I - EXCERTOS DE ALGUMAS CARTAS

A João de Lebre e Lima, em 3 de Maio de 1914:

A propósito de tédios, lembra-me perguntar-lhe uma coisa... Viu, num
número do ano passado, de A Águia, um trecho meu chamado Na floresta do
alheamento? Se não viu, diga-me. Mandar-lho-ei. Tenho imenso interesse que
você conheça esse trecho. É o único trecho meu publicado em que eu faço do
tédio, e do sonho estéril e cansado de si próprio mesmo ao ir começar a
sonhar-se, um motivo e o assunto. Não sei se lhe agradará o estilo em que o
trecho está escrito: é um estilo especialmente meu, e a que aqui vários rapazes
amigos, brincando, chamam "o estilo alheio", por ser naquele trecho que
apareceu. E referem-se a "falar alheio", "escrever em alheio", etc.

Aquele trecho pertence a um livro meu, de que há outros trechos escritos
mas inéditos, mas de que falta ainda muito para acabar; esse livro chama-se
Livro do Desassossego, por causa da inquietação e incerteza que é a sua nota
predominante. No trecho publicado isso nota-se. O que é em aparência um
mero sonho, ou entressonho, narrado, é — sente-se logo que se lê, e deve, se
realizei bem, sentir-se através de toda a leitura — uma confissão sonhada da
inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar.

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A Armando Cortes-Rodrigues, em 2 de Setembro de 1914:

Nada tenho escrito que valha a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e Álvaro
futurista — silenciosos. Caeiro perpetrador de algumas linhas que encontrarão
talvez asilo num livro futuro. ... O que principalmente tenho feito é sociologia
e desassossego. V. Percebe que a última palavra diz respeito ao "livro" do
mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A
obra vai pois complexamente e tortuosamente avançando.

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A Armando Cortes-Rodrigues, em 4 de Outubro de 1914:

Nem lhe mando outras pequenas coisas que tenho escrito nestes dias. Não
são muito dignas de serem mandadas, umas; outras estão do Livro do
Desassossego. Verdade seja que descobri um novo género de paulismo....
O meu estado de espírito atual é de uma depressão profunda e calma.
Estou há dias ao nível do Livro do Desassossego. E alguma coisa dessa obra
tenho escrito. Ainda hoje escrevi quase um capítulo todo.

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A Armando Cortes-Rodrigues, em 19 de Novembro de 1914:

O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer,
no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos.

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A João Gaspar Simões, em 28 de Julho de 1932:

Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por
três livros, na ordem seguinte: Portugal, que é um livro pequeno de poemas
(tem 41 ao todo), de que o Mar Português Contemporânea é a segunda parte;
Livro do Desassossego (Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o
B.S. não é um heterónimo, mas uma personalidade literária); Poemas
Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de Ricardo Reis, e, em
posfácio, as Notas para a Recordação do Álvaro de Campos). Mais tarde, no
outro ano, seguiria, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título
igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros 1 a III ou 1 a V) vários dos
muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo
de essa maneira inexpressiva.

Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que
equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos
de um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso. ...

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A Adolfo Casais Monteiro, em 13 de Janeiro de 1935:

Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pura e inesperada
inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois
de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode.
Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O
meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece
com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de
sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição;
aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não
sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples
mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade. A prosa, salvo o
que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português
perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos
razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu
mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado. ...)
II - DUAS NOTAS

Nota para as edições próprias (e aproveitável para o "Prefácio")

Reunir, mais tarde, num livro separado, os poemas vários que havia errada
tenção de incluir no Livro do Desassossego; este livro deve ter um título mais
ou menos equivalente a dizer que contém lixo ou intervalo, ou qualquer
palavra de igual afastamento.

Este livro poderá, aliás, formar parte de um definitivo de refugos, e ser o
armazém publicado do impublicável que pode sobreviver como exemplo
triste. Está um pouco no caso dos versos incompletos do lírico morto cedo,
ou das cartas do grande escritor, mas aqui o que se fixa é não só inferior senão
que é diferente, e nesta diferença consiste a razão de publicar-se pois não
poderia consistir em a de se não dever publicar.

