dentro que Áuria estava já atulhada; as palavras, que
lhes dirigiam para acalmar a sua desesperação, não faziam senão excitar mais
altos e enfurecidos clamores. A cada instante se aproximava mais o inimigo. Os
soldados, que das alturas fortificadas tinham, sem se comoverem, escutado as
pragas e as ameaças dos homens, pareciam já não poderem resistir ao olhar
suplicante e aos gemidos profundos das mulheres, que imploravam piedade; mas
os cabos de guerra estavam firmes na resolução tomada: com os olhos enxutos e
os corações partidos de dor, recusaram absolutamente abrir as portas, vendo
bem que a imediata consequência disso seria a destruição de todos. Entretanto
fizeram deitar das muralhas abaixo todas as armas que se podiam dispensar; e os
que estavam de fora apenas tiveram tempo de lançar mão delas, e formarem um
círculo à roda das mulheres e filhos, antes da chegada dos seus cruéis
perseguidores. Os valentes de Áuria desejariam voar no seu socorro; mas não
era possível abrir as portas em tal crise: seria um louco heroísmo o tentá-lo.
Naquele momento, com um tremendo Allah! e com a ferocidade de selvagens,
os maometanos correram à sua presa. No princípio os desesperados godos
ficaram tranquilos, e as suas caras imóveis, como se fossem de bronze; depois,
como por um impulso do instinto, posto que tão mal armados, deram sobre o
inimigo com tal fúria, que lhe fizeram bem conhecer a receção que deviam
esperar em Áuria, dando ao mesmo tempo aos seus compatriotas, que das
ameias olhavam para eles espantados, uma lição semelhante à que deu Leónidas
com os seus trezentos soldados ao resto da Grécia (*). Breve acabou a sua
resistência inútil: seguiu-se uma horrível matança de velhos e de inválidos —
uma bárbara carnificina de mulheres; depois uma pausa silenciosa. Tinha
anoitecido.
[(*) Lição que deu Leónidas ao resto da Grécia: Alusão à batalha do desfiladeiro
das Termópilas, em que Leónidas, rei de Esparta, apenas com trezentos soldados,
conseguiu deter o avanço de Xerxes I, rei da Pérsia, que acabou por vencer devido
apenas a um erro estratégico do adversário. Antes de morrer, Leónidas mandou
gravar num dos rochedos do desfiladeiro a legenda: «Viandante, vai dizer a
Esparta que morremos aqui, em obediência às suas leis.»]
Os vencedores descansaram um dia da sua obra de sangue, talvez para cobrar
alento, talvez à espera de novas cabildas da sua raça sanguinária, que à pressa se
aproximavam. Nem os de dentro podiam capitular, nem os de fora ofereciam
condições para isso: veio e passou o terceiro dia do cerco, e os cercados
indignavam-se do repouso e vagar dos infiéis. Mil dos mais esforçados
resolveram-se a fazer uma correria, e a acometê-los. Afonso, guerreiro ilustre, os
devia capitanear.
Entregue às preocupações daquela audaz entrepresa, Afonso sentia o coração
bater-lhe de exultação, e trasbordando de gozo afagava o seu ligeiro cavalo.
Guerreando por outras terras, não tinha assistido à batalha de Xerez; mas
depressa lhe havia chegado aos ouvidos o brado da ruína da sua pátria. Nem
duvidoso, nem secreto era o assustador progresso do inimigo da Cruz, o qual
enchia de terror todas as nações da cristandade. Olhado de longe, maior ainda se
representava o dano: era como um prodígio que fazia tremer os homens; era
como se um cometa, até então desconhecido, tivesse aparecido nos céus, e
corresse com a rapidez do relâmpago para a terra ameaçada por ele. Afonso
ouvira contar a vitória e os triunfos dos muçulmanos no seu país natal; e a
indignação, e pensamentos eivados de remorsos ardiam dentro na sua alma.
Decerto, para dar asas à pressa que tinha de voltar, não era preciso saber que
Elfrida — a prometida esposa — existia num país entregue à devastação de
infiéis.
