Capítulo IV

Essa fecunda semana, uma noite, recolhíamos ambos da ópera, quando Jacinto, bocejando, me anunciou
uma festa no 202.
— Uma festa?... — Por causa do grão-duque, coitado, que me vai mandar um peixe delicioso e muito
raro que se pesca na Dalmácia. Eu queria um almoço curto. O grão-duque reclamou. uma ceia. É um
bárbaro, besuntado com literatura do século XVIII, que ainda acredita em ceias, em Paris! Reúno no
domingo três ou quatro mulheres, e uns dez homens bem típicos, para o divertir. Também aproveitas.
Folheias Paris num resumo... Mas é uma maçada amarga!
Sem interesse pela sua festa, Jacinto não se afadigou em a compor com relevo ou brilho. Encomendou
apenas uma orquestra de tziganes (os tziganes, as suas jalecas escarlates, a melancolia áspera das czardas
ainda nesses tempos remotos emocionavam Paris): e mandou, na Biblioteca, ligar o Teatrofone com a
ópera, com a Comédia Francesa, com o Alcazar e com os Buffos, prevendo todos os gostos desde o
trágico até ao pícaro. Depois no domingo, ao entardecer, ambos visitámos a mesa da ceia, que
resplandecia com as velhas baixelas de «D. Galeão». E a faustosa profusão de orquídeas, em longas silvas
por sobre a toalha bordada a seda, enroladas aos fruteiros de Saxe, transbordando de cristais lavrados e
filigranados de ouro, espalhava uma tão fina sensação de luxo e gosto, que eu murmurei: — Caramba,
bendito seja o dinheiro! — Pela primeira vez, também, admirei a copa e a sua instalação abundante e
minuciosa — sobretudo os dois ascensores que rolavam das profundidades da cozinha, um para os
peixes e carnes aquecido por tubos de água fervente, o outro para as saladas e gelados revestido de
placas frigoríficas. Oh, este 202!
Às nove horas, porém, descendo eu ao gabinete de Jacinto para escrever a minha tia Vicência, enquanto
ele ficara no toucador com o manicuro que lhe polia as unhas, passámos nesse delicioso palácio, florido e
em gala, por bem corriqueiro susto! Todos os lumes elétricos, subitamente, em todo o 202, se apagaram!
Na minha imensa desconfiança daquelas forças universais, pulei logo para a porta, tropeçando nas trevas,
ganindo um «Aqui-d''el-rei!» que tresandava a Guiães. Jacinto em cima berrava, com o manicuro
agarrado ao pijama. E de novo, como serva ralaça que recolhe arrastando as chinelas, a luz ressurgiu
com lentidão. Mas o meu Príncipe, que descera. enfiado, mandou buscar um engenheiro à Companhia
Central da Eletricidade Doméstica. Por precaução outro criado correu à mercearia comprar pacotes de
velas. E o Grilo desenterrava já dos armários os candelabros abandonados, os pesados castiçais arcaicos
dos tempos incientíficos de «D. Galeão» — era uma reserva de veteranos fortes, para o caso pavoroso em
que m ais tarde, à ceia, falhassem perfidamente as forças bisonhas da Civilização. O eletricista, que
acudira esbaforido, afiançou porém que a Eletricidade se conservaria fiel, sem outro amuo. Eu,
cautelosamente, soneguei na algibeira dois cotos de estearina.