L. Do D. (nota)

A organização do livro deve basear-se numa escolha, rígida quanto possível,
dos trechos variadamente existentes, adaptando, porém, os mais antigos, que
falhem à psicologia de Bernardo Soares, tal como agora surge, a essa vera
psicologia. À parte isso, há que fazer uma revisão geral do próprio estilo, sem
que ele perca, na expressão íntima, o devaneio e o desconexo lógico que o
caracterizam.

Há que estudar o caso de se se devem inserir trechos grandes, classificáveis
sob títulos grandiosos, como a Marcha Fúnebre do Rei Luís Segundo da
Baviera, ou a Sinfonia de uma Noite Inquieta. Há a hipótese de deixar como
está o trecho da Marcha Fúnebre, e há a hipótese de a transferir para outro
livro, em que ficassem os Grandes Trechos juntos.

C. Do Prefácio às Ficções do Interlúdio

Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o
meu nome o que elas dizem; outras projeto em absoluto e não assino senão
com o dizer que as fiz. Os tipos de figuras distinguem-se do seguinte modo:
mas que destaco em absoluto, o mesmo estilo me é alheio, e, se a figura o
pede, contrário, até, ao meu; nas figuras que subscrevo não há diferença do
meu estilo próprio, senão nos pormenores inevitáveis, sem os quais elas se
não distinguiriam entre si.

Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que
consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o
Barão de Teive — são ambos figuras minha mente alheias — escrevem com a
mesma substância de estilo, a mesma gramática, e o mesmo tipo e forma de
propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu.
Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenómeno – a inadaptação
à realidade da vida e, o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e
razões. Mas ao passo que o português é igual no Barão de Teive e em
Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual, despido de
imagens, um pouco, como o direi?, hirto e restrito; e o do burguês é fluido,
participando da música e da pintura, pouco arquitetural. O fidalgo pensa claro,
escreve claro, e domina as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos;
o guarda-livros nem emoções nem sentimentos domina, e quando pensa é
subsidiariamente a sentir.

Há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de
Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do
português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o
de Soares.

Há acidentes do meu distinguir uns de outros que pesam como grandes
fardos no meu discernimento espiritual. Distinguir tal composição musicante
de Bernardo Soares de uma composição de igual teor que é a minha...
Há momentos em que o faço repentinamente, com uma perfeição de que
pasmo; e pasmo sem imodéstia, porque, não crendo em nenhum fragmento
de liberdade humana, pasmo do que se passa em mim como pasmaria do que
se passasse em outros — em dois estranhos.

Só uma grande intuição pode ser bússola nos descampados da alma; só com
um sentido que usa da inteligência, mas se não assemelha a ela, embora nisto
com ela se funda, se pode distinguir estas figuras de sonho na sua realidade de
uma a outra.

Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de
personalidades diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão revelados ao
leitor, se os seguiu, por características distintivas. No primeiro grau, a
personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios, distintos dos
meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por ideias,
postas em raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não
conheço. O Banqueiro Anarquista é um exemplo deste grau inferior; o Livro
do Desassossego, e a personagem Bernardo Soares, são o grau superior.

Há o leitor de reparar que, embora eu publique o Livro do Desassossego
como sendo de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade
de Lisboa, o não incluí todavia nestas Ficções do Interlúdio. É que Bernardo
Soares, distinguindo-se de mim pelas suas ideias, seus sentimentos, seus
modos de ver e de compreender, não se distingue de mim pelo estilo de
expor. Dou a personalidade diferente através do estilo que me é natural, não
havendo mais que a distinção inevitável do tom especial que a própria
especialidade das emoções necessariamente projeta.

Nos autores das Ficções do Interlúdio não são só as ideias e os sentimentos
que se distinguem dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo,
é diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e
não apenas diferentemente pensada. Por isso nas Ficções do Interlúdio
predomina o verso. Em prosa é mais difícil de se outra.

D. "Ideias metafísicas do Livro do Desassossego"

A única realidade para mim são as minhas sensações. Eu sou uma sensação
minha. Portanto nem da minha própria existência estou certo. Posso está-lo
apenas daquelas sensações a que eu chamo minhas.

A verdade? É uma coisa exterior? Não posso ter a certeza dela, porque não
é uma sensação minha, e eu só destas tenho a certeza. Uma sensação minha?
De quê? Procurar o sonho é pois procurar a verdade, visto que a única
verdade para mim sou eu próprio. Isolar-me tanto quanto possível dos outros
é respeitar a verdade.

