Capítulo VII

Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora: — e eu pensava em. realizar finalmente a minha
romagem às cidades da Europa, sempre retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da
Carne. Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé Fernandes o acompanhasse,
todas as tardes, a casa de Madame d''Oriol! E eu compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino
Aquiles, que sob a tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseis, nunca dispensava Patoclo) desejava
ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto e o socorro da Amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã
combinava pelo telefone com Madame d''Oriol essa hora de quietação e doçura.

E assim encontrávamos sempre a superfina dama prevenida e solitária naquela sala da Rue de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal
cabíamos, sufocávamos na confusão, entre os cestos de flores, e os ouros rocalhados, e os monstros do
Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés de sofás adormecedores, e os
biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas...

Aninhada numa cadeira de bambulacada de branco, entre almofadas aromatizadas de verberia da Índia, com um romance pousado no
regaço, ela esperava o seu amigo, numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava sempre o Oriente e um harém.

Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia também uma marquesinha de Versalhes cansada do Grande Século; ou então, com brocados
sombrios e largos cintos cravejados, era como uma veneziana, preparada para um doge.

A minha intrusão, na intimidade daquelas tardes, não a contrariava — antes lhe trazia um vassalo novo,
com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu «cher Fernandez»!

E a apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a uma ferida fresca, e começava a
chalrar — logo nos envolvia o burburinho e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua
pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o resumo do seu Paris: — e a sua
existência, desde casada, consistira em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo, entrar com
perfeição numa sala e irradiar, remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro;rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de cera; decotar e branquear o
colo, debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo, fender turbas ricas em bailes espessos;
adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os Ecos e as Festas do «
Figaro»; e de vez em quando murmurar para o marido: «Ah, és tu?...» Além disso, ao lusco-fusco, num
sofá, alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu Príncipe, nesse
ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo.

Tanto sorrira, desde casada, que já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas nem na alma,
nem na pele, mostrava outras máculas de fadiga. A sua agenda de visitas continha mil e trezentos nomes,
todos do Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjara no cérebro (onde decerto
penetrara o pó de arroz que desde o colégio acamava na testa) algumas Ideias Gerais.

Em Política era pelos Príncipes; e todos os outros. «horrores», a República, o Socialismo, a Democracia que se não lava,
os sacudia risonhamente, com um. bater de leque.

Na Semana Santa juntava às rendas do chapéu a coroa
amarga dos espinhos — por serem esses, para a gente bem nascida, dias de penitência e dor. E, diante de
todo o livro ou de todo o quadro, sentia a emoção e formulava finamente o juízo, que no seu Mundo, e
nessa Semana, fosse elegante formular e sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos
de uma paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas num livro de contas
encadernado em pelúcia verde-mar.

A sua religião íntima (e mais genuína do que a outra, que a levava
todos os domingos à missa de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo que na amável
Cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem abrigo — ela preparava com
comovido cuidado os seus vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade — porque era
boa, e concorria para bazares, concertos e tômbolas, quando fossem patrocinados pelas duquesas do seu
«rancho». Depois, na Primavera, muito metodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as
capas de Inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.

Pois respirando esta macia e fina Por passámos nós as tardes desse Julho enquanto as outras flores
pendiam e murchavam na calma e no pó. Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não parecia
encontrar esse contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais cansa. Era já com a paciente
lentidão com que se sobem todos os Calvários, os mais bem tapetados, que ele subia a escadaria de
Madame d''Oriol, tão suave e orlada de tão frescas palmeiras, Quando a apetitosa criatura, com
dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão desdobra a cauda, o meu pobre
Príncipe puxava os pêlos do bigode murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de Maio,
enquanto os melros cantam nas sebes, assiste, numa igreja negra, a um responso fúnebre por um
príncipe. E no beijo que ele chuchurreava sobre a mão da sua doce amiga, para se despedir, havia sempre
alacridade e alívio.

Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através da Biblioteca e do Gabinete, puxando
sem curiosidade a tira do telégrafo, atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a colina dos jornais e revistas,
terminava por me chamar, já com a preguiça triste da façanha a que se impelia:

— Vamos a. casa de Madame d''Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas para hoje seis ou sete coisas,
mas não posso, é uma seca! Vamos a casa de Madame d''Oriol... Ao menos lá, às vezes, há um bocado de
frescura e paz.

E foi numa dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava desesperadamente um «bocado de
frescura e paz», que encontrámos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame
d''Oriol. Eu já o conhecia — porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café, ceando com
dançarinas do Moulin Rouge.

Era um rapaz gordalhufo indolente, de uma brancura crua de toucinho,
com uma calvície já séria e já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos carregados de
anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou
diante de Jacinto — e sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
— Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos uma cena, e tremenda.

Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgaçada: — Estamos separados, cada um vive
como lhe apetece, é excelente! Mas em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso
consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do trintanário. Amantes da
nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criados que emigre para o fundo da província,
para a sua casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que eu lhe disse! Ficou como uma fera.

Sacudiu então a mão de Jacinto que «era da sua roda» rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu
Príncipe, imóvel nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois,
olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio novo pode caber:
— Já agora subamos, sim?

Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às cidades da Europa.

Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à, pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a
mala. Onze vezes passei o dia, num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer
de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me
escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria
desconhecida de um hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama
desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite
que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo.

Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira,
quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito.

Em mais de trinta mesas redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho
coalhado — e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha.

Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais. Trilhei
molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos
tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquiteturas, verduras, nudezas, sombrias
manchas de betume, tristezas das formas imóveis!...

E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que
habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boavista... Gastei seis
mil francos, Tinha viajado.

Enfim, numa bendita manhã de Outubro, na primeira friagem e névoa de Outono, avistei com
enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda fechadas no meu 202! Afaguei o ombro do porteiro. No
patamar, onde encontrei o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos do Grilo
excelente:

— E Jacinto? O digno negro murmurou, de entre os altos, reluzentes colarinhos: — Sua Excelência
circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da duquesa de Loches. Era o contrato de casamento de
Mademoiselle de Loches... Ainda tomou, antes de se deitar, um chá gelado... E disse a coçar a cabeça:
«Eh! que maçada! Eh! que maçada!»

Depois do banho e do chocolate, às dez horas, consolado e quentinho dentro do roupão de veludo,
rompi pelo quarto do meu Príncipe, de braços abertos e sedentos:

— Oh Jacinto! — Oh viajante!... Quando nos estreitámos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar
a face — e nela a alma. Encolhido numa quinzena de pano cor de malva orlada de peles de marta, com
os pêlos do bigode murchos, as suas duas rugas mais cavadas, uma moleza nos ombros largos, o meu
amigo parecia já vergado sob o pesos e a opressão e o terror do seu dia. Eu sorri, para que ele sorrisse:

— Valente Jacinto... Então como tens vivido? Ele respondeu, muito serenamente: — Como um
morto. Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve: — Aborrecidote, hem?

O meu Príncipe lançou, num gesto tão vencido, um «Oh» tão cansado — que eu compadecido de novo
o abracei, o estreitei, como para lhe comunicar uma parte desta alegria sólida e pura que recebi do meu
Deus!

Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o
tédio de que a existência o saturava.

O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em
sondar e formular esse tédio — na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a
potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a — comédia pouco divertida de um Melancólico que
perpetuamente raciocina a sua Melancolia!

Nesse raciocínio, ele partia sempre do facto irrecusável e maciço — que a sua vida especial de Jacinto
continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveisno século XIX, numa vida de homem que não
é um génio, nem um santo. Com efeito!

Apesar do apetite embotado por doze anos de champanhes e molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo,
na luz da sua inteligência não aparecera nem tremor nem morrão, a boa terra de Portugal, e algumas
companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre ativas e sempre
fiéis o cercavam as simpatias de uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos;
nenhuma amargura de coração o atormentava; — e todavia era um Triste.

Porquê?... E daqui saltava,
com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava
amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto — mas da Vida, do lamentável, do
desastroso facto de Viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara no
Pessimismo.

