Capítulo II

Então começou a minha vida de milionário. Deixei bem depressa a casa de Madame Marques – que,
desde que me sabia rico, me tratava todos os dias a arroz-doce, e ela mesma me servia, com o seu vestido de
seda dos domingos. Comprei, habitei o palacete amarelo, ao Loreto: as magnificências da minha instalação
são bem conhecidas pelas gravuras indiscretas da «Ilustração Francesa». Tornou-se famoso na Europa o meu
leito, de um gosto exuberante e bárbaro, com a barra recoberta de lâminas de ouro lavrado, e cortinados de um
raro brocado negro onde ondeiam, bordados a pérolas, versos eróticos de Catulo; uma lâmpada, suspensa no
interior, derrama ali a claridade láctea e amorosa de um luar de Verão.

Os meus primeiros meses ricos, não o oculto, passei-os a amar – a amar com o sincero bater de coração
de um pajem inexperiente. Tinha-a visto, como numa página de novela, regando os seus craveiros à varanda:
chamava-se Cândida; era pequenina, era loura; morava a Buenos Aires, numa casinha casta recoberta de
trepadeiras; e lembrava-me, pela graça e pelo airoso da cinta, tudo o que a Arte tem criado de mais fino e frágil
– Mimi, Virgínia, a Joaninha do Vale de Santarém.
Todas as noites eu caía, em êxtases de místico, aos seus pés cor de jaspe. Todas as manhãs lhe alastrava
o regaço de notas de vinte mil reis: ela repelia-as primeiro com um rubor, – depois, ao guardá-las na gaveta,
chamava-me o seu anjo Totó.
Um dia que eu me introduzira, a passos subtis, por sobre o espesso tapete sírio, até ao seu boudoir – ela
estava escrevendo, muito enlevada, de dedinho no ar: ao ver-me, toda trémula, toda pálida, escondeu o papel
que tinha o seu monograma. Eu arranquei-lho, num ciúme insensato. Era a carta, a carta costumada, a carta
necessária, a carta que desde a velha Antiguidade a mulher sempre escreve; começava por «Meu idolatrado»
– e era para um alferes da vizinhança...
Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos
louros, que conservam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a
Inocência, o Pudor, e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente
uma existência animal, grandiosa e cínica.

Ao bater do meio-dia, entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados
davam à água um tom opaco de leite: depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial
de quem celebra um culto: e embrulhado num robe-de-chambre de seda da Índia, através da galeria, dando
aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao
bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.
O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a
mobília era de porcelana fina de Dresde e as flores faziam um jardim de Armida; aí, saboreava o «Diário de
Notícias», enquanto lindas raparigas vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.
De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala,
arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases,
o nababo enfastiado!
Às vezes vinha-me como uma saudade dos meus tempos ocupados da repartição. Entrava em casa; e
encerrado na livraria, onde o Pensamento da Humanidade repousava esquecido e encadernado em marroquim,
aparava uma pena de pato, e ficava horas lançando sobre folhas do meu querido «Tojal» de outrora: «Il.mo e
Ex.mo Sr. – Tenho a honra de participar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a!...»
Ao começo da noite um, criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à
moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios,
de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço
de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: – e enrolando-se pelas
pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...
Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do coupé – e lá ia às Janelas Verdes, onde nutria, num jardim
de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me de uma túnica de seda fresca
e perfumada, – e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro
alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal-da-cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com
um suor frio, como um Tibério exausto.

Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma
turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar
a sotaina do Clero, e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e
uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: – ele adiantavase pela sala,
quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente,
espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha
bem-amada para esposa ou para concubina.
Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu
monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar
amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa
ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.
Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime
sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste sr. Teodoro; então, desvairada, a «Gazeta das Locais» chamou-me o
extraceleste sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma, cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco.
Todos os dias me era oferecida uma presidência de Ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.
Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da Monarquia. O «Figaro», cortesão,
em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal que assina «Saint-Genest»
dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as «Ilustrações»
estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes,
com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade
das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao universo pelos fios da
Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, que Rochefort, e que esse fino entendimento
que se chama «Todo-o-Mundo». Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o
pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas
que orlam o golfo do México. E eu, no entanto, vivia triste...

Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado, diante da mesma visão: ou estirada no limiar da
porta, ou atravessada sobre o leito de ouro – lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e túnica amarela, com
o seu papagaio nos braços... Era o mandarim Ti Chin-Fu! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se
dissipava. Então caía aniquilado, todo em suor, sobre uma poltrona, e murmurava no silêncio do quarto, onde
as velas dos candelabros davam tons ensanguentados aos damascos vermelhos:
– Preciso matar este morto!
E, todavia, não era esta impertinência de um velho fantasma pançudo, acomodando-se nos meus móveis,
sobre as minhas colchas, que me fazia saber mal a vida.
O horror supremo consistia na ideia, que se me cravara então no espírito como um ferro inarrancável – que
eu tinha assassinado um velho!

Não fora com uma corda em torno da garganta, à moda muçulmana; nem com veneno num cálice de
vinho de Siracusa, à maneira italiana da Renascença; nem com algum dos métodos clássicos, que na história
das monarquias têm recebido consagrações augustas– a punhal como D. João II, à clavina como Carlos IX...
Tinha eliminado a criatura, de longe, com uma campainha. Era absurdo, fantástico, faceto. Mas não
diminuía a trágica negrura do facto: eu assassinara um velho!
Pouco a pouco esta certeza ergueu-se, petrificou-se na minha alma, e como uma coluna num descampado
dominou toda a minha vida interior: de sorte que, por mais desviado caminho que tomassem, os meus
pensamentos viam sempre negrejar no horizonte aquela memória acusadora; por mais alto que se levantasse
o voo das minhas imaginações, elas terminavam por ir fatalmente ferir as asas nesse monumento de miséria
moral.

Ah! por mais que se considere Vida e Morte como banais transformações da Substância, é pavoroso o
pensamento – que se fez regelar um sangue quente, que se imobilizou um músculo vivo! Quando, depois de
jantar, sentindo ao lado o aroma do café, eu me estirava no sofá, enlanguecido, numa sensação de plenitude,
elevava-se logo dentro em mim, melancólico como o coro que vem de um ergástulo, todo um sussurro de
acusações:
– E todavia tu fizeste que esse bem-estar em que te regalas, nunca mais fosse gozado pelo venerável Ti
Chin-Fu!...
Debalde eu replicava à Consciência, lembrando-lhe a decrepitude do Mandarim, a sua gota incurável...
Facunda em argumentos, gulosa de controvérsia, ela retorquia logo com furor:
– Mas, ainda na sua actividade mais resumida, a vida é um bem supremo: porque o encanto dela reside no
seu princípio mesmo, e não na abundância das suas manifestações!
Eu revoltava-me contra este pedantismo retórico de pedagogo rígido: erguia alto a fronte, gritava-lhe
numa arrogância desesperada:

– Pois bem! Matei-o! Melhor! Que queres tu? O teu grande nome de Consciência não me assusta! És
apenas uma perversão da sensibilidade nervosa. Posso eliminar-te com flor de laranja!
E imediatamente sentia passar-me na alma, com uma lentidão de brisa, um rumor humilde de murmurações
irónicas:
– Bem, então come, dorme, banha-te e ama... Eu assim fazia. Mas logo os próprios lençóis de bretanha do
meu leito tomavam aos meus olhos apavorados os tons lívidos de uma mortalha; a água perfumada em que me
mergulhava arrefecia-me sobre a pele, com a sensação espessa de um sangue que coalha: e os peitos nus das
minhas amantes entristeciam-me, como lápides de mármore que encerram um corpo morto.
Depois assaltou-me uma amargura maior: comecei a pensar que Ti Chin-Fu tinha decerto uma vasta
família, netos, bisnetos tenros, que, despojados da herança que eu comia à farta em pratos de Sèvres, numa
pompa de sultão perdulário, iam atravessando na China todos os infernos tradicionais da miséria humana – os
dias sem arroz, o corpo sem agasalho, a esmola recusada, a rua lamacenta por morada...

Compreendi então porque me perseguia a figura obesa do velho letrado; e dos seus lábios recobertos pelos
longos pêlos brancos do seu bigode de sombra, parecia-me sair agora esta acusação desolada: «Eu não me
lamento a mim, forma meio morta que era; choro os tristes que arruinaste, e que a estas horas, quando tu vens
do seio fresco das tuas amorosas, gemem de fome, regelam na frialdade, apinhados num grupo expirante, entre
leprosos e ladrões, na Ponte dos Mendigos, ao pé dos terraços do Templo do Céu!»