Quando pela última vez pousara nas salas do seu castelo, os pensamentos que
tinha, os sonhos que sonhava, eram de prazer e de glória. E agora a vergonha de
tantos reveses era dentro dele um fogo devorador, que estava a ponto de
chamejar! Elfrida refugiara-se em Áuria, antes da chegada de Afonso: nove dias
depois ele chegou ali, seguido de um tropel numeroso.
Ao enxergarem-se em distância os flutuantes pendões dos maometanos, o
guerreiro e a sua amante olhavam de um cubelo para as planícies, que se
estendiam em frente de Áuria.
— Lá, lá ao longe — disse o cavaleiro — onde os estandartes da blasfémia
ondeiam, jaz o nosso aprazível senhorio. Nosso! Oh não! Louca vaidade foi
quem me inspirou esta palavra: não é já nosso; nunca mais o será. Agora mesmo
ele é calcado aos pés do cavalo árabe. Oh! eles são vagarosos! Há tanto tempo
que os observo, e parece que estão imóveis!
O róseo rosto de Elfrida estava voltado para ele — e sem descorar de susto.
O cavaleiro cravou nela os olhos.
— Elfrida — disse ele —, os mouros não te assassinarão; não poderão
assassinar-te! — E depois de uma pausa acrescentou, com ar duvidoso, e um
tanto carregado: — Que te parece, Elfrida, não podes tu vir ainda a ser esposa
de um muçulmano?
Ela recuou a estas palavras, como se uma blasfémia lhe tivesse retumbado nos
ouvidos.
— E és tu, Afonso — exclamou —, és tu que perguntas a Elfrida se tem o
coração de um apóstata?
Sua voz, seu gesto, seu lindo rosto demudado pelo horror, fizeram estremecer
o guerreiro; mas antes de poder replicar, essa voz, esse gesto, essas faces tinham
asserenado; e as lágrimas lhe borbulhavam nos olhos. Correndo o braço pela
cara, ela as enxugou.
— Afonso — prosseguiu a donzela —, posso eu esquecer jamais os dias da
infância e da juventude, em que juntos crescemos? Ser-me-ia dado esquecer a
oração da inocência, que no mesmo dia a ambos nos ensinaram? Perderia eu a
lembrança das horas deleitosas durante as quais, nestes últimos anos,
passeávamos juntos ao pôr do Sol, nas nossas aprazíveis veigas? Esquecerei eu
jamais a hora atual?
E parou, porque a profunda comoção que sentia lhe embargava os sons
articulados. Então o cavaleiro replicou com vivacidade.
— Oh sim! Esquece a hora presente: esquece ao menos esse instante em que
tão iníquo pensamento achou expressões nos meus lábios.
Mas reanimando-se e olhando para ele, Elfrida continuou:
— Agora escuta-me, Afonso, e não te esqueças nunca do que te digo. Eu to
ordeno: não ofereças a vida a uma certa destruição. Não é por amor de mim,
nem de ti que to mando: é por amor da Hispânia. Quando Áuria deixar de
existir, e nós, tristes mulheres, recebermos a honra de um sepulcro, tal como as
ruínas destas torres demolidas, não te demores para tomar uma inútil vingança:
foge para as remotas Astúrias; lá vagueiam ainda muitos esforçados guerreiros, e
seja o teu cuidado único, junto com eles, o de redimir das mãos dos infiéis o
nosso malfadado país.
Então Afonso, cheio de admiração e gozo, exclamou:
— Tu o mandas! Eu consagrarei à Hispânia esta espada: mas tu não morrerás
aqui, nem para isso eu pouparei a vida. Se o Céu o consente, Elfrida, nunca nos
separaremos! Promete-me uma coisa!
— Eu ta prometo.
— Pois bem! Se os infiéis submeterem Áuria, vem ter comigo aqui.
Separaram-se — e o inimigo chegou esse mesmo dia, antes do pôr do Sol.