A Eletricidade permaneceu fiel, sem amuos. E quando desci do meu quarto, tarde (porque perdera o
colete de baile e só depois de uma busca furiosa e praguejada o encontrei caído por trás da cama!), todo
o 202 refulgia, e os tziganes, na antecâmara, sacudindo as guedelhas, atiravam as arcadas de uma valsa tão
arrastadora que, pelas paredes, as imensas personagens das tapeçarias, Príamo, Nestor, o engenhoso
Ulisses, arfavam, buliam com os pés venerandos!
Timidamente, sem rumor, puxando os punhos, penetrei no gabinete de Jacinto. E fui logo acolhido pelo
sorriso da condessa de Trèves, que, acompanhada pelo ilustre historiador Danjon (da Academia
Francesa), percorria maravilhada os Aparelhos, os Instrumentos, toda a sumptuosa Mecânica do meu
supercivilizado Príncipe. Nunca ela me parecera mais majestosa do que naquelas sedas cor de açafrão,
com rendas cruzadas no peito à Maria Antonieta, o cabelo crespo e ruivo levantado em rolo sobre a
testa dominadora, e o curvo nariz patrício, abrigando o sorriso sempre luzidio, sempre corrente, como
um arco abriga o correr e o luzir de um regato. Direita como num sólio, a longa luneta de tartaruga
acercada dos olhos miúdos e turvamente azulados, ela escutava diante do Gramofone, depois diante do
Microfone, como melodias superiores, os comentários que o meu Jacinto ia atabalhoando com uma
amabilidade penosa. E perante cada roda, cada mola, eram pasmos, louvores finamente torneados, em
que atribuía a Jacinto, com astuta candura, todas aquelas invenções do Saber! Os utensílios misteriosos
que atulhavam a mesa de ébano foram para ela uma iniciação que a enlevou. Oh, o «numerador de
páginas!» oh, o «colador de estampilhas!» A carícia demorada dos seus dedos secos aquecia os metais. E
suplicava os endereços dos fabricantes para se prover de todas aquelas utilidades adoráveis! Como a
vida, assim apetrechada, se tornava escorregadia e fácil! Mas era necessário o talento, o gosto de Jacinto,
para escolher, para «criar!» E não só ao meu amigo (que o recebia com resignação) ela ofertava o fino
mel. Afagando com o cabo da, luneta o Telégrafo, achou a possibilidade de recordar a eloquência do
historiador. Mesmo para mim (de quem ignorava o nome) arranjou junto do Fonógrafo, e acerca de
«vozes de amigos que é doce colecionar», uma lisonjazinha redondinha e lustrosa, que eu chupei como
um rebuçado celeste. Boa casaleira que vai atirando o grão aos frangos famintos, a cada passo.
maternalmente, ela nutria uma vaidade. Sôfrego de outro rebuçado, acompanhei a sua cauda sussurrante
e cor de açafrão, Ela parara diante da Máquina de Contar, de que Jacinto já lhe fornecera pacientemente
uma explicação sapiente. E de novo roçou os buracos donde espreitam os números negros, e com o. seu
enlevado sorriso murmurou: — Prodigiosa, esta prensa elétrica!...
Jacinto acudiu: — Não! Não! Esta é... Mas ela sorria, seguia... Madame de Trèves; não compreendera
nenhum aparelho do meu Príncipe! Madame de Trèves não atendera a nenhuma dissertação do meu
Príncipe! Naquele gabinete de sumptuosa Mecânica ela somente se ocupara em exercer, com proveito e
com perfeição, a Arte de Agradar. Toda ela era uma sublime falsidade, Não escondi a Danjon a
admiração que me penetrava.
O facundo académico revirou os olhos bugalhudos: — Oh! e um gosto, uma inteligência, uma
sedução!... E depois como se janta bem em casa dela! Que café!... Mulher superior, meu caro senhor,
verdadeiramente superior!

Deslizei para a Biblioteca. Logo à entrada da erudita nave, junto da estante dos Padres da Igreja onde
alguns cavalheiros conversavam, parei a saudar o diretor do «Boulevard» e o psicólogo feminista, o autor
do «Coração Triple», com quem na véspera me familiarizara ao almoço, no 202. O seu acolhimento foi
paternal: e, como se necessitasse a minha presença. reteve na sua mão ilustre, rutilante de anéis, com
força e com gula, a minha grossa palma serrana. Todos aqueles senhores. com efeito, celebravam o seu
romance, «A Couraça», lançado nessa semana entre gritinhos de gozo e um quente rumor de saias
alvoroçadas. Um sobretudo, com uma vasta cabeça arranjada à Van Dyck e que parecia postiça,
proclamava, alçado na pontadas botas, que nunca penetrara tão fundamente, na velha alma humana, a
ponta da Psicologia Experimental! Todos concordavam, se apertavam contra o psicólogo, o tratavam por
«mestre». Eu mesmo, que nem sequer entrevira a capa amarela da «Couraça», mas para quem ele voltava
os olhos pedinchões e famintos de mais mel, murmurei com um leve assobio: — Uma delícia!

E o psicólogo, reluzindo, com o lábio húmido, entalado num alto colarinho onde se enroscava uma
gravata à 1830, confessava modestamente que dissecara todas aquelas almas da «Couraça» com «algum
cuidado», sobre documentos, sobre pedaços de vida ainda quentes, ainda a sangrar... E foi então que
Marizac o duque de Marizac notou, com um sorriso mais afiado que um lampejo de navalha, e sem tirar
as mãos dos bolsos:
— No entanto, meu caro, nesse livro tão profundamente estudado há um erro bem estranho, bem
curioso!...

O psicólogo, vivamente, atirara a cabeça para trás: — Um erro? Oh, sim, um erro! E bem inesperado
num mestre tão experiente!... Era atribuir à esplêndida amorosa da «Couraça», uma duquesa, e do gosto
mais puro, — um colete de cetim preto! Esse colete, assim preto, de cetim, aparecia na bela página de
análise e paixão em que ela se despia no quarto de Ruy d''Alize. E Marizac sempre com as mãos nos
bolsos, mais grave, apelava para aqueles senhores. Pois era verosímil, numa mulher como a duquesa,
estética, pré-rafaelítica, que se vestia no Doucet, no Paquin, nos costureiros intelectuais, um colete de
cetim preto?