Toda a metafísica é a procura da verdade, entendendo por Verdade a
verdade absoluta. Ora a Verdade, seja ela o que for, e admitindo que seja
qualquer coisa, se existe, existe ou dentro das minhas sensações, ou fora delas
ou tanto dentro como fora delas. Se existe fora das minhas sensações, é uma
coisa de que eu nunca posso estar certo, não existe para mim portanto, é, para
mim, não só o contrário da Certeza, porque só das minhas sensações estou
certo, mas o contrário de ser, porque a única coisa que existe para mim são as
minhas sensações. De modo que, a existir fora das minhas sensações, a
Verdade é para mim igual à Incerteza e não-ser — não existe e não é a
verdade, portanto. Mas concedamos o absurdo de que as minhas sensações
possam ser o erro, e o não-ser (o que é absurdo, visto que elas, com certeza,
existem) – nesse caso a verdade é o ser e existe fora das minhas sensações
totalmente. Mas a ideia Verdade é uma ideia minha; existe, por isso, dentro
das minhas sensações: portanto, no que Verdade abstrata e fora de mim, a
verdade existe dentro de mim — contradição, portanto; e erro,
consequentemente.

A outra hipótese é que a verdade existe dentro das minhas sensações. Nesse
caso ou é a soma delas todas, ou é uma delas, ou parte delas. Se é uma delas,
em que se distingue das outras? Se é uma sensação, não se distingue essencialmente
das outras, e, para que se distinguisse, era preciso que se distinguisse
essencialmente. E se não é uma sensação, não é uma sensação. — Se é parte
das minhas sensações, que parte? As sensações têm duas faces — a de serem
sentidas e a de serem dadas como coisas sentidas, a parte pela qual são minhas
e a parte pela qual são de "coisas". E uma destas partes, que a Verdade, a ser
parte das minhas sensações, tem de ser. (Se é de qualquer modo um grupo de
sensações unificando-se ao constituir uma só sensação, cai sob a garra do
raciocínio que conduz à hipótese anterior.) Se é uma das duas faces — qual? A
face "subjetiva"? Ora essa face subjetiva aparece-me sob uma de duas formas
— ou a da minha "individualidade" una ou a de uma múltipla individualidade
"minha". No primeiro caso é uma sensação minha como qualquer outra e já
fica refutada no argumento anterior. No segundo caso, essa verdade é múltipla
e diversa, é verdades — o que é contraditório com a ideia de Verdade, valha
ela o que valer. Será então a face objetiva? O mesmo argumento se aplica,
porque ou é uma unificação dessas sensações numa ideia de um mundo
exterior — e essa ideia ou não é nada ou é uma sensação minha, e se é uma
sensação, já fica refutada essa hipótese; ou é de um múltiplo mundo exterior, e
isso reduz-se às minhas sensações, então pluralidade de modos é a essência da
ideia de Verdade.

Resta analisar se a Verdade é o conjunto das minhas sensações. Essas
sensações ou são tomadas como uma ou como muitas. No primeiro caso
voltamos à já rejeitada hipótese. No segundo caso a Verdade como ideia
desaparece, porque se consubstancia com a totalidade das minhas sensações.
Mas para ser a totalidade das minhas sensações, mesmo concebidas como
minhas sensações, nuamente, a verdade fica dispersa — desaparece. Porque,
ou se baseia na ideia de totalidade, que é uma ideia (ou sensação) nossa, ou
não se apoia em parte nenhuma. Mas nada prova, mesmo, a identidade de
verdade e totalidade. Portanto, a verdade não existe.
Mas nós temos a ideia...

Temos, mas vemos que não corresponde a "Realidade" nenhuma, suposto
que realidade significa qualquer coisa. A Verdade é, portanto, uma ideia ou
sensação nossa, não sabemos de quê, sem significado, portanto sem valor,
como qualquer outra sensação nossa.

Ficamos, portanto, com as nossas sensações por única "realidade",
realidade que "realmente" até tem aqui certo valor, mas é uma conveniência
para frasear. De "real" temos apenas as nossas sensações, mas "real" (que é
uma sensação nossa) não significa nada, nem mesmo "significa" significa
qualquer coisa, nem "sensação" tem um sentido, nem "tem um sentido" é
coisa que tenha sentido algum. Tudo é o mesmo mistério. Reparo, porém, em
que nem tudo pode significar coisa alguma, ou "mistério" é palavra que tenha
significação.