Oh tortura engenhosa! Tortura realmente chinesa! Não podia levar à boca um pedaço de pão sem imaginar
imediatamente o bando faminto de criancinhas, a descendência de Ti Chin-Fu, penando, como passarinhos
implumes que abrem debalde o bico e piam em ninho abandonado; se me abafava no meu paletó, era logo a
visão de desgraçadas senhoras, mimosas outrora de tépido conforto chinês, hoje roxas de frio, sob andrajos de
velhas sedas, por uma manhã de neve; o tecto de ébano do meu palacete lembrava-me a família do Mandarim,
dormindo à beira dos canais, farejada pelos cães; e o meu coupé bem forrado fazia-me arrepiar à ideia das
longas caminhadas errantes, por estradas encharcadas, sob um duro Inverno asiático...

O que eu sofria! – E era o tempo em que a populaça invejosa vinha pasmar para o meu palacete, comentando
as felicidades inacessíveis que lá deviam habitar!
Enfim, reconhecendo que a Consciência era dentro em mim como uma serpente irritada – decidi implorar
o auxílio d’Aquele que dizem ser superior à Consciência porque dispõe da Graça.
Infelizmente eu não acreditava n’Ele... Recorri pois à minha antiga divindade particular, ao meu dilecto
ídolo, padroeira da minha família, Nossa Senhora das Dores. E, regiamente pago, um povo de curas e cónegos,
pelas catedrais de cidades e pelas capelas de aldeia, foi pedindo a Nossa Senhora das Dores que voltasse os
seus olhos piedosos para o meu mal interior... Mas nenhum alívio desceu desses Céus inclementes, para onde
há milhares de anos debalde sobe o calor da miséria humana.

Então eu próprio me abismei em práticas piedosas – e Lisboa assistiu a este espectáculo extraordinário:
um ricaço, um nababo, prostrando-se humildemente ao pé dos altares, balbuciando de mãos postas frases
da salve-rainha, como se visse na Oração e no Reino do Céu, que ela conquista, outra coisa mais que uma
consolação fictícia que os que possuem tudo inventaram para contentar os que não possuem nada... Eu pertenço
à burguesia; e sei que se ela mostra à plebe desprovida um Paraíso distante, gozos inefáveis a alcançar – é para
lhe afastar a atenção dos seus cofres repletos e da abundância das suas searas.

Depois, mais inquieto, fiz dizer milhares de missas, simples e cantadas, para satisfazer a alma errante de Ti
Chin-Fu. Pueril desvario de um cérebro peninsular! O velho Mandarim, na sua classe de letrado, de membro
da Academia dos Han-Lin, colaborador provável do grande tratado «Khu Tsuane-Chu», que já tem setenta e
oito mil e setecentos e trinta volumes, era certamente um sectário da doutrina, da moral positiva de Confúcio...
Nunca ele, sequer, queimara mechas perfumadas em honra de Buda: e os cerimoniais do sacrifício místico
deviam parecer à sua abominável alma de gramático e de céptico como as pantomimas dos palhaços no teatro
de Hong-Tung!

Então prelados astutos, com experiência católica, deram-me um conselho subtil – captar a benevolência
de Nossa Senhora das Dores com presentes, flores, brocados e jóias, como se quisesse alcançar os favores de
Aspásia: e à maneira de um banqueiro obeso, que obtém as complacências de uma dançarina dando-lhe um
cottage entre árvores – eu, por uma sugestão sacerdotal, tentei peitar a doce Mãe dos Homens, erguendo-lhe
uma catedral toda de mármore branco.

A abundância das flores punha entre os pilares lavrados perspectivas
de paraísos: a multiplicidade dos lumes lembrava uma magnificência sideral... Despesas vãs! O fino e erudito
cardeal Nani veio de Roma consagrar a igreja; mas, quando eu nesse dia entrei a visitar a minha hóspeda
divina, o que vi, para além das calvas dos celebrantes, entre a mística névoa dos incensos, não foi a Rainha da
Graça, loira, na sua túnica azul – foi o velho malandro com o seu olho oblíquo e o seu papagaio nos braços!
Era a ele, ao seu branco bigode tártaro, à sua pança cor de oca, que todo um sacerdócio recamado de oiro
estava oferecendo, ao roncar do órgão, a Eternidade dos louvores!...

Então, pensando que Lisboa, o meio dormente em que me movia, era favorável ao desenvolvimento destas
imaginações – parti, viajei sobriamente, sem pompa, com um baú e um lacaio.
Visitei, na sua ordem clássica, Paris, a banal Suíça, Londres, os lagos taciturnos da Escócia; ergui a minha
tenda diante das muralhas evangélicas de Jerusalém; e de Alexandria a Tebas, fui ao comprido desse longo
Egipto monumental e triste como o corredor de um mausoléu. Conheci o enjoo dos paquetes, a monotonia das
ruínas, a melancolia das multidões desconhecidas, as desilusões do bulevar: e o meu mal interior ia crescendo.