***
Há três dias que os mouros estavam acampados diante de Áuria, quando
Afonso e os seus soldados impacientes saíram ao campo. As portas fecharam-se
atrás deles. Ei-los travados com o inimigo!
Nunca tão rijo encontro tinham experimentado os invasores. Mortal vingança
guiava as espadas dos godos, e durante muito tempo o conflito não parecia mais
do que uma ceifa de vidas e membros de mouros. Os infiéis iam fugindo diante
dos cristãos, por tal modo, que parecia os tomavam pelo feroz Éblis (*), e pelos
demónios seus companheiros, vindos à voz do profeta a castigá-los de terem,
por três dias, demorado o assalto.
[(*) Êblis: O equivalente árabe para Satanás.]
Os mil de Áuria cortavam nos mouros com um furor incansável, oferecendo
assim repetidas hecatombes às cinzas dos compatrícios assassinados. Nenhum
deles estava ainda ferido; mas o inimigo já os estreitava. Afonso fez reunir
aquele punhado de heróis. Os mouros tinham voltado sobre eles com todo o
seu poder, e começavam a fazer nos godos uma terrível matança: na volta para a
cidade quatrocentos deles caíram mortos; mas ressoaram em Áuria as orações e
as graças ao Céu, quando os seiscentos voltaram com o seu capitão.
Acabaram as demoras no exército dos exasperados invasores. Nem descanso
nem piedade deviam esperar já os godos. Diariamente eles iludiam as esperanças
dos mouros, posto que mesmo as solenes horas da noite (a noite por quem
tantas vezes suspiram os desgraçados) — as horas do desejado descanso não
lhes traziam repouso; mas, pelo contrário, os allahs dos moslemes, e o retinir
dos alfanges e o estrépito dos furiosos agarenos, subindo a alguma nova brecha,
e caindo despenhados dela, e os gritos de aplauso dos cristãos — eram os sons
que despertavam os ecos noturnos da cidade silenciosa, e que não cessavam
desde o anoitecer até o despontar da manhã.
Um coro lamentável se ouvia em Áuria — tal como nunca se tinha ouvido —
e gemidos de íntima aflição ressoavam em toda a cidade como se fosse uma voz
única. A fome tinha chegado. Os velhos e os principais do povo se reuniram em
conselho, e a incerteza fazia bater insuportavelmente todos os corações; mas
ninguém se lembrava de ceder ao odioso conquistador. Levantou-se então um
velho para falar: o seu porte era majestoso; a sua cara a de um profeta; mas a
espada lhe pendia da cinta. Tinha a cabeça descoberta, e os longos, raros e alvos
cabelos lhe caíam sobre os ombros; porém sua voz, forte e clara, não estava
ainda sumida pela idade, nem pelas desditas.
— Não cedamos — começou ele —, não cedamos! Talvez Deus nos envie
socorro.
O velho olhou para a multidão esfaimada que o rodeava, e ergueu os olhos ao
Céu; mas recolhendo em si toda a sua energia voltou a romper o silêncio.
— Qual dentre nós não tem encarado cem vezes a morte? Qual de nós a
temerá agora? Por mim estou resolvido: sou velho, assaz velho, de mais tenho
eu vivido! Não mais tornarei a provar o pão que diariamente recebo: eu o cedo
aos homens jovens e robustos; muitos outros de bom grado farão o mesmo.
Este é pois o meu conselho: em Áuria há sustento para nove dias, ainda sendo
repartido por todos; divida-se o povo em duas partes: metade defenderá a cidade
por dezoito dias destes ímpios africanos, e talvez durante esse tempo sejam
socorridos; a outra metade junte-se comigo, retiremo-nos para o lado ocidental
da cidade, e morramos às mãos da fome: isto não é mais do que receber dez dias
antes a coroa do martírio; ou, se a alguém isso convier, saia ao inimigo para
morrer ou salvar-se, podendo, nas montanhas vizinhas.
Calou-se o velho e desapareceu. Tudo ficou sepultado num silêncio
semelhante ao da morte.