O psicólogo emudecera, colhido, trespassado! Marizac era uma tão suprema autoridade sobre a roupa
íntima das duquesas, que à tarde, em quartos de rapazes, por impulsos idealistas e anseios de alma
dolorida — se põem em colete e saia branca!... De resto o diretor do « Boulevard» condenara logo sem
piedade, com uma experiência firme, aquele colete, só possível nalguma merceeira atrasada que ainda
procurasse efeitos de carne nédia sobre cetim negro. E eu, para que me não julgassem alheio às coisas
dos adultérios ducais e do luxo, acudi, metendo os dedos pelo cabelo:
— Realmente, preto, só se estivesse de luto pesado, pelo pai! O pobre mestre da «Couraça»
sucumbira. Era a sua glória de Doutor em Elegâncias Femininas desmantelada — e Paris supondo que
ele nunca vira uma duquesa desatacar o colete na sua alcova de psicólogo! Então, passando o lenço sobre
os lábios que a angústia ressequira, confessou o erro, e contritamente o atribuiu a uma improvisação
tumultuosa:

— Foi um tom falso, um tom perfeitamente falso que me escapou!... Com efeito! é absurdo, um colete
preto!... Mesmo por harmonia com o estado de alma da duquesa devia ser lilás, talvez cor de reseda
muito desmaiada, com um frouxo de rendas antigas de Malines... É prodigioso como me escapou! Pois
tenho o meu caderno de entrevistas bem anotadas, bem documentadas!...
Na sua amargura, terminou por suplicar a Marizac que espalhasse por toda a parte, no Clube, nas salas, a
sua confissão. Fora um engano de artista, que trabalha na febre, vasculhando as almas, perdido nas
profundidades negras das almas! Não reparara no colete, confundira os tons... Gritou, com os braços
estendidos para o diretor do «Boulevard»:
— Estou pronto a fazer uma retificação, numa interview, meu caro mestre! Mande um dos seus
redatores... Amanhã, às dez horas! Fazemos uma interview, fixamos a cor. Evidentemente é lilás... Mande
um dos seus homens, meu caro mestre! ]É também uma ocasião para eu confessar, bem alto, os serviços
que o «Boulevard» tem feito às ciências psicológicas e feministas!
Assim ele suplicava, encostado à estante, às lombadas dos Santos Padres. E eu abalei, vendo ao fundo da
Biblioteca Jacinto que se debatia e se, recusava entre dois homens. Eram os dois homens de Madame de
Trèves — o marido, conde de Trèves, descendente dos reis de Cândia. e o amante, o terrível banqueiro
judeu, David Efraim. E tão enfronhadamente assaltavam o meu Príncipe que nem me reconheceram,
ambos num aperto de mão mole e vago me trataram por «caro conde!» Num relance, rebuscando
charutos sobre a mesa de limoeiro, compreendi que se tramava a Companhia das Esmeraldas da
Birmânia, medonha empresa em que cintilavam milhões, e para que os dois confederados de bolsa e de
alcova, desde o começo do ano, pediam o nome, a influência, o dinheiro de Jacinto. Ele resistira, num
enfado dos negócios, desconfiado daquelas esmeraldas soterradas num vale da Ásia. E agora o conde de
Trèves, um homem esgrouviado, de face rechupada, eriçada de barba rala, sob uma fronte rotunda e
amarela como um melão, assegurava ao meu pobre Príncipe que no prospeto já preparado,
demonstrando a grandeza do negócio, perpassava um fulgor das «Mil e Uma Noites». Mas sobretudo
aquela escavação de esmeraldas convidava todo o espírito culto pela sua ação civilizadora. Era uma
corrente de ideias ocidentais, invadindo, educando a Birmânia. Ele aceitara a direção por patriotismo...

— De resto é um negócio de joias, de arte, de progresso, que deve ser feito, num mundo superior,
entre amigos...
E do outro lado o terrível Efraim, passando a mão curta e gorda sobre a sua bela barba, mais frisada e
negra que a de um rei assírio, afiançava o triunfo da empresa pelas grossas forças que nela entravam, os
Nagaiers, os Bolsans, os Saccart...
Jacinto franzia o nariz, enervado: — Mas, ao menos, estão feitos os estudos? já se provou que há
esmeraldas? Tanta ingenuidade exasperou Efraim: — Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!... Há
sempre esmeraldas desde que haja acionistas!
E eu admirava a grandeza daquela máxima — quando apareceu, esbaforido, desdobrando o lenço muito
perfumado, um dos familiares do 202, Todelle (António de Todelle), homem já calvo, de infinitas
prendas, que conduzia Cotillons, imitava cantores de café-concerto, temperava saladas raras, conhecia
todos os enredos de Paris.
— Já veio?... já cá está o grão-duque? Não, Sua Alteza ainda não chegara. E Madame de Todelle? —Não pôde...
No sofá... Esfolou uma perna.
— Oh! — Quase nada... Caiu do velocípede! Jacinto, jogo interessado: — Ali, Madame de Todelle
anda já de velocípede? — Aprende. Nem tem velocípede!... Agora, na Quaresma, é que se aplicou mais,
no velocípede do padre Ernesto, do cura de S. José! Mas ontem, no Bosque, zás, terra!... Perna esfolada.
Aqui.
E na sua própria coxa, com a unha, vivamente, desenhou o esfolão. Efraim, brutal e sério, murmurou:
— Diabo! É o melhor sítio! — Mas Todelle nem o escutara, correndo para o diretor do «Boulevard»,
que se avançava, lento e barrigudo, com o seu monóculo negro semelhante a um pacho. Ambos se
colaram contra uma estante, num cochichar profundo.