Agora já não era só a amargura de ter despojado uma família venerável: assaltava-me o remorso mais
vasto de ter privado toda uma sociedade de um personagem fundamental, um letrado experiente, coluna da
Ordem, esteio de instituições. Não se pode arrancar assim a um Estado uma personalidade do valor de cento
e seis mil contos, sem lhe perturbar o equilíbrio... Esta ideia pungia-me acerbamente. Ansiei por saber se na
verdade a desaparição de Ti Chin-Fu fora funesta à decrépita China: li todos os jornais de Hong-Kong e de
Xangai, velei a noite sobre histórias de viagens, consultei sábios missionários: – e artigos, homens, livros, tudo
me falava da decadência do Império do Meio, províncias arruinadas, cidades moribundas, plebes esfomeadas,
pestes e rebeliões, templos aluindo-se, leis perdendo a autoridade, a decomposição de um mundo, como uma
nau encalhada que a vaga desfaz tábua a tábua!...

E eu atribuía-me estas desgraças da sociedade chinesa! No meu espírito doente Ti Chin-Fu tomara então
o valor desproporcionado de um César, um Moisés, um desses seres providenciais que são a força de uma
raça. Eu matara-o; e com ele desaparecera a vitalidade da sua pátria! O seu vasto cérebro poderia talvez ter
salvado, a rasgos geniais, aquela velha monarquia asiática – e eu imobilizara-lhe a acção criadora! A sua
fortuna concorreria a refazer a grandeza do Erário – e eu estava-a dissipando a oferecer pêssegos em Janeiro
às messalinas do Helder!... – Amigos, conheci o remorso colossal de ter arruinado um império!

Para esquecer este tormento complicado, entreguei-me à orgia. Instalei-me num palacete da Avenida dos
Campos Elísios – e foi medonho. Dava festas à Trimalcião: e, nas horas mais ásperas de fúria libertina, quando
das charangas, na estridência brutal dos cobres, rompiam os cancãs; quando prostitutas, de seio desbragado,
ganiam coplas canalhas; quando os meus convidados boémios, ateus de cervejaria, injuriavam Deus, com a
taça de champanhe erguida – eu, tomado subitamente como Heliogábalo de um furor de bestialidade, de um
ódio contra o Pensante e o Consciente, atirava-me ao chão a quatro patas e zurrava formidavelmente de burro...
Depois quis ir mais baixo, ao deboche da plebe, às torpezas alcoólicas do «Assommoir»: e quantas vezes,
vestido de blusa, com o casquete para a nuca, de braço dado com «Mes-Bottes» ou «Bibi-la-Gaillarde», num
tropel avinhado, fui cambaleando pelos bulevares exteriores, a uivar, entre arrotos:
Allons, enfants de la patrie-e-e!...
Le jour de gloire est arrivé...

Foi uma manhã, depois de um destes excessos, à hora em que nas trevas da alma do debochado se ergue
uma vaga aurora espiritual – que me nasceu, de repente, a ideia de partir para a China! E, como soldados em
acampamento adormecido, que ao som do clarim se erguem, e um a um se vão juntando e formando coluna
– outras ideias se foram reunindo no meu espírito, alinhando-se, completando um plano formidável... Partiria
para Pequim; descobriria a família de Ti Chin-Fu; esposando uma das senhoras, legitimaria a posse dos meus
milhões; daria àquela casa letrada a antiga prosperidade; celebraria funerais pomposos ao Mandarim, para lhe
acalmar o espírito irritado; iria pelas províncias miseráveis fazendo colossais distribuições de arroz; e, obtendo
do imperador o botão de cristal de mandarim, acesso fácil a um bacharel, substituir-me-ia à personalidade
desaparecida de Ti Chin-Fu – e poderia assim restituir legalmente à sua pátria, se não a autoridade do seu
saber, ao menos a força do seu oiro.

Tudo isto, por vezes, me aparecia como um programa indefinido, nevoento, pueril e idealista. Mas já o
desejo desta aventura original e épica me envolvera; e eu ia, arrebatado por ele, como uma folha seca numa
rajada.
Anelei, suspirei por pisar a terra da China! – Depois de altos preparativos, apressados a punhados de ouro,
uma noite parti enfim para Marselha. Tinha alugado todo um paquete, o «Ceilão». E na manhã seguinte, por
um mar azul-ferrete, sob o voo branco das gaivotas, quando os primeiros raios do sol ruborizavam as torres de
Nossa Senhora da Guarda, sobre o seu rochedo escuro – pus a proa ao Oriente.