Às vezes sente-se um ruído soturno e subterrâneo, que precede e anuncia o
próximo terremoto: assim daí a pouco começou um murmúrio de vozes
confusas entre a multidão; depois, palavras mais altas, mas ininteligíveis;
rapidamente cresceu o burburinho com altas expressões de angústia, posto que a
espaços um terrível silêncio prendia todos os lábios.
Então retumbou nos baluartes:
— Mouros! Mouros! Foge, foge!
O tropel que estava reunido gelou. Todos arrancaram das espadas e ficaram
imóveis porque era inútil fugir. Os despiedados infiéis tinham levado a melhoria.
O seu campo havia estreitado os muros e podido romper para dentro. Áuria
estava perdida.
Era pelo fim da tarde, e o Sol mergulhou-se nas trevas; mas toda a noite os
indomáveis godos sustentaram a lide. A cada instante se rareavam as suas
fileiras, e a cada instante dobrava a firmeza neles. Ao romper do dia é que viram
com espanto a que número estavam reduzidos. Como a seara madura, que
espera pela foice do segador, assim eles foram ceifados: uns ao pé dos outros
caíram até não restar um só que brandisse o ferro contra o seu destruidor.
Afonso, com vinte dos seus fiéis soldados, tinha-se retirado furioso da
desigual batalha. E onde estava Elfrida? A torre em que a devia encontrar era já
meia por terra, e correndo para lá, viu que um grande número dos seus
compatriotas tinha-se retirado para ali como para um lugar de refúgio, onde seus
irmãos e os seus pais as defendiam ainda dos bárbaros com a ferocidade de
leões, aguilhoados pelo delírio da desesperação, que gerava neles um valor mais
que humano.
Afonso e os seus passaram a toda a brida através das fileiras inimigas, e
fazendo o último esforço chegaram à torre. A falange dos godos se abriu para os
receber, e deu um grito de frenética alegria vendo ainda vivo o seu capitão.
Elfrida ali se achava, e a promessa que fizera estava cumprida. O guerreiro
pregou nela os olhos lampejantes, mas sem se lhe ouvir uma palavra. Voltou o
seu cavalo, coberto de escuma e de sangue, e que corria avante furioso.
— Agora, Santiago! (*) — aclamou ele. — Estes pagãos malditos de Deus
não ganharão uma fácil vitória.
[(*) Aclamação de guerra do cristão da Península Ibérica da época.
Santiago ou “Sant’Iago”, era, durante a idade média, considerado como o padroeiro da
Hispânica visigótica. Portugal quando se fundou como reino
manteve o Santiago como padroeiro até ao reinado de Dom Afonso IV (1291 — 1357),
altura em que substitui-o por São Jorge, mudando, com também o seu grito de batalha
para “Por São Jorge”. Logo que os muçulmanos o viram, reconheceram-no pelas plumas do elmo,
e por aquela espada cortadora que tinham experimentado no combate em frente
de Áuria pela primeira vez, e que desde este dia sanguinoso lhes era familiar,
encontrando-a em todas as brechas e entre as primeiras que delas os
rechaçavam. Até àquele momento os audazes godos, que lutavam mais como
demónios, do que como homens, os tinham entretido à entrada do baluarte; mas
depois que os infiéis o viram retiraram-se precipitadamente. Era esta a crise, e
Afonso, vendo que muitos dos seus compatrícios perseguiam os fugitivos
levando-os diante de si, aproveitou a ocasião. Voltou apressadamente à torre,
com outros que o acompanhavam, e antes de meia hora Elfrida estava fora de
Áuria, as chamas de cujos palácios subiam já ao céu, e ao seu lado caminhava
Afonso com doze homens, que lhe restavam.
Três dias de indistinta matança — três dias de fogo devorador, e Áuria estava
reduzida a pó. Cada habitação era um sepulcro, as ruínas fumegantes de cada
palácio eram um monumento da morte, e cada torre dentro dos seus muros
vacilantes era uma vasta catacumba cheia de humanos cadáveres.