Jacinto e eu entrámos então no bilhar, forrado de velhos couros de Córdova, onde se fumava. Ao canto
de um divã, o grande Dornan, o poeta neoplatónico e místico, o Mestre subtil de todos os ritmos,
espapado nas almofadas, com uni dos pés sob a coxa gorda, como um deus índio, dois botões do colete
desabotoados, a papeira calda sobre o largo decote do colarinho, mamava majestosamente um imenso
charuto. Ao pé dele, também sentado, um velho que eu nunca encontrara no 202, esbelto, de cabelos
brancos em anéis passados por trás das orelhas, a face coberta de pó de arroz, um bigodinho muito
negro e arrebitado, findara certamente alguma história de bom e grosso sal — porque diante do divã, de
pé, Joban, o supremo crítico de teatro, ria com a calva escarlate de gozo. e um rapaz muito ruivo
(descendente de Coligny), de perfil de periquito, sacudia os braços curtos como asas, e gania: —Delicioso! Divino! —
Só o poeta idealista permanecera impassível, na sua majestade obesa. Mas, quando
nos acercámos, esse Mestre do ritmo perfeito, depois de soprar uma farta fumarada e me saudar com um
pesado mover das pálpebras, começou numa voz de rico e sonoro metal:
— Há melhor, há infinitamente melhor... Todos aqui conhecem Madame Noredal. Madame Noredal
tem umas imensas nádegas...

Desgraçadamente para o meu regalo Todelle invadiu o bilhar, reclamando Jacinto com alarido. Eram as
senhoras que desejavam ouvir no Fonógrafo uma ária da Patti! O meu amigo sacudiu logo os ombros,
numa surda irritação:
— Ária da Patti... Eu sei lá! Todos esses rolos estão em confusão. Além disso o Fonógrafo trabalha
mal. Nem trabalha! Tenho três. Nenhum trabalha!
— Bem! — exclamou alegremente, Todelle. — Canto eu a « Pauvre fille»... É mais de ceia! Oh, la
pauv'', pauv'', pauv''...
Travou do meu braço, e arrastou a minha timidez serrana para o salão cor-de-rosa murcho, onde, como
deusas num círculo escolhido do Olimpo, resplandeciam Madame d''Oriol, Madame Verghane, a princesa
de Carman, e uma outra loura, com grandes brilhantes nas grandes farripas, e de ombros tão nus, e
braços tão nus, e peitos tão nus, que o seu vestido branco com bordados de ouro pálido parecia uma
camisa, a escorregar. Impressionado, ainda retive Todelle, rugi baixinho: — Quem é? — Mas já o festivo
homem correra para Madame d''Oriol, com quem riam, numa familiaridade superior e fácil, Marizac (o
duque de Marizac) e um homem de barba cor de milho e mais leve — que uma penugem, que se
balouçava gracilmente sobre os pés, como uma espiga ao vento.

E eu, encalhado contra o piano, esfregava lentamente as mãos, amassando o meu embaraço, quando Madame
Verghane se ergueu do sofá onde conversava com um velho (que tinha a Grã-Cruz de Santo André), e avançou,
deslizou no tapete, pequena e nédia, na sua copiosa cauda de veludo verde-negro. Tão fina era a cinta,
entre os encontros fecundos e a vastidão do peito, todo nu e cor de nácar que eu receava que ela partisse
pelo meio, no seu lento ondular. Os seus famosos bandós negros, de um negro furioso, inteiramente lhe tapavam as
orelhas; e, no grande aro de ouro que os circundava, reluzia uma estrela de brilhantes, como na fronte
dos anjos de Boticelli. Conhecendo sem dúvida a minha autoridade no 202, ela despediu sobre mim ao
passar, como raio benéfico, um sorriso que lhe liquescia mais os olhos líquidos, e murmurou:
— O grão-duque vem, com certeza? — Oh com certeza, minha senhora, para o peixe! — Para o
peixe?... Mas justamente, na antecâmara, rompeu, em rufos e arcadas triunfais, a marcha de Rakoczy. Era
ele! Na Biblioteca, o nosso retumbante mordomo anunciava:

— Sua Alteza o Grão-Duque Casimiro! Madame de Verghane, com um curto suspiro de emoção,
alteou o peito, como para lhe expor melhor a magnificência ebúrnea. E o homem do «Boulevard», o
velho da Grã-Cruz, Efraim, quase me empurraram, investindo para a porta, na imensa sofreguidão de
Pessoa Real.
Precedido por Jacinto, o grão-duque surgiu. Era um possante homem, de barba em bico, já grisalha, um
pouco calvo. Durante um momento hesitou, com um balanço lento sobre os pés pequeninos, calçados de
sapatos rasos, quase sumidos sob as pantalonas muito largas. Depois, pesado e risonho, veio apertar a
mão às senhoras que mergulhavam nos veludos e sedas, em mesuras de Corte. E imediatamente, batendo
com carinhosa jovialidade no ombro de Jacinto:

— E o peixe?... Preparado pela receita que mandei, hem? Um murmúrio de Jacinto tranquilizou Sua
Alteza. — Ainda bem, ainda bem! — exclamou ele, no seu vozeirão de comando. — Que eu não jantei,
absolutamente não jantei! É que se está jantando deploravelmente em casa do Joseph. Mas porque se vai
jantar ainda ao Joseph? Sempre que chego a Paris, pergunto: «Onde é que se janta agora?» Em casa do
Joseph!... Qual! Não se janta! Hoje, por exemplo, galinholas... Uma peste! Não tem, não tem a noção da
galinhola!

Os seus olhos azulados, de um azul sujo, rebrilhavam, alargados pela indignação: — Paris está perdendo
todas as suas superioridades. já se não janta, em Paris! Então, em redor, aqueles senhores concordaram,
desolados. O conde de Trèves defendeu o Bignon, onde se conservavam nobres tradições. E o diretor do
«Boulevard», que se empurrava todo para Sua Alteza, atribuía a decadência da cozinha, em França, à
República, ao gosto democrático e torpe pelo barato.
— No Paillard, todavia... — começou o Efraim. — No Paillard! — gritou logo o grão-duque.
— Mas os Borgonhas são tão maus! Os Borgonhas são tão maus!...
Deixara pender os braços, os ombros, descoroçoado. Depois, com o seu lento andar balançado como o
de um velho piloto, atirando um pouco para trás as lapelas da casaca, foi saudar Madame d''Oriol, que
toda ela faiscou, no sorriso, nos olhos, nas joias, em cada prega das suas sedas cor de salmão. Mas apenas
a clara e macia criatura, batendo o leque como uma asa alegre, começara a chalrar, Sua Alteza reparou
no aparelho do Teatrofone, pousado sobre uma mesa entre flores, e chamou Jacinto:

— Em comunicação com o Alcazar?... O Teatrofone? — Certamente, meu senhor. Excelente! Muito
chique! Ele ficara com pena de não ouvir a Gilberte numa cançoneta nova, « Les Casquettes». Onze e
meia! Era justamente a essa hora que ela cantava, no último acto da «Revista Elétrica»... — Colou às
orelhas os dois «recetores» do Teatrofone, e quedou embebido, com uma ruga séria na testa dura. De
repente, num comando forte:
— É ela! Chut! Venham ouvir!... É ela! Venham todos! Princesa de Carman, para aqui! Todos! É ela! Chut...
Então, como Jacinto instalara prodigamente dois Teatrofones, cada um provido de doze fios, as senhoras,
todos aqueles cavalheiros, se apressaram a acercar submissamente um «recetor» do ouvido, e a
permanecer imóveis para saborear «Les Casquettes». E no salão cor-de-rosa murcho, na nave da
Biblioteca, onde se espalhara um silêncio augusto, só eu fiquei desligado do Teatrofone, com as mãos nas
algibeiras e ocioso.

No relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o movimento de todos os planetas, o
ponteiro rendilhado adormeceu. Sobre a mudez e a imobilidade pensativa daqueles dorsos, daqueles
decotes, a Eletricidade refulgia com uma tristeza de sol regelado. E de cada orelha atenta, que a mão
tapava, pendia um fio negro, como uma tripa. Dornan, esboroado sobre a mesa, cerrara as pálpebras,
numa meditação de monge obeso. O historiador dos duques d''Anjou, com o «recetor» na ponta delicada
dos dedos, erguendo o nariz agudo e triste, gravemente cumpria um dever palaciano. Madame d''Oriol
sorria, toda lânguida, como se o fio lhe murmurasse doçuras. Paradesentorpecer arrisquei um passo
tímido. Mas caiu logo sobre mim um «chut» severo do grão-duque! Recuei para entre as cortinas da
janela, a abrigar a minha ociosidade.