E um Pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para ser tão naturalmente otimista
como um pardal ou um gato.

E, até aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado,
com a sua pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou melancolia,
ou contrariedade, ou pena — e as lágrimas eram para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas.

Só quando crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento de
tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e que depois alastrara, o
invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como o sangue das suas veias.

Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos diferentes da Vida. Na turba dos humanos é a
angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades mais altas, é a
amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra o obstáculo; nele,
que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade, fastio
da Inteligência — eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr com os
dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira

Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o «Ecclesiastes» até Schopenhauer,
todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo.

Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente «jacíntico» —
mas grandiosamente resultantede uma Lei Universal. já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a Vida,
mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia em Ilusão. já o rei incomparável, de sapiência divina, sumo Vencedor,
sumo Edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos dos seus
templos, e as suas três mil concubinas, e as rainhas que subiam do fundo da Etiópia para que ele as
fecundasse e no seu ventre depusesse um deus!

Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena.
E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efémero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro
no 202, padecia por ser homem e por viver — como no seu trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de David.

Não se separava então do «Ecclesiastes». E circulava por Paris trazendo dentro do coupé Salomão, como
irmão de dor, com quem repetia o grito desolado que é a suma da verdade humana — Vanitas
Vanitatum! Tudo é Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá, num roupão
de seda, absorvendo Schopenhauer — enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com
respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a chávena de Saxe, cheia desse café de Moka
enviado por emires do deserto, que não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma.

A espaços pousava o livro no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dor o
torturaria — pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente,
em pés alheios... E quando o pedicuro se erguia, Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade —
com um «adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»

Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida
uma ocupação grata — maldizer a Vida! E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais
ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo, de interesses
novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.

O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que ele iniciou em Paris, repetindo
Heliogábalo, os Festins de Cor contados na «História Augusta»: e ofereceu às suas amigas esse sublime
jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças, os cristais, os gelados,
os champanhes, e até (por uma invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os
escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do teto, de um velário
de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas...A Cidade, deslumbrada, clamou: «Bravo, Jacinto!» E o
meu Príncipe, ao rematar a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou
triunfalmente: «Hem? Que maçada!...»

Depois foi o Humanitarismo: e fundou um hospício no campo, entre jardins, para velhinhos
desamparados, outro para crianças débeis à beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e
Mayolle, e o hindu de Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências para verificar
a misteriosa exteriorização da motilidade.

Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do «Times», para que no seu gabinete, como num coração,
palpitasse toda a Vida Social daEuropa. E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da sociabilidade,
e da inteligência indagadora, voltava para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: «Vés tu, Zé Fernandes? Uma
maçada!» Arrebatava então o seu «Ecclesiastes», o seu Schopenhauer, e, estendido no sofá, saboreava
voluptuosamente a concordância da Doutrina e da Experiência. Possuía uma Fé — o Pessimismo: era
um apóstolo rico e esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da sua Fé!
Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!

No começo do Inverno, porém, notei com inquietação que Jacinto já não folheava o «Ecclesiastes»,
desleixava Schopenhauer. r. Nem festas, nem teosofismos, nem os seus hospícios, nem os fios do «Times»,
pareciam interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da sua Crença.

E a sua abominável função de novo se limitou a bocejar, a passar os dedos moles sobre a face pendida, palpando
a caveira. Incessantemente aludia à morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo, no melancólico
crepúsculo da Biblioteca, antes de refulgirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando num tom
regelado de mortes rápidas, sem dor, pelo choque de uma vasta pilha elétrica ou pela violência
compassiva do ácido cianídrico. Diabo! O Pessimismo, que aparecera na Inteligência do meu Príncipe
como um conceito elegante — atacara bruscamente a Vontade!

Todo o seu movimento então foi o de um boi inconsciente que marcha sob a canga e o aguilhão. Já não
esperava da Vida contentamento — nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena.
«Tudo é indiferente, Zé Fernandes!» E tão indiferentemente sairia à sua janela para receber uma coroa imperial
oferecida por um povo — como se estenderia numa poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo tudo
inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante atividade ou a
mais desgostada inércia? O seu gesto constante, que me irritava, era encolher os ombros.

Perante duas ideias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os ombros! Que importava?.. E no mínimo acto, raspar um
fósforo ou desdobrar um jornal, punha uma morosidade tão desconsolada que todo ele parecia ligado,
desde os dedos até à alma, pelas voltas apertadas de uma corda que se não via e que o travava.

Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus anos, a 10 de Janeiro. Cedo, de manhã, recebera,
com uma carta de Madame de Trèves, um açafate de camélias, azáleas, orquídeas e lírios do vale. E foi
este mimo que lhe recordou a data Considerável. Soprou sobre as pétalas o fumo do cigarro e
murmurou com um riso de lento escárnio:

— Então há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada? E como eu propunha que
telefonássemos aos amigos para beberem no 202 o champanhe do «natalício» — ele recusou, com o
nariz enojado. Oh! Não! Que horrível seca!... E bradou mesmo para o Grilo:

— Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!

E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os telegramas, as cartas, que subiam, se
arredondavam em colina sobre a mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram,
em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por ele comparadas às que se depõem sobre uma tumba. E
apenas se interessou um momento pelo presente de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao
tapete ou se alteava até ao teto — para quê, senhor Deus meu?

Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredámos do 202, com os pés estendidos ao lume,
em preguiçoso silêncio. Eu terminara por adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do
Grilo... Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel! E nunca eu me
compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a acumular todas as noções formuladas desde
Aristóteles e a juntar todos os inventos realizados desde Teramenes, como nessa tarde de festa, em que
ele, cercado de Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de
viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papéis com uma tesoura!

O Grilo trazia um presente do grão-duque — uma caixa de prata, forrada de cedro, e cheia de um chá
precioso, colhido, flor a flor, nas veigas de Kiang-Su por mãos puras de virgens, e conduzido através da
Ásia, em caravanas, com a veneração de uma relíquia.

Então, para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos o divino chá — ocupação bem harmónica com a
tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama bailando no fogão. Jacinto acedeu — e um
escudeiro acercou logo a mesa de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros.

Mas o meu Príncipe, depois de a altear, para o
meu espanto, até aos cristais do lustre, não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as
molas, que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira.

E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável para o gigante Adamastor.
Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que comunicavam
a essa ocupação, tão simples e doce em casa da minha tia, fazer chá, a majestade de um rito. Prevenido
pelo meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Su, ergui a chávena aos lábios com reverência.
Era uma infusão descorada que sabia a malva e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou... Não
tomámos chá.

Ao cabo de outro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos no lume: — E as obras de.
Tormes? A igreja... já haverá igreja nova? Jacinto retomara o papel e a tesoura: — Não sei... Não tornei a
receber carta do Silvério... Nem imagino onde param os ossos... Que lúgubre história!

Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro
uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da
nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam
os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:

— Arroz-doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida... Excelente lembrança! Há que tempos
não como arroz-doce! Desde a morte da avó.

Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que. vexame! Era um prato monumental, de grande
arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e
desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde
feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua,
vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato
acanalhado. — E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou corpo num funeral pagão:

— Ad manes, aos nossos mortos! Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do
lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano: e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da
chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na
minha aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob o abrigo da sua
telha vã, com a sua panela atestada de couves, se agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que
não tenham lenha ou couve, lá está o João das Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem
todos os pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o carro vai ao mato
e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda és doce aos pequeninos!

Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer languidamente os jornais que o mordomo
trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata — jornais de Paris, jornais de Londres,
semanários, magazines, revistas, ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das revistas espreitava o
sumário, logo farto; às ilustrações rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando por cima das
gravuras. Depois, mais estirado para o lume:

— É uma seca... Não há que ler. — E de repente, revoltado contra este fastio opressor que o
escravizava, saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando
em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquele Seu 202, tão abarrotado de Civilização,
a que por um momento sequer fornecesse à sua alma um interesse vivo, à sua vida um fugitivo gosto!
Mas o 202 permaneceu insensível: nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças
tremeram sob o embate mais rude de água e vento.