Seguindo sempre avante, Afonso volveu os olhos para a cidade vencida. As
bandeiras tremulantes dos agarenos se descobriam em distância, e as armas
lampejavam com os raios do Sol. Ele era perseguido. Ainda aqueles bárbaros
não tinham saciado a sua sede de sangue cristão, e o deixar escapar uma vítima
era generosidade que eles não conheciam; pelo contrário, a estes sectários de
uma religião cruel a compaixão parecia uma impiedade. Ansiosamente
prosseguiam os fugitivos seu caminho por uma planície coberta só de ruínas.
Eles fugiam para o norte; mas os mouros os alcançaram com a rapidez de um
turbilhão. Estavam ainda próximos de Áuria, e o cavalo em que ia Elfrida
tropeçou num elmo quebrado e caiu. Acontecimento fatal! Afonso gritou aos
seus:
— Volta, volta: façamos-lhes frente!
Mas apenas tinham ajudado Elfrida a cavalgar outra vez, e iam obedecer à voz
do seu capitão, já os seus perseguidores eram de envolta com eles. Não houve
um momento para deliberar; a multidão dos mouros cercava os heróis, e a
batalha não podia durar muito entre os combatentes. Coberto de feridas, que
jorravam sangue, Afonso caiu, e Elfrida, vendo isto, se arremessou também por
terra: seu desejo era morrer; porém no meio do tumulto não houve uma
propícia mão que a ferisse, nem um cavalo furioso que debaixo dos pés a
calcasse. Em menos de uma hora ela se achava cativa nas tendas de Islão.
Um godo desleal, que havia abjurado a Cruz, era o guarda das cativas. Não era
Elfrida a única dentre os cristãos que ali se achava: mais três filhas de Áuria
estavam com ela. Durante muitos dias foi esse miserável godo o único ser
humano que viram: entre um povo estranho cuja língua não entendiam, vê-lo
tinha-se tornado numa espécie de consolo, e ansiosas esperavam sempre a hora
periódica em que devia voltar. Era ele o único intérprete das ordens dos seus
senhores, e só abria a boca para lhas comunicar. Ainda assim alegravam-se ao
sentir-lhe passos; e a voz de um renegado era grata aos seus ouvidos porque
exprimia os sons da cara linguagem materna. Só elas tinham escapado ao
extermínio geral; e guardada lhes estava a escolha entre a apostasia e a morte.
Contudo a sua prisão não era dura; e só se podiam chamar cativas pelo estrito
cuidado que havia em lhes impedir a fuga. Todas elas eram novas, todas belas,
todas órfãs: pais, mães, parentes, amantes, amigos, todos aos seus olhos foram
mortos; e elas, oh abismo de ignomínia! , só tinham sido salvas para saciar os
‘desejos de algum dos bárbaros conquistadores. Breve chegou o instante em que
era preciso escolher ou a conservação de uma vida eternamente oprobriosa ou a
morte com fama imortal. Trazendo esta horrível mensagem, as faces
descarnadas do velho godo estavam pálidas como de susto:
— Morrei! ou abandonai a fé do Crucificado!
Foi com voz trémula que ele disse isto. As cativas não sentiam um terror
semelhante ao seu: sem demora, sem o amor da vida as fazer contender sobre
qual seria a primeira, olhando para o apóstata, com amargo desprezo,
escolheram a morte, e uma a uma foram conduzidas ao suplício. Chegou a vez
de Elfrida, que para lá se encaminhou pensativa, mas firme. De repente,
voltando-se, perguntou ao godo com voz tranquila:
— Pode acaso ser-me dado tempo para escolher?
Depressa levou ele recado aos seus senhores, e depressa voltou com a
resposta.
— Tendes doze horas: no fim delas, dareis forçosamente a decisão.
E muitos muçulmanos deslumbrados pela sua formosura seguiram com os
olhos a cativa, que semelhava uma rainha no meio dos guardas que a levavam à
sua prisão.
***
Passadas três horas o intérprete chegou: era este o espaço que devia mediar
entre uma e outra visita. Isto lhe fora ordenado sob pena de morte. Não se
atreveu a falar a Elfrida, porque esta não olhou para ele ao entrar, como
costumava; e sem dar palavra voltou a sair outra vez.