O psicólogo da «Couraça», distante da mesa, com o seu comprido
fio esticado, mordia o beiço num esforço de penetração. A beatitude de Sua Alteza, enterrado, numa
vasta poltrona, era perfeita. Ao lado o colo de Madame Verghane arfava como uma onda de leite. E o
meu pobre Jacinto, numa aplicação conscienciosa, pendia sobre o Teatrofone tão tristemente como sobre
uma sepultura.
Então, perante aqueles seres de superior civilização, sorvendo num silêncio devoto as obscenidades que
a Gilberte lhes gania, por debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos
canos das fezes, — pensei na minha aldeia adormecida. O crescente de Lua, que, seguido de uma
estrelinha, corria entre nuvens sobre os, telhados e as chaminés negras dos Campos Elísios--também
andava lá fugindo, mais lustrosa e mais doce, por cima dos pinheirais. As rãs. Coaxavam ao longe no
pego da Dona. A ermidinha de S. Joaquim branquejava no cabeço, nuazinha e cândida...

Uma das senhoras murmurou: — Mas, não é a Gilberte!... E um dos homens: — Parece um cornetim...
— Agora são palmas... — Não, é o Paulin! O grão-duque lançou um «chut» feroz... No pátio da nossa
casa ladravam os cães. De além do ribeiro respondiam os cães do João Saranda; Como me encontrei
descendo por uma quelha, sob as ramadas, com o meu varapau ao ombro? E sentia, entre a seda das
cortinas, num fino ar macio, o cheiro das pinhas estalando nas lareiras, o calor dos currais através das
sebes altas, e o sussurro dormente das levadas...
Despertei a um brado que não saía nem dos eidos, nem das sombras. Era o grão-duque que se erguera,
encolhia furiosamente os ombros:
— Não se ouve nada!... Só guinchos! E um zumbido! Que maçada!... Pois é uma beleza, a cançoneta:
Oh les casquettes, Oh les casque-e-e-ttes!...
Todos largaram os fios — proclamavam a Gilberte deliciosa. E o mordomo bendito, abrindo largamente
os dois batentes, anunciou:

— Monseigneur est servi! Na mesa, que pelo esplendor. das orquídeas mereceu os louvores ruidosos
de Sua Alteza, fiquei entre o etéreo poeta Dornan e aquele rapaz de, penugem loura que balouçava
como uma espiga ao vento. Depois de desdobrar o guardanapo, de o acomodar regaladamente sobre os
joelhos, Dornan desenvencilhou da corrente do relógio uma enorme luneta para percorrer o menu —que aprovou.
E inclinando para mim a sua face de apóstolo obeso:
— Este Porto de 1834, aqui em casa de Jacinto, deve ser autêntico... hem? Assegurei ao Mestre dos
Ritmos que o Porto envelhecera nas adegas clássicas do avô «Galeão». Ele afastou, numa preparação
metódica, os longos, densos fios do bigode que lhe cobriam a boca grossa. Os escudeiros serviram um
consommé frio com trufas. E o rapaz cor de milho, que espalhara pela mesa o seu olhar azul e doce,
murmurou, com uma desconsolação risonha:

— Que pena!... Só falta aqui um general e um bispo! Com efeito! Todas as Classes Dominantes
comiam nesse momento as trufas do meu Jacinto... Mas defronte Madame d''Oriol lançara um riso mais
cantado que um gorjeio. O grão-duque, numa silva de orquídeas que orlava o seu talher, notara uma,
sombriamente horrenda, semelhante a um lacrau esverdinhado, de asas lustrosas, gordo e túmido de
veneno: e muito delicadamente ofertara a flor monstruosa a Madame d''Oriol, que, com trinado riso,
solenemente, a colocou no seio. Colado àquela carne macia, de uma brancura de nata fina, o lacrau
inchara, mais verde, com as asas frementes. Todos os olhos se acendiam, se cravavam no lindo peito, a
que a flor disforme, de cor veneno s a, apimentava o sabor. Ela reluzia, triunfava. Paraajeitar melhor a
orquídea os seus dedos alargaram o decote, aclararam belezas, guiando aquelas curiosidades flamejantes
que a despiam. A face vincada de Jacinto pendia para o prato vazio. E o alto lírico do «Crepúsculo
Místico», p assando a mão pelas barbas, rosnou com desdém:
— Bela mulher... Mas ancas secas, e aposto que não tem nádegas! No entanto o rapaz de loura
penugem voltara à sua estranha mágoa. Não possuirmos um general com a sua espada, um bispo com o
seu báculo!...

— Para quê, meu caro senhor? Ele atirou um gesto suave em que todos os seus anéis faiscaram: — Para
uma bomba de dinamite...
Temos aqui um esplêndido ramalhete de flores de Civilização, com um
grão-duque. no meio. Imagine uma bomba de dinamite, atirada da porta!... Que belo fim de ceia, num
fim de século!
E como eu o considerava assombrado, ele, bebendo goles de Chateau-Yquem, declarou que hoje a única
emoção, verdadeiramente fina, seria aniquilar a Civilização. Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro,
nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se
extraíra de criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!

Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros. Mas eu não atendia o gentil
pedante, colhido por outro cuidado — reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacara
como no conto do Palácio Petrificado. E o prato agora devido era o peixe famoso da Dalmácia, o peixe
de Sua Alteza, o peixe inspirador da festa! Jacinto, nervoso, esmagava entre os dedos uma flor. E todos
os escudeiros sumidos!
Felizmente o grão-duque contava a história de uma caçada, nas coutadas de Sarvan, em que uma
senhora, mulher de um banqueiro, saltara bruscamente do cavalo, num descampado, sem árvores. Ele e
todos os caçadores param — e a galante senhora, lívida, com a amazona arregaçada, corre para trás de
uma pedra... Mas nunca soubemos em que se ocupava a banqueira, nesse descampado, agachada atrás da
pedra porque justamente o mordomo apareceu, reluzente de suor, e balbuciou uma confidência a
Jacinto, que mordeu o beiço, trespassado. O grão-duque emudecera. Todos se entreolhavam, numa
ansiedade alegre. Então o meu Príncipe, com paciência, com heroicidade, forçando palidamente o
sorriso:

— Meus amigos, há uma desgraça... Dornan pulou na cadeira: — Fogo? Não, não era fogo. Fora o
elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de Sua Alteza, se desarranjara, e não se
movia, encalhado!

O grão-duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto:
— Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Paraque estamos nós aqui então a cear?
Que estupidez! E porque o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a copa?

E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os ombros,
perante esta esmagadora cólera de príncipe. Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de Sua
Alteza, E eu não me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o desastre, enquanto Dornan,
batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!

O grão-duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe
avermelhava mais a face esbraseada. Espreitei, por sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva, sobre
uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda fumegando, entre rodelas de
limão. Jacinto, branco como a gravata, torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor.
Depois foi o grão-duque que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos em que
ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze eterno.

Sedas roçagaram à entrada da copa. Era Madame d''Oriol, e atrás Madame Verghane, com os olhos a
faiscar, na curiosidade daquele lance em que o príncipe soltara tanta paixão. Marizac nosso íntimo,
surgiu também, risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o psicólogo, que se
abeirou, psicologou, atribuindo intenções sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada um o grãoduque,
escarlate, mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos afundavam a face,
murmuravam: «Lá está!» Todelle, na sua precipitação, quase se despenhou. O periquito descendente de
Coligny batia as asas, ganindo: — Que cheiro ele deita, que delícia! — Na copa atulhada os decotes das
senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó de arroz meteu o pé num balde de gelo, com
um berro ferino. E o historiador dos duques d''Anjou movia por cima de todos o seu nariz bicudo e
triste.

De repente, Todelle teve uma ideia: — É muito simples... É pescar o peixe! O grão-duque bateu na coxa
uma palmada triunfal. Está claro! Pescar o peixe! E no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova, toda a
sua cólera se sumira, de novo se tornara o príncipe amável, de magnífica polidez, desejando que as
senhoras se sentassem para assistir à pesca miraculosa! Ele mesmo seria o pescador! Nem se necessitava,
para a divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho. Imediatamente Madame
d''Oriol, excitada, ofereceu um dos seus ganchos. Apinhados em volta dela, sentindo o seu perfume, o
calor da sua pele, todos exaltámos a amorável dedicação. E o psicólogo proclamou que nunca se pescara
com tão divino anzol!

Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um cordel, já o grão-duque,
radiante, vergara o gancho em anzol. Jacinto, com uma paciência lívida, erguia uma lâmpada sobre a
escuridão do poço fundo. E os senhores mais graves, o historiador, o diretor do « Boulevard», o conde
de Trèves, o homem de cabeça à Van Dick, sorriam, amontoados à porta, num interesse reverente pela
fantasia de Sua Alteza. Madame de Trèves, essa, examinava serenamente, com a sua nobre luneta, a
instalação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre a toalha, o gordo
pescoço encovado, no tédio sombrio de fera a quem arrancaram a. posta>

No entanto Sua Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo, sem presa,
bamboleando na extremidade da guita frouxa, não fisgava.
— Oh Jacinto, erga essa luz! — gritava ele, inchado e suado. — Mais!... Agora! Agora! É na guelra!
Só na guelra é que o gancho o pode prender. Agora... Qual!. Que diabo! Não vai!
Tirou a face do poço, resfolgando e afrontado. Não era possível! Só carpinteiros, com alavancas!... E
todos, ansiosamente, bradámos que se abandonasse o peixe!