Então, o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os
aparelhos com. pletadores e facilitadores da Vida — o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu Fonógrafo, o
seu Radiómetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina de Escrever, a sua Máquina de
Contar, a sua Imprensa Elétrica, a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus tubos, todos
os seus fios... Assim um suplicante percorre altares donde espera socorro. E toda a sua sumptuosa
Mecânica se conservou rígida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lâmina
vibrasse, para entreter o seu Senhor.

Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se
compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um dia partira levando o seu
peso — diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado.

O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama — com um livro... E durante um momento, estacou no meio da
Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como
Doutores num Concílio — depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos,
sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano.

Torcendo molemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças:
pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou na Revolução Francesa donde se arredou desencantado:
e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas
bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando,
sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas.

Não lhe apeteceu nenhuma dessas seis mil almas — e recuou, desconsolado, até aos Biólogos.. Tão maciça e cerrada era a
estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como perante uma cidadela inacessível! Rolou a
escada. — e, fugindo, trepou até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos: todo um
Sis tema Solar desabou com fragor.

Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras
novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.

Apanhava, folheava, arremessava: para
desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as
Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se
desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na
ânsia de encontrar um Livro!

Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados,
aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes —e, sem lhes provar a substância, já absolutamente
saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância. Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados,
ergueu melancolicamente um velho «Diário de Notícias», e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.
Capítulo VII

Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora: — e eu pensava em. realizar finalmente a minha
romagem às cidades da Europa, sempre retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da
Carne. Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé Fernandes o acompanhasse,
todas as tardes, a casa de Madame d''Oriol! E eu compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino
Aquiles, que sob a tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseis, nunca dispensava Patoclo) desejava
ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto e o socorro da Amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã
combinava pelo telefone com Madame d''Oriol essa hora de quietação e doçura.

E assim encontrávamos sempre a superfina dama prevenida e solitária naquela sala da Rue de Lisbonne,
onde Jacinto e eu mal cabíamos, sufocávamos na confusão, entre os cestos de flores, e os ouros rocalhados,
e os monstros do Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés de sofás
adormecedores, e os biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas...

Aninhada numa cadeira de bambulacada de branco, entre almofadas aromatizadas de verberia da Índia, com um
romance pousado no regaço, ela esperava o seu amigo, numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava
sempre o Oriente e um harém.

Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia também uma marquesinha de Versalhes cansada do Grande Século;
ou então, com brocados sombrios e largos cintos cravejados, era como uma veneziana, preparada para um doge.

A minha intrusão, na intimidade daquelas tardes, não a contrariava — antes lhe trazia um vassalo novo,
com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu «cher Fernandez»!

E a apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a uma ferida fresca, e começava a
chalrar — logo nos envolvia o burburinho e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua
pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o resumo do seu Paris: — e a sua
existência, desde casada, consistira em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo, entrar com
perfeição numa sala e irradiar, remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro;rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de cera; decotar e branquear o
colo, debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo, fender turbas ricas em bailes espessos;
adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os Ecos e as Festas do «
Figaro»; e de vez em quando murmurar para o marido: «Ah, és tu?...» Além disso, ao lusco-fusco, num
sofá, alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu Príncipe, nesse
ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo.

Tanto sorrira, desde casada, que já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas
nem na alma, nem na pele, mostrava outras máculas de fadiga. A sua agenda de visitas continha mil e
trezentos nomes, todos do Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjara no cérebro
(onde decerto penetrara o pó de arroz que desde o colégio acamava na testa) algumas Ideias Gerais.

Em Política era pelos Príncipes; e todos os outros. «horrores», a República, o Socialismo, a Democracia
que se não lava, os sacudia risonhamente, com um. bater de leque.

Na Semana Santa juntava às rendas do chapéu a coroa
amarga dos espinhos — por serem esses, para a gente bem nascida, dias de penitência e dor. E, diante de
todo o livro ou de todo o quadro, sentia a emoção e formulava finamente o juízo, que no seu Mundo, e
nessa Semana, fosse elegante formular e sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos
de uma paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas num livro de contas
encadernado em pelúcia verde-mar.

A sua religião íntima (e mais genuína do que a outra, que a levava
todos os domingos à missa de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo que na amável
Cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem abrigo — ela preparava com
comovido cuidado os seus vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade — porque era
boa, e concorria para bazares, concertos e tômbolas, quando fossem patrocinados pelas duquesas do seu
«rancho». Depois, na Primavera, muito metodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as
capas de Inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.

Pois respirando esta macia e fina Por passámos nós as tardes desse Julho enquanto as outras flores
pendiam e murchavam na calma e no pó. Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não parecia
encontrar esse contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais cansa. Era já com a paciente
lentidão com que se sobem todos os Calvários, os mais bem tapetados, que ele subia a escadaria de
Madame d''Oriol, tão suave e orlada de tão frescas palmeiras, Quando a apetitosa criatura, com
dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão desdobra a cauda, o meu pobre
Príncipe puxava os pêlos do bigode murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de Maio,
enquanto os melros cantam nas sebes, assiste, numa igreja negra, a um responso fúnebre por um
príncipe. E no beijo que ele chuchurreava sobre a mão da sua doce amiga, para se despedir, havia sempre
alacridade e alívio.

Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através da Biblioteca e do Gabinete, puxando
sem curiosidade a tira do telégrafo, atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a colina dos jornais e revistas,
terminava por me chamar, já com a preguiça triste da façanha a que se impelia:

— Vamos a. casa de Madame d''Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas para hoje seis ou sete coisas,
mas não posso, é uma seca! Vamos a casa de Madame d''Oriol... Ao menos lá, às vezes, há um bocado de
frescura e paz.

E foi numa dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava desesperadamente um «bocado de
frescura e paz», que encontrámos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame
d''Oriol. Eu já o conhecia — porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café, ceando com
dançarinas do Moulin Rouge.

Era um rapaz gordalhufo indolente, de uma brancura crua de toucinho,
com uma calvície já séria e já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos carregados de
anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou
diante de Jacinto — e sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
— Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos uma cena, e tremenda.

Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgaçada: — Estamos separados, cada um vive
como lhe apetece, é excelente! Mas em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso
consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do trintanário. Amantes da
nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criados que emigre para o fundo da província,
para a sua casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que eu lhe disse! Ficou como uma fera.

Sacudiu então a mão de Jacinto que «era da sua roda» rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu
Príncipe, imóvel nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois,
olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio novo pode caber:
— Já agora subamos, sim?

Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às cidades da Europa.

Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à, pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a
mala. Onze vezes passei o dia, num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer
de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me
escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria
desconhecida de um hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama
desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite
que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo.

Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira,
quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito.

Em mais de trinta mesas redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho
coalhado — e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha.

Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais.
Trilhei molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos
tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquiteturas, verduras, nudezas, sombrias
manchas de betume, tristezas das formas imóveis!...

E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca
flamejante que habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o visconde do Bom Sucesso, e as Limas
da Boavista... Gastei seis mil francos, Tinha viajado.

Enfim, numa bendita manhã de Outubro, na primeira friagem e névoa de Outono, avistei com
enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda fechadas no meu 202! Afaguei o ombro do porteiro. No
patamar, onde encontrei o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos do Grilo
excelente:

— E Jacinto? O digno negro murmurou, de entre os altos, reluzentes colarinhos: — Sua Excelência
circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da duquesa de Loches. Era o contrato de casamento de
Mademoiselle de Loches... Ainda tomou, antes de se deitar, um chá gelado... E disse a coçar a cabeça:
«Eh! que maçada! Eh! que maçada!»