Passaram mais três horas e o godo voltou outra vez.
— Senhora, trago boas novas! — disse ele. — Abdelazim, nobre árabe do
nosso campo, me envia a vós; ele vos manda dizer que vos ama. Será para vós
bem suave destino o viver, e serdes sua esposa querida. Mas escutai-me: ainda
vos direi mais: foi Abdelazim quem nos campos vizinhos de Áuria vos ergueu
do chão, onde jazíeis desmaiada, e onde se não fosse ele seríeis calcada aos pés
dos cavalos. Foi ele quem vos salvou das espadas dos seus companheiros, que
vos atalharam a fuga. Foi ele quem para aqui vos conduziu a salvo.
— Era porventura — perguntou a altiva dama — um cavaleiro, cujo turbante
era mais elevado, e cujos trajos eram mais ricos, do que os dos seus camaradas?
— O mesmo — replicou o godo.
— Então é ele também — exclamou Elfrida — quem derrubou Afonso, o
mais valente guerreiro de Áuria! Escuta-me, pois, oh godo; a minha resposta é
esta, e não o duvides. Estou resolvida a morrer!, nem creias que receio a morte.
Perseguiu-me, a noite passada, a ideia de que o Céu me guardava outros fados, e
que brevemente a sua omnipotência viria no meu socorro. Não penses,
portanto, que uma vil hesitação me fez pedir esta demora de doze horas: eu
previa que era necessária ainda na Terra, e que não devia morrer tão cedo.
Quaisquer que sejam os meus destinos, eu não descerei ao sepulcro, sem os ver
cumpridos. Agora pensa um pouco: que és tu aqui? Um desprezível apóstata, de
quem estes mesmos bárbaros se não fiam inteiramente. Em algum momento de
desconfiança te assassinarão. Queres tu ser rico? Queres tu possuir as pompas e
grandezas que a riqueza te pode alcançar noutro qualquer país? Godo, respondeme!
O seu olhar feroz, que penetrava até os seios da alma, aterrou o assustado
velho, que ficou mudo diante dela. Elfrida percebeu a sua perturbação, e antes
dele poder responder, continuou com altivez:
— Eu tenho mais riquezas do que todas as que tu podes imaginar nos teus
sonhos de ambição. Serão tuas, oh godo; serão tuas!, e com elas poderás fugir
para algum país mais seguro do que este. Para destruir tuas dúvidas neste mesmo
lugar te posso dar um sinal do que te farei possuir. Em paga de tais benefícios só
te peço uma coisa: que executes com fidelidade, por oito dias, as minhas ordens,
e só as minhas. Não hesites! Não te é novo o mudar de senhor. Já deixaste a
mais nobre causa, para seguir a mais vil: não te deve custar agora tanto o trocar
o mal pelo bem. Sabe mais que nada arriscarás no serviço que te peço: sendo-me
leal, estás seguro. Lembro-te que eu não receio morrer: que até a isso estou
resolvida. Se me atraiçoares a ti só atraiçoas. Ficaste imóvel? Vai, pensa uma
hora: não mais; depois torna aqui.
Dizendo isto voltou-lhe as costas, e o seu guarda desapareceu.
Elfrida apenas podia conter a satisfação de assim haver enredado o godo.
Nunca houve hora, que lhe parecesse tão longa como esta; e crendo antes de
tempo que ela tinha passado, já começava a temer que o vil apóstata não
voltasse; mas finda ela. o godo voltou.
— Senhora — disse ele —, pensei nas palavras que me haveis dito, e não
posso obedecer-vos. Formosa dama, eu me compadeço de vós!
— Compadeceres-te de mim! — interrompeu ela, sufocada de furor. —
Compadeceres-te de mim! Desgraçado! Compadece-te de ti que estás no meu
poder! Que atrevimento é o teu? Que significam estes elogios que me fazes de
formosa? Agora compreendo bem o sentido das tuas lisonjeiras e doces
expressões. Abdelazim verá como executaste fielmente a comissão, de que te
encarregou. Saberá o árabe teu senhor que buscaste substituí-lo e empolgar a sua
presa.
