CAPÍTULO IV: Um Rei Cavalleiro

Em uma quadra das que serviam de aposentos reaes no mosteiro da Batalha, a roda de um bufete de
carvalho de lavor antigo, cujos pes, torneados em linha espiral, eram travados por uma especie de
escabello, que pelos topos se embebia nelles, estavam assentadas varias personagens daquellas com
quem o leitor já tractou nos antecedentes capitulos. Eram estas D. João I, Fr. Lourenco Lamprea, e o
procurador Fr. Joanne. Elrei estava a cabeceira da mesa, e no topo fronteiro o prior, tendo a sua
esquerda Fr. Joanne. Alem destes, outros individuos ahi estavam, que as pessoas lidas nas chronicas
deste reino tambem conhecerao: taes eram os doutores João das Regras e Martim d''Ocem do conselho
d''elrei, cavalleiros mui graves e auctorisados, e afora elles mais alguns fidalgos, que D. João I
particularmente estimava. Atraz da cadeira d''elrei um pagem esperava, em pe, as ordens de seu real
senhor. O quadrante do terrado contiguo apontava meio-dia.
Em cima do bufete estava estendido um grande rolo de pergaminho, no qual todos os olhos dos
circumstantes se fitavam: era a traca ou desenho do mosteiro, que delineara mestre Affonso
Domingues, onde, alem dos prospectos geraes do edificio, illuminados primorosamente, se viam
todos os cortes e alcados de cada uma das partes dessa complicada e maravilhosa fabrica. Elrei tinha a
mao estendida, e os dedos sobre o risco da casa capitular, ao passo que falava com o prior:
"Parece impossivel isso; porque natural desejo e de todos os homens alcancarem repouso e pao na
velhice, e não vejo razao para mestre Affonso se doer da merce que lhe fiz."
"Pois a conversação que vos relatei, tive-a com elle ainda hontem, pouco antes de vossa merce
chegar."
"E como vae David Ouguet?—perguntou elrei.
"Com grande melhoria:—respondeu o prior.—Dormiu bom espaco, e acordou em seu juizo. Contoume que,
entrando hontem apos nos na casa do capitulo, e affirmando a vista na abobada, conhecera
que tinha gemido, e estava a ponto de desabar; que sentira apertar-se-lhe o coração, e que com a sua
affliccao correra pela crasta fora como doudo; que no ceu se lhe affigurava um relampaguear
incessante e medonho; que via ... nem elle sabe o que via, o pobre homem. Depois disso, diz que
perdera o tino, e de nada mais se recorda."
"Nem dos exorcismos?—perguntou em meia voz Martim d''Ocem, com um sorriso malicioso.
"Nem dos exorcismos:—retrucou Fr. Lourenco no mesmo tom, mas subindo-lhe ao rosto a
vermelhidao da colera.—A proposito, doutor. Dizem-me que Annequim e morto, e que elrei proveu o
cargo em um dos de seu conselho. Seria verdadeira esta merce singular?"
E o frade media o letrado de alto a baixo com os olhos irritados. Este preparava-se para vibrar ao prior
uma nova injuria indirecta, naquelle jogo de allusoes que era as delicias do tempo, quando elrei
acenou ao pagem, dizendo-lhe:
"Alvaro Vaz d''Almada, ide depressa a morada d''Affonso Domingues, dizei-lhe que eu quero falar-lhe,
e guiae-o para aqui. Fazei isso com tento; e lembrae-vos de que elle e um antigo cavalleiro, que
militou com vosso mui esforcado pae."
O pagem saiu a cumprir o mandado d''elrei.
"Dizeis vos—proseguiu este, dirigindo-se a João das Regras e a Martim d''Ocem—que talvez Affonso
Domingues se enganasse em suppor que era possivel fazer uma abobada tao pouco erguida, como e a
que elle tracou para o capitulo. não creio eu que tao entendido architecto assim se enganasse: mais
inclinado estou a persuadir-me de que o lastimoso successo de hontem a noite procedesse da grave
falta commettida por mestre Ouguet nesta edificação."
"E que falta foi essa, se a vossa merce apraz dizer-m''o?—replicou João das Regras.
"A de não seguir de todo ponto o desenho de mestre Affonso:—tornou elrei.