Depois do banho e do chocolate, às dez horas, consolado e quentinho dentro do roupão de veludo,
rompi pelo quarto do meu Príncipe, de braços abertos e sedentos:

— Oh Jacinto! — Oh viajante!... Quando nos estreitámos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar
a face — e nela a alma. Encolhido numa quinzena de pano cor de malva orlada de peles de marta, com
os pêlos do bigode murchos, as suas duas rugas mais cavadas, uma moleza nos ombros largos, o meu
amigo parecia já vergado sob o pesos e a opressão e o terror do seu dia. Eu sorri, para que ele sorrisse:

— Valente Jacinto... Então como tens vivido? Ele respondeu, muito serenamente: — Como um
morto. Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve: — Aborrecidote, hem?

O meu Príncipe lançou, num gesto tão vencido, um «Oh» tão cansado — que eu compadecido de novo
o abracei, o estreitei, como para lhe comunicar uma parte desta alegria sólida e pura que recebi do meu
Deus!

Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o
tédio de que a existência o saturava.

O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em
sondar e formular esse tédio — na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a
potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a — comédia pouco divertida de um Melancólico que
perpetuamente raciocina a sua Melancolia!

Nesse raciocínio, ele partia sempre do facto irrecusável e maciço — que a sua vida especial de Jacinto
continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveisno século XIX, numa vida de homem que não
é um génio, nem um santo. Com efeito!

Apesar do apetite embotado por doze anos de champanhes e molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo,
na luz da sua inteligência não aparecera nem tremor nem morrão, a boa terra de Portugal, e algumas
companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre ativas e sempre
fiéis o cercavam as simpatias de uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos;
nenhuma amargura de coração o atormentava; — e todavia era um Triste.

Porquê?... E daqui saltava,
com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava
amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto — mas da Vida, do lamentável, do
desastroso facto de Viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara no
Pessimismo.

E um Pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para ser tão naturalmente otimista
como um pardal ou um gato.

E, até aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado,
com a sua pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou melancolia,
ou contrariedade, ou pena — e as lágrimas eram para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas.

Só quando crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento de
tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e que depois alastrara, o
invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como o sangue das suas veias.

Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos diferentes da Vida.
Na turba dos humanos é a angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades
mais altas, é a amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra o
obstáculo; nele, que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade,
fastio da Inteligência — eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr com os
dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira

Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o «Ecclesiastes» até Schopenhauer,
todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo.

Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente «jacíntico» —
mas grandiosamente resultantede uma Lei Universal. já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a Vida,
mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia em Ilusão. já o rei incomparável, de sapiência divina, sumo
Vencedor, sumo Edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos dos seus
templos, e as suas três mil concubinas, e as rainhas que subiam do fundo da Etiópia para que ele as
fecundasse e no seu ventre depusesse um deus!

Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena.
E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efémero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro
no 202, padecia por ser homem e por viver — como no seu trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de David.

Não se separava então do «Ecclesiastes». E circulava por Paris trazendo dentro do coupé Salomão, como
irmão de dor, com quem repetia o grito desolado que é a suma da verdade humana — Vanitas
Vanitatum! Tudo é Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá, num roupão
de seda, absorvendo Schopenhauer — enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com
respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a chávena de Saxe, cheia desse café de Moka
enviado por emires do deserto, que não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma.

A espaços pousava o livro no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dor o
torturaria — pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente,
em pés alheios... E quando o pedicuro se erguia, Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade —
com um «adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»

Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida
uma ocupação grata — maldizer a Vida! E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais
ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo, de interesses
novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.

O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que ele iniciou em Paris, repetindo
Heliogábalo, os Festins de Cor contados na «História Augusta»: e ofereceu às suas amigas esse sublime
jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças, os cristais, os gelados,
os champanhes, e até (por uma invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os
escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do teto, de um velário
de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas...A Cidade, deslumbrada, clamou: «Bravo, Jacinto!» E o
meu Príncipe, ao rematar a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou
triunfalmente: «Hem? Que maçada!...»

Depois foi o Humanitarismo: e fundou um hospício no campo, entre jardins, para velhinhos
desamparados, outro para crianças débeis à beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e
Mayolle, e o hindu de Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências para verificar
a misteriosa exteriorização da motilidade.

Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do «Times», para que no seu gabinete, como num coração,
palpitasse toda a Vida Social daEuropa. E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da sociabilidade,
e da inteligência indagadora, voltava para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: «Vés tu, Zé Fernandes? Uma
maçada!» Arrebatava então o seu «Ecclesiastes», o seu Schopenhauer, e, estendido no sofá, saboreava
voluptuosamente a concordância da Doutrina e da Experiência. Possuía uma Fé — o Pessimismo: era
um apóstolo rico e esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da sua Fé!
Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!

No começo do Inverno, porém, notei com inquietação que Jacinto já não folheava o «Ecclesiastes»,
desleixava Schopenhauer. r. Nem festas, nem teosofismos, nem os seus hospícios, nem os fios do «Times»,
pareciam interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da sua Crença.

E a sua abominável função de novo se limitou a bocejar, a passar os dedos moles sobre a face pendida, palpando
a caveira. Incessantemente aludia à morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo, no melancólico
crepúsculo da Biblioteca, antes de refulgirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando num tom
regelado de mortes rápidas, sem dor, pelo choque de uma vasta pilha elétrica ou pela violência
compassiva do ácido cianídrico. Diabo! O Pessimismo, que aparecera na Inteligência do meu Príncipe
como um conceito elegante — atacara bruscamente a Vontade!

Todo o seu movimento então foi o de um boi inconsciente que marcha sob a canga e o aguilhão. Já não
esperava da Vida contentamento — nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena.
«Tudo é indiferente, Zé Fernandes!» E tão indiferentemente sairia à sua janela para receber uma coroa imperial
oferecida por um povo — como se estenderia numa poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo tudo
inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante atividade ou a
mais desgostada inércia? O seu gesto constante, que me irritava, era encolher os ombros.

Perante duas ideias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os ombros! Que importava?.. E no mínimo acto, raspar um
fósforo ou desdobrar um jornal, punha uma morosidade tão desconsolada que todo ele parecia ligado,
desde os dedos até à alma, pelas voltas apertadas de uma corda que se não via e que o travava.

Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus anos, a 10 de Janeiro. Cedo, de manhã, recebera,
com uma carta de Madame de Trèves, um açafate de camélias, azáleas, orquídeas e lírios do vale. E foi
este mimo que lhe recordou a data Considerável. Soprou sobre as pétalas o fumo do cigarro e
murmurou com um riso de lento escárnio:

— Então há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada? E como eu propunha que
telefonássemos aos amigos para beberem no 202 o champanhe do «natalício» — ele recusou, com o
nariz enojado. Oh! Não! Que horrível seca!... E bradou mesmo para o Grilo:

— Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!

E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os telegramas, as cartas, que subiam, se
arredondavam em colina sobre a mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram,
em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por ele comparadas às que se depõem sobre uma tumba. E
apenas se interessou um momento pelo presente de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao
tapete ou se alteava até ao teto — para quê, senhor Deus meu?

Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredámos do 202, com os pés estendidos ao lume,
em preguiçoso silêncio. Eu terminara por adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do
Grilo... Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel! E nunca eu me
compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a acumular todas as noções formuladas desde
Aristóteles e a juntar todos os inventos realizados desde Teramenes, como nessa tarde de festa, em que
ele, cercado de Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de
viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papéis com uma tesoura!

O Grilo trazia um presente do grão-duque — uma caixa de prata, forrada de cedro, e cheia de um chá
precioso, colhido, flor a flor, nas veigas de Kiang-Su por mãos puras de virgens, e conduzido através da
Ásia, em caravanas, com a veneração de uma relíquia.

Então, para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos o divino chá — ocupação bem harmónica com a
tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama bailando no fogão. Jacinto acedeu — e um
escudeiro acercou logo a mesa de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros.

Mas o meu Príncipe, depois de a altear, para o
meu espanto, até aos cristais do lustre, não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as
molas, que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira.