O apóstata ficou aterrado; mas entrando em si, no mesmo instante, respondeu
com um sorriso.
— Débil mulher! E quem referirá ao nobre árabe o conto sentimental da
presunção do teu intérprete?
— Quem, dizes tu? — clamou Elfrida com o acento de uma raiva profunda, e
parou; mas por um momento. — Quem? tu mesmo! Serás tu em ferros quem
lho diga. Oh lá!, não há aí guardas? É esta a hora própria de entrares assim
clandestinamente no quarto da tua cativa? Ainda não passaram três horas depois
que estiveste aqui. Oh lá, guardas!
E ela corria para a porta.
— Parai, parai, senhora! — clamou o godo aterrado.
— Fala já! — gritou a desvairada Elfrida, com uma voz retumbante. — Fala
já, ou morres por ter aqui entrado. Não te demores; ajoelha, e promete de ser
meu servo, só por estes oito dias, de que te falei; e a vida e as riquezas serão
tuas.
Ela tinha a dextra estendida para o godo, e vendo-o irresoluto e estupefacto,
lhe arrancou um punhal, que tinha à cintura, pendurado junto do alfange, e ia
outra vez dirigir-se para a porta. Então o velho caiu aos seus pés.
— Jura em nome do Céu! — disse ela; e, humilde, o renegado deu o pedido
juramento.
Elfrida se tranquilizou pouco a pouco:
— Agora procura Abdelazim — prosseguiu ela. — Diz-lhe que o meu nome
é Elfrida e que nada mais saberá. Vai e assegura-lhe que serei sua esposa.
Então tirando uma joia que tinha escondida:
— Aí tens — acrescentou — o prometido sinal das riquezas que te ofereci (os
olhos do godo brilharam de prazer), mas guarda-te que os mouros a vejam,
porque não seria tua muito tempo! Diriam até que a roubaste.
Quanto ao punhal eu não to restituirei; ele será uma testemunha contra ti, se
me fores desleal. Toma pois cuidado: depois te darei novas ordens. Entretanto
dirigi-te a Abdelazim, única pessoa que eu consentirei de mim se aproxime.
O assombrado apóstata saiu da sua presença ao ouvir estas últimas palavras; e
ela ficou sozinha.
***
Era noite: mas noite daquelas em que o existir é um prazer bem doce —
plácida e quieta por tal modo, que devia inspirar ao coração humano o amor da
paz e da piedade. O céu, a terra, o ar, tudo parecia trasbordar de alegria, ora
soando o harmonioso murmúrio da viração, ora quando tudo jazia adormecido
no silêncio do repouso.
Tal era a noite. E numa tenda sumptuosa a formosa Elfrida esperava a
chegada do seu novo senhor.
Coberta de roupas magníficas, que o mosleme lhe tinha mandado: as joias
brilhantes (que talvez tinham sido suas) lhe coroavam de novo a nobre cara e lhe
circundavam o puro seio.
Um grande número de desconhecidos esperavam mudos as suas ordens, e um
silêncio não interrompido reinava naquela câmara sumptuosa.
Tão profundo era ele, que Elfrida tinha, caído num letargo, de que a
despertou um suspiro saído do próprio seio, e que bem indicava as ideias
tremendas que lhe passavam pela mente. Neste instante, porém, ela reassumiu
todo o vigor da sua alma; e a resolução que tomara tornou-se inabalável.
Elfrida estava mudada — e quanto mudada! Os seus olhos, tão meigos antes,
brilhavam agora com um fulgor descostumado, e as belas formas do seu corpo
estavam convulsas, bem que ela o procurasse esconder. Sinistros eram por certo
os pensamentos que dominavam o seu coração.
Um estrépito de passadas e vozes lhe deu a conhecer que Abdelazim chegava.