O príncipe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim «fora mais divertido pescá-lo do que
comê-lo!» E o elegante bando refluiu sofregamente para a mesa, ao som de uma valsa de Strauss, que os
tziganes arremessaram em arcadas de lânguido ardor. Só Madame de Trèves se demorou ainda, retendo
o meu pobre Jacinto, para lhe assegurar quanto admirava o arranjo da sua copa... Oh, perfeita! Que
compreensão da vida, que fina inteligência do conforto!

Sua Alteza, encalmado pelo esforço, esvaziou poderosamente dois copos de Chateau-Lagrange. Todos o
aclamavam como um pescador genial. E os escudeiros serviram o «Barão de Pauillac», cordeiro das
lezírias marinhas, que, preparado com ritos quase sagrados, toma este grande nome sonoro e entra no
Nobiliário de França.

Eu comi com o apetite de um herói de Homero. Sobre o meu copo e o de Dornan o champanhe cintilou
e jorrou ininterrompidamente como uma fonte de Inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se
derretiam na boca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime a Santa Clara. E
como, do outro lado, o rapaz de penugem loura insistia pela destruição do velho mundo, também
concordei, e, sorvendo o champanhe coalhado em sorvete, maldissemos o Século, a Civilização, todos os
orgulhos da Ciência! Através das flores e das luzes, no entanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto
peito de Madame Verghane, que ria como uma bacante. E nem me apiedava de Jacinto que, com a
doçura de S. Jacinto sobre o cepo, esperava o fim do seu martírio e da sua festa.

Ela findou. Ainda recordo, às três horas da noite, o grão-duque na antecâmara, muito vermelho, mal
firme nos pés pequeninos, sem acertar com as mangas da peliça que Jacinto e eu lhe ajudámos a enfiar
— convidando o meu amigo, numa efusão carinhosa, a ir caçar às suas terras da Dalmácia...
— Devo ao meu Jacinto uma bela pesca, quero que ele me deva uma bela caçada! E enquanto o
acompanhávamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta escada onde o mordomo o precedia erguendo
um candelabro de três lumes, Sua Alteza repisava, pegajoso:
— Uma bela caçada... E também vai Fernandes! Bom Fernandes, Zé Fernandes! Ceia superior, meu
Jacinto! O «Barão de Pauillac», divino!... Creio que o devemos nomear duque... O Senhor Duque de
Pauillac! Mais um bocado da perna do Senhor Duque de Pauillac. Ah! Ah!... Não venham fora! Não se
constipem!

E do fundo do coupé, ao rodar, ainda bradou: — O peixe, Jacinto, desencalha o peixe! Excelente, ao
almoço, frio, com molho verde!
Trepando cansadamente os degraus, numa moleza de champanhe e sono em que os olhos se me
cerravam, murmurei para o meu Príncipe:
— Foi divertido, Jacinto! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o elevador...

E Jacinto, num som cavo que era bocejo e rugido: — Uma maçada! E tudo falha!
Três dias depois desta festa no 202 recebeu o meu Príncipe inesperadamente, de Portugal, uma nova
considerável. Sobre a sua quinta e solar de Tormes, por toda a serra, passara uma tormenta devastadora
de vento, corisco e água. Com as grossas chuvas, «ou por outras causas que os peritos dirão» (como
exclamava na sua carta angustiada o procurador Silvério), um pedaço de monte, que se avançava em
socalcos sobre o vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica do século
XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os tempos de el-rei D. Manuel. Os ossos
veneráveis desses Jacintos jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silvério
já começara com os rapazes da quinta a desatilhar os «preciosos restos». Mas esperava ansiosamente as
ordens de Sua Excelência...

Jacinto empalidecera, impressionado. Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de
repente ruía! Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva, para um
negro fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma história,
confundidas num lixo de ruína!
— Coisa estranha, coisa estranha!... E toda a noite me interrogou acerca da serra e de Tormes, que eu
conhecia desde pequeno, porque o velho solar, com a sua nobre alameda de faias seculares, se erguia a
duas léguas da nossa casa, no antigo caminho de Guiães à estação e ao rio. O caseiro de Tormes, o bom
Melchior, era cunhado do nosso feitor da Roqueirinha — e muitas vezes, depois da minha intimidade
com Jacinto, eu entrara no robusto casarão de granito, e avaliara o grão espalhado pelas salas sonoras, e
provara o vinho novo nas adegas imensas...

— E a igreja, Zé Fernandes?... Entraste na igreja? — Nunca... Mas era pitoresca, com uma torrezinha
quadrada, toda negra, onde há muitos anos vivia uma família de cegonhas... Terrível transtorno para as
cegonhas!
_ Coisa estranha! — murmurava ainda o meu Príncipe, agourado. E telegrafou ao Silvério que
desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas, reedificasse a igreja, e, para esta obra de piedade e reverência,
gastasse o dinheiro, sem contar, como a água de um rio largo.