E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável para o gigante Adamastor.
Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que comunicavam
a essa ocupação, tão simples e doce em casa da minha tia, fazer chá, a majestade de um rito. Prevenido
pelo meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Su, ergui a chávena aos lábios com reverência.
Era uma infusão descorada que sabia a malva e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou... Não
tomámos chá.

Ao cabo de outro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos no lume: — E as obras de.
Tormes? A igreja... já haverá igreja nova? Jacinto retomara o papel e a tesoura: — Não sei... Não tornei a
receber carta do Silvério... Nem imagino onde param os ossos... Que lúgubre história!

Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro
uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da
nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam
os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:

— Arroz-doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida... Excelente lembrança! Há que tempos
não como arroz-doce! Desde a morte da avó.

Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que. vexame! Era um prato monumental, de grande
arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e
desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde
feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua,
vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato
acanalhado. — E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou corpo num funeral pagão:

— Ad manes, aos nossos mortos! Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do
lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano: e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da
chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na
minha aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob o abrigo da sua
telha vã, com a sua panela atestada de couves, se agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que
não tenham lenha ou couve, lá está o João das Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem
todos os pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o carro vai ao mato
e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda és doce aos pequeninos!

Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer languidamente os jornais que o mordomo
trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata — jornais de Paris, jornais de Londres,
semanários, magazines, revistas, ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das revistas espreitava o
sumário, logo farto; às ilustrações rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando por cima das
gravuras. Depois, mais estirado para o lume:

— É uma seca... Não há que ler. — E de repente, revoltado contra este fastio opressor que o
escravizava, saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando
em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquele Seu 202, tão abarrotado de Civilização,
a que por um momento sequer fornecesse à sua alma um interesse vivo, à sua vida um fugitivo gosto!
Mas o 202 permaneceu insensível: nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças
tremeram sob o embate mais rude de água e vento.

Então, o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os
aparelhos com. pletadores e facilitadores da Vida — o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu Fonógrafo, o
seu Radiómetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina de Escrever, a sua Máquina de
Contar, a sua Imprensa Elétrica, a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus tubos, todos
os seus fios... Assim um suplicante percorre altares donde espera socorro. E toda a sua sumptuosa
Mecânica se conservou rígida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lâmina
vibrasse, para entreter o seu Senhor.

Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se
compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um dia partira levando o seu
peso — diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado.

O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama — com um livro... E durante um momento, estacou no meio da
Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como
Doutores num Concílio — depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos,
sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano.

Torcendo molemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças:
pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou na Revolução Francesa donde se arredou desencantado:
e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas
bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando,
sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas.

Não lhe apeteceu nenhuma dessas seis mil almas — e recuou, desconsolado, até aos Biólogos.. Tão maciça e cerrada era a
estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como perante uma cidadela inacessível! Rolou a
escada. — e, fugindo, trepou até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos: todo um
Sis tema Solar desabou com fragor.

Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras
novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.

Apanhava, folheava, arremessava: para
desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as
Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se
desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na
ânsia de encontrar um Livro!

Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados,
aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes —e, sem lhes provar a substância, já absolutamente
saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da suaabundância. Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados,
ergueu melancolicamente um velho «Diário de Notícias», e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.
Capítulo VII

Julho findara com uma chuva refrescante e consoladora: — e eu pensava em. realizar finalmente a minha
romagem às cidades da Europa, sempre retardada, através da Primavera, pelas surpresas do Mundo e da
Carne. Mas, de repente, Jacinto começou a rogar e a reclamar que o seu Zé Fernandes o acompanhasse,
todas as tardes, a casa de Madame d''Oriol! E eu compreendi que o meu Príncipe (à maneira do divino
Aquiles, que sob a tenda, e junto da branca, insípida e dócil Briseis, nunca dispensava Patoclo) desejava
ter, no retiro do Amor, a presença, o conforto e o socorro da Amizade. Pobre Jacinto! Logo pela manhã
combinava pelo telefone com Madame d''Oriol essa hora de quietação e doçura.

E assim encontrávamos sempre a superfina dama prevenida e solitária naquela sala da Rue de Lisbonne, onde Jacinto e eu mal
cabíamos, sufocávamos na confusão, entre os cestos de flores, e os ouros rocalhados, e os monstros do
Japão, e a galante fragilidade dos Saxes, e as peles de feras estiradas aos pés de sofás adormecedores, e os
biombos de Aubusson formando alcovas favoráveis e lânguidas...

Aninhada numa cadeira de bambulacada de branco, entre almofadas aromatizadas de verberia da Índia, com um romance pousado no
regaço, ela esperava o seu amigo, numa certa indolência passiva e mansa que me lembrava sempre o Oriente e um harém.

Mas, pelas frescas sedinhas Pompadour, parecia também uma marquesinha de Versalhes cansada do Grande Século; ou então, com brocados
sombrios e largos cintos cravejados, era como uma veneziana, preparada para um doge.

A minha intrusão, na intimidade daquelas tardes, não a contrariava — antes lhe trazia um vassalo novo,
com dois olhos novos para a contemplar. Eu era já o seu «cher Fernandez»!

E a apenas descerrava os lábios avivados de vermelho, semelhantes a uma ferida fresca, e começava a
chalrar — logo nos envolvia o burburinho e a murmuração de Paris. Ela só sabia chalrar sobre a sua
pessoa que era o resumo da sua Classe, e sobre a sua existência que era o resumo do seu Paris: — e a sua
existência, desde casada, consistira em ornar com suprema ciência o seu lindo corpo, entrar com
perfeição numa sala e irradiar, remexer em estofos e conferenciar pensativamente com o grande
costureiro;rolar pelo Bois pousada na sua vitória como uma imagem de cera; decotar e branquear o
colo, debicar uma perna de galinhola em mesas de luxo, fender turbas ricas em bailes espessos;
adormecer com a vaidade esfalfada; percorrer de manhã, tomando chocolate, os Ecos e as Festas do «
Figaro»; e de vez em quando murmurar para o marido: «Ah, és tu?...» Além disso, ao lusco-fusco, num
sofá, alguns curtos suspiros, entre os braços de alguém a quem era constante. Ao meu Príncipe, nesse
ano, pertencia o sofá. E todos estes deveres de Cidade e de Casta os cumpria sorrindo.

Tanto sorrira, desde casada, que já duas pregas lhe vincavam os cantos dos beiços, indelevelmente. Mas nem na alma,
nem na pele, mostrava outras máculas de fadiga. A sua agenda de visitas continha mil e trezentos nomes,
todos do Nobiliário. Através, porém, desta fulgurante sociabilidade arranjara no cérebro (onde decerto
penetrara o pó de arroz que desde o colégio acamava na testa) algumas Ideias Gerais.

Em Política era pelos Príncipes; e todos os outros. «horrores», a República, o Socialismo, a Democracia que se não lava,
os sacudia risonhamente, com um. bater de leque.

Na Semana Santa juntava às rendas do chapéu a coroa
amarga dos espinhos — por serem esses, para a gente bem nascida, dias de penitência e dor. E, diante de
todo o livro ou de todo o quadro, sentia a emoção e formulava finamente o juízo, que no seu Mundo, e
nessa Semana, fosse elegante formular e sentir. Tinha trinta anos. Nunca se embaraçara nos tormentos
de uma paixão. Marcava, com rígida regularidade, todas as suas despesas num livro de contas
encadernado em pelúcia verde-mar.

A sua religião íntima (e mais genuína do que a outra, que a levava
todos os domingos à missa de S. Philippe du Roule) era a Ordem. No Inverno, logo que na amável
Cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem abrigo — ela preparava com
comovido cuidado os seus vestidos de patinagem. E preparava também os de Caridade — porque era
boa, e concorria para bazares, concertos e tômbolas, quando fossem patrocinados pelas duquesas do seu
«rancho». Depois, na Primavera, muito metodicamente, regateando, vendia a uma adela os vestidos e as
capas de Inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de Parisianismo.