"E se a execucao de sua traca fosse impossivel?—acudiu o doutor.
"Impossivel!?"—atalhou elrei.—"E não contava elle com leva-la a effeito, se Deus o não tolhesse dos
olhos?"
"E e disso que mais se doe mestre Affonso,"—interrompeu o prior.—"A sua grande canseira e que
ninguem sabera continuar a edificação do mosteiro, ou, como elle diz, proseguir a escriptura do seu
livro de pedra, porque ninguem e capaz de entender o pensamento que o dirigiu na concepção delle."
"Roncarias e feros sao esses proprios de quem foi homem d''armas de Nunalvares:—disse o chanceller
João das Regras.—Todos os de sua bandeira sao como elle. Porque sabem jogar boas lancadas,
teemse em conta de principes dos discretos; e o cego não se esqueceu ainda de que comeu da caldeira do
condestavel."
João das Regras, emulo de Nunalvares, não perdeu este ensejo de lhe por pecha; mas D. João I que
conhecia serem esses dous homens as pedras angulares de seu throno, escutava-os sempre com
respeito, salvo quando falavam um do outro; posto que o condestavel, homem mais de obras que de
palavras, raras vezes menoscabava os meritos do chanceller, contentando-se com lancar na balanca,
em que João das Regras mostrava o grande peso da sua penna, o montante com que elle Nunalvares
tinha em cem combates salvado a patria do dominio estranho, e a cabeca do chanceller das maos do
carrasco, de que não o livrariam nem os graus de doutor de Bolonha, nem os textos das leis romanas.
"Deixae la o condestavel, que não vem ao intento;—disse elrei:—o que me importa e ouvir mestre
Affonso sobre este caso. Quizera antes perder um recontro com castelhanos, do que cuidar que o
capitulo de Sancta Maria da Victoria ficara em ruinas. Mestre Ouguet com sua arte deixou-lhe vir ao
chao a abobada: se Affonso Domingues for capaz de a tornar a erguer, e deixa-la firme, concluirei
d''ahi que vale mais o cego que o limpo de vista; e digo-vos que o restituirei ao antigo cargo, ainda que
esteja, alem de cego, copo e mouco."
Neste momento entrava o velho architecto, agarrado ao braco de Alvaro Vaz d''Almada, que o veiu
guiando para o topo da desmesurada banca de carvalho, a roda da qual se travara o dialogo, que acima
transcrevemos.
"Dom donzel, onde e que esta elrei?"—dizia Affonso Domingues ao pagem, caminhando com passos
incertos ao longo do vasto aposento.
D. João I, que ouvira a pergunta, respondeu em vez do pagem:
"Agora nenhum rei esta aqui, mas sim o Mestre d''Aviz, o vosso antigo capitao, nobre cavalleiro de
Aljubarrota."
"Beijo-vos as maos, senhor rei, por vos lembrardes ainda de um velho homem de armas, que para
nada presta hoje. Vede o que de mim mandaes; porque de vossa ordem aqui me trouxe este bom
donzel."
"Queria ver-vos e falar-vos; que de coração vos estimo, honrado e sabedor architecto do mosteiro de
Sancta Maria."
"Architecto do mosteiro de Sancta Maria, já o não sou; vossa merce me tirou esse encargo: sabedor,
nunca o fui, pelo menos muitos assim o creem, e alguns o dizem: dos titulos que me daes so me cabe
hoje o de honrado; que esse, merce de Deus, e meu, e fora infamia rouba-lo a quem já não pode pegar
em um montante para defende-lo."
"Sei, meu bom cavalleiro, que estaes mui torvado comigo por dar a outrem o cargo de mestre das
obras do mosteiro: n''isso cria eu fazer-vos assignalada merce. Mas venhamos ao ponto: sabeis que a
abobada do capitulo desabou hontem a noite?"
"Sabia-o, senhor, antes do caso succeder."
"Como e isso possivel?!"
"Porque todos os dias perguntava a alguns desses poucos obreiros portugueses que ahi restam, como
ia a feitura da casa capitular: no desenho della pozera eu todo o cabedal de meu fraco ingenho, e este
aposento era a obra prima de minha imaginação: por elles soube que a traca primitiva fora alterada, e
que a junctura das pedras era feita por modo diverso do que eu tinha apontado: prophetisei-lhes entao
o que havia de acontecer. E—accrescentou o velho com um sorriso amargo—muito fez já o meu
successor em por tal arte lhe por o remate, que não desabasse antes das vinte e quatro horas."