Ele com efeito entrou seguido do renegado. O ar majestoso de Elfrida parecia
havê-lo deslumbrado: entretanto ela, vendo que o intérprete se ia retirar, lhe
falou na linguagem do país, que o seu novo amante não entendia.
— Godo — lhe disse —, corre, e conduz dois cava-los ligeiros para perto
daqui. Volta imediatamente, que já me acharás pronta.
Abdelazim ficou espantado do ar de autoridade com que ela pronunciou estas
palavras; mas um sorriso de Elfrida asserenou suas suspeitas; e falando também
com o velho, lhe disse em árabe:
— Vai-te e manda embora os outros servos; eu me demorarei aqui.
Imediatamente foi obedecida.
Elfrida ajoelhou vagarosamente ao aproximar-se dela o árabe. O seu longo e
branco véu lhe cobriu o corpo inteiro. O amoroso bárbaro se inclinou para
erguê-la, e quando ia a pronunciar as doces palavras que o intérprete lhe
ensinara: «Não temas, senhora», o punhal de Elfrida lhe rasgou as entranhas.
Ele caiu — Elfrida ficou outra vez só.
Com o sanguento punhal apertado na mão, ela saiu do quarto. Ligeiramente e
sem estrépito, mas trémula e com as faces ardentes, passou o acampamento dos
muçulmanos. Ali encontrou o godo, que apressado a procurava. Por medo ou
por avareza, ou, talvez, porque um sentimento religioso e patriótico havia
voltado ao seu coração, ele cumprira a palavra. Contudo ao ver o ar desvairado e
ameaçador de Elfrida ficou horrorizado.
— Abdelazim está morto! — ouvindo isto o velho recuou de terror — mas
tu, godo, cumpriste o teu dever.
Então, arrojando de si as joias que a enfeitavam, prosseguiu:
— Recebe esses objetos de maldição! As riquezas que te prometi encontrálas-ás nos
subterrâneos que existem debaixo das ruínas do mais sumptuoso
palácio que havia em Áuria.
Nada mais disse; e voltando as rédeas ao cavalo, em que já tinha montado,
fugiu na direção das montanhas do norte.
Ai! Ela não sabia que Afonso era vivo; nem ele os actos heroicos do
inextinguível amor de Elfrida.
Os plainos de Áuria não tinham sido para Afonso o leito de morte. Exaurido
de forças, caíra entre o montão dos mortos e moribundos; mas enfim despertou
do seu desmaio, e pôde salvar-se.
Brevemente souberam os mouros, à própria custa, que ainda vivia! Mas onde
estava ele nesta noite medonha, em que Elfrida fugia sozinha do campo dos
infiéis?
***
Os habitantes do vizinho vale contaram que naquela noite se ouviram os
agudos gritos de Elfrida, ao passar na proximidade das suas choupanas solitárias,
e que ressoara o galope do seu cavalo, subindo a encosta da parte menos
acessível da montanha.
O vento conduzia ainda ao longe o alto e amargo riso da sua desesperação;
mas ela nunca mais foi vista. Um cavalo ricamente ajaezado apareceu solto junto
das habitações da aldeia: muitos diziam que era o dela; mas outros pelo contrário
afirmavam que não, e que Elfrida vivera longo tempo, ermando em distantes
montanhas, donde às vezes nas longas noites de Inverno voltava sozinha, e
montada no seu cavalo bravio, à habitação querida da infância; porém que,
aproximando-se alguém, logo desaparecia.
E ainda agora, muitas vezes, ao anoitecer, segundo dizem os crédulos
camponeses, a alma errante de Elfrida anda pelas planícies de Áuria.
Também os velhos contam terem visto o seu espectro nas noites de alguns
invernos, que já lá vão há muito, e que as mesmas criancinhas se arrepiavam, ao
ouvir nas horas de modorra os seus altos clamores de aflição.
Agouro de mau fado é o escutar os sons inarticulados destas almas errantes:
assim, quando ressoa a voz noturna da dona de Áuria, todas as raparigas do vale
rezam, e fazem promessas aos santos da sua maior devoção.