Pois respirando esta macia e fina Por passámos nós as tardes desse Julho enquanto as outras flores
pendiam e murchavam na calma e no pó. Mas, na intimidade do seu perfume, Jacinto não parecia
encontrar esse contentamento de alma, que entre tudo que cansa jamais cansa. Era já com a paciente
lentidão com que se sobem todos os Calvários, os mais bem tapetados, que ele subia a escadaria de
Madame d''Oriol, tão suave e orlada de tão frescas palmeiras, Quando a apetitosa criatura, com
dedicação, para o entreter, desdobrava a sua vivacidade como um pavão desdobra a cauda, o meu pobre
Príncipe puxava os pêlos do bigode murcho, na murcha postura de quem, por uma manhã de Maio,
enquanto os melros cantam nas sebes, assiste, numa igreja negra, a um responso fúnebre por um
príncipe. E no beijo que ele chuchurreava sobre a mão da sua doce amiga, para se despedir, havia sempre
alacridade e alívio.

Mas ao outro dia, ao começar da tarde, depois de errar através da Biblioteca e do Gabinete, puxando
sem curiosidade a tira do telégrafo, atirando algum recado mole pelo telefone, espalhando o olhar
desalentado sobre o saber imenso dos trinta mil livros, remexendo a colina dos jornais e revistas,
terminava por me chamar, já com a preguiça triste da façanha a que se impelia:

— Vamos a. casa de Madame d''Oriol, Zé Fernandes? Eu tinha marcadas para hoje seis ou sete coisas,
mas não posso, é uma seca! Vamos a casa de Madame d''Oriol... Ao menos lá, às vezes, há um bocado de
frescura e paz.

E foi numa dessas tardes, em que o meu Príncipe assim procurava desesperadamente um «bocado de
frescura e paz», que encontrámos, ao meio da escadaria suave, entre as palmeiras, o marido de Madame
d''Oriol. Eu já o conhecia — porque Jacinto mo mostrara uma noite, no Grand Café, ceando com
dançarinas do Moulin Rouge.

Era um rapaz gordalhufo indolente, de uma brancura crua de toucinho,
com uma calvície já séria e já lustrosa, constantemente acariciada pelos seus gordos dedos carregados de
anéis. Nessa tarde, porém, vinha vermelho, todo emocionado, calçando as luvas com cólera. Estacou
diante de Jacinto — e sem mesmo lhe apertar a mão, atirando um gesto para o patamar:
— Visita lá acima? Vai achar a Joana em péssima disposição... Tivemos uma cena, e tremenda.

Deu outro puxão desesperado à luva cor de palha, já esgaçada: — Estamos separados, cada um vive
como lhe apetece, é excelente! Mas em tudo há medida e forma... Ela tem o meu nome, não posso
consentir que em Paris, com conhecimento de todo o Paris, seja a amante do trintanário. Amantes da
nossa roda, vá! Um lacaio, não!... Se quer dormir com os criados que emigre para o fundo da província,
para a sua casa de Corbelle. E lá até com os animais!... Foi o que eu lhe disse! Ficou como uma fera.

Sacudiu então a mão de Jacinto que «era da sua roda» rebolou pela escadaria florida e nobre. O meu
Príncipe, imóvel nos degraus, de face pendida, cofiava lentamente os fios pendidos do bigode. Depois,
olhando para mim, como um ser saturado de tédio e em quem nenhum tédio novo pode caber:
— Já agora subamos, sim?

Parti então, com muita alegria, para a minha apetecida romagem às cidades da Europa.

Ia viajar!... Viajei. Trinta e quatro vezes, à, pressa, bufando, com todo o sangue na face, desfiz e refiz a
mala. Onze vezes passei o dia, num vagão, envolto em poeirada e fumo, sufocado, a arquejar, a escorrer
de suor, saltando em cada estação para sorver desesperadamente limonadas mornas que me
escangalhavam a entranha. Catorze vezes subi derreadamente, atrás de um criado, a escadaria
desconhecida de um hotel; e espalhei o olhar incerto por um quarto desconhecido; e estranhei uma cama
desconhecida, donde me erguia, estremunhado, para pedir em línguas desconhecidas um café com leite
que me sabia a fava, um banho de tina que me cheirava a lodo.

Oito vezes travei bulhas abomináveis na rua com cocheiros que me espoliavam. Perdi uma chapeleira,
quinze lenços, três ceroulas, e duas botas, uma branca, outra envernizada, ambas do pé direito.

Em mais de trinta mesas redondas esperei tristonhamente que me chegasse o boeuf-à-la-mode, já frio, com molho
coalhado — e que o copeiro me trouxesse a garrafa de Bordéus que eu provava e repelia com desditosa carantonha.

Percorri, na fresca penumbra dos granitos e dos mármores, com pé respeitoso e abafado, vinte e nove catedrais. Trilhei
molemente, com uma dor surda na nuca, em catorze museus, cento e quarenta salas revestidas até aos
tetos de Cristos, heróis, santos, ninfas, princesas, batalhas, arquiteturas, verduras, nudezas, sombrias
manchas de betume, tristezas das formas imóveis!...

E o dia mais doce foi quando em Veneza, onde chovia desabaladamente, encontrei um velho inglês de penca flamejante que
habitara o Porto, conhecera o Ricardo, o José Duarte, o visconde do Bom Sucesso, e as Limas da Boavista... Gastei seis
mil francos, Tinha viajado.

Enfim, numa bendita manhã de Outubro, na primeira friagem e névoa de Outono, avistei com
enternecido alvoroço as cortinas de seda ainda fechadas no meu 202! Afaguei o ombro do porteiro. No
patamar, onde encontrei o ar macio e tépido que deixara em Florença, apertei os ossos do Grilo
excelente:

— E Jacinto? O digno negro murmurou, de entre os altos, reluzentes colarinhos: — Sua Excelência
circula... Pesadote, fartote. Entrou tarde do baile da duquesa de Loches. Era o contrato de casamento de
Mademoiselle de Loches... Ainda tomou, antes de se deitar, um chá gelado... E disse a coçar a cabeça:
«Eh! que maçada! Eh! que maçada!»

Depois do banho e do chocolate, às dez horas, consolado e quentinho dentro do roupão de veludo,
rompi pelo quarto do meu Príncipe, de braços abertos e sedentos:

— Oh Jacinto! — Oh viajante!... Quando nos estreitámos, fartamente, eu recuei para lhe contemplar
a face — e nela a alma. Encolhido numa quinzena de pano cor de malva orlada de peles de marta, com
os pêlos do bigode murchos, as suas duas rugas mais cavadas, uma moleza nos ombros largos, o meu
amigo parecia já vergado sob o pesos e a opressão e o terror do seu dia. Eu sorri, para que ele sorrisse:

— Valente Jacinto... Então como tens vivido? Ele respondeu, muito serenamente: — Como um
morto. Forcei uma gargalhada leve, como se o seu mal fosse leve: — Aborrecidote, hem?

O meu Príncipe lançou, num gesto tão vencido, um «Oh» tão cansado — que eu compadecido de novo
o abracei, o estreitei, como para lhe comunicar uma parte desta alegria sólida e pura que recebi do meu
Deus!

Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o
tédio de que a existência o saturava.

O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em
sondar e formular esse tédio — na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a
potência. E o meu pobre Jacinto reproduziu a — comédia pouco divertida de um Melancólico que
perpetuamente raciocina a sua Melancolia!

Nesse raciocínio, ele partia sempre do facto irrecusável e maciço — que a sua vida especial de Jacinto
continha todos os interesses e todas as facilidades, possíveisno século XIX, numa vida de homem que não
é um génio, nem um santo. Com efeito!

Apesar do apetite embotado por doze anos de champanhes e molhos ricos ele conservava a sua rijeza de pinheiro bravo,
na luz da sua inteligência não aparecera nem tremor nem morrão, a boa terra de Portugal, e algumas
companhias maciças, pontualmente lhe forneciam a sua doce centena de contos; sempre ativas e sempre
fiéis o cercavam as simpatias de uma Cidade inconstante e chasqueadora; o 202 estourava de confortos;
nenhuma amargura de coração o atormentava; — e todavia era um Triste.