"E tinheis vos por certo que se vossa traca se houvera seguido, essa desmesurada abobada não viria a
terra?"
"Se estes olhos não tivessem feito com que eu fosse posto de banda como uma carta de testamento
antiga, que se atira, por inutil, para o fundo de uma arca, a pedra do fecho dessa abobada não teria de
vir esmigalhar-se no pavimento antes de sobre ella pesarem muitos seculos; mas os de vosso conselho
julgaram que um cego para nada podia prestar."
"Pois se ousaes levar a cabo vosso desenho, eu ordeno que o facaes, e desde já vos nomeio de novo
mestre das obras do mosteiro, e David Ouguet vos obedecera."
"Senhor rei—disse o cego, erguendo a fronte, que ate alli tivera curvada:—vos tendes um sceptro e
uma espada; tendes cavalleiros e besteiros; tendes ouro e poder: Portugal e vosso, e tudo quanto elle
contem, salvo a liberdade de vossos vassallos: nesta nada mandaes. não!... vos digo eu: não serei
quem torne a erguer essa derrocada abobada! Os vossos conselheiros julgaram-me incapaz d''isso:
agora elles que a alevantem."
As faces de D. João I tingiram-se do rubor do despeito.
"Lembrae-vos, cavalleiro,—disse elle—de que falaes com D. João I."
"Cuja coroa—acudiu o cego—lhe foi posta na cabeca por lancas, entre as quaes reluzia o ferro da que
eu brandia. D. João I e assaz nobre e generoso, para não se esquecer de que nessas lancas estava
escripto:—os vassallos portuguezes sao livres."
"Mas—tornou elrei—os vassallos que desobedecem aos mandados daquelle em cuja casa tem
acostamento, podem ser privados de sua moradia..."
"Se dizeis isso pela que me destes, tirae-m''a; que não vo-la pedi eu. não morrerei de fome; que um
velho soldado de Aljubarrota achara sempre quem lhe esmole uma mealha; e quando haja de morrer a
mingua de todo humano soccorro, bem pouco importa isso a quem ve arrancarem-lhe, nas bordas da
sepultura, aquillo por que trabalhou toda a vida, um nome honrado e glorioso."
Dizendo isto, o velho levou a manga do gibao aos olhos bacos, e embebeu nella uma lagryma mal
sustida. Elrei sentiu a piedade coar-lhe no coração comprimido de despeito, e dilatar-lh''o suavemente.
Uma das dores d''alma, que em vez de a lacerar a consolam, e sem duvida a compaixao.
"Vamos, bom cavalleiro,—disse elrei pondo-se em pe—nao haja entre nos doestos. O architecto do
mosteiro do Sancta Maria vale bem o seu fundador! Houve um dia em que nos ambos fomos
pelejadores: eu tornei celebre o meu nome, a consciencia m''o diz, entre os principes do mundo,
porque segui avante por campos de batalha; ella vos dira tambem que a vossa fama sera perpetua,
havendo trocado a espada pela penna, com que tracastes o desenho do grande monumento da
independencia e da gloria desta terra. Rei dos homens do acceso imaginar, não desprezeis o rei dos
melhores cavalleiros, os cavalleiros portuguezes! Tambem vos fostes um delles; e negar-vos-heis a
proseguir na edificação desta memoria, desta tradicao de marmore, que ha-de recordar aos vindouros
a historia de nossos feitos? Mestre Affonso Domingues, escutae os ossos de tantos valentes, que vos
accusam de trahirdes a boa e antiga amizade: vem de todos os valles e montanhas de Portugal o soido
desse queixume de mortos; porque, nas contendas da liberdade, por toda a parte se verteu sangue e
foram semeados cadaveres de cavalleiros! Eia, pois: se não perdoaes a D. João I uma supposta
affronta, perdoae-a ao Mestre d''Aviz, ao vosso antigo capiiao, que em nome da gente portugueza vos
cita para o tribunal da posteridade, se refusaes consagrar outra vez a patria vosso maravilhoso
ingenho, e que vos abraca como antigo irmao nos combates, porque certo cre que não quereis perder
na vossa velhice o nome de bom e honrado portuguez."
Elrei parecia grandemente commovido, e talvez involuntariamente, lancou um braco ao redor do
pescoco do cego, que solucava e tremia sem soltar uma so palavra.
Houve uma longa pausa: todos se tinham posto em pe quando elrei se erguera, e esperavam anciosos
o que diria o velho. Finalmente este rompeu o silencio:
"Vencestes, senhor rei, vencestes!... A abobada da casa capitular não ficara por terra. Oh meu
mosteiro da Batalha, sonho querido de quinze annos de vida entregues a cogitacoes, a mais formosa
das tuas imagens sera realisada, sera duradoura como a pedra em que vou estampa-la! Senhor rei, as
nossas almas entendem-se: as unicas palavras harmoniosas e inteiramente suaves, que tenho ouvido
ha muitos annos, sao as que vos sairam da boca: so D. João I comprehende Affonso Domingues;
porque so elle comprehende a valia destas duas palavras formosissimas, palavras de anjos—patria e
gloria. A passada injuria a vossos conselheiros a attribui sempre, que não a vos, posto que de vos, que
ereis rei, me queixasse: varre-la-hei da memoria, como o entalhador varre as lascas e a pedra moida
pelo cinzel de cima do vulto, que entalhou em fuste de columna arrendada. Que me restituam os meus
officiaes e obreiros portuguezes; que portuguez sou eu, portugueza a minha obra! De hoje a quatro
mezes podeis voltar aqui, senhor rei, e ou eu morrerei, ou a casa capitular da Batalha estara firme,
como e firme a minha crenca na immortalidade e na gloria."
Elrei apertou entao entre os bracos o bom do cego, que procurava ajoelhar a seus pes. Era a attraccao
de duas almas sublimes, que voavam uma para a outra. Por fim D. João I fez um signal ao pagem, que
se aproximou:
"Alvaro Vaz, acompanhae este nobre cavalleiro a sua pousada. E vos, mestre mui sabedor, ide
repousar: dentro de quinze dias vossos antigos officiaes terao voltado de Guimaraes para cumprirem o
que mandardes. Mui devoto padre prior,—continuou elrei, voltando-se para Fr. Lourenco—entendei
que d''ora avante Affonso Domingues, cavalleiro de minha casa, torna a ser mestre das obras do
mosteiro de Sancta Maria da Victoria, em quanto assim lhe aprouver."
O prior fez uma profunda reverencia.
A alegria tinha tolhido a voz do architecto: diante de toda a corte elrei o havia desaffrontado, e ja, sem
desdouro, podia acceitar o encargo de que o tinham despojado. Com passos incertos, e seguro ao
braco do pagem, saiu do aposento, feita venia a elrei.
Este deu immediatamente ordem para a partida; e quando todos iam saindo, o prior chegou-se ao
velho chanceller, e disse-lhe em tom submisso:
"Doutor Johannes a Regulis, espero que narreis fielmente a rainha o que succedeu, e a certifiqueis de
quanto me custa ver tirada a regua magistral a mestre Ouguet..."
"Foi—tornou o politico discipulo de Bartholo—mais uma facanha de D. João I: comecou por brigar
com um louco, e acabou abracando-o, por lhe ver derramar uma lagryma. Bem trabalho por fazer do
Mestre de Aviz um rei; mas sae-me sempre cavalleiro andante. não lhe succedera isto se, em vez de
passar a mocidade em pelejas, a houvera passado a estudar em Bolonha. Tendo-lhe dicto mil vezes
que e preciso lisongear os inglezes, porque carecemos delles: a tudo me responde com dizer que com
Deus e o proprio montante tem em nada Castella: todavia a gente ingleza ufanava-se de ser David
Ouguet o mestre desta edificação; e que importava que ella fosse mais ou menos primorosa a troco de
contentarmos os que comnosco estao liados? Quanto a vos, reverendo prior, ficae descancado: tudo
fia a rainha de vossa prudencia, que e muita, posto que não vistes Bolonha. Vamos, reverendissimo."
A corte já tinha saido; e os dous velhos seguiram-na ao longo daquellas arcadas, conversando um com
o outro em voz baixa.