Porquê?... E daqui saltava,
com certeza fulgurante, à conclusão de que a sua tristeza, esse cinzento burel em que a sua alma andava
amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto — mas da Vida, do lamentável, do
desastroso facto de Viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem acolhido Jacinto tombara no
Pessimismo.

E um Pessimismo irritado! Porque (segundo afirmava) ele nascera para ser tão naturalmente otimista
como um pardal ou um gato.

E, até aos doze anos, enquanto fora um bicho superiormente amimado,
com a sua pele sempre bem coberta, o seu prato sempre bem cheio, nunca sentira fadiga, ou melancolia,
ou contrariedade, ou pena — e as lágrimas eram para ele tão incompreensíveis que lhe pareciam viciosas.

Só quando crescera, e da animalidade penetrara na humanidade, despontara nele esse fermento de
tristeza, muito tempo indesenvolvido no tumulto das primeiras curiosidades, e que depois alastrara, o
invadira todo, se lhe tornara consubstancial e como o sangue das suas veias.

Sofrer portanto era inseparável de Viver. Sofrimentos diferentes nos destinos diferentes da Vida. Na turba dos humanos é a
angustiada luta pelo pão, pelo teto, pelo lume; numa casta, agitada por necessidades mais altas, é a
amargura das desilusões, o mal da imaginação insatisfeita, o orgulho chocando contra o obstáculo; nele,
que tinha os bens todos e desejos nenhuns, era o tédio. Miséria do Corpo, tormento da Vontade, fastio
da Inteligência — eis a Vida! E agora aos trinta e três anos a sua ocupação era bocejar, correr com os
dedos desalentados a face pendida para nela palpar e apetecer a caveira

Foi então que o meu Príncipe começou a ler apaixonadamente, desde o «Ecclesiastes» até Schopenhauer,
todos os líricos e todos os teóricos do Pessimismo.

Nestas leituras encontrava a reconfortante comprovação de que o seu mal não era mesquinhamente «jacíntico» —
mas grandiosamente resultantede uma Lei Universal. já há quatro mil anos, na remota Jerusalém, a Vida,
mesmo nas suas delícias mais triunfais, se resumia em Ilusão. já o rei incomparável, de sapiência divina, sumo Vencedor,
sumo Edificador, se enfastiava, bocejava, entre os despojos das suas conquistas, e os mármores novos dos seus
templos, e as suas três mil concubinas, e as rainhas que subiam do fundo da Etiópia para que ele as
fecundasse e no seu ventre depusesse um deus!

Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena.
E o justo como o perverso, nascidos do pó, em pó se tornam. Tudo tende ao pó efémero, em Jerusalém e em Paris! E ele, obscuro
no 202, padecia por ser homem e por viver — como no seu trono de ouro, entre os seus quatro leões de ouro, o filho magnífico de David.

Não se separava então do «Ecclesiastes». E circulava por Paris trazendo dentro do coupé Salomão, como
irmão de dor, com quem repetia o grito desolado que é a suma da verdade humana — Vanitas
Vanitatum! Tudo é Vaidade! Outras vezes, logo de manhã o encontrava estendido no sofá, num roupão
de seda, absorvendo Schopenhauer — enquanto o pedicuro, ajoelhado sobre o tapete, lhe polia com
respeito e perícia as unhas dos pés. Ao lado pousava a chávena de Saxe, cheia desse café de Moka
enviado por emires do deserto, que não o contentava nunca, nem pela força, nem pelo aroma.

A espaços pousava o livro no peito, resvalava um olhar compassivo para o pedicuro, como a procurar que dor o
torturaria — pois que a todo o viver corresponde um sofrer. Decerto o remexer assim, perpetuamente,
em pés alheios... E quando o pedicuro se erguia, Jacinto abria para ele um sorriso de confraternidade —
com um «adeus, meu amigo» que era «um adeus, meu irmão!»

Esse foi o período esplêndido e soberbamente divertido do seu tédio. Jacinto encontrara enfim na vida
uma ocupação grata — maldizer a Vida! E para que a pudesse maldizer em todas as suas formas, as mais
ricas, as mais intelectuais, as mais puras, sobrecarregou a sua vida própria de novo luxo, de interesses
novos de espírito, e até de fervores humanitários, e até de curiosidades supernaturais.

O 202, nesse Inverno, refulgiu de magnificência. Foi então que ele iniciou em Paris, repetindo
Heliogábalo, os Festins de Cor contados na «História Augusta»: e ofereceu às suas amigas esse sublime
jantar cor-de-rosa, em que tudo era róseo, as paredes, os móveis, as luzes, as louças, os cristais, os gelados,
os champanhes, e até (por uma invenção da Alta Cozinha) os peixes, e as carnes, e os legumes, que os
escudeiros serviam, empoados de pó rosado, com librés da cor da rosa, enquanto do teto, de um velário
de seda rosada, caíam pétalas frescas de rosas...A Cidade, deslumbrada, clamou: «Bravo, Jacinto!» E o
meu Príncipe, ao rematar a festa fulgurante, plantou diante de mim as mãos nas ilhargas e gritou
triunfalmente: «Hem? Que maçada!...»

Depois foi o Humanitarismo: e fundou um hospício no campo, entre jardins, para velhinhos
desamparados, outro para crianças débeis à beira do Mediterrâneo. Depois com o major Dorchas, e
Mayolle, e o hindu de Mayolle penetrou no Teosofismo: e montou tremendas experiências para verificar
a misteriosa exteriorização da motilidade.

Depois, desesperadamente, ligou o 202 com os fios telegráficos do «Times», para que no seu gabinete, como num coração,
palpitasse toda a Vida Social daEuropa. E a cada um destes esforços da elegância, do humanitarismo, da sociabilidade,
e da inteligência indagadora, voltava para mim, de braços alegres, com um grito vitorioso: «Vés tu, Zé Fernandes? Uma
maçada!» Arrebatava então o seu «Ecclesiastes», o seu Schopenhauer, e, estendido no sofá, saboreava
voluptuosamente a concordância da Doutrina e da Experiência. Possuía uma Fé — o Pessimismo: era
um apóstolo rico e esforçado: e tudo tentava, com sumptuosidade, para provar a verdade da sua Fé!
Muito gozou nesse ano o meu desgraçado Príncipe!

No começo do Inverno, porém, notei com inquietação que Jacinto já não folheava o «Ecclesiastes»,
desleixava Schopenhauer. r. Nem festas, nem teosofismos, nem os seus hospícios, nem os fios do «Times»,
pareciam interessar agora o meu amigo, mesmo como demonstrações gloriosas da sua Crença.

E a sua abominável função de novo se limitou a bocejar, a passar os dedos moles sobre a face pendida, palpando
a caveira. Incessantemente aludia à morte como a uma libertação. Uma tarde mesmo, no melancólico
crepúsculo da Biblioteca, antes de refulgirem as luzes, consideravelmente me aterrou, falando num tom
regelado de mortes rápidas, sem dor, pelo choque de uma vasta pilha elétrica ou pela violência
compassiva do ácido cianídrico. Diabo! O Pessimismo, que aparecera na Inteligência do meu Príncipe
como um conceito elegante — atacara bruscamente a Vontade!

Todo o seu movimento então foi o de um boi inconsciente que marcha sob a canga e o aguilhão. Já não
esperava da Vida contentamento — nem mesmo se lastimava que ela lhe trouxesse tédio ou pena.
«Tudo é indiferente, Zé Fernandes!» E tão indiferentemente sairia à sua janela para receber uma coroa imperial
oferecida por um povo — como se estenderia numa poltrona rota para emudecer e jazer. Sendo tudo
inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante atividade ou a
mais desgostada inércia? O seu gesto constante, que me irritava, era encolher os ombros.

Perante duas ideias, dois caminhos, dois pratos, encolhia os ombros! Que importava?.. E no mínimo acto, raspar um
fósforo ou desdobrar um jornal, punha uma morosidade tão desconsolada que todo ele parecia ligado,
desde os dedos até à alma, pelas voltas apertadas de uma corda que se não via e que o travava.

Muito desagradavelmente me recordo do dia dos seus anos, a 10 de Janeiro. Cedo, de manhã, recebera,
com uma carta de Madame de Trèves, um açafate de camélias, azáleas, orquídeas e lírios do vale. E foi
este mimo que lhe recordou a data Considerável. Soprou sobre as pétalas o fumo do cigarro e
murmurou com um riso de lento escárnio:

— Então há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada? E como eu propunha que
telefonássemos aos amigos para beberem no 202 o champanhe do «natalício» — ele recusou, com o
nariz enojado. Oh! Não! Que horrível seca!... E bradou mesmo para o Grilo:

— Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!

E a sua ironia não cessou até ao almoço perante os bilhetes, os telegramas, as cartas, que subiam, se
arredondavam em colina sobre a mesa de ébano, como um preito da Cidade. Outras flores que vieram,
em vistosos cestos, com vistosos laços, foram por ele comparadas às que se depõem sobre uma tumba. E
apenas se interessou um momento pelo presente de Efraim, uma engenhosa mesa, que se abaixava até ao
tapete ou se alteava até ao teto — para quê, senhor Deus meu?

Depois do almoço, como chovia sombriamente, não arredámos do 202, com os pés estendidos ao lume,
em preguiçoso silêncio. Eu terminara por adormecer beatificamente. Acordei aos passos açodados do
Grilo... Jacinto, enterrado na poltrona, com umas tesouras, recortava um papel! E nunca eu me
compadeci daquele amigo, que cansara a mocidade a acumular todas as noções formuladas desde
Aristóteles e a juntar todos os inventos realizados desde Teramenes, como nessa tarde de festa, em que
ele, cercado de Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de
viver, se encontrava reduzido, junto ao seu lar, a recortar papéis com uma tesoura!

O Grilo trazia um presente do grão-duque — uma caixa de prata, forrada de cedro, e cheia de um chá
precioso, colhido, flor a flor, nas veigas de Kiang-Su por mãos puras de virgens, e conduzido através da
Ásia, em caravanas, com a veneração de uma relíquia.

Então, para despertar o nosso torpor, lembrei que tomássemos o divino chá — ocupação bem harmónica com a
tarde triste, a chuva grossa alagando os vidros, e a clara chama bailando no fogão. Jacinto acedeu — e um
escudeiro acercou logo a mesa de Efraim para que nós lhe estreássemos os serviços destros.

Mas o meu Príncipe, depois de a altear, para o
meu espanto, até aos cristais do lustre, não conseguiu, apesar de uma suada e desesperada batalha com as
molas, que a mesa regressasse a uma altura humana e caseira.

E o escudeiro de novo a levou, levantada como um andaime, quimérica, unicamente aproveitável para o gigante Adamastor.
Depois veio a caixa do chá entre chaleiras, lâmpadas, coadores, filtros, todo um fausto de alfaias de prata, que comunicavam
a essa ocupação, tão simples e doce em casa da minha tia, fazer chá, a majestade de um rito. Prevenido
pelo meu camarada da sublimidade daquele chá de Kiang-Su, ergui a chávena aos lábios com reverência.
Era uma infusão descorada que sabia a malva e a formiga. Jacinto provou, cuspiu, blasfemou... Não
tomámos chá.

Ao cabo de outro pensativo silêncio, murmurei, com os olhos perdidos no lume: — E as obras de.
Tormes? A igreja... já haverá igreja nova? Jacinto retomara o papel e a tesoura: — Não sei... Não tornei a
receber carta do Silvério... Nem imagino onde param os ossos... Que lúgubre história!

Depois chegou a hora das luzes e do jantar. Eu encomendara pelo Grilo ao nosso magistral cozinheiro
uma larga travessa de arroz-doce, com as iniciais de Jacinto e a data ditosa em canela, à moda amável da
nossa meiga terra. E o meu Príncipe à mesa, percorrendo a lâmina de marfim onde no 202 se escreviam
os pratos a lápis vermelho, louvou com fervor a ideia patriarcal:

— Arroz-doce! Está escrito com dois ss, mas não tem dúvida... Excelente lembrança! Há que tempos
não como arroz-doce! Desde a morte da avó.

Mas quando o arroz-doce apareceu triunfalmente, que. vexame! Era um prato monumental, de grande
arte! O arroz, maciço, moldado em forma de pirâmide do Egipto, emergia de uma calda de cereja, e
desaparecia sob os frutos secos que o revestiam até ao cimo, onde se equilibrava uma coroa de conde
feita de chocolate e gomos de tangerina gelada! E as iniciais, a data, tão lindas e graves na canela ingénua,
vinham traçadas nas bordas da travessa com violetas pralinadas! Repelimos, num mudo horror, o prato
acanalhado. — E Jacinto, erguendo o copo de champanhe, murmurou corpo num funeral pagão:

— Ad manes, aos nossos mortos! Recolhemos à Biblioteca, a tomar o café no conchego e alegria do
lume. Fora, o vento bramava como num ermo serrano: e as vidraças tremiam, alagadas, sob as bátegas da
chuva irada. Que dolorosa noite para os dez mil pobres que em Paris erram sem pão e sem lar! Na
minha aldeia, entre cerro e vale, talvez assim rugisse a tormenta. Mas aí cada pobre, sob o abrigo da sua
telha vã, com a sua panela atestada de couves, se agacha no seu mantéu ao calor da lareira. E para os que
não tenham lenha ou couve, lá está o João das Quintãs, ou a tia Vicência, ou o abade, que conhecem
todos os pobres pelos seus nomes, e com eles contam, como sendo dos seus, quando o carro vai ao mato
e a fornada entra no forno. Ah Portugal pequenino, que ainda és doce aos pequeninos!

Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer languidamente os jornais que o mordomo
trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata — jornais de Paris, jornais de Londres,
semanários, magazines, revistas, ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das revistas espreitava o
sumário, logo farto; às ilustrações rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando por cima das
gravuras. Depois, mais estirado para o lume:

— É uma seca... Não há que ler. — E de repente, revoltado contra este fastio opressor que o
escravizava, saltou da poltrona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando
em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquele Seu 202, tão abarrotado de Civilização,
a que por um momento sequer fornecesse à sua alma um interesse vivo, à sua vida um fugitivo gosto!
Mas o 202 permaneceu insensível: nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças
tremeram sob o embate mais rude de água e vento.

Então, o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os
aparelhos com. pletadores e facilitadores da Vida — o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu Fonógrafo, o
seu Radiómetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina de Escrever, a sua Máquina de
Contar, a sua Imprensa Elétrica, a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus tubos, todos
os seus fios... Assim um suplicante percorre altares donde espera socorro. E toda a sua sumptuosa
Mecânica se conservou rígida, reluzindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lâmina
vibrasse, para entreter o seu Senhor.

Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se
compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um dia partira levando o seu
peso — diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado.

O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama — com um livro... E durante um momento, estacou no meio da
Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como
Doutores num Concílio — depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos,
sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano.

Torcendo molemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças:
pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou na Revolução Francesa donde se arredou desencantado:
e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas
bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando,
sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas.

Não lhe apeteceu nenhuma dessas seis mil almas — e recuou, desconsolado, até aos Biólogos.. Tão maciça e cerrada era a
estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como perante uma cidadela inacessível! Rolou a
escada. — e, fugindo, trepou até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos: todo um
Sis tema Solar desabou com fragor.

Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras
novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate.

Apanhava, folheava, arremessava: para
desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as
Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se
desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na
ânsia de encontrar um Livro!

Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados,
aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes —e, sem lhes provar a substância, já absolutamente
saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância. Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados,
ergueu melancolicamente um velho «Diário de Notícias», e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.